Todos aqueles que não se alistaram em guerras

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A palavra inferno, que hoje conhecemos, origina-se da palavra latina précristã inferus, que significava "lugares baixos"; foi dela que surgiu o termo
infernus. Na Bíblia latina, a palavra é usada para representar o termo
hebraico Seol e os termos gregos Hades e Geena, sem distinção. A maioria
das traduções ao português seguem o latim, e elas não fazem distinção do
original hebraico ou grego.
Geena, do grego, se refere a um lago de fogo. Já o Seol hebraico e o grego
Hades parecem se referir a uma mesma ideia, muito anterior à própria
Bíblia: um reino dos mortos (que ficava abaixo da terra, daí a conexão com
infernus).
Segundo a mitologia grega, os deuses olímpicos saíram vitoriosos da
batalha travada contra os titãs (a titanomaquia), e Zeus, Poseidon e Hades
partilharam entre si o universo; Zeus ficou com os céus, Poseidon ficou com
os oceanos e Hades ficou com o mundo dos mortos, que leva o nome deste
deus (além disso, todos eles partilharam a terra igualmente, daí a ideia de
que poderiam influenciar os vivos).
A influência de Hades no reino dos vivos é quase que estritamente negativa
e maléfica, vinculada à pragas, doenças, destruições e guerras, mas
também é tida como influência de desafios, afinal nas tradições antigas,
para seguirem o "caminho do herói", testes e provações físicas e
psicológicas eram necessárias... Da mesma forma, o reino de Hades, o reino
dos mortos, não é um conceito que poderia ser associado somente ao que o
cristianismo passou a compreender por inferno.
No Hades as almas eram julgadas por três juízes [1], com responsabilidades
específicas: Minos tinha o voto decisivo; Éaco julgava as almas europeias; e
Radamanto julgava as almas asiáticas. Nem mesmo Hades interferia no
julgamento deles, a não ser em raras ocasiões. Este tipo de julgamento
moral se assemelha a concepção cristã do julgamento do final dos tempos,
mas o que ocorre com as almas boas? Elas saem do Hades?
Aí é que está: não saem, pois o próprio Hades é um reino com o seu céu e o
seu inferno. O céu é conhecido na mitologia grega como Campos Elíseos; o
inferno, como Tártaro. Ambos ficam no reino dos mortos, no Hades. Dessa
forma, apesar de a mitologia bíblica haver bebido da fonte da mitologia
antiga, há algumas contradições importantes... O exegeta bíblico poderá
dizer que o cristianismo é uma espécie de refinamento das ideias pagãs
anteriores, mas será que isto se sustenta?
Por “refinamento”, quero dizer “interpretação mais espiritualmente
aprofundada”. Porém, ocorre que, apesar de tanto a mitologia bíblica
quanto a grega concordarem que os mortos são julgamos pelas suas obras,
o julgamento do deus bíblico me parece mais autoritário e implacável.
Dependendo da interpretação, mesmo um ladrão de galinhas pode ser
condenado ao inferno. Outro problema é a gradação de penas: na mitologia
bíblica, o ladrão de galinhas e o assassino parecem destinados a receber a
mesma pena (arder eternamente num lago de fogo); na mitologia pagã,
pelo contrário, as penas são dadas de acordo com as faltas, como ocorre
num tribunal de justiça terrena. Eu, sinceramente, não vejo refinamento
algum nesta exegese bíblica.
Há, em todo caso, uma primeira questão infernal que se aplica ao inferno
bíblico: Os bons, aqueles que chegaram ao céu, não ficariam tristes por
saber que boa parte de seus familiares e amigos estarão condenados a
arder num lago de fogo por toda a eternidade?
Ora, segundo a mitologia grega, no Hades os julgamentos ocorrem após a
morte, e não após um juízo final. Ainda assim, a questão persiste... Mas no
caso pagão, há muitas interpretações alternativas que dizem que o
condenado ao Tártaro pode eventualmente cumprir sua pena e assim se
elevar aos Elíseos; Ainda outras teorias, mais antigas, simplesmente
afirmam que após o cumprimento da pena no Tártaro o condenado estaria
apto a reencarnar na terra. Enfim, no paganismo não haviam dogmas
infalíveis, e os mitos eram constantemente reinterpretados.
Mas no mito bíblico nada disso ocorre. Há um julgamento final, e depois
cada grupo irá para o seu canto, por toda a eternidade... Ora, de fato, ainda
que o inferno cristão não fosse um local de sofrimento eterno, o simples
fato de familiares e amigos serem separados pela eternidade inteira seria
um motivo de sofrimento... Eterno?
Como se não bastasse esta, há uma segunda questão infernal ainda mais
complexa. Segundo a bíblia, o governante do inferno é um anjo que, por
haver se corrompido e escolhido o caminho do mal, tornou-se ele próprio o
supremo representante do mal – o anjo caído. Eis a questão: Seria este
anjo incapaz de arrepender-se, por toda a eternidade? Um anjo, quando cai,
e se corrompe, não tem nenhuma, nenhuma oportunidade de se
arrepender, de remediar sua situação? Haveria justiça divina nesta ideia?
Se não houvesse o livre-arbítrio, todos seríamos fantoches nas mãos de
Deus. Portanto, é preciso a liberdade para que um ser exista enquanto ser,
e não enquanto autômato [2]. Dessa forma, se o anjo caído, Lúcifer, não
tiver a liberdade para decidir se arrepender, isto significa que ele é mero
fantoche nas mãos do deus bíblico – o que equivale a dizer que tudo o que
Lúcifer faz seria, no fundo, decidido pelo Mestre dos Fantoches. Eu não sei
quanto a vocês, mas acho esta uma ideia absurda.
O exegeta bíblico poderá responder a tais questões infernais de forma
superficial, quem sabe: (a) Ao chegar no céu, Deus apaga da memória dos
escolhidos todas as lembranças daqueles que foram para o inferno, e dessa
forma não sentirão saudades nem sofrerão pelo que ocorre a eles; e (b)
Lúcifer simplesmente não se arrependeu, e talvez jamais se arrependa, por
isso ainda existe o mal no mundo. Pois bem, vocês acham, honestamente,
que tais respostas vagas resolvem essas questões?
Os pensadores contemporâneos têm concepções bem mais profundas e
interessantes do mito do céu e inferno. Sejam cristãos, não cristãos,
agnósticos, existencialistas, espiritualistas, estudiosos de mitologia, não
importa muito, pois este é um mito que toca a humanidade inteira [3]: Não
poderíamos interpretar o céu e o inferno como estados da consciência
humana?
Seguindo esta bela reflexão, devemos considerar que cada um constrói o
seu próprio céu e inferno em sua própria consciência. Portanto, aquele que
encontrou Deus dentro de si [4], mesmo no deserto mais árido e seco,
estará ainda num Oceano de Amor em sua própria consciência, dentro da
alma, que carrega consigo para todo lugar.
E, assim, chegando neste céu, não titubeará nem por um segundo em
descer ao inferno [5] para convidar quem lá está a se aventurar neste vasto
Oceano. A questão, no entanto, é que apenas um convite não basta: é
preciso mergulhar. Somente o ser em si poderá decidir por abandonar os
dogmas antigos, e dar este verdadeiro salto de fé no desconhecido, na
imensidão da própria alma... Então, quem sabe, alcance o céu. Então, quem
sabe, seja salvo – salvo da ignorância.
Mergulhe suave. Os mensageiros orientam!
***
[1] Os juízes não são deuses e sim mortos que devido à sua forte
personalidade e seu senso de justiça tornaram-se juízes. Em algumas
versões Hades seria o presidente do tribunal dos mortos.
[2] Fôssemos criados “já perfeitos”, não somente não haveria mérito algum
de nossa parte em “sermos perfeitos”, como na prática seríamos
autômatos, robôs “programados para a perfeição” por algum deus estranho.
Isto é, seja lá o que for esta “perfeição”...
[3] A concepção bíblica de que somente aqueles que aceitam Nosso Senhor
Jesus Cristo serão salvos é tão absurda que nem a incluí neste artigo. Para
início de conversa, isto seria condenar todos que viveram antes do Cristo, e
todos que jamais ouviram falar do Cristo, automaticamente ao inferno. Isto
dá um montão de gente!
[4] Ou “o amor”, ou “a iluminação”, ou “a vida”, ou “o Cosmos”, ou “o
Verdadeiro Eu”, etc.
[5] Como Sartre já disse: “o inferno são os outros”.
Crédito da imagem: aaa
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