Trabalho de Conclusão de Curso

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Trabalho de Conclusão de Curso
2o semestre – 2008
UNICAMP
Disciplina de Saúde Coletiva
Tema SUS e Teoria Paidéia
Aluno (observador): Haraldo Cesar Saletti Filho
Professor: Gastão Wagner de Sousa Campos
Atenção primária à saúde e estratégia saúde da família: possibilidades, dificuldades e desafios
Resumo: Abordo a atenção primária à saúde na perspectiva de uma avaliação crítica de
práticas desenvolvidas em serviços públicos da cidade de São Paulo. O objetivo é relacionar
aspectos teórico-conceituais da teoria Paidéia a vivências em serviços de saúde. O trabalho
aborda a necessidade de mais formação acadêmica para gestores e gerentes dos serviços de
saúde em São Paulo, particularmente, na organização das Unidades Básicas de Saúde e na
supervisão das equipes de saúde da família. Apesar da temática ter amplos contornos,
inclusive aspectos político-ideológicos que interferem na construção da rede sanitária
paulistana, focalizo minha preocupação nos discursos e práticas que orientam a assistência aos
pacientes no micro-espaço da unidade de saúde.
Palavras-chave: Atenção primária à saúde, organização da assistência à saúde, estratégia
saúde da família, cuidado em saúde, autonomia.
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O conceito de atenção primária de saúde e a estratégia saúde da família como política de
atenção básica no Brasil
Andrade et at. (2006) referem que a atenção primária á saúde engloba
responsabilidades e tarefas tais como a saúde materno-infantil, o planejamento familiar, as
imunizações, a educação preventiva, a implementação de tratamentos para as doenças mais
prevalentes e o manejo de condições clínicas diversas, incluindo o encaminhamento para
especialistas de casos não passíveis de assistências integral com os recursos da atenção
primária ou de casos relacionados a problemas incomuns que necessitem de pareceres
especializados. Caracteriza-se, portanto, como local de identificação de necessidades e de
entrada no sistema de saúde, com atenção centrada na pessoa e sustentada ao longo do tempo.
Por isso, organiza e racionaliza o uso de recursos. Utiliza uma abordagem preventiva,
integrada com outros níveis de atenção. Requer recursos humanos cientificamente
qualificados e capacitados, sendo organizada em coordenação com a comunidade e vinculada
aos demais níveis da rede sanitária.
A estratégia saúde da família (ESF) representa a atual política nacional de atenção
primária à saúde no Brasil e tem como objetivo primordial universalizar o acesso da
população brasileira à assistência à saúde. Além disso, visa consolidar o processo de
descentralização da gestão da atenção primária à saúde aos municípios brasileiros (Andrade et
al. 2006).
Ampliado o acesso, o desafio recai sobre a permanente qualificação da rede
assistencial, o que depende de profissionais de saúde capacitados e supervisionados. Os
profissionais de saúde que atuam na atenção primária à saúde precisam de duas capacidades
básicas. Uma prática clínica qualificada para avaliação de necessidades de saúde, o que
depende, inclusive, de competências para relacionamento de diferentes racionalidades de
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saúde e da utilização dos respectivos recursos técnicos; e a crescente capacitação para
operacionalizar e coordenar fluxos assistenciais múltiplos com a rede sanitária.
Esse quadro radicaliza-se diante do envelhecimento populacional, do avanço científico
e da presença de diversos canais de difusão de informações que podem tanto contribuir quanto
dificultar a coordenação local da assistência à saúde. Além disso, ainda sabemos da
sobreposição da assistência nas redes pública e privada, com lógicas assistenciais diferentes,
já que, exceto em raras exceções, o trabalho médico para identificação das necessidades de
saúde e orientação dos pacientes é fragmentado na rede privada, ainda baseada na autoridade
de especialistas e no uso não racional de recursos diagnósticos e terapêuticos.
Tudo isso indica diferentes leituras sobre o processo saúde-doença e sobre as medidas
preventivas efetivas e necessárias, influenciando as expectativas dos pacientes e direcionando
a formação médica e o interesse discente para ações sem embasamento epidemiológico, o que
se desdobra numa baixa capacidade dos profissionais médicos para atuação na saúde pública,
seja para o trabalho nas unidades de saúde da família ou para ações de educação popular em
saúde.
Desse modo, podemos nos deparar com um SUS partido, pois o sistema privado, ao
invés de compreendido como complementar à lógica organizacional e operativa do SUS, é
referido como alternativa mais dinâmica, rápida, efetiva e integral do que os serviços
públicos. Isso enfraquece a atenção primária à saúde, que passa a ser entendida, tanto pela
população, como pelos profissionais, como um trabalho simplificado para a população mais
pobre, e reforça nossa dicotomia social, fragilizando ainda mais o sentido de cidadania
brasileira. Pois quem pode paga, e quem não paga, vai ao SUS.
Portanto, uma formação ampliada sobre as questões sanitárias e o desenvolvimento
contínuo, histórico e relacionado aos modos de pensar sobre a saúde é possibilidade para o
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fortalecimento de profissionais críticos e hábeis na gestão e na assistência à saúde pelo SUS,
principalmente na complexa tarefa da atenção primária à saúde.
Teoria Paidéia e co-construção de autonomia
Uma das formas de se enfrentar o problema da formação profissional e da relação
entre saúde coletiva e clínica na atenção primária à saúde é o reconhecimento dos modos de
operar tecnicamente no trabalho em saúde saúde. No exercício da clínica, os profissionais
estabelecem recortes de objetos de intervenção sobre os quais visam a melhora da saúde de
um indivíduo. Mas esse indivíduo possui em sua individualidade especificidades. Essa
singularidade nos remete para elementos de sentido e significado em torno do corpo, da saúde
e do adoecimento. Segundo Campos (2006):
A objetividade da clínica é fornecida pelo conhecimento acumulado em
protocolos e diretrizes construídos com base em evidências. As utilizações
de técnicas de semiologia da doença e de avaliação do risco continuam a
ser tarefas essenciais do trabalhador de saúde. Estas técnicas permitem ao
profissional construir um pedaço da história do processo saúde e doença
de cada caso. Este pedaço pode ser alcançado mediante entrevista, exame
físico e coleta de dados provenientes de exames de laboratório, estudos
anatomopatológicos e de imagens... A inovação estaria em, sem abandonar
esses procedimentos e metodologias, combina-los com a escuta da
“história da vida” do usuário, centrada em torno da demanda que o levou
ao serviço de saúde. Combinar semiologia e indicadores de risco, de
morbidade e mortalidade com escuta à demanda dos sujeitos. Este processo
permite ampliar o diagnóstico, além da avaliação objetiva de riscos;
realiza-se, de modo compartilhado com o usuário, uma avaliação de
vulnerabilidade, que inclui, além do risco biológico, o risco decorrente de
comportamentos subjetivos, culturais e ainda outros originados no contexto
socioeconômico. (p. 80-1).
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Um conceito nuclear de produção de mudança expresso no pensamento de Campos e
Campos (2006) é a autonomia, entendida em contextos intersubjetivos e de interdependência
nos quais a construção de sentidos e significados para a saúde e para o adoecimento está, na
verdade, sempre inserida numa construção conjunta, por isso, co-construída. Assim, a própria
atividade de co-construir é exposta como uma finalidade do trabalho em saúde. Não seria um
novo objeto de trabalho, um novo recorte de um novo problema sobre o qual o profissional de
saúde atua e transforma, mas uma nova forma de se construir objetivos de mudança para o
cuidado em saúde em que o profissional participa de uma interação em que o modo do
paciente ser mais autônomo precisa de apoio. Nessa interação, manejando recursos de saúde e
a própria história do paciente, o profissional sustenta o paciente em suas decisões e
apresentada possibilidades de cuidado.
Isso não enseja apenas adaptações nos processos atuais de intervenção, mas requer,
sobretudo, novas diretrizes políticas e mudanças teóricas no horizonte de ação do trabalho de
saúde. A construção de um “objeto” de trabalho passa a ser uma atividade de sínteses das
condições de vida e de saúde com os problemas enfrentados, entre estes, o adoecimento. Ao
invés do isolamento analítico de avaliações de risco, avaliações de vulnerabilidade, no sentido
mais abrangente que esse termo possa ter.
A vulnerabilidade encarnada como condição humana e social e a co-construção de
autonomia como valorização do “sujeito” tem, por isso, em cada atendimento, uma situação
única e especial que motiva a avaliação do trabalho em saúde. Isso se desdobraria, inclusive,
na avaliação dos processos gerenciais de recursos e da gestão dos profissionais nos serviços e
dos sistemas locais de saúde, quando o paciente, em sua singularidade, expõe problemas e
expectativas de resolução e o profissional trabalha por teorias guia, saberes práticos
incorporados, em atitudes de uma ética implícita de atenção ao outro e sua saúde.
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Pensada dessa forma, a atenção primária à saúde altera radicalmente seu campo de
conhecimento e de práticas à saúde, aderida, desse modo, à integração das práticas de saúde
coletiva às de clínica ampliada. A co-produção da saúde acontece, segundo Campos (2006) no
espaço concreto dos serviços e da comunidade, e isso nos movimenta para a ampliação de
horizontes teórico-conceituais em sintonia com os sentidos e significados co-construídos nas
práticas de saúde. Entre outras coisas, percebo que isso re-coloca o sanitarista numa nova
tarefa. No complexo processo de formação das cidades e do desenvolvimento tecnológico, a
recuperação dos aspectos interacionais, éticos, do cuidado como horizonte prático de atuação,
correlacionado com os protocolos clínicos, requer que a história do pensamento, das
concepções de corporeidade e do próprio cuidado sejam integradas em modelos que
subsidiem a prática profissional atenta aos sentidos e significados do trabalho em saúde.
Enquanto o mundo urbano se consolida, é momento de um movimento sanitário que fortaleça
nosso entendimento e valorize as práticas de saúde mais promissoras para a transformação da
saúde das populações e comunidades humanas. O elo entre o concreto da realidade diária e o
resgate das heranças e construções filosóficas permitirá uma qualificação dos profissionais em
serviços de saúde. Desse modo, identifico a fecundidade e os múltiplos potenciais a serem
explorados pela medicina preventiva e a saúde coletiva da teoria Paidéia, um vértice de
transformação com radicalidade, ou seja, pelas raízes dos processos fundamentais que
sustentam esse estar no mundo ou o ser-aí contemporâneo, de uma modernidade tardia que se
beneficiará de uma re-valorização de aspectos humanos e sociais num projeto de cuidado em
atenção primária à saúde.
A gestão da saúde na cidade de São Paulo entre 1988-2008
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A fim de correlacionar a teoria Paidéia e a co-construção de autonomia como
possibilidades de orientação e de avaliação do trabalho em saúde, apresento alguns
considerados relevantes para essa tarefa a partir da experiência de trabalho em serviços de
saúde da família na cidade de São Paulo ao longo de dois anos, o primeiro como preceptor de
ensino de um curso de graduação médica e o segundo como médico de família e comunidade
de equipes de saúde da família, ambas as atividades sediadas na zona sudeste de São Paulo.
Um breve histórico das políticas de saúde em São Paulo mostra, à primeira vista,
drásticas mudanças nos modalidades assistenciais ao longo das diferentes gestões municipais
que se sucederam entre 1988 e 2008. Os partidos que alternaram o poder executivo na capital
envolveram as polarizações PT-PDS/PP (1988 a 2000) e PT-PSDB/DEM (2000 aos dias
atuais). Assim, houve um período (governo Erundina) de ampliação da rede assistencial pela
construção de hospitais e centros de saúde e de fortalecimento da descentralização da gestão
por meio de distritos de saúde que iniciaram uma incipiente experiência de diagnósticos
regionais e locais de saúde; fase sucedida pela implantação do PAS (Programa de Assistência
à Saúde), propondo a gestão da saúde por meio de cooperativas médicas e do trabalho
centrado no Pronto-Atendimento (governo Maluf-Pitta).
É no período do PAS que a Secretaria Estadual de Saúde implanta o Qualis-PSF em
áreas circunscritas das regiões sudeste e norte da cidade, contando com apoio do movimento
popular de saúde e como forma de resposta à deficiência da atenção primária à saúde na
cidade. Uma característica inovadora do projeto foi, desde sua implantação, o trabalho da
equipe nuclear do PSF integrado com equipes de apoio matricial em saúde mental e
reabilitação, acentuando um modelo de atendimento que incluía as diretrizes da saúde
coletiva.
A fase seguinte é de reconstrução da saúde na cidade, dada a falência do PAS. A
gestão Marta retoma o modelo de saúde baseado nos princípios do SUS e propõe uma rede
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assistencial primária por meio de Unidades Básicas de Saúde, incorporando a rede anterior de
Centros de Saúde e inaugurando novas unidades de saúde da família, incluindo a gestão
municipal da anterior rede Qualis, o que mantinha uma organização privada como
mantenedora de recursos humanos e materiais (Fundação Zerbini).
A segunda metade do governo Marta, preocupada com a avaliação negativa da área de
saúde na cidade, assume um discurso voltado para o acesso às especialidades, mas não
consegue estruturar, com os recursos existentes, um melhor acesso às especialidades médicas
e aos programas de saúde mental, de reabilitação e de saúde bucal.
A gestão Serra-Kassab desloca a ênfase anterior e propõe as AMAs (Unidades de
Atendimento Médico Ambulatorial) como modo de ampliar o acesso à rede assistencial.
Como os recursos das AMAs partem do orçamento da atenção básica, apesar do aumento da
arrecadação de impostos e do orçamento municipal nos últimos dois anos, a rede de atenção
primária permaneceu estagnada, sem aumento da cobertura da estratégia saúde da família e
sem um programa de desenvolvimento institucional nos serviços instalados. Cogitou-se,
inclusive, se o modelo de saúde da família seria mantido na cidade, mas as preocupações
depois se deslocaram para a terceirização da gestão da saúde da cidade, um passo além após a
terceirização de parte da folha de pagamento e dos recursos humanos contratados por meio de
Contrato (CLT) ou prestação de serviço (uma re-edição das cooperativas médicas). O atual
momento é de terceirização da rede de serviços de saúde em São Paulo por meio de
Organizações Sociais da Saúde (OSS). A cidade está sendo dividida entre algumas entidades
privadas e o Ministério Público já denunciou a irregularidade constitucional do processo, ora
porque a gestão não teria controle social, ora pela falta de licitações na escolha das entidades
privadas.
Notamos nos últimos vinte anos duas atitudes. A primeira enfatiza a descentralização
da gestão por meio de distritos sanitários ou coordenações de saúde, e outros momentos de
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ênfase direta na prestação de serviços à população, sendo a experiência do PAS sucedida pela
implantação de OSS por Kassab. Apesar desses dois modos serem tão diferirem em
orientações político-ideológicas, uma característica marcante ao longo do período foi inexistir
um plano de carreira nos serviços públicos de saúde. Os cargos de gestão foram ocupados ou
por meio de indicações políticas ou baseados em relações do tipo empresariais, pouco
transparentes, entre membros filiados a grupos administrativos das OSS. Isso enfatiza um
traço marcante do sistema de saúde em São Paulo, que é sua verticalidade e baixo controle
público.
A política de matriciamento dos Qualis, por exemplo, experiência que já completou
dez anos de aprendizado, não foi valorizada e os profissionais estão a ponto de serem
demitidos, já que oneram a folha de pagamento das futuras OSS, uma vez que seus salários
são superiores aos ofertados pela nascente introdução dos Núcleos de Apoio à Saúde da
Família (NASF) na cidade. O capital social e humano construído não é utilizado e não existe,
por exemplo, um núcleo de debates envolvendo as experiências da capital em saúde mental
diante da tarefa de construção dos NASFs.
Considerações sobre a atenção primária à saúde na cidade de São Paulo. Dilemas, urgências e
incertezas. Ainda há espaço para sanitaristas em São Paulo?
Sendo esse o cenário de macro-políticas, desejo retomar a discussão sobre as unidades
de saúde da família. Ora, não existe plano de carreira e os cargos de gerência são ocupados
por pessoas que aceitam a remuneração ofertada (inferior à remuneração médica). Os gerentes
devem cumprir metas de produtividade (lógica instalada pela gestão Serra-Kassab).
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Os médicos têm que produzir cem consultas e vinte visitas domiciliares semanalmente.
Isso significa vinte consultas diárias e oito visitas domiciliares. E os gerentes aprendem
cotidianamente os modos de agir para alcançar as metas. Desse modo, os serviços evitam
reuniões de equipe e gerenciais e as equipes trabalham de maneira independente seguindo um
pacote de semana padrão.
As agendas foram informatizadas e as consultas médicas são divididas nas
modalidades: lactente, gestante ou puérpera e consulta geral. Essa divisão não organiza a
demanda de doentes crônicos, crianças em puericultura, adolescentes, mulheres em idade
fértil, saúde mental etc.
As agendas são ofertadas em balcão por auxiliares técnicos administrativos, que além
da recepção se responsabilizam pelo setor de arquivo e prontuário, e muitas vezes os mesmos
funcionários ainda abarcam as funções de regulação de vagas e agendamento de
especialidades. Por isso, a recepção é uma região de tensões. Para minimiza-las, a orientação
gerencial implantada passou a ser: não dizer não, sempre agendar. Desse modo, as consultas
médicas são agendadas com muitos meses de antecedência, aumentando a incidência de
faltas.
Como os consultórios médicos estão em local de acesso irrestrito, os pacientes
circundam as salas solicitando atendimento imediato. Para organizar a pressão dessa demanda
espontânea, organiza-se um acolhimento no início da manhã, ou se elege um médico
diariamente para a atividade de demanda espontânea. Com isso, consegue-se uma alta
produção de consultas, que na verdade são atendimentos de balcão, com até cinco minutos de
duração. Isso dá um caráter de uso por urgência da unidade de saúde, coerente também com o
apelo das AMAs. Contudo, o trabalho sanitário de organização dos serviços foi abandonado
na cidade. O modelo de balcão é preponderante e guia as ações de profissionais e gerentes.
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Mais um agravante, para finalizar a presente descrição do cenário da ESF em São
Paulo. Os pacientes em uso contínuo de medicação são atendidos em grupos trimestrais para
troca de receita. O caráter educativo desses encontros, anteriormente os grupos de hipertensão
e diabetes foi perdido. Como as unidades de saúde da família não conseguem manter os
médicos muito tempo em serviço, os médicos remanescentes precisam, ao menos, trocar as
receitas dos pacientes. Isso aumenta a produtividade.
A partir de então, pergunto sobre a co-construção de autonomia. No modelo de balcão
o paciente aprende a solicitar recursos do serviço e exigir respostas imediatas. Os pacientes
têm pouco tempo de atendimento e o vínculo com os profissionais é fraco por causa disso,
mas eles conversam com vizinhos, parentes e amigos, assistem notícias veiculadas por
televisão e outros meios, e solicitam exames e medicações.
Os médicos se perguntam qual à função de um médico de atenção primária, já que as
pessoas direcionam o produto do encontro (uma guia ou receita, em geral). Pela teoria Paidéia
tem-se a explicação: é autonomia em um modelo sem coordenação sanitária, centrada na
biomedicina.
Os gerentes são valorizados quando a unidade de saúde da família recebe pouca
reclamação de usuários via ouvidoria. Os gerentes lutam por unidades que sejam
superbalcões. Os superbalcões conseguem acelerar cada vez mais sua assistência e dar rápido
o que é pedido. Os superbalções geram a super-autonomia do paciente. No entanto, a
precariedade do vínculo não é superada, mas essa é uma outra questão a ser avaliada pela
teoria Paidéia.
Nossas construções são sempre interacionais. Portanto, a desresponsabilização pelo
desenvolvimento do sistema de saúde e pelo aprimoramento dos programas assistenciais coconstrói a autonomia da desvalorização humana em troca da velocidade assistencial. Mas
numa outra direção, o aporte da teoria Paidéia vê exatamente na dimensão da luta política em
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respeito à pólis um alimento para as individualidades humanas em seu âmago, em sua
autonomia.
Conseguir coisas a qualquer custo tendo as ouvidorias como padrão de qualidade
sinaliza a fragilidade da comunicação entre profissionais de saúde e população nas unidades
de saúde da família e o menosprezo pela co-construção dos serviços.
Por isso, a privatização da saúde na cidade rompe não um diálogo, mas o diálogo.
Estamos diante de uma nova ditadura à moda financeira, em que corporações vão ditar o
modo de funcionamento dos serviços e de trabalho em saúde porque ganharam a verba da
saúde porque o prefeito assim quis. O prefeito dirá que a população gostou porque agora não
há mais ouvidorias. E se houver, o prefeito troca a OSS. Antes disso a OSS troca o gerente,
antes disso o gerente troca o médico, que antes disso irá indicar agentes comunitários e outros
profissionais que atrapalham a produtividade da equipe. No final do mês, as equipes irão
comparar suas produtividades. Os problemas serão referidos à falta de médicos, a
inconsistência do trabalho médico, ao erro médico etc. Assim o médico vai simplificar o
trabalho, transferindo responsabilidades, pedindo mais exames e pareceres especializados do
que o necessário. O custo social disso repercutirá no tempo que o sistema suportar esse fluxo
intenso de pacientes à procura de tratamento. A conceito de saúde e a co-construção de
autonomia estão escritos no próprio modelo de trabalho. O interessante é que o responsável
pelo modelo tende a sumir, como um bom manager empresarial. As instituições se tornam
onipotentes e as responsabilidades serão de alguns funcionários inaptos. Assim, vida longa às
ouvidorias.
As disputas políticas pelo poder executivo da cidade transformaram a saúde em um
ringue, o que poderia ter sido um espaço democrático para enfrentamento de idéias e teste de
modelos médico-sanitários. A gestão não dialoga mais com a clínica. Há um futuro incerto,
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talvez mais incerto do que nunca antes, seja pelos conflitos judiciais ou pela divisão tão
obscura da cidade entre OSS desconhecidas da opinião pública.
O debate poderia recomeçar entre os resistentes à passividade diante da torre de Babel
que é a saúde de São Paulo. Estudar a teoria Paidéia é um caminho para, quem sabe, alguns
jovens de hoje realizarem, mais uma vez, o trabalho de sanitaristas. Afinal, os sanitaristas
serão esquecidos? Ou são sujeitos potenciais para construção de uma nova via?
Referências Bibliográficas
Campos GWS. Clínica e saúde coletiva compartilhadas: teoria Paidéia e re-formulação
ampliada do trabalho em saúde. In: Campos GWS et al. Tratado de saúde coletiva. São
Paulo: Ed. Hucitec; Rio de Janeiro, Ed. Fiocruz, 2006, p. 53-92.
Campos RTO; Campos GMS. Co-construção de autonomia:o sujeito em questão. In: Campos
GWS et al. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Ed. Hucitec; Rio de Janeiro, Ed. Fiocruz,
2006, p. 669-688.
Andrade LOM, Bueno ICHC, Bezerra RC. Atenção primária à saúde e estratégia saúde da
família. In: Campos GWS et al. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Ed. Hucitec; Rio de
Janeiro, Ed. Fiocruz, 2006, p. 783-836.
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