Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior IV Conferência das Cidades “Por uma Cidade Cidadã” Carta de Brasília pela Superação da Violência nas Cidades 1. Reunidos na IV Conferência das Cidades, promovida pela Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior da Câmara dos Deputados, nos dias 03, 04 e 05 de dezembro de 2002, com o apoio da Caixa Econômica Federal, do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, do Conselho Nacional de Saúde, da Associação Brasileira de COHAB´s, do Fórum Nacional de Reforma Urbana (CONAM, UNMP, MNLM, CMP, FNA, FISENGE, IBASE, IBAM), da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental, do Fórum Nacional de Entidades pela Superação da Violência, da Organização Pan-Americana de Saúde e da Organização Mundial de Saúde, representantes de todos os setores da sociedade, vindos dos diversos estados brasileiros, debateram o tema “A Cidade Cidadã: as diversas formas de superação da violência” e concluíram o seguinte: 2. No momento em que o País passa por uma transição política, na expectativa da posse de um Presidente eleito pela grande maioria do povo brasileiro e, principalmente, oriundo do movimento social, temos, finalmente, a esperança de mudança de um modelo sócioeconômico que sempre privilegiou uma pequena parcela da população. As discussões ocorridas nesta IV Conferência acerca da superação das diversas formas de violência, principalmente daquela que representa a falta de respeito aos direitos sociais garantidos na Constituição Federal, poderão representar uma contribuição do movimento popular e de outros setores formadores de opinião à construção de uma sociedade mais justa e à redefinição das políticas de gestão das cidades brasileiras, de forma a que o cidadão tenha uma melhor qualidade de vida. 3. Com essa expectativa, as discussões e as reflexões ocorridas permitiram as seguintes constatações: a) as grandes cidades brasileiras caracterizam-se, hoje, por um processo exclusão social, em que apenas 30% da população usufrui integralmente dos benefícios e da qualidade de vida das cidades; b) modelo econômico e de urbanização desordenada atual vem produzindo nessas cidades um processo de desigualdade e de injustiça que submete a maioria da população a uma situação de miséria, sem acesso aos serviços e equipamentos públicos; c) modelo educacional brasileiro continua sendo excludente, levando a um nível de escolaridade insuficiente para a maioria da população, perpetuando a pobreza e reproduzindo as condições perversas das desigualdades sociais; d) os acidentes e violências, considerados hoje como verdadeira epidemia, revelam-se como um problema de saúde pública, que, além do sofrimento humano e social, representa um elevado custo econômico e um esforço extra das redes públicas de saúde; 1 e) desemprego e o subemprego atingem parcela significativa da população brasileira, gerando a deterioração das condições de sobrevivência nas cidades brasileiras, contribuindo para o agravamento do quadro de violência; f) a falta e a precariedade das condições de moradia da grande maioria da população brasileira, submetida à exclusão territorial e dos direitos sociais básicos, vem agravando o quadro de violência urbana; g) modelo de segurança pública foi estruturado segundo os pilares da segregação social e espacial e da violência policial, em que a polícia tornou-se responsável por fazer a guarda de fronteira entre os dois mundos apartados; h) as cidades, em seu modelo atual, negam a convivência e acirram os conflitos sociais pelas desigualdades de oportunidades, separando os pobres dos ricos, com poucos espaços de compartilhamento e solidariedade social; i) a violência atinge especialmente os nossos jovens e adolescentes, moradores das periferias pobres das grandes cidades, que convivem, principalmente, com a ausência de políticas públicas de educação e geração de emprego, sendo seduzidos pelas facilidades do mercado de drogas e de armas. 4. Com base nesse diagnóstico, considera-se que a mudança na qualidade de vida da população nas cidades brasileiras exige a adoção de políticas públicas que contemplem, principalmente: a) a priorização dos investimentos em políticas sociais que visem a superação das fontes geradoras da violência urbana; b) a superação de todas as formas de discriminação; c) a adoção de políticas sociais comprometidas com a geração de emprego e renda; d) a construção de políticas públicas como instrumentos eficazes de combate às desigualdades sociais e regionais e de promoção da cidadania, nos setores de educação, saúde, saneamento ambiental, geração de emprego e renda, seguridade social, esporte e lazer, segurança pública, política agrária, habitação, desenvolvimento urbano e rural e cultura. 5. Desta forma, propõe-se: 6. No campo da cultura: a) valorização dos princípios dos Direitos Humanos, promovendo a igualdade e fortalecendo o combate a todas as formas de preconceito, discriminação e exclusão; b) promoção de uma cultura de tolerância e administração de conflitos sem o recurso da violência e incentivo a uma linguagem compatível com a nova ordem política, fugindo da visão neoliberal. Por exemplo: abolição da expressão “vontade política”, substituindo-a por “responsabilidade política”; c) valorização de uma nova ética na política e nos princípios sociais do Estado, mediante a garantia dos direitos sociais básicos e do combate efetivo à cultura da impunidade e da corrupção; d) definição de diretrizes e princípios para o uso da mídia, evitando a banalização e a glorificação da violência, do sexo, do abuso de álcool e de drogas e fortalecendo o seu potencial educativo e de universalização dos valores humanísticos e de tolerância; e) consideração do termo “invasor” como discriminatório e preconceituoso, para os efeitos da legislação vigente. 7. No campo da reforma urbana: a) agilização da implantação do Estatuto da Cidade em todos os municípios; 2 b) valorização e divulgação do Estatuto da Cidade como medida para o aprofundamento dos instrumentos de planejamento democrático da gestão urbana; c) articulação de fóruns comunitários de acompanhamento e de intervenção nos planos diretores das cidades, numa perspectiva de fazer valer o Estatuto da Cidade e garantir políticas públicas de promoção da igualdade racial e de gênero; d) aprovação e implantação de planos diretores em todas as cidades; e) apoio à criação do Ministério da Cidade e à formação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano, com caráter deliberativo; f) adoção de um planejamento estratégico de fortalecimento das pequenas e médias cidades e de apoio efetivo à vida rural, com acesso aos direitos básicos de cidadania, como instrumento de contenção da urbanização desordenada e desumana; g) realização pelo Ministério da Cidade e pela CDUI no próximo ano, em todos os estados e municípios e também em nível nacional, da Conferência das Cidades, com ampla participação da sociedade. 8. No campo da gestão urbana: a) construção da gestão participativa das cidades; b) instituição de conselhos deliberativos e com a participação de representantes das comunidades; c) promoção da interação permanente dos diversos conselhos que atuam na área social; d) inversão das prioridades, com ênfase na questão social, como transformar a Caixa Econômica Federal e o BNDES em agentes sociais, do povo para o povo; e) descentralização para os estados e os municípios das políticas e dos recursos do Ministério da Cidade; f) indução da criação de fundos setoriais específicos e de conselhos estaduais e municipais, com caráter deliberativo e com a garantia de representatividade dos movimentos sociais e populares; g) democratização da discussão do Orçamento Geral da União. 9. No campo da moradia: a) aprovação, ainda nesta legislatura, do PL 2.710/92, que cria o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e o Fundo Nacional de Moradia Popular (FNMP); b) destinação prioritária do solo urbano para moradia popular, com participação popular; c) alteração e desburocratização dos procedimentos adotados para a concessão de financiamentos para a população de baixa renda, cujos critérios devem ficar subordinados a uma política nacional de habitação do Ministério da Cidade; d) inclusão nos financiamentos, além da construção em si, da compra de terrenos pelas Prefeituras e da contratação de assessorias técnicas interdisciplinares para apoiar a comunidade; e) definição de um novo parâmetro para orientar os financiamentos habitacionais, que devem ser dirigidos para os segmentos em que o déficit habitacional é maior, particularmente a faixa de até três salários mínimos, com regras de contratos que permitam uma tolerância de até seis meses para o mutuário que se encontrar desempregado; f) suspensão dos despejos promovidos pela Caixa, que devem passar a ser regulados pelo Ministério da Cidade; g) destinação de parcela dos recursos da CPMF e das loterias federais para o setor habitacional; 3 h) destinação de 5% dos orçamentos federal, estaduais e municipais para Fundos de Desenvolvimento Urbano geridos pelos respectivos Conselhos, para políticas de habitação, saneamento, política urbana e transporte; i) reformulação dos programas habitacionais em vigor, de forma a respeitar as características regionais; j) permissão do uso de recursos do FAT pelos movimentos populares, para a capacitação de seus membros; k) utilização de prédios públicos abandonados para prover habitação popular; l) definição de um padrão de habitabilidade para as construções, de forma a evitar que as casas construídas no âmbito de programas habitacionais oficiais tenham baixa qualidade; m) aprovação de um projeto de lei que unifique os índices de reajuste das prestações e do saldo devedor dos financiamentos, atualmente em apreciação na CCJR; n) revisão de legislação sobre o tema da posse e da propriedade urbana e rural, prevendo a obrigatoriedade de negociação entre as partes e proibindo a ação policial violenta em caso de ocupação; o) adoção de uma política nacional de moradia voltada para os setores mais excluídos da sociedade, incluindo um programa de locação social. 10. No campo da saúde: a) ampliação e melhoria da qualidade dos serviços de recuperação e reabilitação de dependentes de álcool e drogas; b) reforço da relevância da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, promovendo sua real implementação mediante uma série de ações que tenham como base o planejamento participativo, a descentralização administrativa com participação e controle social e a integração e articulação intersetorial das políticas públicas; c) priorização, no âmbito da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, das ações de prevenção e promoção da saúde; desenvolvimento e implementação do Sistema Nacional de Informações em Saúde para Acidentes e Violências (SISAV); capacitação de recursos humanos e melhoria da qualidade da rede de atenção à saúde; humanização do atendimento em saúde e incorporação do Programa Saúde da Família e Agentes Comunitários de Saúde na atenção e prevenção da violência (interpessoal, institucional, familiar, coletiva); reforço na consolidação de serviços de atendimento pré-hospitalar e apoio ao desenvolvimento de estudos e pesquisas em acidentes e violências; d) criação, no âmbito do Ministério da Saúde, de uma coordenação para a imediata aplicação da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, que monitore os dados e os impactos das ações executadas de forma descentralizada e articulada e com participação e controle social; e) apoio à plena implementação do Código de Trânsito Brasileiro, priorizando seu caráter educativo e preventivo, em especial no que se refere à inadequação da ingestão de bebidas alcoólicas e à direção de veículos automotores. 11. No campo da geração de emprego e renda: a) implantação do Banco do Povo nos municípios, com participação dos conselhos; b) interiorização do desenvolvimento, com a estimulação das vocações locais; c) formação de mentalidade voltada para o desenvolvimento local e o cooperativismo; d) estímulo aos micros e pequenos empresários na produção de bens e serviços; e) estímulo ao cooperativismo entre os jovens do programa “1º emprego”; f) criação de mais programas de emprego e renda nas cidades. 4 12. No campo do saneamento ambiental: a) convocação, nos moldes do SUS, de conferências municipais, estaduais e nacional de saneamento ambiental, que contemplem a participação e o controle social e promovam a universalização do acesso à água como direito fundamental do ser humano; b) investimento na reciclagem de lixo, em defesa do meio ambiente; c) realização pelos municípios de processos participativos para o planejamento do saneamento ambiental; d) estabelecimento do saneamento, sob gestão pública, como prioridade social, ambiental, de saúde pública e de desenvolvimento econômico e a conseqüente geração de empregos; e) retomada e incremento imediato dos investimentos em saneamento mediante fontes de recursos sob a responsabilidade federal e definição de critérios ambiental, epidemiológico e sanitário na alocação dos recursos, visando à universalização, à integralidade e à equidade dos serviços. 13. No campo do combate ao racismo e da superação das discriminações: a) consideração pelas Políticas Públicas da superação do racismo e da discriminação historicamente enraizadas na sociedade brasileira; b) estímulo a iniciativas das comunidades voltadas para o combate às múltiplas formas de desigualdade, investindo-se no fortalecimento dos laços de solidariedade constituídos pelas comunidades; c) investimento em programas de ações afirmativas que elevem a qualidade de vida da população negra e indígena, vítima histórica do racismo que estrutura as relações sociais no Brasil; d) debate do Estatuto da Igualdade Racial e Étnica na próxima Conferência das Cidades. 14. No campo da educação: a) universalização do acesso à educação com qualidade social; b) valorização do trabalho do profissional da educação; c) democratização da política e da gestão educacional; d) desenvolvimento de políticas públicas que favoreçam a educação para todos; e) estímulo a discussões, envolvendo os movimentos sociais, populares e outros setores da sociedade, visando à elaboração coletiva e democrática dos Planos Estaduais de Educação (PEEs) e Planos Municipais de Educação (PMEs), tomando como referência o “Plano Nacional de Educação: Proposta da Sociedade Brasileira”; f) realização de audiências públicas representativas e transparentes, nos estados e municípios, sobre os PEEs e PMEs e sobre os níveis e modalidades; g) tradução no ambiente escolar, pelas políticas municipais de educação, da história das comunidades locais de desconstrução do racismo, do machismo e da intolerância religiosa; h) transformação das escolas em espaços de fomento de novas relações entre os meninos e meninas, com acolhimento das contribuições dos movimentos negros e de mulheres nos processos de capacitação dos educadores e educadoras; i) transformação das universidades em instâncias mais sintonizadas com as necessidades do povo e, em particular, dos segmentos mais populares do seu local de inserção, que não se formem seus estudantes apenas para atender ao mercado, mas para cultivar o convívio com as comunidades, com os grupos sociais, aprendendo e contribuindo no encontro de soluções para os problemas urbanos; j) discussão do ensino técnico como forma de garantir a profissionalização e o retorno das escolas técnicas federais e estaduais de ensino; 5 k) realização de pré-conferências nos estados, como forma de garantir uma melhor discussão temática. 15. No campo da segurança pública e da justiça: a) reestruturação da segurança pública no país a partir das propostas básicas de modernização tecnológica e gerencial, moralização pela uniformidade de ações e procedimentos que possibilitem o controle interno e externo e estímulo à participação comunitária regionalizada; b) reordenamento e promoção de ampla reforma das agências de segurança pública, consideradas as Polícias (militar, civil, municipal), as Forças Armadas, o Sistema Penal e o Poder Judiciário, com a extinção de privilégios das classes dominantes; c) estímulo à participação popular (ONG´s, Terceiro Setor e movimentos sociais), que deve se empenhar na construção de uma agenda social que possa dar sustentabilidade para a universalização da cidadania e a difusão de uma cultura da paz, com garantias que impeçam os recorrentes vetos e/ou restrições à essa participação; d) construção de um sistema de informações para diagnóstico, planejamento e monitoramento das ações em segurança pública, com a ressalva de que tais levantamentos podem criar o estigma de bairro violento, estigma este que se reflete na população moradora desses bairros; e) criação de serviços e programas de atenção especial aos setores mais vulneráveis à violência, como a mulher (destacando que a violência doméstica é estruturante das demais), os homossexuais, os afrodescendentes, os jovens (as principais vítimas da violência), além de estruturação de serviços de proteção física e judicial às vítimas e às testemunhas, incluindo durante os depoimentos; f) regionalização da segurança pública mediante a municipalização de ações multisetoriais integradas, priorizando investimentos nas áreas carentes de equipamentos públicos e com alto índice de violência; g) instituição, no âmbito municipal, das Ouvidorias Gerais, garantindo a apuração das denúncias apresentadas pela população; h) desenvolvimento e fortalecimento de métodos eficazes de lidar com o comércio de drogas e armas, restringindo o uso e disponibilidade de ambas; i) controle rigoroso das fronteiras, com o objetivo de evitar a entrada de armas e drogas no país; j) criação dos Conselhos em Segurança Pública, em âmbito municipal, com a responsabilidade de fiscalizar as ações e acessar os recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública; k) integração dos trabalhadores em segurança pública, com formação que enfoque a mudança na cultura da ação policial e reconhecimento dos direitos humanos e direito à cidade; l) desmilitarização das polícias e instituição de instrumentos de controle social. 16. No Campo da Reforma Agrária: a) realização da reforma agrária e de projetos habitacionais rurais, propiciando qualidade de vida para as famílias. 6