Crise faz sentido para poucos

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SAMUELSON, R.J. Crise faz sentido para poucos. OESP, 3-9-98
Não devemos nos enganar e pensar que as recentes quedas dos mercados acionários
mundiais mostram simplesmente uma reação de nervosismo diante da turbulência na
Rússia ou uma "correção" atrasada. Elas mostram, antes, o aumento do receio de que
a economia global esteja avançando para um perigoso paradeiro, impulsionada por
forças que os líderes mundiais entendem só vagamente e parecem impotentes para
enfrentar. Até os supostos gigantes das finanças globais - o secretário do Tesouro dos
EUA, Robert Rubin, e o presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central dos
EUA), Alan Greenspan - dão poucas mostras em público de que apreenderam o
sentido da ameaça ou sabem o que fazer.
Já não se trata de uma pequena crise "asiática". A recessão do Japão é a pior desde a
2ª Guerra Mundial. As economias da América Latina estão desacelerando-se. "A
economia do México - que vinha crescendo à taxa de 4% a 5% - terá sorte se crescer
2% no próximo ano", diz o economista Desmond Lachman, da Salomon Smith
Barney. A depressão na Rússia prejudica seus parceiros comerciais do Leste Europeu.
A China está em desaceleração econômica. Em conjunto, essas áreas representam
quase metade da produção da economia mundial. Os EUA e a Europa, com 40% do
Produto Interno Bruto (PIB) global, não conseguirão escapar facilmente das
conseqüências.
Diante da prosperidade atual, os americanos naturalmente duvidam desse quadro. O
desemprego está em 4,5%. A inflação quase não existe. As exportações - setor
diretamente afetado pelo paradeiro global - correspondem a apenas 12% do PIB dos
EUA. Mas os economistas (e outras pessoas) muitas vezes se equivocam projetando o
presente no futuro. A prosperidade dos EUA é precária exatamente porque as coisas
não podem melhorar; podem facilmente ficar piores.
Como? A expansão econômica começou em 1991. Os americanos já compraram um
bocado de carros, computadores e roupas. A dívida dos consumidores (incluindo os
empréstimos hipotecários) é alta. No primeiro semestre deste ano, o índice de
poupança pessoal foi inferior a 1%. Até recentemente, o exultante mercado acionário
fez com que os americanos se sentissem mais ricos. Eles estão gastando parte dos
lucros conseguidos com ações; desde 1992, os "ganhos de capital" anuais apurados
praticamente triplicaram. Agora, o preço menor das ações pode reduzir a confiança e
o gasto dos consumidores, que corresponde a dois terços do PIB. As exportações já
estão enfraquecendo; o aumento das importações coloca ainda mais em risco a
produção nacional. Por que, então, deveriam as empresas continuar aumentando os
investimentos (11% do PIB)? Uma recessão é evidentemente possível.
E um paradeiro nos EUA agravaria os problemas de todo mundo. Os EUA são o
maior importador mundial e outros países - da Coréia do Sul ao Brasil - precisam
exportar para se recuperar. Menores taxas de juros melhorariam a perspectiva. O
economista Gary Hulfbauer, do Conselho de Relações Exteriores, diz com razão que
o Federal Reserve e o Bundesbank (banco central) da Alemanha deviam reduzir as
taxas em meio ponto porcentual. Taxas menores aliviariam a carga das dívidas e
contribuiriam para sustentar os gastos dos consumidores e a compra de moradias.
A atitude do Fed, que se nega a reduzir as taxas, parece cada vez menos defensável. A
inflação que um boom normalmente causa foi em grande parte contida pela deflação
global e pelos mercados competitivos. Vista sob vários critérios, a inflação em 1998
fica num nível entre 0,9% e 1,7%. A taxa de juros que o Fed controla - a taxa dos
Fundos Fed, sobre empréstimos interbancários overnight - é de 5,5%. Quer dizer que
as taxas "reais" de juros (ajustadas à inflação) se aproximam dos 4% ou os
ultrapassam, o que é um nível sem precedentes.
Baixar as taxas não objetiva simplesmente dar um impulso à economia dos EUA.
Também serve para contra-atacar a evasão de capitais de outros países; isso agora
está disseminando transtornos econômicos no mundo todo. A evasão de capital
implica a migração de recursos em moedas locais (digamos, o rublo russo ou o peso
mexicano) para moedas "fortes", como o dólar americano ou o marco alemão.
Quando isto acontece, os países perdem reservas em moeda forte (principalmente em
dólares) ou sofrem marcante desvalorização monetária porque suas moedas são
rejeitadas. Ou as duas coisas.
Investidores estrangeiros muitas vezes encabeçam a evasão de capital. Fundos mútuos
ou bancos que investiram em "mercados emergentes" caem fora. Vendem ações
locais ou fazem saques de depósitos bancários e vendem as moedas recebendo
dólares. Mas a evasão de capital também ocorre entre os cidadãos de um país quando
estes perdem a confiança. Na Rússia, magnatas dos negócios (Lachman os chama
"oligarcas locais") substituíram bilhões de rublos por dólares. E a evasão de capital
impõe austeridade. Os países elevam as taxas de juros para conseguir que os
investidores mantenham fundos em depósitos locais - ou para resfriar o crescimento
econômico. Uma economia em situação de paradeiro causa a redução das importações
e salva as escassas reservas em moeda estrangeira.
Muitos países já estão sucumbindo a este ciclo. O Banco Central do Canadá elevou
recentemente as taxas de juros em um ponto percentual para impedir a desvalorização
do dólar canadense. Antes, a Índia havia elevado as taxas de 5% para 8%. No
México, as taxas de curto prazo subiram dos cerca de 20% para 36% em semanas
recentes para defender o peso. O que faz sentido para um país pode, se adotado por
um número excessivo de países, causar uma catástrofe. Se todos arrocharem suas
economias, seu paradeiro será realimentado reciprocamente por causa da redução do
intercâmbio comercial. Isso já é um perigo óbvio.
Menores taxas de juros nos EUA afrouxariam essas pressões. Ficaria mais fácil
ganhar dólares exportando. Investimentos em dólares se tornariam um pouco menos
atraentes para os que fogem das moedas locais. Mas só taxas menores nos EUA não
bastarão provavelmente para impedir a evasão de capital e suas conseqüências. E isto
cria uma espécie de "Ardil 22" (em que duas opções se excluem): individualmente, os
países só conseguirão recuperar-se quando a economia mundial melhorar; e a
economia mundial só vai melhorar quando muitas economias o fizerem
individualmente. Veja-se o caso da Rússia. A queda de um terço dos preços do
petróleo agravou seus problemas porque o petróleo é o principal produto de
exportação da Rússia. Esta precisa de preços mais altos para o petróleo; e preços mais
altos dependem de uma economia mundial mais robusta.
O que se pode fazer? Boa pergunta. O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o
Tesouro dos EUA tomaram a iniciativa no trato dos colapsos econômicos na Ásia e
noutras partes do mundo. Eles tratam cada economia debilitada como se fosse um
caso isolado que precisa de "reforma". Problemas maiores - evasão de capital,
crescimento global - são ignorados. Existem meios de lidar com a evasão de capital
(controles de câmbio e afrouxamento das dívidas, por exemplo); mas todos são
complexos e nenhum é garantia de sucesso. Enquanto isso, os líderes políticos das
três maiores economias mundiais (Estados Unidos, Japão e Alemanha) estão fracos.
A conseqüência é um vazio intelectual e político. Por que os mercados acionários do
mundo não deviam estar intranqüilos? É de estranhar que eles tenham demorado tanto
para ficar assim.
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