INTRODUÇÃO O tema a ser tratado neste artigo é, sem qualquer dúvida, campo fértil para a discussão, afinal se propondo uma reflexão sobre a base maior do Direito Ocidental: A Igualdade. Diz-se, a partir da Igualdade, que ““todos são iguais perante a lei””, máxima encontrada na Constituição da República Federativa do Brasil em seu pétreo artigo 5º, caput. Ter-se-á, então, que, na cabeça do mais importante artigo da Constituição de nossa República, se ressalta a Igualdade. Igualdade é expressão que se liga de forma simbiótica à Dignidade. Todos seriam iguais perante a lei, porque são dignos. Dignidade, neste seguimento, é expressão que tem na Igualdade1 – formal em um primeiro momento – sua correlação direta e necessária. A correlação aduzida se mostra importante porque, em alguns momentos, nem todos os humanos eram considerados sujeitos de direitos. Alguns indivíduos eram tomados por objetos, não sendo Pessoas Humanas. Não eram pessoas, na perspectiva do direito, porque não possuíam personalidade jurídica. Não lhes era conferida a aptidão para aquisição de direitos e deveres, confundindo-se com objetos ou coisas. Hoje em dia, a se olhar o direito na perspectiva que este nos impele, temse que todos os seres humanos são Pessoas Humanas. Todos teriam personalidade jurídica, independente do papel social desempenhado. Uma premissa (jurídica) que não se mantém quando se busca ver o direito além do senso comum. Uma premissa que se mostra superada, e recobra valores discursivamente superados, mas praticamente reiterados. O DIREITO E AS INSTÂNCIAS DE IGUALDADE: TODOS IGUAIS, MAS UNS MAIS IGUAIS QUE OS OUTROS. 1 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 278. Vivemos sob a égide da Constituição da República Federativa do Brasil. Uma Constituição denominada cidadã porque se volta(ria)2 para toda a coletividade de igual modo. Uma Constituição que veio para colocar o Brasil nos trilhos da consideração da Dignidade, afinal todos os homens são dignos por serem dotados de autonomia e racionalidade. São seres autônomos e racionais, portanto iguais perante a lei. A consideração da dogmática constitucional de que “todos são iguais perante a lei” apresenta uma idéia valorativa. Uma noção que se construiria a partir da Dignidade e aponta para a superação de sectarismos de qualquer ordem. Como todos são iguais, devem merecer igual respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade. Quando pensamos na Igualdade nesta quadra de direitos, não podemos deixar de considerar que, mesmo no plano dogmático, esta é uma realidade histórica. Na Grécia, por outro lado, a idéia de Igualdade e Personalidade – no plano legal, inclusive – estava baseada no status pessoal. Ligava-se a atos de heroísmos, como vitória em guerras ou jogos, por exemplo. Muito do que concebemos como inerente à Pessoa Humana dizia, neste momento histórico, com o “papel social desempenhado”3, e não com a condição de ser racional. A consideração acerca de personalidade, que aduz à possibilidade e aquisição de direitos e obrigações na ordem jurídica, deve ser desenvolvida. Dizemos isto porque na expressão prósopon4, de que parte, há idéias que são 2 Como o discurso constitucional aponta para uma situação realizada, mas faticamente temos apenas uma realização discursiva, parece-nos enriquecedor o jogo de palavras apontando para o futuro do pretérito, que denota probabilidade. 3 Lembra Diogo Leite de Campos que somente se consideravam pessoas individualizadas em sua subjetividade as que ocupassem os primeiros papéis na sociedade, ou fossem os grandes heróis das guerras ou os vencedores dos Jogos. CAMPOS, Diogo Leite de. Lições de Direitos da Personalidade. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 57, 1991, p. 134. 4 “É correto afirmar que os termos concernentes à personalidade já circulavam entre os romanos e os gregos. Segundo BOÉCIO, persona – a par de seu equivalente grego prósopon (Prosvpon) – designava a máscara utilizada no teatro. Por essa máscara soava, mais alta, a voz do ator. Em outra acepção, essa máscara (persona) evocava sempre o papel desempenhado pelo ator. Era a pessoa, a figura representada, a personagem ou mesmo a personalidade.” STANCIOLI, Brunillo. Sobre os Direitos da Personalidade no Novo Código Civil Brasileiro. Porto / São Paulo: Mandruvá. Disponível em: <www.hottopos.com/videtur27/brunello.htm#_ftnref3> Acesso: 18 novembro 2007. fundamentais para que desenvolvamos o texto no sentido de rechaçar dogmaticamente o discurso pronto e acabado da Igualdade. A expressão prósopon foi utilizada em um primeiro momento para designar as máscaras utilizadas no teatro grego. Superada esta acepção, passou a significar o papel encenado pelo ator em uma peça. Posteriormente passou a significar a função ocupada pelo indivíduo na sociedade, sem, contudo, significar o indivíduo em si mesmo5. Quando se diz que a locução foi usada para designar máscaras, é de se considerar que estas eram usadas para permitir se expressar sentimentos e a própria voz. Desta forma só teria sentimento quem usasse a máscara, que era o meio de lhes expressar. De igual modo, só teria voz que usasse a máscara específica que permitisse sua fala ecoar. Assim, ou se tinha uma máscara própria para projetar o som, ou não se era ouvido. Não ter voz significava, então, ser ignorado pela fórmula jurídica. Hoje em dia, por outro lado, não mais se pode falar em máscaras para o exercício do papel social. Todos têm, em tese, voz. Todos são dignos porque são racionais e dotados de autonomia. Por isto são iguais. Por isto, ““todos são iguais perante a lei”” e devem ser considerados da mesma forma. Quando se diz que “todos são iguais perante a lei” – discurso que se sustenta apenas na perspectiva dogmática –, é preciso se discorrer sobre os vieses filosóficos que permitiram tal estruturação. Uma reflexão para a qual foi marcante a construção do cristianismo acerca da Dignidade e Kant, em especial no seu “Fundamentação da metafísica dos costumes”6. O discurso acerca da Igualdade foi construído historicamente. Para tanto 5 BEUCHOT, Mauricio. La Persona y la Subjetividad en la Filología y la Filosofía. Revista Latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho. Universidade Nacional Autónoma de México. Cidade do México, n. 16, 1996, p. 17 6 Supondo que haja alguma coisa cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto e que, como fim em si mesma, possa ser o fundamento de determinadas leis, nessa coisa, e somente nela, é que estará o fundamento de um possível imperativo categórico, quer dizer, de uma lei prática. Agora eu afirmo: o homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que o são a outros seres racionais, deve ser ele sempre considerado simultaneamente como fim. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 58. contribuiu de forma decisiva os ensinamentos cristãos, a partir dos quais se passou a considerar que, como todos os homens teriam sido criados à imagem e semelhança de Deus, não se justificaria diferenciações de nenhuma ordem. Curioso é que o discurso cristão, desenvolvido na Idade Média e repensado no Humanismo Renascentista, chegou até a contemporaneidade no Brasil retroalimentando desigualdades formais7. Kant assentava que são fundamentos da Dignidade, de que decorre a Igualdade, racionalidade e autonomia. A todos se confere Igualdade perante a lei porque são racionais8 e autônomos. A racionalidade integra o patrimônio ético de todos os seres humanos, e é a causa de justificação da Igualdade perante a lei. Como é a racionalidade o ponto de diferenciação do humano, não se pode deixar de considerar sua importância para a construção da Igualdade. É esta, então, o ponto de interseção de todos os seres humanos. Por mais diferentes que o sejam, a racionalidade é a qualidade distingue9 os humanos perante os demais seres. A Igualdade está na base teórica do direito. Isto não quer dizer, todavia, que todos sejam efetivamente iguais. O direito, como disciplina que tem a prerrogativa de se dizer, criou mecanismos onde a Igualdade se dá em campos de força, e não a partir da Dignidade, como o discurso parece apontar. “Todos”, então, é apenas parte do coletivo. Por mais que o discurso da Dignidade pareça 7 A questão da Dignidade da Pessoa Humana na perspectiva Cristã se apresenta paradoxal, afinal, se todos são frutos da criação divina – e, por isto mesmo, iguais –, como pode ter sido legitimada pela Igreja a escravidão? No Brasil a Igreja Católica foi a única entidade com prerrogativas para conferir publicidade aos atos que demandavam forma solene como requisito de aperfeiçoamento, inclusive o Registro Público dos escravos, até 1870, quando foi consolidada a organização dos registros pelo Estado, que se deu em decorrência da Lei n. 1.829. 8 Uma pessoa que, por uma série de adversidades, chegou ao desespero e sente desapego à vida, mas está ainda bastante em posse da razão para indagar a si mesma se não será talvez contrário ao dever para consigo atentar contra a própria vida. Procuremos, agora, saber se a máxima de sua ação se poderia tornar em lei universal da natureza. A sua máxima, contudo, é a seguinte: por amor de mim mesmo admito um princípio, o de poder abreviar a minha vida, caso esta, prolongando-se, me ameace mais com desgraças do que me prometa alegrias. Trata-se agora de saber se tal princípio do amor de si mesmo pode se tornar lei universal da natureza. Mas logo, se vê que uma natureza cuja lei fosse destruir a vida em virtude do mesmo sentimento cuja determinação é suscitar sua conservação se contradiria a si mesma e não existiria como natureza. Idem., p. 52. 9 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade humana e moralidade democrática. Brasília: Brasília Jurídica, 2001, p. 25. ter permitido se romper com os dogmas do mundo antigo, ainda hoje vemos situações – e não são poucas – onde a Igualdade é exercida a partir de máscaras e do papel social desempenhado. Do que se aponta, parece-nos claro que o “todos” da locução ““todos são iguais perante a lei””, inscrita em sede constitucional, não significa todo o grupamento social. Podemos dizer que a coletividade tem um “todos” de magistrados, de promotores, de parlamentares, de executivos, de servidores, de cidadãos sem papel social etc. A cada “todos” corresponde uma instância de Igualdade. Uma instância de Igualdade que se opera e se estrutura de forma efetiva em razão do poder de nominação do direito. O poder de nominação é estruturante do Direito. Desta forma, quando qualquer do povo se apropria de coisa alheia sem violência, terá cometido furto. Este mesmo furto, cometido pelo servidor público, ganha outro nome: peculato. As penas são diferentes, como se evidencia. Mais importante que pena diferente, contudo, é de se destacar a força da nominação. Dizer que se cometeu peculato não tem a mesma carga semântica de se falar furtou ou roubou. Não furtarás faz parte do decálogo, mas “não cometerás peculato”, não. O direito, e todos os aparelhos de que dispõe, tem em si um poder de criar eufemismos. Esta eufemização, evidentemente, aponta para um só fato. Todos são iguais, mas uns mais iguais que os outros. A maior máxima do Direito Ocidental é, sem qualquer dúvida, a de que ““todos são iguais perante a lei””. Trata-se de uma premissa que se apresenta muito bem construída, mas muito pouco refletida. Embora se diga genérica, é fato que se restringe a grupos, como bem percebe Bourdieu10. A reflexão sobre Igualdade nos parece essencial porque reproduzimos desigualdades, como se relatou, e não tomamos consciência disto. Parece, mesmo, que não há problema de ordem alguma quando o poder de nominação e eufemização entram em cena. Não há problemas porque quem percebe tais diferenças é, como regra, beneficiário do mecanismo. Por isto retro-alimenta a diferença sem se dar conta da contradição, no mínimo dialética, de que se beneficia. 10 BOURDIEU, Pierre. Usos Sociais da Ciência. São Paulo: UNESP, 2004. A contradição aduzida – melhor discutida em outros campos de saber que no direito, é de se dizer – encontra na composição Ninguém = Ninguém, de Humberto Gessinger, apontamentos que nos permite inferências positivas e prospectivas. A letra da música é rica no enfrentamento do tema: “Há tantos quadros na parede Há tantas formas de se ver o mesmo quadro Há tanta gente pelas ruas Há tantas ruas e nenhuma é igual a outra (ninguém = ninguém) Me espanta que tanta gente sinta (se é que sente) a mesma indiferença Há tantos quadros na parede Há tantas formas de se ver o mesmo quadro Há palavras que nunca são ditas Há muitas vozes repetindo a mesma frase: (ninguém = ninguém) Me espanta que tanta gente minta (descaradamente) a mesma mentira Todos iguais e tão desiguais, Uns mais iguais que os outros Há pouca água e muita sede Uma represa, um apartheid (a vida seca, os olhos úmidos) Entre duas pessoas Entre quatro paredes Tudo fica claro Ninguém fica indiferente (ninguém = ninguém) Me assusta que justamente agora Todo mundo (tanta gente) tenha ido embora Todos iguais, todos iguais Mais uns mais iguais que os outros”.11 (destacou-se) Como anunciam os versos da canção, ninguém é igual a ninguém, mas o discurso jurídico diz que “todos são iguais perante a lei”. Uma assertiva que se sustenta tão-somente quando vemos o ordenamento jurídico sob o viés positivista, sem considerar as causas de justificação e estruturação do mesmo. Quando se diz que “há tantas formas de se ver o mesmo quadro”, diz-se também, na perspectiva jurídica, que há formas de ver a mesma situação. Formas diferentes que se estruturam a partir dos papeis sociais exercidos. Assentamos no 11 GESSINGER, Humberto. Gessinger, Licks e Maltz: Ninguém = Ninguém. São Paulo: SONYBMG-RCA, 1992. plano constitucional que “todos são iguais perante a lei”, mas não podemos deixar de considerar que com o poder de nominação do direito, não é difícil se perceber numerosas desigualdades ao longo do ordenamento jurídico. As desigualdades no ordenamento jurídico brasileiro são comuns, infelizmente, porque perdemos, muito facilmente, a capacidade de reflexão sobre os institutos. Embora esteja em um texto, surgem em um contexto e em um pretexto. Na maioria dos casos, lamentavelmente, mantemos o texto sem nos preocupar com o pretexto e o contexto. Desta forma a desigualdade, que a princípio se justificava, se perde. Perde-se, mas continuamos a reproduzi-la sem qualquer tipo de preocupação com a coerência. Uma situação que reflete bem nossa pouca consideração com o tripé estrutural hermenêutico – texto, contexto e pretexto – diz com as férias de magistrados, promotores e defensores. Embora o tema não pareça ligado diretamente ao texto desenvolvido, resta claro no enfrentamento histórico da questão que a diferenciação vivenciada não mais se justifica. Historicamente se consolidou o direito a férias como um período anual de descanso. Este período era igual para todo mundo, até que as diferenças começaram a ser reclamadas. Surgiram reclamações e estas foram, à moda do direito, sendo assimiladas. Uma assimilação que, repita-se, ocorreu dentro da teoria dos campos de força. Uma absorção que deve ser vista em consonância com as máscaras do teatro grego, afinal não se pode ignorar que, ainda hoje, nem todos são ouvidos no grupamento social. Entre os magistrados o contexto dos sessenta dias de férias surgiu pela não-existência do chamado plantão regional. Historicamente o juiz deve morar na comarca em que é titular, sendo juiz em tempo integral. Assim, se se batesse à sua porta às três horas da madrugada, deveria atender ao jurisdicionado. No plano ideal assim funcionaria. Por isto, já que sua atividade demandava dedicação total, sem uma limitação à carga horária diária de trabalho, justificavase o período diferenciado de férias. Sem a existência de plantão judiciário, não é difícil se entender o período diferenciado. Após a sedimentação do plantão, contudo, a diferenciação não se mantém. Não se mantém porque se se bater na porta do magistrado fora do expediente forense, caso atenda, será para dar o endereço da serventia em plantão, na qual haverá um juiz designado. Não mais existe, como se faz evidente, a justificativa da dedicação total que fundamentava o período de férias divergente do senso comum. A dedicação total não existe mais, mas o benefício se mantém. Por quê? Porque não temos a capacidade de refletir à luz de texto, contexto e pretexto. Com isto, uma vez que a benesse está no texto, esta é exercida. Na mesma linha, como é o direito quem diz o direito, como já anunciava Bourdieu, qual será o magistrado que se insurgirá contra esta notória desigualdade? “Todos são iguais perante a lei” e têm a prerrogativa de férias. Ocorre, porém, que há atores sociais cuja fala é ouvida. Assim promotores e defensores reclamaram a mesma benesse e foram ouvidos. A “cadeia integrativa do direito”, que Hart anunciava, funciona, na prática, com o popular “eu também quero”. Esquece-se as razões de justificação e fica-se com os bônus do texto. A justificação histórica do período de férias diz com a necessidade do repouso. Um descanso que vem para permitir a recomposição das forças, conforme resta claro no discurso médico. Curioso, então, é saber que o segundo período de repouso é remunerado também com o adicional de 1/3 12. Como se percebe, as razões de justificação não subsistem no ordenamento jurídico brasileiro. Como não há preocupação com as razões de justificação dos institutos, grande quantidade de absurdos é legitimada. As situações de desigualdade, facilmente percebidas no decorrer dos textos legais, são ainda mais gritantes no chamado “foro por prerrogativa de função”. Antes nominado “foro privilegiado”, agora mudou de nome. Mudou porque quando se fala em privilégio a idéia de desigualdade fica mais clara e evidente. Então o direito – e seu poder de nominação – achou por bem dizer que o foro diferenciado tem a ver com a função exercida. Quando se diz que o direito consagra o foro por prerrogativa de função, diz-se, ao mesmo tempo – se quer acreditar – que o foro decorrente da função deve se voltar para a garantia desta mesma função e das questões funcionais que esta demanda. Assim, justifica-se a liberdade de fala do parlamentar, mesmo que 12 Embora o adicional de 1/3 não conste de texto legal, o aluno, em entrevista realizada com um Juiz, um Promotor e uma Defensora para um trabalho de Sociologia ainda na graduação constatou o regime diferenciado. se exalte, quando está defendendo um ideal que se volta para a implementação do espírito constitucional. Por outro lado, não nos parece justificado o foro por prerrogativa de função quando o nobre deputado nortista usa motos serra para limar inimigos políticos13. Do que se expôs, tem-se que a Igualdade, que parece ser instância única, se realiza em espaços. Neste ponto se recobra a letra de “ninguém = ninguém”. Ninguém é igual a ninguém e nem perante a lei há esta Igualdade. Há, apenas, Igualdade formal entre os atores que desempenham papéis sociais assemelhados. Os protagonistas são vistos pelo direito de uma forma. Os antagonistas de outras. Coadjuvantes ainda têm fala. A grande maioria, nada obstante, não passa de figurantes. Figurantes não têm máscaras. Não podem falar, portanto. Quando muito bocejam. Um bocejo que não ecoa, ainda que o bocejador tenha racionalidade e autonomia. Dignidade, que deveria ser o ponto de partida da consideração da Igualdade, fica, na prática, reduzida a letra morta. A NÃO-CONSIDERAÇÃO DA DIGNIDADE COMO SUPOSTO DE IGUALDADE. O POSITIVISMO EM CRISE POR IGNORAR PRETEXTO E CONTEXTO. O Positivismo Filosófico é uma concepção de mundo que parte das reflexões de Augusto Comte, pensador francês que viveu no limiar do século XVIII até meados do século XIX: entre 1798 e 1857. Comte, consagrado na história como o grande sistematizador da sociologia, partia da premissa de que era possível planejar o desenvolvimento das sociedades e dos indivíduos a partir dos referenciais das ciências exatas e biológicas, referencial que se reflete no Positivismo Jurídico e seu anseio de unidade, coerência e completude na tese do ordenamento jurídico, de que foi expoente Hans Kelsen14. O pensamento de Comte foi forjado na França pós-revolucionária da primeira metade do século XIX, na qual havia grupos com visões antitéticas de 13 “O Congresso Nacional não aceitou em seu quadro o deputado Hildebrando Pascoal, que cortava seus desafetos com moto serra.” MENDONÇA, Ricardo et all. Retrato do Brasil. São Paulo: Veja. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/070201/p_086a.html> Acesso: 01 dezembro 2007. 14 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. mundo. Ambos os grupos, todavia, viviam sob a influência da máxima liberal estampada no laissez-faire, laissez-passer. Nesta quadra, direito equivalia à lei e tinha a pretensão de encampar absolutamente tudo. Interessava a este, portanto, o que lei descrevia, pouco importando as razões de justificação desta. A idéia de positivismo se liga, como se percebe, à noção de segurança jurídica. É preciso ordem e esta ordem é encontrada quando se sistematiza a realidade. Assim o pensamento positivista se apresenta como sendo o estágio mais avançado de formatação social. Um modo de organização que suplanta o modelo teológico e metafísico. O positivismo se apresenta na forma de física social. Uma possibilidade de estudar a sociedade que permitiria se estabelecer bases racionais e científicas para uma reforma intelectual e moral na comunidade. Um momento em que o modelo social veste as roupas da ciência natural e o espírito científico (positivista) é o que se atém à observação dos fatos e “se limita a raciocinar sobre eles” 15, procurando “relações invariáveis, quer dizer, suas leis”16. Ao apresentar uma de suas idéias motrizes – amor por princípio, ordem por base e o progresso por fim17 –, Comte propõe uma terceira via às correntes políticas de sua época. A um só tempo atende aos conservadores – que buscavam restabelecer a ordem medieval – e ao grupo formado por pensadores influenciados pelo Iluminismo, afirmadores da necessidade de progresso e completa aniquilação da ordem anterior. No Brasil o Positivismo Filosófico chega mitigado. Nossa bandeira, então, consagra ordem e progresso, mas não amor. Não há amor por princípio, mas apenas a preocupação com ordem e progresso. Sem amor se ignora dignidade. Se se ignora dignidade, resta evidente que o sistema não parte da racionalidade e autonomia humanas para se estruturar. O sistema quer ordem e progresso, e nisto se resolve a Igualdade. Quando se quer Igualdade, mas não se parte da dignidade – consagrada como base da República, diga-se –, o ordenamento não se faz coeso. Sua pretensão de “unidade, coerência e completude”, assim, se realiza no plano 15 SIMON, Maria Célia. O Positivismo de Comte. In: REZENDE, Antônio (Org.). Curso de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991, p. 122. 16 Ibidem. 17 Idem., p. 126. formal e acaba consagrando absurdos. Consagra absurdos porque se diz que a Igualdade pode ser resolvida no plano formal, e sabemos que isto se faz pretensioso. O ordenamento jurídico brasileiro, essencialmente, se resolve no plano formal. Existe a crença de que, se se consagrou no plano legal, tudo está resolvido. Infelizmente, como já se disse, as consagrações se dão em um texto, contexto e pretexto, mas somos dados a perpetuar apenas o texto18. As razões de justificação se perdem no tempo e no espaço e o direito insiste em reproduzir o discurso. Com um ordenamento que se contenta com forma e não se preocupa com os fundamentos que o justifica, resta claro que a noção de unidade que o interessa se contenta com o modo de apresentação da norma. Neste sentido, há unidade porque todas as normas derivam de uma mesma fonte que tem legitimidade para criar direito. Conseqüência desta unidade é a teoria da norma fundamental. Embora a consagração formal de unidade seja um fato, Dworkin19 nos permite avançar nesta discussão. Com ele podemos propugnar uma noção de unidade e coerência amplia para além dos conceitos clássicos sobre a matéria. Uma superação que nos impele a repensar algumas chagas que são marcas visíveis da realidade brasileira. Em matéria tributária, por exemplo, alguém pode se ver livre do processo investigativo pela denúncia espontânea, mesmo que seu crime envolva milhões. Existe um arrependimento que, de fato, é eficaz. Por outro lado, alguém que furte 18 Um pouco de teologia bíblica pode nos ajudar neste momento. Partindo-se desta possibilidade, é de se colacionar a limitação ao consumo da carne de porco que ocorre entre os judeis. Judeus não comem carne de porco, mas muitos esquecem que o dogma tem suas bases na fisiologia, e não em mandamentos divinos. A carne suína, como se sabe, é de fácil putrefação. Assim, caso mantida fora da refrigeração e ingerida, provoca danos sérios à saúde. Estes danos, nos primórdios, eram associados à questões espirituais. A pessoa que comesse carne de porco em estado de putrefação passava mal e se acreditava que o mal era provocado por espíritos. Hoje, contudo, já se sabe que o mal é causado pela conservação indevida da carne. Desta forma, o dogma não se mantém. Foi útil e ajudou a preservar a vida em um contexto onde não havia refrigeradores, mas se perde no contexto atual. Desta forma, como não mais há o contexto, o texto deve ser lido dentro da nova realidade.. 19 Cf.: DWORKIN, Ronald. Os Direitos levados a Sério. Tradução de Nélson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. um quilo de laranja não tem as mesmas benesses. Não há arrependimento eficaz uma vez tendo havido inversão da posse. Quando muito se tem uma causa de diminuição da pena. Quem devolve os milhões está livre. Quem devolve as laranjas, não! Do que se exemplificou, resta claro que temos um ordenamento unitário apenas na perspectiva positivista. Na prática este ordenamento se faz segregador e consagrada desproporções. Uma unidade que, sem qualquer dúvida, não leva em conta a Pessoa Humana como componente de sua fórmula. Logo, uma fórmula vazia de fundamento. Uma fórmula que não se estrutura na dignidade, mas sim no papel social exercido, como, aliás, ocorria entre os gregos. A situação tributária foi trazida para o corpo do texto porque sabemos bem quais são os atores sociais que cometem ilícitos tributários. De igual modo, sabemos bem quem furta laranjas. Sendo assim, por mais que o discurso da dignidade tenha se desenvolvido, não podemos deixar de considerar que as pessoas não são avaliadas a partir de racionalidade e autonomia, mas, sim, a partir do local que ocupam na escala social. “Igualdade, então, se opera em castas”. Até mesmo no Bramanismo, que em seu corpo traz a idéia de casta como conseqüência de atos de vidas passadas, começa-se a discutir a real legitimação do instituto, consoante o professor João Flávio Martinez20. Já há vozes no sentido de se dizer que a castificação decorre de uma construção humana ruim, e não de uma condição de elevação espiritual. Se no bramanismo, que tem nas castas um de seus cânones, a sectarização perde força, mas ainda deve ocorrer no Brasil. Não é possível que em uma República – que diz ter na dignidade sua base e fundamento – subsista uma Igualdade associada ao papel social desempenhado. Sustentar-se isto é, no mínimo, incoerente. Falar de incoerência nos impele a retomar o discurso sobre o ordenamento jurídico, dito baseado em unidade, coerência e completude. A coerência é característica a partir da qual se nega a existência de normas 20 MARTINEZ, João Flávio. Religiões e Seitas Orientais. Bramanismo. São Paulo: Centro Apologético Cristão de Pesquisas. Disponível em: <www.cacp.org.br/orientais/artigo.aspx?lng=PTBR&article=379&menu=9&submenu=1> Acesso: 02 dezembro 2007. incompatíveis entre si. Nenhum ordenamento admite a existência de normas contraditórias, razão pela qual eventual ocorrência se resolve pelo critério da exclusão. Uma regra afasta a outra. A noção de coerência à luz do Direito Positivo é formal. É formal porque se baseia no jogo das regras e se resolve no plano pelos critérios clássicos de interpretação: hierarquia, especialidade e anterioridade. Há incoerência, então, sempre que uma norma contradizer outra, mas não seria incoerente se sustentar o foro por prerrogativa de função quando o deputado federal “barbariza” e elimina contendores políticos. A prerrogativa, que tem a ver com o exercício da função parlamentar, é usada para em qualquer situação, e esta incoerência não é reclamada. Além de unidade e coerência, importa de forma sobrelevada à visão de ordenamento, a noção de completude. O ordenamento jurídico, nesta linha seria completo. Não existem lacunas na lei e, mesmo quando a lei não cuida de um determinado ponto, não o faria porque não é nada que interessa ao direito. A noção de completude, defendida por Bobbio21 como sendo o “coração do coração” do positivismo jurídico, sendo seu supra-sumo, alinha-se com as lições de Bourdieu quando este diz que o direito tem poder de se dizer. Desta forma o direito seria completo tão-somente porque pode se dizer e se diz na medida em que quer. É completo porque, se tem o poder de se dizer, tem também o poder de ignorar. Conseqüência do que inferimos é percebida em certos nós epistemológicos de nossa legislação. No artigo 148 do Código Penal, a título de exemplo, se estabelece que privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado, traz como conseqüência pena de reclusão que varia de um a três anos. No artigo 159, aponta-se que seqüestrar pessoa com o fim de obter vantagem financeira implica em uma punição que varia de oito a quinze. O exemplo trazido à colação estampa que a mesma vida humana recebe tratamento desproporcional. Uma desproporção que se baseia no âmbito patrimonial. Do ponto de vista da Pessoa Humana a privação de liberdade é uma 21 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1999, p.217. só. Ocorre, porém, que no segundo caso a privação visa a aferir valores financeiros. O confronto dos artigos relatados segue a mesma direção do que se discutiu sobre unidade em Dworkin. Não se faz razoável que a mesma referência – aqui a liberdade, e na unidade o patrimônio – seja vista de forma tão antitética. É preciso coerência e para nós esta se encontra no conceito fundamental da Dignidade Humana. Nesta linha, resta-nos claro que a ciência jurídica requer, sim, outro fundamento. Este fundamento deve ser a pessoa e sua necessária dignidade. Quando se tem a pessoa como viés fundamental, não mais se justifica proposições como a colacionada. pessoa é pessoa, independentemente do que ela possui. Disto não parece razoável que um crime, cujo núcleo é a liberdade, seja visto de forma tão desarrazoada. Como suposto de unidade do sistema, o direito não pode ser visto assim. Quando se pensa na pessoa como viés de se ver o mundo, e nele se inclui o ordenamento jurídico, fica evidente que a unidade e coerência vivenciada no Brasil são uma só: colocar sob a proteção da lei o que é aferível na esfera patrimonial e as pessoas que têm. Isto é lamentável e torna evidente a conclusão de que temos uma ordem principiológica nos dias de hoje, no plano constitucional, mas uma legislação infraconstitucional, e toda a leitura que desta se faz, pautada em regras positivadas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em seu artigo 1º, III a Constituição da República Federativa do Brasil aponta como um de seus fundamentos a Dignidade da Pessoa Humana. O legislador constitucional fez reconhecer que é a Pessoa a razão de ser do Direito, sendo seu princípio, meio e fim. Nisto responde a um dos nós do positivismo. Confere a este o objeto de sua Norma Fundamental. Quando se tem a Pessoa Humana como componente necessário do direito, tem-se também que é a partir da dignidade que deve ser ver o ordenamento jurídico. A partir da dignidade ter-se-ia uma Igualdade real, e não apenas uma fórmula lapidar que consagra unidade, coerência e completude, mas que na prática permite a realização de desigualdades, incoerências e sectarizações. O direito ocidental, como se disse no decorrer do texto, tem na Igualdade seu grande pilar. O que percebemos, contudo, e isto fazemos com o cancioneiro popular, é que são todos iguais, mas uns bem mais iguais que os outros. Diferenciações são criadas e perpetuadas sem a devida preocupação com as causas de justificação. Tal fato contribui para que a unidade do sistema seja apenas pseudo. Contribui, também, para que a coerência seja um jogo dialógico, pouco preocupado com as desigualdades consagradas ao longo e ao largo do sistema. Contribui, enfim, para um sistema que sectariza e segrega em nome do seu poder de se dizer e de nominar. BIBLIOGRAFIA BEUCHOT, Mauricio. La Persona y la Subjetividad en la Filología y la Filosofía. Revista Latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho. Universidade Nacional Autónoma de México. Cidade do México, n. 16, 1996. BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1999. BOURDIEU, Pierre. Usos Sociais da Ciência. São Paulo: UNESP, 2004. CAMPOS, Diogo Leite de. Lições de Direitos da Personalidade. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 57, 1991. DWORKIN, Ronald. Os Direitos levados a Sério. Tradução de Nélson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. GESSINGER, Humberto. Gessinger, Licks e Maltz: Ninguém = Ninguém. São Paulo: SONYBMG-RCA, 1992. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004. KELSEN, Hans. 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