Salama, Pierre. “Dolarização da América Latina.” São Paulo: Folha de São Paulo, 17 de outubro de 1999. FSP 17- 10-99 PIERRE SALAMA Dolarização na América Latina A forte volatilidade das taxas de juros e do Produto Interno Bruto (PIB) repuseram na ordem do dia o debate sobre a escolha do regime de câmbio mais eficaz na América Latina. O presidente argentino, Carlos Menem, avançou na idéia de uma dolarização do conjunto dessas economias. Seria um erro pensar que a questão dessa enorme volatilidade possa se resumir à adoção de um regime de câmbio adequado. O regime de acumulação dominante induz uma vulnerabilidade particularmente acentuada em relação ao estrangeiro. O regime de câmbio só a acentua ou a reduz. Podemos agrupar os argumentos dos partidários da dolarização em quatro temas: os câmbios flexíveis acarretariam efeitos ainda mais nocivos que os câmbios fixos; moedas em excesso obstam o desenvolvimento; a dolarização já é de fato presente; a maturidade dos governos deixa a desejar. Vejamos esses argumentos mais de perto. A alta das taxas de juros teria sido mais pronunciada no regime de câmbio flexível do que no regime de câmbio fixo. Ela favoreceria o retorno das pressões inflacionárias e provocaria um declínio do PIB. Num primeiro momento, o sistema de "currency board", de câmbio fixo, oferece mais credibilidade aos operadores. Depois, porém, há a substituição dos depósitos em moeda pátria por depósitos em dólares no sistema bancário nacional e em seguida uma demanda por liquidez que precipita uma crise de capitalização latente -conduzindo à fuga de capitais. É a situação que se observou na Argentina no fim do primeiro semestre de 99: as taxas de juros em câmbio fixo nãoajustável tornaram-se mais altas que em câmbio fixo flexível. Na teoria, se a economia estivesse completamente dolarizada, a volatilidade das taxas de juros poderia ser menos acentuada, aproximandose da verificada nos EUA. Isso seria possível se pudéssemos constatar uma coincidência de ciclos entre a economia dominante e a dolarizada e se o banco central da economia dominante aceitasse ser o último avalista. A coincidência entre os ciclos não é concebível, e a garantia do banco central é inimaginável. A economia mundial parece envolvida num processo em que predominam três divisas-chave: dólar, euro e iene. A criação do euro, além de diminuir os custos de transação, permite reduzir a vulnerabilidade a choques externos. O recente adensamento das trocas entre países latino-americanos deveria conduzir à criação primeiro de uma unidade de cálculo comum e depois de uma moeda comum, diversa do dólar. O processo de dolarização, segundo outro argumento, já estaria em curso. Não seria mais possível haver uma política monetária autônoma, salvo para limitar a manipulação dos coeficientes de liquidez dos bancos. Ao dolarizar uma parte substancial das atividades e dos passivos, seria mais difícil a manutenção da taxa de câmbio. Em termos de perda de poder de compra, uma desvalorização torna-se mais penosa. Um último argumento diz que os governos latino-americanos teriam uma forte propensão à irresponsabilidade. A tendência ao "populismo" justificaria que se retirasse deles a gestão da moeda nacional, como fazemos com as crianças. Esse argumento é desdenhoso e traduz uma desconfiança a priori das regras do jogo democrático. Podem-se agrupar os argumentos contra a dolarização em torno de dois temas: as críticas internas a ela e a conclusão de que a escolha do regime de câmbio pressupõe a superação do atual regime de acumulação. A crítica interna trata de três pontos: a dolarização completa significa o abandono da soberania monetária; não há mobilidade do fator trabalho entre os países; não há solidariedade orçamentária possível entre as nações. A perda da soberania monetária tem implicações econômicas. A decisão de elevar (ou baixar) as taxas de juros dependerá somente dos EUA. A dolarização será traduzida numa adaptação das economias a suas decisões. A dolarização completa sofre de sérias limitações. Os economistas sabem que a adoção de uma moeda comum implica que o banco central possa ser o último avalista, que a mobilidade do trabalho seja assegurada, que exista um mínimo de solidariedade orçamentária. O primeiro ponto não é concebível. As dificuldades econômicas serão traduzidas em falências. O segundo é igualmente inconcebível, salvo para a mão-de-obra altamente qualificada. O terceiro é quimérico. A escolha do regime de câmbio pressupõe a superação do atual regime de acumulação de capital. As grandes economias parecem engajadas num modelo econômico análogo: o incremento de seu PIB está cada vez mais dependente da entrada de capitais. Sua lógica financeira imprime ao crescimento um perfil de montanha-russa, no qual padecem os mais desprovidos, o que explica a alta volatilidade do PIB e das taxas de juros. Tende a produzir crises financeiras que se projetam como recessão, só superada quando os ativos financeiros ameaçados encontram garantias internacionais e quando as condições para o retorno dos capitais parecem satisfatórias. Se não forem modificadas as condições que fundam esse crescimento, a volatilidade de taxas de juros e PIB perdurará. A dolarização completa das economias não permite questionar a lógica financeira desse regime de acumulação. Só pode agravar sua situação, limitando mais a possibilidade de definir políticas econômicas contracíclicas, deixando-as à mercê das mudanças ditadas pelos EUA, com total desconsideração pelas contingências das economias dolarizadas.