III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 1

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III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares
PATRIMÔNIO CULTURAL E RELAÇÕES DE PODER:
Estratégias discursivas e conflitos na cena do patrimônio cultural1.
César Roberto Castro Chaves2
Alexandre Fernandes Corrêa3
Resumo: O estudo trata da construção discursiva e ideológica inerentes aos programas de
educação patrimonial, analisando suas eficácias e contradições em termos de política
cultural no bairro do Desterro. Tem-se como foco especial um cotidiano tenso em conflitos
internos e externos à comunidade, principalmente em relação ao poder público, devido os
imperativos deste na gestão do patrimônio histórico e cultural de São Luís/MA.
Palavras chave: Patrimônio, Discurso, Educação, Conflito, Poder.
Abstract: The study deals with the ideological and discursive construction of cultural
heritage education programs, analyzing their effectiveness and contradictions in terms of
cultural policy in the neighborhood of the Desterro. The main focus of analysis are the
internal and external conflicts in the community, especially in relation to the federal
government (IPHAN/MinC), because of the imperatives in the management of historical
and cultural heritage of São Luís/MA.
Keywords: Heritage, Culture, Conflict, Power.
1
Artigo referente a pesquisa de mestrado em andamento no Programa de Pós-Graduação Mestrado
Interdisciplinar em Cultura e Sociedade (PGCult/UFMA).
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3
Mestrando em Cultura e Sociedade (PGCult/UFMA).
Professor Associado II do Departamento de Sociologia e Antropologia e do Programa de Pós-Graduação
Cultura e Sociedade. Coordenador do CRISOL-Grupo de Pesquisas e Estudos Culturais: www.crisolgpec.com.br.
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III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares
1 A TEATRALIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
A idéia de patrimônio tal como é concebida na contemporaneidade, constitui-se
em uma invenção moderna a partir do contexto da construção dos estados nacionais
burgueses ocidentais pós-revolução francesa, e que tem sido universalizado como se
sempre existisse, estabelecendo o que (CANCLINI, 2003) denomina de cumplicidade
social, restringindo-se a restauradores, arqueólogos, e outros especialistas do passado,
negando e omitindo os usos sociais do patrimônio.
Consistindo ainda em uma:
[...] prática característica dos estados modernos que, através de
determinados agentes, recrutados entre os intelectuais, e com base em
instrumentos jurídicos específicos, delimitam um conjunto de bens no
espaço público (FONSECA, 2005, p. 21).
Embora a construção social do conceito moderno de patrimônio histórico
constitua uma invenção moderna, suas raízes remontam a antiguidade e ao período
medieval. Ao período Quattrocento, denominação cunhada por (CHOAY, 2001), sendo a
partir deste período que de fato se assumiu o distanciamento histórico entre o patrimônio
clássico, inicialmente constituído por monumentos, objetos e edifícios históricos e o
mundo moderno e contemporâneo.
Todavia, no contexto contemporâneo as políticas patrimonialistas adquirem forte
atuação sobre o debate acerca das nacionalidades nascentes (na gestão do simbólico e do
nacional), buscando re-criar (e/ou reforçar) a identidade coletiva construída histórica e
socialmente por um intenso processo de mediação simbólica (ORTIZ, 1998). Quadro este
em que os intelectuais sempre tiveram grande papel de destaque, num contexto macro de
tentativas de construção das grandes narrativas fundadoras das identidades nacionais
(ANDERSON, 2008), exercendo assim papel fundamental nas políticas ocidentais de
cultura e patrimônio.
Ao analisar o processo de construção do patrimônio nacional brasileiro
(FONSECA, 2005) teceu comentários importantes sobre a importância da mediação na
construção dos patrimônios. Nesse texto, a autora aponta para o fato de não ter havido
grande participação social e popular na história da preservação, salvo alguns momentos de
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interesse pontual por partes de grupos sociais específicos4, residindo nesse
aspecto uma das maiores dificuldades para o êxito de qualquer política de preservação no
país.
A partir desta linha de pensamento, o problema sociológico interessante consiste
em avaliar e medir o alcance social limitado da produção dos patrimônios. Num cenário
social onde, de um lado, encontra-se uma minoria intelectualizada que decide o que é
patrimônio, amparado em legislação protecionista e em critérios técnicos estabelecidos
pelos peritos5 do patrimônio (GIDDENS, 1991); de outro, encontram-se instâncias sociais
mais populares ausentes de tais processos simbólicos constitutivos, num contexto de
ausência de mediação entre os interesses do Estado e os da sociedade civil, com grande
dificuldade de organização política.
É perceptível, por este viés, a identificação de um caráter arbitrário, porém
jurídico e legal, no processo histórico e vigente da preservação em âmbito nacional,
embora esta realidade seja também a de outros países, haja vista que o modelo
preservacionista implantado no mundo ocidental segue a mesma lógica, qual seja a da não
participação social, da homogeneização e ocultação do conflito (JEUDY, 2005).
A tal maquinaria patrimonial, estabelecida na sociedade ocidental moderna e
caracterizada por (JEUDY, 2005) no livro Espelhos da Cidade, impôs-se de modo
hegemônico. Diante de tais dispositivos patrimoniais, segundo Canclini constituído pelo
“conjunto de bens e práticas tradicionais que nos identificam como nação ou como povo é
apreciado como um dom, algo que recebemos do passado com tal prestígio simbólico que
não cabe discuti-lo” (2003, p. 160), resta-nos apenas preservá-lo, restaurá-lo e dinfundi-lo,
como se o mesmo sempre existisse e tivesse seu valor perene.
A partir desta conjuntura de cumplicidade social (CANCLINI, 2003) tornam-se
necessárias críticas que não se colocam no objetivo de negar o valor historicamente
Em “patrimônio, negociação e conflito”, (GILBERTO VELHO, 2006) relata sua experiência enquanto
relator de um dos caos mais emblemáticos de tombamento no Brasil ocorrido no ano de 1984, o tombamento
do terreiro de candomblé Casa Branca, em Salvador, Bahia. Sendo por meio deste controverso acontecimento
que pela primeira vez que a tradição afro-brasileira obtinha o reconhecimento oficial do Estado Nacional.
Fato este ocorrido em meio a um ambiente social bastante divido em relação ao referido tombamento, mas
que devido às inúmeras pressões por parte de estudiosos e setores da sociedade ligados a causa da cultura
afro-brasileira, foi inscrito na lista do patrimônio nacional, abrindo caminho inclusive para que outros bens e
manifestações de cunho não elitista pudessem também seguir o mesmo caminho, constituindo-se assim
também patrimônio do ponto de vista institucional.
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5
Giddens (1991) afirma que o sistema de peritos é um tipo de mecanismo de desencaixe intrinsecamente
envolvido no processo ativo do desenvolvimento das instituições sociais modernas. No qual “por sistema de
peritos quero me referir a sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes
áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje” (GIDDENS, 1991, p. 35).
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conferido ao patrimônio – valor este praticamente inquestionável devido a
conformidade que se criou sobre o tema patrimônio na contemporaneidade, (principal
ponto favorável do processo de preservação nacional) – mas no sentido de transformação
das representações socialmente construídas que fazem do patrimônio algo inquestionável,
que não leva em conta os valores social, práticos e de uso, por parte das pessoas
cotidianamente estabelecidas e sem condições de expressarem sua visão do processo.
É importante salientar que este modelo de preservação herdado dos europeus,
sobretudo dos franceses, vem sofrendo muitas pressões quanto aos seus efeitos negativos.
Como exemplos, temos a intensificação do turismo, reduzindo o patrimônio à condição de
mercadoria; os elevados custos de manutenção dos imóveis tombados; a inadequação aos
usos atuais; e a paralisação de outros grandes projetos de organização do espaço urbano
(CHOAY, 2001).
A teatralização do patrimônio, que de acordo com (CANCLINI, 2003) nos força a
simular a substância fundadora de nossas essências, constitui grande esforço de forjar uma
origem que dá sentido as nossas identidades, em relação à qual deveríamos atuar no
presente como forma de não perdermos nossas origens frente ao mundo moderno
capitalista. Este modelo de construções identitárias nacionais, pautado na legitimação
patrimonial frente aos usos sociais do patrimônio confere uma estetização exagerada aos
sítios históricos, dá a eles uma embalagem culturalizada, com fins de transformá-lo em
produto cultural pronto para ser consumido no mercado cultural de bens simbólicos6.
Fenômeno este que faz com que inúmeros investimentos imobiliários sejam alocados para
estes espaços de lazer e consumo, gerando uma pressão sobre populações locais não
privilegiadas, que tendem a ser excluídas do processo de gestão do patrimônio e também
do espaço social no qual vivem (CHOAY, 2001).
Para Sá da Nova “(...) a lógica cultural pós-moderna configura e é configurada pela sociedade
contemporânea. Esta lógica dialética potencializa a fragmentação da realidade, a superficialização do
pensamento e dos produtos culturais, contextualizando a sociedade do consumo enquanto uma prática
cultural, com reflexo, consolidação e maturação da vitória do mercado e da pragmática capitalista, sobre a
produção da vida e da cultura, nos moldes da alta modernidade”, na qual “o espetáculo é o momento em que
a mercadoria ocupou totalmente a vida social” (2007, p. 59). Ainda para o mesmo autor, “a sociedade
contemporânea, apesar de cultivar arqueologicamente o passado, perdeu a capacidade de conhecê-lo. Vive o
“presente perpétuo” de um cotidiano marcado pela superficialidade de seus conceitos e valores, pelo caráter
descartável de suas produções e pelo estímulo consumista de uma identidade estável”. “A sociedade do
consumo como prática cultural constitui-se, assim, na sociabilidade dos valores efêmeros e descartáveis,
orientada na novidade repetitiva do cotidiano, consolidando a circularidade do consumo, tão vital para a
saúde do sistema produtivo. Em um mercado de bens materiais e simbólicos, a própria constituição dos bens
materiais enquanto objeto de consumo exige a vestimenta simbólica da marca, do marketing” (2007, p. 62).
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O conservadorismo patrimonialista para se legitimar, precisa converter
a cultura em natureza, torná-la natural como um dom. Sendo a educação, dita patrimonial,
o palco fundamental para o a teatralização do patrimônio. Pois é na escola e nos espaços
sociais informes de educação que se transmitem os saberes sobre os bens que constituem
os acervos patrimoniais, inculcando assim conteúdos conceituais do ensino sobre o
patrimônio, valor este que tem estimulado ao longo das duas últimas décadas uma gama de
políticas e programas de educação patrimonial por parte dos órgãos de preservação
(CANCLINI, 2003).
2 A PATRIMONIALIZAÇÃO E SUAS CONTRADIÇÕES IDENTITÁRIAS
Os indivíduos pertencentes a grupos sociais menos favorecidos, não raro, são
considerados pessoas desprovidas de recursos que possam promover sua organização
política e a conseqüente participação ativa neste processo. Esse discurso tem legitimado o
trabalho dos intelectuais a serviço do Estado, em períodos distintos da histórica recente
nacional, consolidando assim o projeto inacabado de construção da identidade nacional, no
qual o patrimônio sempre teve um lugar central.
Nesse processo, ainda segundo (FONSECA, 2005), reside o que a autora chama
caráter contraditório da promoção da cidadania, isto é, ao mesmo tempo em que se
legitimou o compromisso político e intelectualizado de construção de uma nação brasileira,
a sociedade foi excluída, de modo geral, do desejo da promoção da cidadania pelas
políticas de cultura e patrimônio.
A partir do estudo sobre as bases históricas formadoras do modelo
preservacionista nacional, percebemos que a necessidade de criação de uma identidade
nacional brasileira foi sedimentada por forte presença do Estado. Senda que nessa trama
política os intelectuais tiveram suma importância na mediação simbólica, contribuindo,
muitas vezes indiretamente, para produzir profundas disparidades em termos de
identificação plural da sociedade com o patrimônio nacional; dominado por uma visão
originalmente barroca, aristocrática e católica.
A maioria da população brasileira não participou ativamente do projeto de gestão
oficial da identidade nacional, não se vendo reconhecida no chamado processo de
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reflexividade7 do patrimônio (JEUDY, 2005). Tal configuração produziu um
profundo afastamento das camadas sociais subalternas em relação ao cenário cultural
patrimonializado, em virtude do projeto de construção da identidade nacional ter sido
conduzido por intelectuais comprometidos com o stablishment, estando desconectados da
plurivocidade do social como um todo. Circunstâncias que propiciaram o afloramento de
um sentimento de estranhamento das pessoas em relação aos sítios históricos, o que não
ocorre com a cultura popular nacional. Este ponto revela a contradição intrínseca aos
programas de educação patrimonial, que ao invocarem o repetido refrão do reforço do
“sentimento de pertencimento” ocultam o fato de que a maioria da população brasileira não
se reconhece “positivamente” (na sua auto-estima) nos acervos “tombados” pela política
oficial do Estado Nacional brasileiro.
O que percebemos é que após décadas de investimentos em patrimonialização e
construção da grande narrativa da identidade nacional, os patrimônios parecem mais
constituir símbolos identitários abstratos e restritos a uma minoria cultural elitizada,
colocando a grande maioria do povo brasileiro à margem do processo de constituição do
chamado “patrimônio nacional”.
Todo esse contexto de silenciamento das camadas sociais populares em nível da
criação de uma identidade nacional reflexiva fez com que as pessoas constituíssem em suas
representações uma idéia de passado remoto, algumas vezes reminiscente, outras vezes
fantasmagórico, descolado da realidade cotidiana das pessoas8 (GIDDENS, 1991), onde
imperam os espíritos de sobrevivência, de modernização e de desenvolvimento.
A problemática do patrimônio e da preservação, apesar de todos os investimentos
públicos desde a década de 1930, aparece como marginal nos debates políticos e,
conseqüentemente, nas políticas públicas de cultura. Diante de tal contexto, incrivelmente
as pesquisas nas ciências sociais são incipientes diante de uma problemática social tão
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Para Jeudy as estratégias da conservação caracterizam-se por um processo de reflexividade que lhes dá
sentido e finalidade. A significação contemporânea do conceito de patrimônio cultural vem de uma
reduplicação museográfica do mundo. Para que exista patrimônio reconhecível, é preciso que ele possa ser
gerado, que uma sociedade se veja o espelho de si mesma, que considere seus locais, seus objetos, seus
monumentos reflexos inteligíveis de sua história, de sua cultura. É preciso que uma sociedade opere uma
reduplicação espetacular que lhe permita fazer de seus objetos e de seus territórios um meio permanente de
especulação sobre o futuro (JEUDY, 2005, p. 19).
“O advento da modernidade arranca crescentemente o espaço do tempo fomentando relações entre outros
“ausentes”, localmente distantes de qualquer situação dada ou interação face a face. Em condições de
modernidade, o lugar se torna cada vez mais fantasmagórico: isto é, os locais são completamente penetrados
e moldados em termos de influências sociais bem distantes deles. O que estrutura o local não é simplesmente
o que está presente na cena; a “forma visível” do local oculta as relações distantes que determinam sua
natureza” (GIDDENS, 1991, p. 27).
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aguda e conflituosa, o que tem motivado o avanço de pesquisas já
desenvolvidas em São Luís no campo do patrimônio histórico e cultural.
A maioria das pesquisas relacionadas ao tema faz alusão primordialmente à
construção histórico-social do patrimônio, a aspectos políticos e discursivos, omitindo a
dimensão social do conflito, tão inerente ao processo de patrimonialização e que permeia a
discussão no âmbito social.
O conflito é, dessa forma, silenciado pelo tradicionalismo preservacionista
(CANCLINI, 2003) que impera nas políticas públicas de patrimônio e pela mediação
simbólica dos intelectuais (ORTIZ, 1998) no processo de constituição da identidade
brasileira. O que por sua vez faz prevalecer o consenso, a homogeneização e a
conformidade social por meio da desarticulação dos movimentos sociais. Atores sociais
estes que poderiam atuar no interstício do conflito, buscando a construção de um espaço de
mediação dos dilemas na cena patrimonialista.
Mais
importante
ainda
é
perceber
a
lógica
de
funcionamento
da
patrimonialização, para entender seu desenvolvimento ambivalente na modernidade, sendo
necessário analisar a estrutura sociocultural de suas contradições sem omitir a questão dos
usos sociais do patrimônio, que, conforme vimos com (CANCLINI, 2003) permanecem
ausentes.
2 A DIALÉTICA DO CONFLITO
Sendo o conflito omitido, marginalizado e por vezes criminalizado, constituindo
por vezes caso de polícia, o patrimônio passa a ser “dado”, “naturalizado” e “acabado”,
sem margem de discussão ou mediação social. As pesquisas realizadas cerca de dez anos
pelo Grupo de Pesquisa e Estudos Culturais - CRISOL9 (GPEC/UFMA), sistematicamente
apontam para a necessidade de questionarmos o caráter contraditório da política federal de
preservação e seus ecos em São Luís/MA e em outras regiões do país (CORRÊA, 2008).
Política que historicamente tem ignorado a participação social e que tem se
pautado excessivamente numa patrimonialização passadista que não considera as
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Coordenado pelo Professor Dr. Alexandre F. Corrêa, com textos de ensaios sobre o patrimônio cultural e
memória social reunidos no livro Patrimônios Bioculturais (2008).
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necessidades atuais dos habitantes que moram ou fazem uso do sítio histórico
local. Tais acervos ficam restritos as camadas elitistas e intelectualizadas da sociedade
brasileira e maranhense.
A construção do patrimônio no Brasil deve ser vista de um ponto de vista crítico e
dialético, pois é preciso dar atenção “ao modo como esse objeto tem sido construído e
ideologicamente elaborado por determinados sujeitos sociais, que têm tido, no Brasil, o
monopólio dessa construção” (FONSECA, 2005, p. 28).
O patrimônio histórico e cultural brasileiro tem constituído – além de pasta
municipal, estadual e federal para políticos e intelectuais – coleção de bens “móveis” e
“imóveis”, que desde a década de 1930, tem sido valorado por meio de um intenso
processo de mediação simbólica10, mas que se caracteriza por uma total ausência de
participação social popular.
Para Fonseca o patrimônio nacional é valioso, sem dúvida alguma, mas tem se
tornado “pesado” e “mudo”:
Pesado, não só por sua monumentalidade, pela solidez dos materiais e
pelo lugar que ocupa no espaço público. Pesado porque mudo, na medida
em que, ao funcionar apenas como símbolo abstrato e distante da
nacionalidade, em que um grupo muito reduzido se reconhece, e referido
a valores estranhos ao imaginário da grande maioria da população
brasileira, o ônus de sua proteção e conservação acaba sendo considerado
como um fardo por mentes mais pragmáticas (FONSECA, 2005, p. 2627).
A autora supracitada levanta muitos questionamentos que inclusive se referem aos
volumosos recursos públicos gastos com o patrimônio11, já que apenas uma pequena parte
da população brasileira se vê refletida e identificada com os patrimônios nacionais.
Patrimônios estes que formam uma suposta identidade nacional, que em muitos aspectos
diverge e/ou ignora as memórias coletivas e cotidianas que formam a riquíssima
pluralidade cultural brasileira. Existe, portanto, uma imensa distância entre as tradições
10
Ortiz, em sua obra cultura brasileira e identidade nacional, com sua primeira publicação em 1965, faz
reflexões acerca dos processos e projetos de construção de uma identidade nacional a partir do fim do século
XIX ao período militar brasileiro, levando em conta o caráter político sempre presente, que somado a
ausência representativa da sociedade brasileira, não teria passado de um processo histórico de mediação de
intelectuais ao longo de décadas, indo das teorias raciológicas de Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Nina
Rodrigues aos intelectuais a serviço do regime militar brasileiro, período chave de sua análise.
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Segundo Andrés (2006) “O PPRCHSL apresenta hoje um balanço de investimentos da ordem de R$
225,00 milhões com recursos públicos, na recuperação de uma área histórica que abrange cerca de 1000
edificações tombadas pelo IPHAN, além de outros grandes monumentos isolados, como as antigas fábricas
têxteis do século XIX. Mostra ainda como foram as tratativas e os critérios adotados pelo Comitê do
Patrimônio Mundial para a sua inclusão na lista da UNESCO”.
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culturais brasileiras e as identidades coletivas nacionais, impondo sérios limites
à política patrimonial nacional.
Neste sentido, a dimensão do conflito12 (SIMMEL, 2006) é velada em detrimento
da conformidade imposta, preponderante e imperativa nos discursos oficiais; geralmente
desconectados das práticas sociais cotidianas inerentes à cena patrimonial. Na qual a
participação social ou qualquer tipo de posicionamento divergente aos paradigmas oficiais
são desconsiderados, assim como as apropriações e identificações que as ditas pessoas
comuns fazem do patrimônio, homogeneizando e criando uma espécie de tabula rasa na
cena do patrimônio de modo a não revelar as desigualdades e conflitos em prol da
cumplicidade social (CANCLINI, 2003).
3 POR UM USO SOCIAL DO PATRIMÔNIO
A dialética que funda a perspectiva do distanciamento/estranhamento social, em
relação ao patrimônio, se deve, em grande parte, ao próprio processo histórico que o
constituiu. No qual a participação social sempre foi negligenciada, principalmente nos
momentos
históricos
antidemocráticos
em
que
se
consolidou
o
pensamento
preservacionista brasileiro.
Canclini aponta para uma possível teoria social do patrimônio, no sentido de se
repensarem os usos sociais contraditórios do patrimônio cultural, que para este autor é:
[...] dissimulado sob o idealismo que o vê como expressão o gênio
criador coletivo, o humanismo que lhe atribui a missão d reconciliar as
divisões “em um plano superior”, os ritos que o protegem em recintos
sagrados? As evidências de que o patrimônio é um dos cenários
fundamentais para a produção do valor, da identidade e da distinção dos
setores hegemônicos modernos sugerem recorrer a teorias sociais que
pensaram essas questões de um modo menos complacente (CANCLINI,
2003, p. 193-194).
Diante do caráter antidemocrático do preservacionismo cultural nacional, é cada
vez mais difícil ocultar a reiterada ausência da participação popular nas políticas culturais,
Para Simmel (2006, p. 70), “[...] esse mundo da sociabilidade, o único em que é possível haver democracia
sem atritos entre iguais, é um mundo artificial, construído a partir de seres que desejam produzir
exclusivamente entre si mesmos essa interação pura que não seja desequilibrada por nenhuma tensão
material”.
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tal é a falta de interesse dos peritos pelas dimensões sociais e cotidianas que são
construídas socialmente a partir do patrimônio.
A preservação segue em todo o mundo a mesma lógica, apesar de os conjuntos
não terem as mesmas características, pois “trazem a imagem de uma museografia interna
da cidade” (JEUDY, 2007). Lógica na qual, na prática, ocorre a expulsão das pessoas para
restauração seguida de estetização (gentrification) a fim de que as classes mais abastadas
possam ali se instalar, como pode ser percebido na fala de um morador do bairro do
Desterro, quando perguntado acerca do processo de revitalização urbana em São Luís/MA,
e de suas condições de vida atuais.
De lá pra cá eu vejo que não melhorou muita coisa, eu tinha a impressão
que eles iam revitalizar a área do Centro Histórico e dar condições para as
pessoas que residiam ali, mas foi o contrário, ficou só no discurso. Neste
processo muitas famílias foram desmembradas, existem filhos que moram
aqui e pais que moram no Anjo da Guarda e outras que os pais moram
aqui e os filhos tiveram que procurar outro lugar, etc. O que hoje resta ai
é cortiço, “cabeça de porco” mesmo. Daqui pra frente o que vem é pior
ainda, se não fizeram antes agora que não vão fazer mesmo.
Hoje o que tem mais é gringo aqui, gente de toda nacionalidade, coisa de
uns dez anos pra cá, pois antes eles não tinham interesse. Na Rua do Giz
tem uma casa de um dinamarquês que é um espetáculo, tem até piscina,
ele aluga para eventos, etc. antes, na época da antiga ZBM lá era um
cabaré brabo, muito movimentado. Depois de um bom tempo que o
cabaré faliu, venderam para esse gringo de porta fechada com o pessoal
morando dentro. Daí foi feita uma negociação com pessoal que morava
lá, o dono foi dando certas quantias para uns e outros até que saíram
todos (Entrevista com morador e ex-membro fundador da Associação dos
Moradores do C.H de São Luís)
As falas do morador ex-membro fundador da Associação de Moradores do
Centro Histórico de São Luís, reflete bem um profundo descontentamento dos moradores
em relação à chamada revitalização do espaço urbano antigo (Centro Histórico). A maioria
dos moradores, desde o início do processo, já abandonou os antigos casarões e/ou foi
retirada durante o processo de revitalização, cedendo lugar a empreendimentos públicos e
privados, sobretudo ligados aos órgãos de cultura e turismo.
O ambiente institucionalmente patrimonializado do bairro do Desterro e Centro
Histórico de São Luís tem sido alvo e palco de inúmeros embates e conflitos no seio da
comunidade com os representantes de órgãos públicos de preservação, devido às
incompatibilidades de renda dos moradores com o padrão juridicamente estabelecido para
a preservação. O que tem provocado, em grande parte, o abandono de muitos imóveis ou a
realização de obras com portas fechadas, sem que o poder público tome consciência –
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nestes casos sendo resolvidos judicialmente quando descobertos, como o caso
retratado na fala de outro morador, que se segue:
Se eu tivesse condições abandonava o prédio e deixava para eles, para
virar um cabide de bandidagem, de bandidos, pois aqui no Centro
Histórico é só o que acontece. Pois o abandono de casas tem feito com
que se instalassem aqui drogados, bandidos e assaltantes em nosso bairro.
Sendo que a justiça não vê isso, vendo apenas o lado do IPHAN. Não sei
mais o que fazer em uma situação dessas! Moro aqui porque sou pobre,
se tivesse condições não morava no Desterro nunca, pois é uma área em
que ninguém é dono de nada, pois não podemos fazer melhorias. Agora
me diga: qual o cidadão que tem sua casa e não quer fazer melhorias, para
melhorar sua condição de vida? Isto sem depender do governo e sem
pedir. Sou um cidadão que pago meus impostos, trabalho, daí o governo
só tira de mim e não me dá nada? Ainda quer minha casa? Estas
considerações é que queria que a justiça tomasse conhecimento!
(Morador do Desterro).
Diante do ambiente aparentemente calmo e bucólico do Desterro existe um
universo social bastante tenso, formado por um conjunto de moradores que se enfrentam
entre si, e que enfrentam o poder público, transgredindo as normas legais e jurídicas da
preservação – em nome do que chamam de direito a permanecer no seu lugar de moradia,
de acordo com suas regras e conveniências, sem que haja qualquer tipo de entre-lugar neste
conflito perene; como também podemos ver na fala que se segue:
Com relação a todas as proibições que o IPHAN nos impõe, eu penso que
o tempo todo vai haver esta briga, pois a lei não nos deixa mexer em
nada. Agora mesmo já tem duas casas embargadas no bairro, e ela disse
que ia derrubar a casa dele de qualquer jeito, é vereador de Matinha, ele
conseguiu adiar a decisão. Aqui é a maior confusão até pra mexer num
azulejo (Entrevista com morador e ex-membro fundador da associação
dos moradores do C.H de São Luís)
Os enfrentamentos são uma constante no Desterro devido às divergências e
posicionamentos adversos de diferentes grupos da comunidade; apesar de ser muito
desorganizada politicamente. Fica claro que algum nível de organização poderia ser
promovida e/ou proporcionada com alguma facilidade, pelo próprio poder público, e/ou
por organizações não governamentais; contudo, quando o assunto é patrimônio, qualquer
palavra sobre a possibilidade de se organizar a comunidade, causa todo tipo de suspeita e
embaraço.
Outro complicador para a efetivação dos usos sociais e democráticos do
patrimônio reside na própria base legal da lei preservacionista (Decreto Lei n. 25/1937),
quando sabemos que a justiça brasileira é cara e dispendiosa. Assim pessoas de origem
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social menos favorecida não têm condições de arcar com os elevados custos de
manutenção e restauração destes imóveis; como fica evidente, na fala a seguir:
A Prefeitura é quem regula o uso do solo urbano, somente uma política
municipal de fortalecimento deste mesmo solo urbano é que vai fazer
com este se torne atraente. [...] atraente que eu falo é no sentido
econômico, de ficar um espaço caro, um espaço que seja disputado, um
espaço que as pessoas queiram realmente morar. Porque o que está
acontecendo é que ninguém quer morar no centro. Os planos que se
colocam são para a habitação de função social, ou seja, pessoas de
baixíssima renda que vão ser alocados nesse espaço. Mas essas pessoas
não vão ter renda suficiente para manter esses imóveis. Pois são imóveis
caros na sua manutenção (CHAVES, 2008. Entrevista concedida por
Kátia Bogéa, 09/2008).
O contexto atual é de inexistência de diálogo entre poder público e sociedade;
quando ao assunto é patrimônio histórico e arquitetônico. Quando ocorre o “diálogo”, este
acaba por ser constituído nas bases ideológicas/jurídicas estatais, sem quaisquer tipo de
instrumentos e/ou órgãos de mediação entre os interesses do Estado e os interesses práticos
e atuais de diversos setores sociedade, como das comunidades que habitam estes lugarespatrimônio. Percebemos as grandes dificuldades que a população tem no sentido de
conquistar a participação efetiva e cidadã, num ambiente social favorável a sua
participação, na construção social democrática das políticas do patrimônio, como está
afinal garantido na Constituição Federal de 1988, no seu Capítulo sobre a Cultura, em que
está inscrito o direito cultural e a cidadania cultural, atualmente apenas figura de retórica
nas falas enunciadas pelos agentes públicos. Estamos muito longe de vislumbrar a
possibilidade de um terceiro espaço, como sugere (BHABHA, 1996), na cena do
patrimônio histórico-cultural; de modo a mediar os conflitos e interesses nos centros
urbanos antigos das grandes cidades brasileiras.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao situar esta discussão acerca dos conflitos cotidianos na cena do patrimônio,
faz-se necessário perceber o quanto as políticas de cultura e de patrimônio estão ligadas, na
contemporaneidade, à lógica cultural do capitalismo tardio (JAMESON, 2007). Lógica
esta, responsável por promover a reconversão de bens culturais e simbólicos, antes
cultuados pelos eruditos ou tidos como símbolos identitários no Estado Nação, em
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produtos culturais ligados ao processo de mundialização e disputa por
afirmação no cenário internacional dos espaços, principalmente após a intensificação dos
investimentos globais realizados pela indústria turística e hoteleira.
Ao situar o problema em questão, devemos levar em consideração as
complexidades, tensões, conflitos, discursos e transgressões por parte dos moradores e
habitantes dos sítios históricos latino-americanos. Buscando assim (des)naturalizar o
pesado estereótipo de “analfabetos culturais” que justifica e legitima a violência simbólica
(BOURDIEU, 1989) sobre estes sujeitos (historicamente alienados da construção social e
democrática do patrimônio). Processo este que se desenvolve desde os anos heróicos da
preservação na década de 1930 – momento da institucionalização do patrimônio com os
primeiros tombamentos nas cidades históricas mineiras e a conseqüente criação do IPHAN,
em 1937 – até os nossos dias atuais13.
O patrimônio histórico e arquitetônico deveria ser considerado enquanto território
de experiências humanas, espaço social imerso num contexto de múltiplas temporalidades,
no entanto, não raro, estas peculiaridades socioculturais são totalmente ignoradas pelo
poder público. Diante de um quadro político adverso só resta aos indivíduos (moradores e
habitantes desses sítios históricos) disporem de seus próprios dispositivos e mecanismos de
resistência pautados na convivência e na sobrevivência cotidiana (gerenciamento simbólico
público). Tais práticas políticas fundadas na experiência da sociabilidade do dia-a-dia
exigem dos pesquisadores e interessados no tema uma profunda compreensão da complexa
gramática do uso social do espaço de convívio entre os indivíduos que compõem àquela
“comunidade” (CERTEAU, 2007). É através dessa gramática que se estrutura seu universo
de relações simbólicas, no qual, conforme constatado, não se aprecia com facilidade a
interferência do “Outro”; visando assim manter certo estado de “equilíbrio” social
estratégico, mas frágil, sempre abalado pelas interferências, coerções, recomendações de
uso, fiscalizações e punições advindas do poder público, responsável pelas políticas
públicas de patrimonialização.
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Cabe salientar que a novidade da aprovação do programa de registro do patrimônio cultural imaterial
brasileiro, inaugurado com o Projeto de Lei n. 3551/2001, em nada modificou esse cenário aqui desenhado,
no que se refere mais especificamente as vicissitudes da gestão dos patrimônios arquitetônicos e históricos,
regidos pelo Decreto-Lei n. 25/1937.
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