O homem reduzido.

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Kurz, Robert. "O homem reduzido." São Paulo: Folha de São Paulo, 03 de outubro de 1999.
FSP 3-10-99
O homem reduzido
ROBERT KURZ
Quando o físico e romancista britânico Charles P. Snow avançou em 1959 sua
tese das "duas culturas", com ela não somente conquistou um eco universal,
mas cunhou também um topos da discussão cultural e sociopolítica. As "duas
culturas" são a oposição entre os mundos da ciência humana e da literatura,
de um lado, e, de outro, os da técnica e da ciência natural, mundos estes
que, desde o século 19, se apartam cada vez mais. A controvérsia que se
instaurou a respeito, todavia, permaneceu um tanto superficial. Isso porque
o problema decisivo, a radicação das duas "culturas" antagônicas numa
determinada ordem social histórica, quase não foi posto em litígio.
O debate sobre a tese de Snow referiu-se mais à relação das ciências
naturais com a literatura e a filologia, e menos à relação das ciências
naturais com a teoria social. Snow, é verdade, ao complementar seu estudo em
1963, admitiu que talvez se pudesse ainda falar de uma "terceira cultura",
mas isso não passou de um comentário marginal.
O discurso sobre as "duas culturas" toldou, nesse sentido, o verdadeiro
problema, ao concentrar-se não numa luta por posições entre as ciências
naturais e as ciências humanas, mas na relação polar entre as ciências
naturais e os procedimentos artístico-literários. Essa oposição pôde assumir
o aspecto de uma desavença familiar dentro da intelligentsia burguesa, na
qual a ciência natural, uma espécie de irmã mais velha ajuizada, levava a
melhor sobre os representantes da "intelligentsia estética", a quem se podia
facilmente tachar de "analfabetos da ciência".
No fundo, o debate sobre as "duas culturas" já pressupõe que "a" ciência
seja a ciência natural. A possível batalha pelo primado entre a teoria
social e as ciências naturais foi decidida a favor das últimas, antes mesmo
que pudesse ter início. A questão da "terceira cultura" foi em grande parte
ofuscada. Como mostrou a "querela do positivismo" na sociologia
alemã -travada também nos anos 60 entre os minoritários da "teoria crítica"
de Adorno e Horkheimer, de um lado, e, de outro, a ciência humana oficial-,
o "mainstream" das ciências sociais há muito se pôs do lado dos fundamentos
e métodos ditados pelas ciências naturais.
Ao emancipar-se desse positivismo das ciências naturais e converter-se em
crítica radical da sociedade ou implicar essa última, no fundo a teoria
social deixa de ser uma "disciplina" acadêmica. Isso se deve, claro, ao
caráter institucional do próprio modelo científico, que por sua forma é
"ritualizado" à moda burguesa e não possui vocação de crítica radical, sendo
antes parte integrante da ordem vigente com sua falsa pretensão de
objetividade.
Se no declínio da ordem pré-moderna foram sobretudo as novas ciências
naturais que, modificando a concepção de mundo, causaram escândalo e
acabaram perseguidas pelas autoridades, durante a história de modernização
capitalista foi a teoria social, por sua vez, que passou a ser objeto
potencial de perseguição, fosse diretamente pelo Estado e pela polícia,
fosse mais sutilmente pelos critérios restritivos (tanto de conteúdo quanto
de método) da "reputação científica". Por isso, inovações relevantes da
crítica social na modernidade, semelhantes -na forma- à criativa "boemia"
artística, não raro surgiram fora ou à margem da ciência oficial, a exemplo
de Rousseau no século 18, Marx no século 19 e a "Teoria Crítica" ou mesmo os
situacionistas franceses (Guy Debord) no século 20.
O neomarxismo acadêmico dos anos 70, boa parte dele estéril, só pôde
dissimular por alguns momentos -fenômeno da moda que era- o fato de a teoria
crítica da sociedade no fundo representar pouco mais que uma "gata
borralheira" da academia, como já se evidenciara no debate mais ou menos
paralelo sobre as "duas culturas". Hoje a crítica radical da sociedade
desapareceu quase totalmente da ciência acadêmica. Como último resquício de
um pensamento social irredutível ao paradigma das ciências naturais restou
apenas a chamada "ética", uma "doutrina do comportamento" de todo acrítica,
individualista e institucional em relação ao capitalismo, a qual se insinua
como modesta oficina de reparos para colisões sociais. A "empresa ética" que
grassa hoje é o retrato da teoria social acadêmica após sua capitulação
incondicional.
As disciplinas históricas e sociológicas são segregadas tanto em termos de
método quanto de conteúdo, são quase "perfumaria". O triunfo da ciência
natural sobre o pensamento crítico da sociedade e sua entronização como "a"
ciência não é obra do acaso. Isso porque a ciência natural moderna e a ordem
social capitalista dominante têm uma origem histórica comum. A ciência
natural foi de certo modo a "ciência caseira" do capitalismo ascendente, foi
ela que forneceu um paradigma para uma "objetividade" sem sujeito. A ela
pôde atrelar-se a apologética economia política, que representava de certa
forma o "cavalo de Tróia" do pensamento das ciências naturais na teoria
social. Desde o princípio, ciência natural e economia uniram-se contra o
pensamento de crítica social, para afinal expulsá-lo de vez do panteão da
ciência moderna.
O triunfo da ciência natural e da economia pseudocientífica sobre a crítica
social revela-se em dois pontos comuns e essenciais de seus "métodos":
funcionalismo, de um lado, e reducionismo, de outro. Funcionalismo significa
não se perguntar pelo fundo, mas somente pela forma, pelo modo de
"funcionar", ao passo que a essência, o "sentido", o verdadeiro âmago do
objeto é pressuposto sem reflexão e permanece à parte do interesse
científico, um caso para a "infrutífera metafísica", para a religião, para a
"opinião" meramente subjetiva.
Na "ciência", os objetos dissolvem-se em suas funções. Na práxis social,
trata-se daquela "razão instrumental" criticada por Horkheimer e Adorno, que
dá margem a manipulações segundo o fim tautológico cegamente pressuposto da
valorização do capital, em que tanto a ciência natural e a técnica quanto a
economia teórica acham-se banidas.
Reducionismo significa, ao menos segundo a intenção, que objetos e formas de
ordem superior sejam reduzidos a meras "combinações" de objetos e formas de
ordem inferior. Economia e ciência natural concordam em grande parte que
espírito, cultura e sociedade possam remontar a elementos biológicos ou
mesmo econômicos (funções), e esses, por sua vez, a elementos físicos. A
consciência humana, o pensar e as formas de interação social a eles conexas
devem ser reduzidos a processos neurobiológicos no cérebro.
A famigerada "fórmula universal" buscada pelos físicos seria o coroamento
desse reducionismo. Que só poderia ser, no entanto, uma fórmula vazia, pois
a consciência resulta tão pouco da descrição de processos neurobiológicos
quanto o conteúdo de um livro, digamos, sobre os descalabros intelectuais da
ciência natural e da economia resulta da descrição da técnica de impressão
gráfica, da estrutura molecular do papel utilizado ou dos pigmentos das
letras impressas. A consciência supõe "significado" de conteúdo, e isso é
"fundo", não "forma", que jamais é idêntico à execução de funções
neurobiológicas. Com relação ao "significado" e ao conteúdo, a pesquisa
científica neurológica só pode expor-se ao ridículo.
Algo semelhante ao reducionismo das ciências naturais afeta o pensamento
econômico. Desde as hoje ressuscitadas "leis populacionais" de um Malthus,
passando pela doutrina sociodarwinista do "survival of the fittest"
(sobrevivência do mais apto), até a suposta predisposição "genética" à
pobreza, ele biologiza a sociedade para então novamente dissolver esse reino
animal de seres humanos em categorias pseudofísicas, tais como um mecanismo
"natural" de preço, um "desemprego natural" (Friedman) etc.
Tanto para a natureza quanto para a sociedade, o enlace desse funcionalismo
reducionista com esse reducionismo funcional desenvolve potenciais
destrutivos. É por isso que a ciência natural e a economia, apesar de seu
patente sucesso na manipulação do homem e da natureza, acabou por não trazer
melhora nenhuma às condições de vida. A economia não se cansa de produzir
novos surtos de pobreza e crises, a ciência natural, novos "artefatos de
destruição". Mas esse infeliz resultado não remonta a um "abuso"
contingente, a uma simples "utilização" equivocada da "cientificidade"
legítima, antes está radicado nos próprios procedimentos, nos axiomas e no
sistema de categorias da ciência natural e da economia. Não estamos às
voltas aqui com uma objetividade absoluta e a-histórica, senão com um mundo
filtrado pelas formas do moderno sistema produtor de mercadorias, que se
fazem passar por um a priori absoluto não apenas no pensamento econômico,
mas também no científico.
Para poder criticar, no interesse da emancipação humana, esse nexo
categórico entre a ciência natural e a economia de produção mercantil, temos
de evitar diversas armadilhas. Não é uma alternativa, por exemplo, criticar
o pensamento físico mecanicista desde Descartes em nome de um "organicismo"
biológico, tal como tentou a chamada filosofia da vida na virada do século
passado.
Isso não seria mais que jogar o reducionismo biológico contra o físico (com
as reacionárias consequências sociopolíticas de praxe), em vez de formular
propriamente uma crítica do reducionismo científico. O escândalo do
paradigma científico é duplo: em última análise, ele não é capaz de
distinguir nem entre objetos mortos e vivos, nem entre biologia e sociedade.
Ambos os aspectos desse processo duplo de redução científica devem ser
criticados para superar o nefasto discurso econômico-científico.
Também não é uma alternativa buscar refúgio num cosmos religioso da
pré-modernidade reproduzido sinteticamente. Uma ordem simbólica desse tipo,
com uma cosmovisão coerente, faz parte irrevogável da história; toda
tentativa de reavivá-lo só pode redundar num obscurantismo ainda mais
irracional. A embromação da indústria esotérica, comercializada a extremos,
não supera o reducionismo (e funcionalismo) econômico-científico, antes só o
complementa.
Não raro, são os próprios cientistas e economistas que cultuam seu "deus
pessoal" ou lêem sua sorte nas cartas. O objetivo não pode ser um recuo
reacionário a formas de reflexão anteriores à ciência moderna, mas somente
um avanço para além delas. Ora, a forma dessa crítica é necessariamente a
teoria social, cuja esfera de aplicação devia ser estendida às ciências
naturais, ou melhor, às raízes históricas comuns do capitalismo, da ciência
natural e da economia teórica.
Não se trata simplesmente de negar os conhecimentos científicos atuais ou
aceitar "lado a lado", sem reflexão, práticas culturais divergentes, tais
como a magia das danças da chuva e a meteorologia moderna, como sugeriu Paul
Feyerabend, antigo teórico positivista da ciência, após o colapso de sua
imagem científica do mundo. Um caso ainda pior é o do físico norte-americano
Fritjof Capra, que traça paralelos superficiais entre a mística do Extremo
Oriente e a física moderna, reunindo-as num moralismo raso.
A tarefa é muito mais complicada. Cumpre "historicizar" a ciência natural e
submetê-la a uma auto-reflexão social: ela não é uma relação imediata "do"
ser humano com a natureza "objetiva", antes vem sempre filtrada pelo caráter
social dos sujeitos que percebem e pesquisam. A ciência natural, claro, não
é uma ciência da sociedade, e isso pelo próprio âmbito de seu objeto, mas é,
sim, uma ciência social, devendo ser apreendida, nesse sentido, como
fenômeno de uma certa "subjetividade histórica" -e seus axiomas, categorias
e procedimentos, decifrados como formas sociais de percepção.
Esta, portanto, é a grande questão: em que consiste, do prisma da teoria do
conhecimento e da práxis social, de uma "visão de mundo", o nexo formal
comum e historicamente limitado entre capitalismo e ciência natural, nexo
este que cabe ser superado? A tarefa consistiria, nesse sentido, em vincular
a crítica à pseudo-objetividade das categorias econômicas modernas a uma
crítica correspondente à forma socialmente mediada das ciências naturais, a
fim de "enxergá-las" de alto a baixo com as lentes da crítica social,
pulverizando a interpretação sociotecnológica ou sociobiológica e
evidenciando seu âmbito de aplicação limitado. Há muito tempo a própria
física chegou a seus limites, que simplesmente não são reconhecidos como
limites histórico-sociais. Talvez o previsível fiasco da "fórmula universal"
seja a gota d'água para que a ciência natural comece a tomar consciência
crítica de sua forma social negativa.
Para desvendar o caráter irracional da moderna racionalidade econômica e
científica, os teóricos da sociedade teriam, é claro, de superar seu
"analfabetismo" científico, e os cientistas, seu "analfabetismo" social. Uma
tal perspectiva exige também uma crítica social do modelo científico.O
sistema dos "especialistas bitolados", inflexível como é, não produzirá mais
novos conhecimentos que abalarão o mundo.
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