MUN D Arquivo pessoal Instituto Antártico Chileno “Só os humanos têm uma sensibilidade tão aguda para o tempo que os tornam capazes de se deslocar em pensamento no tempo — até pensar em sua própria morte”, afirma Rémy Lestienne Criado em 1963, o Instituto Antártico Chileno (Inach) é um órgão técnico ligado ao Ministério das Relações Exteriores do Chile responsável pela criação, coordenação e execução de todas as atividades realizadas no Território Antártico Chileno. Desde 2003 a sede do Inach está na cidade de Punta Arenas, que serve como uma porta de entrada do Chile para o Continente Branco. O Inach também é responsável pela realização de atividades de divulgação e avaliação do conhecimento sobre a Antártida na comunidade nacional, e a Feira Antártica Escolar é uma delas. experiência. “A Feira Antártica Escolar é uma oportunidade para a formação de uma cultura científica no Chile porque as experiências dos estudantes e professores têm efeito multiplicador. Com isso é possível criar espaços para o diálogo entre cientistas e cidadãos”, acredita. Patrícia Mariuzzo E n t r e v i s ta R é m y L e s t i e n n e A possibilidade da emergência para entender o surgimento de novas propriedades Como funcionam a consciência e o livre arbítrio? E a vida na Terra, como surgiu? São questões como essas, ainda não respondidas pela ciência, que o conceito de emergência se propõe a abordar. “A ideia da emergência pretende oferecer um caminho para entender como esses ‘milagres’ são possíveis, sem recorrer a causas transcendentais”, propõe o físico e neurocientista francês Rémy Lestienne, diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS). Ele é autor de vários artigos e livros sobre o tema. O mais recente, Dialogues sur l’émergence, lançado em 2012 na França pela editora Le Pommier, ainda não tem versão em português. Nesta entrevista Lestienne explica que a ideia de emergência se contrapõe ao reducionismo científico, que busca apreender os fenômenos por meio do estudo dos elementos que compõem um sistema. Diferentemente, a proposta é compreender a organização espontânea de grandes sistemas e de que maneira eles adquirem propriedades novas, não antecipadas pelo estudo dos elementos que os integram. E descreve um exemplo de emergência na revoada de um bando de estorninhos: “no início eles voam em desordem, mas logo a colônia se organiza espontaneamente para tomar uma direção”. 18 3_Mundo_41_p16a20.indd 18 1/11/13 8:41 PM ND Em seu último livro o senhor diz que, tradicionalmente, a ciência procura desvendar os fenômenos buscando compreender o mais simples, a partícula elementar. Mas há exemplos na natureza de que o todo não se reduz às partes que o integram, mas é composto pelos processos e dinâmicas que o constituem. Isso quer dizer que a ciência, tal como o cidadão comum a conhece, está errada? Não diria que a ciência, tal como ela é ensinada nas escolas e praticada pelos pesquisadores, esteja errada, mas sim que ela parece incompleta. O reducionismo científico – o método de buscar explicações para os fenômenos observados no estudo dos elementos que compõem o sistema – é muito poderoso e, sem dúvida, permitiu desenvolver a nossa civilização tecnológica. Mas ele não esclarece como a vida emergiu há mais de 3 bilhões anos na Terra, nem como a consciência – isto é, a representação de si mesmo e dos outros na cena do mundo e a faculdade de interferir no seu desenrolar –, apareceu nos sistemas nervosos dos animais superiores. A ideia da emergência nas ciências pretende oferecer um caminho para entender como esses “milagres” são possíveis, sem recorrer a causas transcendentais. Mais que uma descoberta, ele aponta fatos que são bem conhecidos, mas geralmente negligenciados pela ciência reducionista. O fato, por exemplo, de que muitas Notícias do Mundo propriedades do mundo onde vivemos não podem ser atribuídas a unidades elementares, como os átomos ou as partículas elementares, mas somente a conjuntos enormes de tais elementos. A forma estável das moléculas e de cristais, de modo geral, não pode ser definida por apenas uma molécula, mas por edifícios grandes e complexos. A ideia tão poderosa na física contemporânea de “quebra espontânea de simetria” para explicar a aparição de propriedades novas, tal como o ferromagnetismo, não está distante da ideia de emergência. O conceito de emergência influi na vida cotidiana ou implica numa mudança da maneira como percebemos e nos relacionamos com o mundo? A emergência é, em primeiro lugar, outra visão do mundo, uma filosofia que se opõe à filosofia do reducionismo. Aristóteles já pensava assim, quando escreveu que “a totalidade é mais do que a soma das suas partes”. Os emergentistas acreditam que, para explicar o que ainda resta a descobrir no mundo, é preciso compreender melhor como a organização espontânea de grandes sistemas é possível, e como eles podem adquirir, às vezes, propriedades novas que não podiam ser antecipadas pelo estudo de seus componentes e dos intercâmbios entre eles. Certamente, não encontramos situações desse tipo todos os dias em nossa vida – ao menos nas nossas práticas tecnológicas. Para entender como funciona um forno de micro-ondas, basta utilizar as prescrições do reducionismo científico. Pois a superveniência (1) de propriedades novas diz respeito a sistemas muito complexos, e de modo geral requer muito tempo e intercâmbios com o meio ambiente, como, por exemplo, a aparição de novas espécies ao longo da evolução. A possibilidade, então, está restrita aos sistemas que chamamos de sistemas termodinâmicos abertos. Nós, humanos, somos sistemas abertos em constante interação com o mundo. A nossa liberdade, o chamado livre arbítrio, parece ser um exemplo constante de exercício de emergentismo. A criação artística também o é: como a criação poderia livrar-se dos caminhos deterministas do funcionamento do sistema nervoso central se o cérebro não tivesse a possibilidade, pelo menos, de provocar bifurcações entre vários caminhos possíveis das atividades nervosas? O que significa dizer que a natureza é organizada em níveis, patamares? De que modo esta visão modifica a visão de origem – geralmente associada à visão de uma partícula elementar? A natureza é obviamente organizada em patamares. Conhecemos, por exemplo, o nível dos quarks, das partículas elementares, dos átomos, das moléculas. No campo dos sistemas 19 3_Mundo_41_p16a20.indd 19 1/11/13 8:41 PM MUND Notícias do Mundo Carlos Alberto Tiago vivos, há os níveis das células da luz, não conhece a proprieprocariontes, das células eucadade de tempo próprio. Uma riontes, dos seres pluricelulapartícula elementar, mesmo res, dos órgãos, dos indivíduque seja radioativa, não seros, das sociedades. ve para construir um relógio, A observação de que a natupois sempre existe a probabireza está organizada em palidade de ela se desintegrar no tamares e não se apresenta segundo seguinte (precisacomo uma substância não mos de um pedaço de matéria diferenciada é muito imradioativa para construir um Revoada de estorninhos na Ilha do Beleal, Penache, Portugal, portante para abrir a posrelógio desse tipo, e quanto é, para Lestienne, exemplo de emergência sibilidade da emergência maior for o pedaço melhor de propriedades novas – ao será a precisão do relógio). dizer, “nunca nos banhamos duas menos em alguns desses patamares. Somente os sistemas abertos e, parvezes no mesmo rio”. Ela também Ao caos radioativo inicial sucedeu ticularmente, os seres vivos, possibise manifesta, por contraste, na perum mundo em que partículas elelitam saber o que é o presente. E só cepção de que, para medir o tempo, mentares apareceram, átomos se os humanos têm uma sensibilidade precisamos de fenômenos que se reconstituíram, galáxias se formaram. tão aguda para o tempo que os torproduzem de maneira igual – como Cada um desses patamares pode ser nam capazes de se deslocar em penas oscilações de um pêndulo ou as entendido como um exemplo de samento no tempo – até pensar na oscilações de certa luz emitida pelo emergência. Mas estamos longe de sua própria morte. césio excitado. A complexidade aucompreender tudo o que concerne Essa estrutura em patamares nos lementa quando se procura dar conta ao Universo. Cosmólogos descova a perguntar: será que a ideia de da evidência de que o tempo não é briram, há algum tempo, que quase emergência não deveria se aplicar somente um fluxo. Entre o passado 95% da matéria e da energia que particularmente ao estudo do teme o futuro, o presente possui de fato compõem o Universo são de natupo? Parece ter chegado o tempo de uma propriedade particular – aquela reza completamente desconhecida. responder à pergunta de Ilya Prique só podemos atribuir à propriegogine [prêmio Nobel de Química O tempo à luz do conceito de emerdade de ser real. em 1977]: “Não seria o tempo uma gência pode ser aplicado em áreas Físicos da relatividade geralmente propriedade emergente? Mas então do conhecimento além da física? defendem uma visão relacionalista devemos descobrir as suas raízes...”. O tempo é uma entidade muito do tempo: o tempo (como o espaço) Marta Avancini complexa. Sua complexidade fica seria somente um meio de dar conta muito longe da imagem simplista da maneira como objetos podem ou que a teoria física, até agora, oferenão reagir entre eles. Outros, como nota ce desta noção. A complexidade coeu, pensam que o tempo é mais do meça com a observação de que, para que isso. Vemos que o tempo não 1. Superveniência se refere à relação de denós, a propriedade essencial do temafeta da mesma maneira todos os obpendência existente entre uma propriedapo é sua flecha, o fato de que tudo jetos, nem todos os seres vivos. Um de de um sistema global e as propriedades dos seus componentes. passa e, como Heráclito costumava fóton, que sempre voa à velocidade 20 3_Mundo_41_p16a20.indd 20 1/11/13 8:41 PM