projeto - (LTC) de NUTES

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PROJETO
Introdução
O surgimento da Internet no início dos anos 90, e a rapidez de seu
desenvolvimento e de sua difusão ao final da mesma década, estão sendo considerados
capazes de tão grande impacto sobre a sociedade humana como o foi a Revolução
Industrial em meados do século XVIII. Particularmente na área da saúde, a
possibilidade crescente de acesso à informação vem criando novos desafios no exercício
da prática médica. A qualidade da informação é variável, o acesso a ela também não é
passível de controle e, em certos contextos, a acessibilidade ilimitada à informação e a
disponibilidade limitada de recursos por parte do sistema de saúde pode ser causa de
conflito. Diferentemente de outras áreas, o conhecimento sobre a saúde e as doenças,
especificamente o conhecimento médico, sempre foi restrito, com implicações para a
relação entre médicos e pacientes. Em 1996, um Editorial do periódico British Medical
Journal já apontava:
There is a pressing need for dialogue within the profession to
understand the impact of communication and information technologies on the
provision of health care. Some sections of the profession are already actively
experimenting with the technology. However, the implications of the Internet
extend far beyond the technology itself. We should now, and with some haste,
be examining its implications for the future of medical practice (Coiera,
1996).
É importante destacar que a Internet surgiu na área da saúde em um contexto de
mudanças expressivas no modelo da relação médico-paciente. Na cultura ocidental,
após séculos de predomínio do modelo paternalista – onde o médico tem seu papel
social definido como o guardião da saúde sendo, portanto, aquele que decide o que é
melhor para seu paciente – iniciam-se transformações que vão produzir, há cerca de 30
anos, em especial na sociedade americana, um novo posicionamento onde o médico
passa a ser um técnico especializado, devendo prestar todas as informações a seu
paciente para que ele possa realizar, como sujeito autônomo e responsável, as melhores
escolhas, inclusive terapêuticas, no cuidado de sua saúde. A este modelo informativo,
como é conhecido, seguiu-se o modelo de decisão compartilhada que, como seu nome
indica, legitima médico e paciente, por vezes até familiares, no processo de tomada de
decisões, visando o melhor cuidado ao paciente enquanto caso particular. A informação
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e a comunicação são aspectos centrais da relação médico-paciente, cuja determinação
sócio-cultural constitui um cenário de possibilidades para a experiência de adoecimento
e tratamento. Citamos os estudos clássicos de Oken (1961) e Novack (1979), que
evidenciaram uma mudança expressiva quanto à comunicação diagnóstica, pois 88%
dos médicos americanos, no início da década de 60, não diziam a seus pacientes o
diagnóstico de câncer e, em fins da década de 70, 98% passaram a dizer.
No Brasil, a própria criação do SUS (Lei 8.080/90), que tem entre as suas
diretrizes “a preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física
e moral e o direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde”, a Lei Mario
Covas (Lei 10.241/99), que definiu os direitos dos pacientes no Estado de São Paulo,
seguida da implantação de Cartilhas dos Direitos dos Pacientes em hospitais de vários
estados, o Consentimento Livre e Esclarecido para pesquisa normatizado pela
Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, seguido do Consentimento Livre e
Esclarecido para procedimentos diagnósticos e terapêuticos, e as novas diretrizes
curriculares nacionais para o curso de Graduação em Medicina (Resolução CNE/CES
04/01), são alguns dos importantes marcos que, articulados à maior divulgação da
informação em saúde, importam nas transformações em curso.
Os meios de comunicação influenciam tanto a experiência subjetiva quanto a
organização das relações sociais, uma vez que não só espelham realidades, mas em
parte as formam. Neste sentido, as novas Tecnologias da Informação e Comunicação
(TICs) devem ser compreendidas, cada vez mais, como mediadoras dos discursos e dos
saberes, e não como meras “transmissoras” destes, na medida em que sua mais ampla
circulação estabelece dinâmicas próprias de intercâmbio de experiência, de interação e
de sentido de pertencimento ao mundo. A internet – em conjunto com as novas
percepções de tempo, espaço e identidade por ela criadas – tem se colocado como meio
de grande potencialidade para intervir sobre as subjetividades, já que o espaço
ambivalente que ela ocupa permite trocas multidirecionais de textos, vozes, imagens,
que hoje representam formas arrojadas não só para processos de produção de
conhecimento, mas também para sua materialização e circulação de maneiras menos
hierarquizadas.
Neste sentido, valorizamos a iniciativa de Andrew Herxheimer – farmacologista
clínico – e Ann McPherson – GP / médica de família em Oxford – autores da idéia
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original do website DIPEx – Database of Personal Experiences of Health and Illness,
http://www.dipex.org. Seus idealizadores objetivaram a construção de um banco de
dados de relatos de experiências de adoecimento e tratamento, o qual pretende
complementar a Cochrane Library – banco de dados constituído pelas melhores
evidências obtidas através de ensaios clínicos –, acreditando poder auxiliar as pessoas,
entre outros aspectos, a tomarem decisões. A idéia de Herxheimer e McPherson surgiu a
partir de experiências pessoais de adoecimento – a colocação de uma prótese de joelho e
um câncer de mama, respectivamente – que sensibilizaram os autores para o valor do
conhecimento advindo da experiência de outras pessoas acerca de seu adoecimento e
tratamento.
Rapidamente foram identificados outros usos potenciais para este projeto, pois a
fonte de dados poderia vir a ser útil não só para pacientes como também seus
cuidadores; para aumentar o entendimento dos cientistas acerca das pessoas assim como
o entendimento público da ciência; para o ensino de estudantes de medicina; para
ilustrar livros textos de medicina; auxiliar na relação entre pacientes e profissionais de
saúde; contribuir na tomada de decisão compartilhada; para assuntos de saúde, não só
doenças, como rastreamento, parada de fumar, etc; para representantes de pacientes em
comitês; e muitos outros.
Iniciado em julho de 2001, o website DIPEx contém vários módulos sobre
câncer, doenças cardio-vasculares, doenças mentais, neurológicas, saúde da mulher,
saúde do adolescente, programas de rastreamento de doenças prevalentes, etc... Para
cada doença, o website contém entrevistas com pacientes em vídeo, áudio e texto;
informação baseada em evidências sobre a doença, escolhas de tratamentos e seus
efeitos colaterais, perguntas e respostas de pacientes acerca da prevenção, diagnóstico e
tratamentos e da experiência de viver com a doença; links para outros websites
importantes e uma community message board (??? Como traduzir)
Além de beneficiar pessoas, que ao serem diagnosticadas com uma doença de
certa gravidade podem estar se sentindo confusas e ameaçadas, o website vem
auxiliando estudantes e médicos no aprendizado de questões como a comunicação com
o paciente, em especial a de “má notícias”, as escolhas e decisões, o impacto sobre a
família, etc.
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A diretora de pesquisa e a diretora médica do website DIPEx, Sue Ziebland e
Ann McPherson (2006) respectivamente, descrevem como o material é obtido para o
website através de pesquisa qualitativa, sendo o núcleo de pesquisadores vinculado à
Universidade de Oxford. Os pesquisadores buscam reunir uma ampla variedade de
experiências de adoecimento relacionadas à determinada doença, o que habitualmente
representa entrevistar cerca de 40 a 50 pessoas, que constituirão uma amostra de
“variação máxima”. As pessoas são entrevistadas em suas casas e o registro das
entrevistas é feito através de vídeo ou áudio, conforme a escolha do paciente. Cada
módulo do website é relacionado a uma doença, e reúne uma análise temática sobre
aspectos do interesse dos entrevistados, a qual é apresentada nos chamados ‘Talking
About’ summaries.
Segundo essas autoras, o website DIPEx é amplamente utilizado na educação de
estudantes e profissionais e, também, no ensino do método de pesquisa. Restrito ao
Reino Unido, há interesse internacional no modelo do site, tendo também seus
idealizadores o interesse de que o projeto se expanda para grupos culturais distintos.
Relatando sobre a metodologia das entrevistas de pesquisa que contribuíram
para os módulos do DIPEx, Ziebland e McPherson informam que, usualmente, o
entrevistado é primeiro solicitado a descrever tudo que aconteceu desde que ele
suspeitou estar com o problema. O entrevistador tenta não interromper, exceto para
clarificação de algum aspecto, e a resposta pode durar de poucos minutos à uma hora.
Desta forma produz-se um material narrativo não-estruturado. Em seguida, realiza-se
uma segunda parte da entrevista que é semi-estruturada, quando o entrevistado é
perguntado sobre certos aspectos, os quais podem ter sido pouco desenvolvidos ou
mesmo não relatados em sua narrativa na primeira parte da entrevista, e desta forma
aprofunda-se a investigação tanto sobre os temas emergentes como sobre os temas
previamente considerados relevantes, conforme a metodologia de estudos qualitativos.
Cada trecho transcrito é lido e relido e fragmentos das entrevistas são agrupados
em diferentes tópicos como, por exemplo: ‘sintomas’; ‘procurando ajuda’; ‘recebendo o
diagnóstico’; ‘comunicando a outras pessoas’; sobre as ‘fontes de informação’;
comunicação médica; medicamentos; aspectos econômicos; grupos de suporte, etc. Os
fragmentos também podem ser agrupados sob categorias de natureza mais abstrata
como: humor; imagem corporal; idéias sobre causas; tomando decisões; trabalho sobre a
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identidade, etc. Com essa codificação pretende-se possibilitar que trechos das
entrevistas sobre o mesmo tópico sejam facilmente recuperáveis, o volume do material
de cada tópico seja manejável e significativo, apresentando todas as diferentes
perspectivas registradas no tópico, devidamente contextualizadas, incluídos os casos
desviantes. Uma máxima variação na amostra e uma análise compreensiva devem cobrir
um conjunto amplo de perspectivas. Desta forma, segundo Ziebland e McPherson, o
DIPEx pretende apresentar de cada pessoa sua história única, e os elementos que
existem em comum nos vários temas. As autoras concluem que a análise da perspectiva
dos pacientes sobre sua experiência de adoecimento evidencia importantes questões,
que não são facilmente accessíveis numa consulta clínica, indicando o website DIPEx
como um novo recurso para a formação médica. Enfatizam que pesquisas futuras devem
avaliar a utilização de análises do material do DIPEx na educação médica.
As palavras dos pacientes têm um estatuto ambíguo na prática médica. As
ambigüidades são reproduzidas na formação. Ao mesmo tempo que os estudantes
ouvem de seus mestres "escutem o seu paciente ... escutar o paciente é fundamental ... o
paciente está lhe dando o diagnóstico" percebem também a atitude cética que desconfia
das informações dadas pelo paciente, diminuindo o valor de seu relato, de suas palavras.
Os alunos algumas vezes chegam a "corrigir", ou melhor, a "serem corrigidos" por seus
instrutores quanto ao conteúdo da queixa principal, único espaço "oficial" ou
institucionalmente alocado às palavras do doente na anamnese.
Se, por um lado, já na medicina clássica as palavras do paciente eram algo que o
médico buscava separar da essência das doenças, na medicina moderna (Foucault,
1977), com a racionalidade anátomo-clínica, as palavras têm progressivamente se
tornado uma expressão pouco eficaz ou um frágil reflexo da linguagem dos órgãos e
tecidos e suas alterações patológicas. No entanto, elas ainda são consideradas
importantes na investigação do diagnóstico.
Vivemos em uma época na qual as práticas de cuidado aos portadores de
transtornos físicos e mentais têm se descuidado crescentemente da dimensão subjetiva
do processo de adoecimento. Sua ambição têm sido alcançar uma descrição objetiva dos
sinais e sintomas, desempenhada por uma espécie de “observador” ideal, livre de
compromissos teóricos e isento de juízos de valor, amparado por um instrumental
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técnico de alto desempenho, culminando com a instituição da terapêutica. Deste
processo qualquer incidência da subjetividade do doente é completamente erradicada
(Kraus, 1994, 2003; Serpa Jr., 2003, 2004).
Este modo de operar traz embutido, como não poderia deixar de ser, uma
concepção de saúde e doença, e, antes disso, uma idéia acerca do que deve estar
subjacente à partilha entre o normal e o patológico. O debate do tema “Normal e
Patológico” é completamente elidido e a partilha entre as duas condições é
compreendida como uma questão de ordem quantitativa, passível de mensuração por
diferentes escalas e instrumentos estruturados, tornando-se visível por meio de
procedimentos estatísticos. O campo do Patológico, por sua vez, obedecerá a uma
inteligibilidade compatível com aquilo que Canguilhem (1982[1966]) chamou de Teoria
Ontológica da Doença, que toma os diferentes tipos de sofrimento físico e mental
exclusivamente em sua objetividade, como elementos totalmente externos ao sujeito,
quer se entenda este em sua dimensão moral, quer se entenda este apenas como
totalidade orgânica (Goldstein, 1983[1934], Serpa Jr., 2006).
Um dos principais desafios a ser enfrentado por aqueles que se dedicam ao
ensino e pesquisa da Psicopatologia e da Psicologia Médica refere-se à construção
teórico-prática de um campo que não descarte a subjetividade, mas, em vez disso, faça
desta o seu interesse primeiro. Não no sentido de um enclausuramento solipsista, mas,
pelo contrário, revelando a sua relação indissolúvel com a alteridade e o mundo no qual
se enraíza. Esta subjetividade, por sua vez, não é tomada como uma substância etérea,
não material, mas sim como primordialmente corporificada. Cabe a estas disciplinas
proporcionar um entendimento acerca do pathos, da experiência de sofrimento físico e
dor moral. E na medida em que parte desta dimensão experiencial, não tem como deixar
de salientar o seu caráter eminentemente qualitativo, avaliativo e holístico, no sentido da
alteração de uma forma de vida em sua totalidade (Varela et cols., 1991; Zahavi, 2001;
Serpa Jr., 2006).
As práticas de cuidados aos portadores de transtornos físicos e mentais que
privilegiam a objetividade em detrimento da subjetividade podem ser descritas como
práticas na terceira pessoa, nas quais não encontramos lugar para a experiência, para o
vivido, apenas para o comportamento tomado em toda a sua objetividade. Subjetividade
e intersubjetividade estão completamente fora de questão. Ambiciona-se à certeza
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factual, mas se renuncia a qualquer certeza fenomênica. Os fatos trabalhados nesta
perspectiva são, em certo sentido, atemporais, na medida em que o decurso do tempo e
as contingências da história não são considerados como relevantes para o seu
esclarecimento. Por isto, estes fatos podem ser tomados um a um, destacados de suas
condições de surgimento e do conjunto de outros fatos que lhes são simultâneos,
produzindo assim uma fragmentação, uma atomização do objeto de conhecimento. O
tipo de corporeidade que está em questão nesta perspectiva é a do corpo objetivo, da
anatomia, da fisiologia, aquilo que Husserl identificou como Körper (Northoff &
Heinzel, 2003). A perspectiva da terceira pessoa torna-se insuficiente, contudo, quando
do funcionamento destes corpos emerge a vida mental, o psiquismo, a experiência
subjetiva. Neste ponto passamos a prescindir de outras perspectivas que nos permitam
integrar o conhecimento da doença e o conhecimento do doente.
Atualmente a valorização da narrativa na medicina vem se dando na discussão
de aspectos éticos e epistemológicos do método clínico e sua transmissão na formação
médica.
Sob a denominação de medicina baseada na narrativa, Greenhalgh (1999)
enfatiza como o método clínico no caso individual refere-se à interpretação
contextualizada de uma história e evidências pertinentes. Enfatiza a autora: "as
‘verdades’ estabelecidas pela observação empírica de populações em ensaios
controlados randomizados e estudos de coorte não podem ser mecanicamente aplicados
a pacientes individuais cujo comportamento é irremediavelmente contextual e
idiossincrático" (Greenhalgh, 1999, p.324).
Partindo do caso particular, a ética narrativa, considera os três princípios da
ética médica analítica – beneficiência e não-maleficiência; autonomia; justiça – como
valores ideais inerentes ao contexto cultural do caso e não como princípios absolutos a
serem aplicados. Jones (1999) nos fala que a ética narrativa, ao partir do caso particular,
opera de modo análogo ao raciocínio clínico, que não é nem indutivo nem dedutivo,
mas sim abdutivo, ou seja, um procedimento hermenêutico, circular que busca a
aplicação de leis ou princípios ao caso particular. Como nos diz Kathryn Hunter (1996),
para quem o julgamento clínico e as considerações éticas são indissociáveis e,
essencialmente, narrativos:
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Embora princípios sejam essenciais para a bioética e a ciência
biológica precisa sempre informar a boa prática clínica, a tendência a
colapsar a moralidade em princípios e a medicina na ciência empobrece
ambas as práticas. Em ambos os casos, tal redução toma a ciência como
modelo para algo que não pode ser puramente científico. É uma tentativa de
conhecer de modo genérico e abstrato o que não pode ser conhecido a não
ser através do caso particular – e para ser melhor conhecido este caso
precisa ser ricamente conhecido (Hunter, 1996, p.316).
Na formação médica, tem sido enfatizada a aquisição da “competência
narrativa”, ou seja, a capacidade de adotar outras perspectivas, de seguir o
encadeamento de histórias complexas, por vezes caóticas, tolerar ambigüidade e
reconhecer os múltiplos significados, muitas vezes contraditórios, dos acontecimentos
vivenciados pelas pessoas. Através do desenvolvimento da competência narrativa
pretende-se aumentar a tolerância à incerteza da prática clínica e propiciar a atenção
empática a pacientes (Hunter e cols, 1995).
Sem dúvida, o reconhecimento do limite e da incerteza do conhecimento médico
no exercício da prática médica se articula à valorização da escuta do paciente, ao valor
de suas palavras, de sua experiência, de sua subjetividade (Souza, 2003).
Mas do quê falamos quando nos referimos à subjetividade? Seguindo as
indicações de Zahavi (2003), distinguimos dois tipos de sujeito que podem ser objeto do
nosso interesse: um sujeito experiencial e um sujeito narrativo. Mudamos aqui para as
perspectivas da primeira e da segunda pessoa. Ambos são acessíveis através da
linguagem, ou seja, através das narrativas produzidas. Ao primeiro acedemos de modo
especulativo, a partir das narrativas – verbais e escritas – que recolhemos com o
segundo. O sujeito experiencial não está aquém, além ou em oposição à experiência.
Em vez disso, é um aspecto ou função do seu modo de doação – first-personal
givenness – a uma centralidade de perspectiva, corporificada (embodied) e situada em
contexto (embedded). Trata-se de uma espécie de sujeito ou self básico, nuclear – core
self – que não é uma pré-condição transcendental nem um construto narrativo, mas uma
realidade experiencial imediata da consciência (Nagel, 1997). Neste sentido, seria até
mais adequado falar em subjetividade da experiência em vez de sujeito da experiência.
Esta modalidade subjetiva é em grande parte pré-reflexiva, não proposicional, não
conceitual, não temática. O que contraria certo entendimento comum que considera que
o sujeito ou self só pode ser o resultado da reflexão, quando não do domínio cognitivo
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do conceito de self ou sujeito.1 Mas o que temos aqui é uma presença primária (Sass,
2003; Sass & Parnas, 2003), uma consciência de si pré-reflexiva ou tácita, uma afecção
de si (self-affection) que simplesmente acontece, um sentimento básico do existir como
um centro vital da experiência, e que chamamos de ipseidade.
O sujeito narrativo, por outro lado, é necessariamente reflexivo e intersubjetivo,
na medida em que depende totalmente da inserção do indivíduo em uma comunidade
lingüística e na adesão a valores, ideais e objetivos ancorados em uma dada tradição
cultural. Nesta modalidade subjetiva já faz sentido a referência à identidade,
personalidade, pessoa. Ela é construída na e através da narrativa, em um processo
aberto, permanentemente sujeito a revisões e mudanças de rumo. Este processo
acompanha a trajetória de vida do sujeito no tempo e procura oferecer um relato que dê
conta de suas origens, desenvolvimento e destino. O que somos, nesta perspectiva,
depende da estória contada por nós e pelos outros a nosso próprio respeito. Lidamos
aqui com o tipo de sujeito que Dennett (1993) identifica como centro de gravidade
narrativa.
PPP
PTP
PSP
O diagrama acima, adaptado de Varela & Shear (1999), sugere que as três
perspectivas – primeira, segunda e terceira pessoa - não são inteiramente independentes,
havendo uma interpenetração entre uma perspectiva e a seguinte, indicando graus
sucessivos de inserção em uma rede social e procedimentos distintos de validação do
conhecimento obtido a partir de cada uma delas. O que gostaríamos de assinalar, e que o
diagrama acima exposto torna muito claro, é que existe uma zona comum, de interseção,
entre a perspectiva da primeira pessoa e a perspectiva da segunda pessoa. Isto dá um
caráter mais nuançado à idéia de uma metodologia da primeira pessoa a ser explorada
1
Para maiores detalhes desta discussão ver Dreyfus, 1996; Gallagher, 2000; Zahavi 1999, 2002, 2003b e
Zahavi & Gallagher, 2005.
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no nosso estudo. Se ficássemos exclusivamente com a idéia de uma perspectiva da
primeira pessoa tal como apresentada alguns parágrafos acima quando falamos do
sujeito da experiência cairíamos no impasse da sua impossibilidade de comunicação
senão pela via da segunda pessoa – área de interseção. Tratamos, portanto, de uma idéia
de experiência subjetiva – sujeito da experiência - que é necessariamente narrativa,
posto que articulada em linguagem (Nixon, 1999). O que marca a sua especificidade
com relação à narrativa do sujeito da narrativa é o seu caráter irremediavelmente
particular e singular, que embora comunicável, ainda não é plenamente assimilável aos
sistemas simbólicos de referência para o sujeito.
A idéia de subjetividade que nos interessa resgatar como relevante para as
práticas de cuidado é compatível, portanto, com a posição endossada por Varela &
Shear (op.cit.), que propõe que um evento descrito na primeira pessoa é uma
experiência vivida associada a eventos mentais e cognitivos expressando-se, nesta
descrição, como relevantes e manifestos para um self ou sujeito que pode relatá-los.
Experiência e narrativa são, portanto, as duas dimensões do vivido subjetivo do
processo de adoecimento que pretendemos investigar e, sobretudo, propiciar que nossa
investigação possa contribuir para professores e estudantes de medicina, médicos e
pacientes.
Objetivos
Objetivo Geral:
Criar e desenvolver um website que constitua uma fonte de recursos tanto para o
ensino e a pesquisa de profissionais de saúde como para a transmissão de informação
confiável para o público em geral sobre a experiência subjetiva de adoecimento.
Objetivos Específicos:
a)
Investigar diferentes experiências relacionadas a doenças prevalentes e
questões de saúde que são alvo de significativo investimento acadêmico assim como
interesse social. Para tal serão desenvolvidos sub-projetos de pesquisa específicos sobre
certos problemas de saúde – em função dos projetos de pesquisa em curso conduzidos
por pesquisadores que compõem a equipe deste projeto – de forma a constituir um
banco de dados de relatos de experiências de adoecimento e tratamento.
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b) Investigar o impacto psico-social do conhecimento advindo da experiência
acerca do adoecimento e tratamento de outras pessoas, disponibilizadas no website
através de entrevistas registradas em vídeo, áudio e/ou texto, em:
i) pessoas com problema de saúde semelhante; em sua relação com
seu médico; em sua participação na tomada de decisões;
ii) estudantes e profissionais de saúde, em especial da área médica;
em sua relação com seus pacientes; no exercício do julgamento clínico
visando o diagnóstico e a terapêutica; como recurso pedagógico; e como
material para outras pesquisas.
iii)
o público em geral, no entendimento da ciência aplicada à saúde e
na experiência de cidadania com repercussões no modelo sócio-culturalmente
construído da relação médico-paciente.
Método
Para acesso às duas dimensões do vivido a serem exploradas – experiência e
narrativas – e incluídas no website utilizaremos como metodologias a Entrevista de
Explicitação (Versmersch, 1999a, 1999b, 2004, 2006) e o McGill Illness Narrative
Interview (MINI) (Groleau, Young & Kirmayer, 2006).
A Entrevista de Explicitação é uma técnica de entrevista, não estruturada,
desenvolvida por Pierre Vermersch, psicólogo e pesquisador do CNRS (França) que há
anos tem se dedicado ao desenvolvimento de uma metodologia de pesquisa cientifica da
experiência da primeira pessoa baseado na fenomenologia husserliana visando à
explicitação do vivido pré-reflexivo por meio do “reflexionamento” – réfléchissement –
o qual deve ser distinguido da “reflexão” – réflexion – que visa vividos subjetivos que já
foram objetos de explicitação reflexiva. Esta técnica vem sendo explorada em vários
domínios da atividade humana – psicologia do trabalho, processos de aprendizagem,
processo criativo, prática e treinamento esportivo – mas ainda não foi explorada em suas
possibilidades e limites no campo da psicopatologia e apenas muito inicialmente no
campo das doenças somáticas.
A McGill Illness Narrative Interview (MINI) está sendo traduzida e validada
por pesquisadores do IPUB/UFRJ (Erotildes Leal, Octavio Serpa, Ana Cristina
Figueiredo) e do HUCFF/UFRJ (Alicia Navarro) e serve para a obtenção de narrativas
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acerca do processo de adoecimento, de sua significação subjetiva, e do processo
terapêutico.
Metas
Resultados esperados
Cronograma de execução
Orçamento detalhado e justificado
Equipe envolvida
Profa. Alicia Regina Navarro Dias de Souza – Departamento de Psiquiatria e
Medicina Legal da Faculdade de Medicina
Prof. Octavio Domont de Serpa Junior – Instituto de Psiquiatria (IPUB)
Prof. Luiz Augusto Coimbra de Rezende Filho – Núcleo de Tecnologia
Educacional para a Saúde (NUTES) (Laboratório de Vídeo Educativo)
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Disponível
para
download
em
http://plato.stanford.edu/archives/spr2005/entries/self-consciousnessphenomenological/
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O projeto de pesquisa deverá ter no máximo 20 páginas (tamanho da fonte = 12;
espaço = 1,5; margens = 3,0 cm) e conter, preferencialmente, os seguintes itens (de
acordo com as necessidades específicas de cada área): introdução, objetivos, método,
metas, resultados esperados, bibliografia relacionada ao projeto, cronograma de
execução, orçamento detalhado e justificado, e equipe envolvida.
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