Choque Hipovolêmico Choque hipovolêmico é definido como a redução do volume intravascular a tal nível que a perfusão tissular efetiva não pode ser mantida. Hipovolemia é a principal causa de choque em paciente pediátrico, tanto em países desenvolvidos com destaque para hemorrragia por trauma , como em países em desenvolvimento cuja a etiologia de maior incidência é a gastroenterite aguda. Em estudo recente, realizado em período de 8 anos (1998 – 2006) no departamento de emergência pediátrica do Children´s Hospital of Central California, o choque hipovolemico devido a gastroenterite; doença metabólica; emergência cirúrgica e hemorragia não traumatica ( foram excluidos pacientes com trauma), representou 24% dos diagnósticos de choque no paciente pediátrico, sendo o choque séptico 57% dos casos. Ressalta-se ainda a alta incidência de dengue no mundo tropical,em que a hipovolemia está profundamente implicada na morbi-mortalidade. ETIOLOGIA: As causas podem ser divididas em: 1)Perda de sangue total: Absoluta ( hemorragias) ou Relativa ( farmacológica; choque medular; anafilaxia e sepse) 2)Perda de Plasma: Grande queimado; Dengue; Sepse; Hipoproteinemia como no caso de síndrome nefrotica. 3) Perda de fluidos e eletrólitos: vômitos; diarréia; insuficiência adrenal; diabetes mellitus e diabetes insípidus. FISIOPATOLOGIA: No choque hipovolêmico, ocorre diminuição do volume sanguíneo intravascular com redução da pré carga ( volume diastólico final), o que leva a diminuição do volume ejetado pelo ventrículo esquerdo ( volume sistólico), com conseqüente redução do débito cardíaco, culminando no fluxo sanguineo inadequado e incapaz de fornecer oxigênio e nutrientes para a demanda metabólica dos tecidos e órgãos. A fisiologia do paciente pediátrico com choque hipovolêmico é distinta do adulto, crianças tem maior reserva cardíaca, permitindo mecanismos compensatórios por mais longo período de tempo do que o adulto. Nos quadros de volumosa hemorragia, crianças mantém o débito cardíaco por aumento da freqüência cardíaca, que sustentada por período prolongado acaba por comprometer o tempo de enchimento diastólico com subseqüente queda do volume sistólico e surgimento de vasoconstrição periférica como mecanismo compensatório para manter a pressão arterial sistêmica. Dessa forma a hipotensão é sempre um evento tardio na expressão clínica do choque hipovolêmico e sua presença traduz uma extrema gravidade com esgotamento dos mecanismos compensatórios. Em resposta a hipovolemia ocorre ativação de baroreceptores periféricos e centrais com liberação de catecolaminas que levam a efeitos cardiopulmonares compensatórios ( aumento do tônus vascular periférico e da ventilação minuto). Tais mecanismos, embora sejam a principio benéficos, quando prolongados acabam causando má distribuição do fluxo da microcirculação e hipoxia tecidual. Esse endotélio hipoxêmico e acidótico perpetua a cascata inflamatória gerando a síndrome da resposta inflamatória sistêmica que tem como resultado final a disfunção enzimática e morte celular. QUADRO CLINICO: Devido a maior reserva fisiológica na faixa etária pediátrica, a identificação precoce do comprometimento cardiovascular pode ser mais difícil em crianças, quando comparado com adultos. O sinal clinico de choque predominante nos pacientes mais jovens ( menor de 2 anos) é a pobre perfusão periferica e baixa amplitude dos pulsos periféricos e na faixa etária da escolar e adolescente é a hipotensão arterial. Portanto as crianças mais jovens costumam ter um maior período de compensação do choque com manutenção do débito cardíaco por mais tempo. Dados da literatura sinalizam que cerca de um terço dos pacientes que evoluem para choque na emergência, tinham taquicardia isolada na apresentação do clínica. Em crianças a fase final de hipovolemia compensada manifesta-se com taquicardia sustentada, taquipnéia, enchimento capilar lentificado entre 2 a 3 segundos, diminuição na pressão de pulso e redução do débito urinário, podendo estar presente certa irritabilidade ou apatia.A presença desse achados reflete a compensação inicial do choque afim de manter o débito cardíaco e a perfusão em órgãos nobres, com manutenção da pressão arterial normal, como resultado do aumento da resistência vascular sistêmica;portanto a hipotensão têm limitado valor semiótico para o orientar o manejo do choque hipovolemico compensado. Com a evolução do choque, seja por contínua perda de volume de sangue ou pelo retardo na reposição adequada do fluido intravascular, os mecanismos compensatórios não conseguem mais suprir as demandas metabólicas dos órgãos ou tecidos. Surgem então os sinais de disfunção cardio-circulatória e de demais órgãos: Neurológico: sonolência; estupor e coma Pressão arterial: diminuída Freqüência cardíaca: taquicardia inicial com evolução em fase terminal para bradicardia Freqüência respiratória: Taquipnéia ou hipoventilação em quadros avançados Pele: Pálida, fria e marmórea Renal: Oligoanúria Em resumo o paciente apresenta nesta fase mais avançada do choque um cortejo clinico aonde observa-se: hipotensão arterial; acidose; letargia; coma ou agitação com alucinações; oligoanúria; distensão abdominal; insuficiência respiratória e distúrbio de perfusão periférica grave. Nos casos em que a etilologia é a desidratação ( secundaria a diarréia; diabetes mellitus, etc...), a hipovolemia ocorre também no espaço intersticial surgindo sinais clássicos ao exame como: turgor de pele diminuído e pastoso; mucosas secas; olhos encovados e fontanelas deprimida. É importante lembrar que no choque hipovolêmico secundário a hemorragia, o paciente pode perder até 25% do volume sanguineo circulante antes de apresentar hipotensão arterial sistêmica. Em recente revisão de trauma em pediatria o relato é de que no paciente pediátrico a hipotensão pode não ser detectada até perda sanguinea de 30% do volume circulante. Na síndrome do choque da dengue, importante etiologia do choque hipovolêmico nos países tropicais, o paciente apresenta sinais que se distinguem do choque séptico como: menor resposta inflamatória sistêmica (SIRS), menor comprometimento da escala de Glasgow, estreitamento da pressão de pulso, com episódios mais frequentes de sangramento espontâneo e taquicardia menos severa. EXAMES COMPLEMENTARES: Os exames complementares são de utilidade na avaliação da gravidade e no seguimento da resposta ao tratamento. IMAGEM: Raio x de tórax : Avaliação da área cardíaca e de congestão pulmonar Ecocardiograma: Avaliação do débito cardíaco; do calibre da veia cava e da função ventricular LABORATORIAL: Hemograma: Seguimento do hematocrito e da hemoglobina Estudo da coagulação: Avaliação do consumo dos fatores durante quadros de choque hemorrágico. Dosagem sérica de eletrólitos; função renal e hepática: Orienta adequada solução de manutenção de fluido, após a fase de expansão. Gasometria arterial: monitorização de acidose metabólica e de ventilação/ oxigenação Lactato arterial: Acompanhamento do clearence do lactato, decorrente da anaerobiose secundaria a perfusão inadequada. MONITORIZAÇÃO: O seguimento continuo do ´´Status`` hemodinâmico deve ser estabelecido, com a observação rigorosa da freqüência cardíaca; freqüência respiratória; nível de consciência; diurese horária; pressão arterial e temperatura corporal. A monitorização pode ser necessária, em alguns casos, com: ECG: para continua monitorização da freqüência e do ritmo cardíaco. PVC – Pressão venosa central- avalia a pressão do átrio direito, refletindo a pré carga sistêmica e assim a volemia do paciente de forma indireta. Não tendo valor como dado isolado e sim apenas seqüencial e comparativa após a terapêutica empregada. Podendo ter o valor alterado com o uso da ventilação mecânica; agentes inotrópicos e alterações de complacencia ou pós carga do ventrículo direito. Pressão Arterial Invasiva: melhor seguimento continuo com melhor sensibilidade nas aferições. SVO2 – Saturação do sangue venoso misto - Seu valor normal é de aproximadamente 70% e valores inferiores podem refletir diminuição do débito cardíaco; da saturação arterial de O2; do valor da hemoglobina ou aumento do consumo de O2 pelos tecidos periféricos. Ainda em relação a monitorização, visando guiar a abordagem terapêutica após o período inicial de expansão, nas próximas horas, devemos atentar para estabelecer o diagnóstico de perdas continuas de fluidos ( drenos biliar/intestinal; diarréia; poliúria) ou causas de choque refratário inicialmente não reconhecida (pneumotórax; efusão pericárdica; enterocolite; sepse; disfunção miocárdica). No caso de manutenção dos sinais de perfusão anormal , deve-se estar atento para a possibilidade de choque cardiogênico por contusão miocárdica ou por depressão da função miocardica secundária a sepse ou a choque neurogênico (Ex choque medular) no qual a apresentação clássica é a hipotensão arterial sem taquicardia associada. TRATAMENTO: Oxigenação e ventilação devem ser instituídas em todos os pacientes como primeira linha terapêutica, visando otimizar a oferta de oxigênio aos tecidos. Nos casos de distúrbio de consciência severo (escala de coma de Glascow <9),ou insuficiência respiratória grave a obtenção da via aérea por intubação orotraqueal ou nasofaríngea é mandatória.Máscara laríngea pode ser útil para oxigenar e ventilar nos casos de via aérea difícil,com posterior obtenção da via traqueal. O acesso venoso deve ser obtido o mais rapidamente possível, sendo preferido acessos ( dois ou mais) periféricos com cateteres curtos e de grosso calibre. No caso de insucesso a opção deve ser a via intra-óssea ou a cateterização de veias centrais. Ambos Pediatric Advanced Life Support (PALS) e Advanced Trauma Life Support (ATLS) advogam o uso inicial de cristalóide isotônico na fase da ressuscitação rápida com fluidos, em pacientes pediátricos apresentando sinais clinicos de choque, com o objetivo de restaurar a integridade hemodinâmica e a perfusão tissular. Crianças geralmente requerem proporcionalmente maior volume na reanimação volêmica por kilo de peso, do que os pacientes adultos.É de notar a importância de checar a presença de hipoglicemia nos pacientes pediátricos,principalmente em lactentes jovens,com pronta correção nos casos de Glicose<40mg/dl com” bolus” de soro glicosado 10%2ml/kg de peso. A administração de volume é a chave do tratamento do choque hipovolêmico e deve ser feita de forma precoce, visando prevenir complicações tardias do choque. A escolha do fluido (cristalóide ou colóide) depende da natureza da perda, porém na fase inicial da resssuscitação é preconizado em nosso meio, pelo baixo custo e pronta disponibilidade a solução cristalóide ( soro fisiológico 0,9% ou ringer lactato) em bolus de 20ml/kg em até 20mim (preferencialmente em seringa de forma manual) , seguido de perto pela monitorização da freqüência cardíaca; pressão de pulso; PAM; perfusão periférica e débito urinário.A resposta de melhora nesses parâmetros dar-se-á com a reposição de volume de aproximadamente 20% da volemia. É importante lembrar a desvantagem do cristalóide isotônico onde somente ¼ (25%) do volume administrado permanece no espaço intravascular com o extravassamento do líquido podendo levar a síndrome de compartimento abdominal, mais notadamente nos pacientes hipoalbuminêmicos (Ex falência hepática) ,nos casos de enterocolite e nos pós cirúrgicos.Recomenda-se a reposição de albumina humana nos poucos casos de ascite relacionada a insuficiência hepática com sintomas de restrição respiratória devido ao aumento do volume abdominal.Até o momento nenhum estudo mostrou qualquer superioridade na reposição volêmica com colóides (Albumina,amido) quando comparado com as soluções cristalóides. Na persistência do choque, continuamos a ressuscitação volêmica com alíquotas de 20ml/kg de liquido, seguida da monitorização da resposta a terapia,onde se possível devemos incluir a aferição da PVC,procedendo-se a reposição quando obtivermos valores inferiores a 10 mm Hg (ressalvando-se os fatores de interferência já mencionados).As crianças com perda volêmica de causa não hemorrágica costumam responder com reposição de até 40ml/kg de solução cristalóide. A fase da rápida ressuscitação volêmica, refere-se a infusão intravenosa de cerca de 60ml/kg dentro da primeira hora, através de bolsa pressórica mantida em 300mmhg ou manualmente em bolus com uso de seringas. A monitorização mais invasiva deve ser indicada no caso de resposta negativa aos ´´bolus`` de fluido isotônico, seguida da reavaliação do diagnóstico inicial. No caso de choque hipovolêmico refratário, deve o profissional estar alerta para a presença de outros tipos de choque como séptico e cardiogênico. No caso da hipovolemia secundária a hemorragia (choque hemorrágico), a hemotransfusão deve ser realizada se a hipotensão e hipoperfusão orgânica persistirem a despeito de adequada expansão volêmica com cristalóide e intervenção cirúrgica precoce para o controle do sangramento. Está preconizado no choque hipovolêmico por trauma a sequência de duas alíquotas de cristalóide isotônico 20ml/Kg seguido por 10ml/kg de concentrado de hemácia ou sangue total em ``bolus`´. Ainda em relação ao choque hemorrágico secundário ao trauma, o uso de salina hipertônica (3%), tem despertado interesse de numerosos estudos, visto que requer significantemente menor volume quando comparado ao fluido isotônico para os mesmos efeitos benéficos na hemodinâmica e nos parâmetros da microcirculação. Além do fato dos resultados de alguns estudos demonstrarem a modulação da função imune celular pela ressuscitação com salina hipertônica em politrauma, com redução da resposta inflamatória mediada por polimorfonucleares nos tecidos com lesões pós traumática. Após a reposição volêmica bem sucedida seguir-se-á a fase de manutenção de líquidos que deve adequar-se a faixa etária da criança,com atenção especial a reposição eletrolítica,controle glicêmico e aos fatores que podem precipitar novo episódio de hipovolemia,como no caso das gastroenterites agudas. Em relação a reanimação com líquido no choque por Dengue, devemos ficar atentos a duas fases: a primeira que objetiva reverter o choque já instalado, com rápida restauração do volume circulante e a segunda fase que têm por fim repor a perda de plasma pela síndrome de extravassamento capilar, que ocorre de forma lenta e contínua, com períodos intermitentes de maior permeabilidade microvascular. Devido a esta peculiaridade o principal problema encontrado na reanimação do choque da dengue é a tendência a sobrecarga de fluido, fora do período de reanimação inicial, a qual é responsável por significante morbimortalidade;dessa forma um débido urinário maior que 3ml/kg/hora sem causa osmótica, foi considerado como indicador precoce de hipervolemia.Portanto nossos objetivos terapêuticos são : diurese de 1ml/kg/hora; queda de hematocrito em 10% e pressão de pulso maior ou igual a 30mmhg;ao atingirmos tais parâmetros paramos a infusão rápida de líquidos. Os resultados encontrados pelo estudo FEAST trial, publicado em maio desde ano de 2011, realizado em crianças com doença clinica febril com prejuízo na perfusão periférica e choque compensado, mostrou aumento da mortalidade em 48hs no grupo que recebeu fluido em bolus de salina ou albumina, comparado com o grupo que não recebeu fluido em bolus,apontanto para uma possível associação perniciosa da reposição volêmica,em oposição a todos os estudos que até o momento sugerem o contrário.Não podemos deixar de salientar que tais resultados não devem ser extrapolados para crianças com outras condições tais como: desidratação severa por gastroenterite; grande queimado e hipovolemia por trauma cirúrgico. BIBLIOGRAFIA: 1. Suchitra Ranjit, Niranjan Kissoon: Dengue hemorrhagic fever and shock syndromes. Pediatric Critical Care Med 2011; 12(1): 90-100 2. 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