I. DELEUZE E A HISTÓRIA DA FILOSOFIA O enigma dos piolhos O objetivo destes seminários A abordagem da história da filosofia A oposição entre filosofia e saber Os conceitos assinados Os “mundos” filosóficos As duas imagens do pensamento O problema do fora O pensamento como reconhecimento O pensamento como encontro O enigma dos piolhos Estão iludidos os homens quanto ao conhecimento das coisas visíveis, mais ou menos como Homero, que foi mais sábio que todos os helenos. Pois enganaram-no meninos que matando piolhos lhe disseram: o que vimos e pegamos é o que largamos, e o que não vimos nem pegamos é o que trazemos conosco. (Heráclito, Pré-socráticos, Abril Cultural, São Paulo, 1978, p. 84, nº 56, tradução de José Cavalcante de Souza. Na forma canônica de referência: DK 22 B 56). Este fragmento retoma, na forma da elíptica escritura heraclitiana, uma antiqüíssima e tradicional narrativa grega, conhecida inclusive por Aristóteles, que a narra com mais detalhes. Homero queria saber quem eram seus pais e qual era sua pátria. Interroga, por isso, um oráculo, do qual recebe, como de qualquer oráculo que se respeite, uma resposta enigmática e inquietante que diz mais ou menos o seguinte: “A ilha de Io é a pátria de tua mãe, mas ela te receberá morto. Tem cuidado, entretanto, com o enigma de homens jovens”. Depois de um certo tempo, Homero chega à ilha. Enquanto está sentado em um recife a descansar, vê aproximar-se alguns jovens pescadores e apenas para puxar conversa, pergunta-lhes se pegaram alguma coisa. A resposta que obtém é a narrada no fragmento de Heráclito: “o que vimos e pegamos é o que largamos, e o que não vimos nem pegamos é o que trazemos conosco”. A adivinha, considerada em si mesma, é banal, trivial, baseada, como toda adivinha, no duplo sentido e na contradição, e sua solução é igualmente banal: “os piolhos”. De fato, aqueles que os pescadores conseguiram pegar, eles os mataram e deixaram cair; aqueles que não conseguiram pegar ainda carregavam nas vestes. Banal e, entretanto, suficiente para lançar no desânimo o grande sábio, ao ponto de morrer disso. Colli, que comenta essa narrativa, tanto na sua edição dos fragmentos de Heráclito (La sapienza greca, III, Adephi), quanto no seu breve ensaio sobre o nascimento da filosofia (Giorgio Colli, La nascita della filosofia, Adelphi), observa que nenhum homem comum morreria pelo desânimo de não saber resolver um enigma. Para Homero, em contraste, que não é um homem comum, o enigma se transforma em um desafio mortal. Aristóteles define o enigma como a formulação de uma impossibilidade racional, que exprime, entretanto, um objeto real. Surge, nessa definição, a ameaça de um estranhamento recíproco entre o pensamento (a impossibilidade racional) e a realidade (o objeto expresso, que, entretanto, é real). Na narrativa citada, o enigma representa a irrupção, nas águas calmas, seguras, navegáveis, da sabedoria adquirida, de alguma coisa de imprevisto, de incompreensível, de inassimilável. É a violência do “fora” (o fora como outro do pensamento, não o fora tal como refletido, representado, no pensamento), uma violência que se abate, destrutiva, sobre o mundo dos saberes consolidados. Para além das intenções de Heráclito, que não são o objeto deste seminário, é oportuno observar como a anedota nos oferece uma imagem eficaz da áspera estranheza com a qual um problema (porque este, no fundo, é o enigma) se apresenta e se opõe ao saber. Um problema, se é um verdadeiro problema, é alguma coisa que, pela própria natureza, não nasce nunca do mundo do sábio; é uma solicitação que é colocada por aquilo que é radicalmente um outro do sábio (neste caso, dos garotos pescadores, maltrapilhos e piolhentos). Não se apresenta quase nunca com contornos reconhecíveis, nem com características particulares que o tornem espetacular, notável. Não é, na verdade, a ênfase, a espetacularidade, a grandiloqüência que o torna um problema, mas o seu caráter surpreendente, inesperado, novo, involuntário. Muito freqüentemente, considerado na sua mera dimensão de realidade, é francamente banal, um simples fato, para o homem comum. Para o sábio, entretanto, constitui um encontro imprevisto, porque o coloca inesperadamente frente à inutilidade do seu saber. Deleuze observa que o problema se distingue da pergunta porque não é, nunca, como essa última, um artifício retórico, no qual a resposta está já pressuposta (pensemos nas perguntas de um exame, cujo objetivo é sempre o de testar e validar um saber, nunca o de colocá-lo em causa). O problema, em suma, é uma urgência, uma necessidade, um choque, uma violência, que coloca o pensador frente ao seu verdadeiro risco, que não é nunca a ignorância, o erro, o reconhecimento faltante, mas o torpor, a estupidez, a bêtise estrutural, pesada, lerda, calmante, confortante, fundamento de todo conformismo de opinião. Por razões que surgirão mais adiante, espero, esta narrativa me pareceu uma boa introdução a este ciclo dos seminários. O objetivo destes seminários Nestes seminários apresentarei conceitos filosóficos próprios de Deleuze, conceitos com a assinatura “Deleuze”, falarei de filósofos amigos de Deleuze (Leibniz e Espinoza), de filósofos inimigos de Deleuze (Platão), de filósofos que não são nem amigos nem inimigos e que, entretanto, são, para ele, relevantes (Kant), mas também de filósofos que parecem ter-lhe sido substancialmente irrelevantes (Descartes). Trata-se de uma tarefa fascinante e, ao mesmo tempo, assustadora e que, além disso, parece também insólita na sua própria enunciação: o que significa “conceitos com a assinatura ‘Deleuze’” ou “filósofos amigos, inimigos, indiferentes”? Não são categorias usuais em filosofia, na qual estamos mais habituados a nos preocupar com a verdade, com a falsidade, com o erro, com a essência, com o ser, com o bem... Podemos questionar Platão, considerando sua doutrina das idéias um grande erro, assim como podemos cuidadosamente juntar elementos que confirmem a filosofia de Espinoza. Mas que sentido tem afirmar-se de alguém que é hostil a Platão e amigo de Espinoza? Podemos falar do conceito de “devir” ou do conceito de “acontecimento”, buscando todas as variadas acepções com que esses conceitos têm sido utilizados na história da filosofia, ou ao menos os mais relevantes entre eles; podemos, enfim, colocar em evidência as características que Deleuze, por sua vez, atribuiu a esses conceitos. Parece um bom modo de proceder, filologicamente correto, preferível àquela estranha história de “conceitos com assinatura”, quase como se fossem produto da alta moda. Entretanto, é o próprio Deleuze que fala de “assinatura” e, algumas vezes, até mesmo de “grife”. Fornecer uma coleção de conceitos, fazer um belo excursus, embora parcial, da história da filosofia: tudo isso seria adequado à leitura de Deleuze. Não parece difícil: basta que eu recupere essas noções na minha bagagem cultural, que as depure do que têm de acidental e irrelevante, concentrando-me no essencial, e que me esforce por apresentá-las, tanto quanto eu seja capaz, de modo eficaz, e está feito. Um pouco de história da filosofia propedêutica a Deleuze: não há problema. Exatamente! Não há problema. E quando não há problema não há nem mesmo interesse. Seria uma espécie de traição para um filósofo como Deleuze, que sempre opôs filosofia e saber, filosofia e conhecimento. A abordagem da história da filosofia Ser deleuziano não significa, obviamente, repetir mecanicamente o pensamento de Deleuze, não quer dizer fazer parte dos epígonos entusiasmados de Deleuze, assim como ser antideleuziano não significa fazer parte dos inimigos jurados de Deleuze, dos epígonos ressentidos e rancorosos. Ser deleuziano, kantiano ou espinoziano significa literalmente saber fazer um retrato do filósofo do qual se fala e é sabido que um retrato é uma coisa muito diferente de uma foto três por quatro, como mostra muito bem Deleuze em O que é a filosofia? A história da filosofia é comparável à arte do retrato. Não se trata de “fazer parecido”, isto é, de repetir o que o filósofo disse, mas de produzir a semelhança, desnudando ao mesmo tempo o plano de imanência que ele instaurou e os novos conceitos que crio. São retratos mentais noéticos, maquínicos (p. 74). E, inspirando-se nos retratos de filósofos feitos por Tinguely, nos dá um esplêndido exemplo com o retrato mental-maquínico de Kant, completo, com todos os seus componentes (nove), com as interconexões entre as partes e com seu movimento. Mas podemos fazer retratos noéticos-maquínicos de filósofos apenas se soubermos nos encontrar ou desencontrar com esses filósofos. Deleuze está pouco interessado em refutar Platão; ele quer, em vez disso, revirá-lo, pervertê-lo, tanto que escreve: Reverter o platonismo deve significar tornar manifesta à luz do dia a motivação do platonismo, encurrá-la - assim como Platão encurrala o sofista (Lógica do sentido, p. 259). Não são, sem dúvida, palavras de quem se dispõe a estudar objetivamente um filósofo; são palavras hostis, de quem se prepara para uma batida de caça. Veremos poucas palavras de amor. Deleuze é impiedoso para com um certo modo de entender a história da filosofia: A história da filosofia sempre foi o agente de poder na filosofia, e mesmo no pensamento. Ela desempenhou o papel de repressor: como você quer pensar sem ter lido Platão, Descartes, Kant e Heidegger, e o livro de fulano ou sicrano sobre eles? Uma formidável escola de intimidação que fabrica especialistas do pensamento. (...) Uma imagem do pensamento, chamada filosofia, constituiu-se historicamente e impede perfeitamente as pessoas de pensarem (Diálogos, p. 21). E ainda: Não suportava nem Descartes, os dualismos e o Cogito, nem Hegel, as tríades e o trabalho do negativo. Gostava dos autores que pareciam fazer parte da história da filosofia, mas que escapavam dela por um lado ou por todas as partes: Lucrécio, Espinoza, Hume, Nietzsche, Bergson (Diálogos, p. 22). Quais são as verdadeiras motivações de um filósofo? Porque diz essas coisas? A que coisas visa? Que tipo de mundo fica de fora se aceitamos seus conceitos? Esses são os problemas a serem resolvidos quando lemos um filósofo. Nenhum interesse, ao contrário, pela coerência ou a verdade do que diz um filósofo ou, Quando muito, um interesse secundário, marginal. Ir atrás de um filósofo: nenhum historiador da filosofia ousa fazer tanto, a menos que seja, por sua vez, um filósofo. O modo como Deleuze lê um filósofo é eficazmente descrito nesta passagem: (...) concebendo a história da filosofia como uma espécie de enrabada, ou, o que dá no mesmo, de imaculada concepção. Eu me imaginava chegando pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria monstruoso. Que fosse seu era muito importante, porque o autor precisava efetivamente ter dito tudo aquilo que eu lhe fazia dizer. Mas que o filho fosse monstruoso também representava uma necessidade, porque era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizes, quebras, emissões secretas que me deram muito prazer. Meu livro sobre Bergson me parece exemplar nesse gênero (Conversações, p. 14). O encontro de um filósofo com outro filósofo não poderá nunca levar a uma discussão na qual se trocam idéias ou se confrontam opiniões. O encontro com um filósofo é sempre irrelevante de um ponto de vista cognitivo ou moral, porque, na realidade, é um evento ético, que implica a elevação dos problemas daquele filósofo e o seu deslocamento a um novo plano. Em Nietzsche e a filosofia, Deleuze afirma que é preciso saber fundir os conceitos de um filósofo como se funde o bronze de um canhão para obter novas armas. Em conclusão desta parte, é bom ler estas formidáveis palavras com as quais Deleuze confia uma enorme responsabilidade a Qualquer um que se disponha a falar de um autor, escritor, filósofo, artista, músico, cientista, não importa... São palavras de amor. Meu ideal, quando escrevo sobre um autor, seria não escrever nada que pudesse afetá-lo de tristeza, ou, se ele estiver morto, que o faça chorar em sua tumba: penar no autor sobre o qual escrevemos. Pensar nele de modo tão forte que ele não possa ser mais um objeto, e tampouco possamos nos identificar com ele. Evitar a dupla ignomínia do erudito e do familiar. Levar a um autor um pouco da alegria, da força, da vida amorosa e política que ele soube dar, inventar (Diálogos, p. 137). É por isso que minha tarefa, que partilho com qualquer um que fale de filosofia, é fascinante e, ao mesmo tempo, assustadora. A oposição entre filosofia e saber Como pudemos ver, em Deleuze, a oposição entre filosofia e saber é radical, tão radical que se pode dizer que só se pensa verdadeiramente sem o saber, até mesmo contra o saber. Mas que significa pensar? Em quê o pensamento é diferente do conhecimento e da reflexão? Antes de mais nada, na consciência que se tem dele e do caráter voluntário do conhecimento e da reflexão em relação ao pensamento, sempre involuntário no seu surgir e no seu criar. Não nos damos conta que pensamos, pensamos sempre sem querê-lo. Posso dizer “eu reflito”, mas não estou seguro que se possa dizer “eu penso”. É uma experiência que todos tivemos na vida, talvez apenas uma vez (será triste se jamais ocorreu), a de perceber de repente, com grande surpresa, que tivemos uma idéia. Utilizo aqui a palavra “idéia” como termo geral e genérico aplicável a toda forma de criação do pensamento (conceitos, perceptos e functivos), como faz Deleuze no verbete “Idéia”" do Abecedário. É apenas na presença de uma idéia que nos damos conta de haver pensado, tanto que não há maneira mais segura de não ter uma idéia do que procurar ter uma. E a involuntariedade da idéia não diz respeito apenas ao seu “vir à mente”, momento de enorme gratificação para o pensador, mas diz respeito também à sua “perda”, à sua absoluta precariedade. Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, idéias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos. São variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem. São velocidades infinitas, que se confundem com a imobilidade do nada incolor e silencioso que percorrem, sem natureza nem pensamento. (...) Perdemos sem cessar nossas idéias (O que é a filosofia, p. 259). Bem diferente da persistência, das certezas do saber adquirido e consolidado, aquele que às vezes exibimos com mal disfarçada satisfação como a nossa “bagagem cultural”. É explícita e não contida a impaciência de Deleuze para com a “bagagem cultural”, não apenas a dos outros, mas também a sua própria, como testemunham estas palavras que podem ser lida no verbete “Cultura” do Abecedário: Os eruditos possuem um saber espantoso, conhecem tudo, são capazes de falar de tudo. Eu, ao contrário, me dou conta de não ter qualquer bagagem cultural. Tudo que aprendo está relacionado com uma tarefa particular, e toda vez que a tarefa acaba, esqueço tudo e devo recomeçar do zero. (...) Umberto Eco é espantoso, é como apertar um botão, ele pode falar de qualquer coisa. Os conceitos assinados Se a bagagem cultural é a pesada e necessária reprodução dos saberes, a idéia é, em vez disso, sempre um ato de criação. Se a bagagem cultural é aquilo que todos podem adquirir, sendo suficientes aplicação e boa vontade, e é saber partilhado e próximo dos contos anônimos, a idéia, em vez disso, é sempre firmada: o conceito é sempre o conceito de um filósofo, o percepto é sempre o percepto de um artista. O que significa isto? Significa que faz pouco sentido perguntar-se genericamente o que é a substância, porque, se a substância da qual se fala não é a substancia de Aristóteles ou de Espinoza, para dar exemplos, é sempre uma noção banal, trivial, indefinida. É bom esclarecer, obviamente, esse aspecto da firma: não é, de modo algum, uma coisa da subjetividade psicológica do filósofo. A substância de Espinoza não é a opinião de Espinoza sobre a substância; se assim fosse, seria extraordinariamente entediante e pouco interessante. Mas há uma razão mais profunda que nos impede de confundir a substância com assinatura “Espinoza” com a opinião do Senhor Benedito de Espinoza sobre a substância. Constitui um erro fundamental considerar a substância (ou qualquer outro conceito filósofico) como um significado genérico qualquer, em si já dado, sobre o qual pudéssemos, então, ter pontos de vista, uma espécie de substância genérica, em suma, sobre a qual todo filósofo pudesse tomar posição. Não é nunca assim: há a substância anônima, trivial, a substância da opinião, e sobre essa nenhum filósofo tem qualquer coisa a dizer, e depois há a substância com assinatura (ou melhor, as substâncias com assinatura), conceito extremamente equívoco. E isso vale para todo conceito filosófico. Não utilizei por acaso o termo “equívoco”. Os conceitos filosóficos, de fato, são intrinsecamente equívocos; eles o são por natureza, não porque a sua definição dependa, de algum modo, do ponto de vista de quem o considera. Trata-se de uma equivocidade intrínseca, não extrínseca, e por isso, Idéia, Contingência, Substância, etc., tal como o Ser, se dizem de muitas maneiras. Mas, à diferença do ser aristotélico, cuja equivocidade se dilui na analogia, porque existe um significado primeiro ao qual todos os outros estão referidos, os conceitos filosóficos são, em vez disso, democraticamente equívocos, sem referentes identitários ou privilegiados: a substância de Aristóteles não é uma substância melhor que a de Espinoza (ou vice-versa); é um conceito de substância que responde a um problema diferente, um problema que é possível no mundo aristotélico, mas não no espinosiano. Para jogar um pouco com o leibnizianismo, podemos dizer que as duas substâncias são, entre si, incompossíveis, mas não contraditórias. É como dizer que os conceitos filósoficos não são idéias abstratas, universais e necessárias, porque, se assim fosse, teríamos um significado unívoco e todo outro significado seria, em última análise, contraditório, mas são, em vez disso, realidade concreta. Por isso os filósofos, embora falando da mesma coisa de forma muito diferente e às vezes oposta, não se contradizem jamais, não podem fazê-lo. Como afirma Deleuze em um de seus seminários sobre Leibniz, dizer que o conceito de verdade de Kant contradiz o de Leibniz é tão estúpido quanto dizer que Velasquez contradiz Giotto. Puro nonsense. Os mundos filosóficos A filosofia opera no campo do concreto, não do abstrato, em um campo no qual o verdadeiro e o falso não reinam como instâncias primárias. A verdade, efetivamente, não é um critério válido para selecionar as idéias; é válido para os saberes, para as noções, não para as idéias. Crer que a terra é plana ou que o sol gira em torno da terra é plenamente falso, enquanto o “cogito” cartesiano, o “fenômeno” kantiano ou a “diferença ontológica” heideggeriana não são nem verdadeiros nem falsos. Isso não significa dizer, obviamente, que todos os conceitos se equivalham. Há um critério de seleção e, referindo-se a Nietzsche, Deleuze o caracteriza no alto e no baixo, no interessante e no banal. Há trabalhos desenvolvidos por alunos diligentes que estão plenos de verdade, mas absolutamente banais, insignificantes, entediantes. Há, por outro lado, erros que, pelo único fato de terem sido trabalhados por pessoas de gênio, abrem campos de pensamento e colocam novos e autênticos problemas. Uma idéia deve ser interessante, isto é, deve representar sempre a solução de um verdadeiro problema. Qual é, por exemplo, o problema de Descartes? O de assegurar-se, de modo incontroverso, que todas as suas certezas coincidam com as da verdade. Enganado a maioria das vezes (pelos sentidos, pela tradição, pela autoridade), Descartes não confia mais em nada e em ninguém e está convencido de que nenhum conhecimento é seguro se as raízes que alimentam esse conhecimento não são, por sua vez, seguras. A prima philosophia, então, nada mais é do que essa “obsessão” pela pureza das raízes, pela segurança dos fundamentos, da qual qualquer outro conhecimento depende. Descartes é um dos que vê o mundo deste modo: filosófico Se tiveres um cesto de maçãs e perceberes que uma é podre, o que farás? Ficarás satisfeito em apenas removê-la para evitar que corrompa as sãs? Seria um comportamento imprudente. É necessário, em vez disso, esvaziar o cesto, examinar as maçãs uma a uma e colocar no cesto apenas as sãs, descartando as outras (Descartes, em “Respostas ao Grupo VII de Objeções às Meditações metafísicas”). Descartes quer que o mundo seja uma cesta de maçãs absolutamente sãs e quer certificar-se disso pessoalmente, armado de um método incontestável. Todos os conceitos que criou, poucos, na verdade, segundo Deleuze, porque Descartes é um filósofo sóbrio, pretendem resolver o problema da distância entre certeza e verdade. E, então, que significa pensar sob a urgência desse problema? Apenas se colocarmos perguntas desse tipo encontraremos verdadeiramente Descartes, não se nos envolvemos com críticas miúdas, capciosas e eruditas, as quais podem, inclusive, serem justamente feitas apenas em um outro contexto, não filosófico, mas historiográfico. É verdade que Descartes, que duvidou de tudo, se “esqueceu” de duvidar se a distinção entre interno e externo é lícita. E então? Sob esse aspecto, há muitas outras “omissões” em Descartes. Mas vale a pena perder uma viagem no seu mundo porque o seu método e o seu cogito não são, pois, coisas puras e sãs como ele acreditava? Podemos sempre confiar num filósofo, podemos sempre confiar nele. Só assim poderemos amá-lo, se a viagem no seu mundo nos entusiasmou, ou detestá-lo, se nos decepcionou ou no entristeceu. Se o confrontamos com a carranca arrogante do professor, só nos arriscamos a nos entediar e a entediar os outros. Qual é o problema de Platão? Um reflexo automático erudito nos leva a responder de modo errado ou ao menos superficial: o dualismo entre mundo verdadeiro e mundo das sombras. Na realidade, Platão quer encontrar um critério seletivo que seja capaz de distinguir os verdadeiros pretendentes dos falsos, os verdadeiros amigos da verdade dos simuladores, um critério que saiba caracterizar com certeza quem tem legitimidade em pretender o verdadeiro e quem não tem. E é com os conceitos criados para resolver esse problema que Platão, segundo Deleuze, comete o pecado capital e original da filosofia, a introdução da transcendência. Por isso, contra Platão e o platonismo, Deleuze mobilizará toda a fileira de seus filósofos, não por acaso todos filósofos da imanência. Eis aí, muito esquematicamente, o modo pelo qual Deleuze lê os filósofos: não lhe interessa refutar ou certificar o que disseram; ele quer ver se lhe agrada ou não, ele quer amar e, se for o caso, até detestar um pensador, porque também Deleuze é um filósofo e conhece, por isso, os filósofos, sabe que Platão e Hegel, se odiados, não chorarão em suas tumbas, enquanto seguramente o farão se forem reduzidos a opinadores, ainda que importantíssimos. As duas imagens do pensamento O problema do fora Grande parte da tradição filosófica ou ao menos a sua linha dominante, é orientada, segundo Deleuze, por um pressuposto pre-filosófico, que compromete de modo radical a possibilidade mesma de pensar. Trata-se do pressuposto que o filósofo francês chama de imagem dogmática do pensamento, ao desmascaramento da qual ele dedicará páginas intensas e apaixonadas. Qual é esse pressuposto pre-filosófico? Trata-se do pressuposto que afirma que entre o pensamento e a verdade haveria uma natural afinidade, ao menos em termos de direito, porque de fato todo mundo tem a experiência de quanto os erros e a falsidade estão difundidos e não param nunca de fraudar, e freqüentemente de tornar inútil, o esforço do pensamento para alcançar a verdade. Em termos de direito, portanto, o pensamento estaria naturalmente voltado para a verdade, porque a verdade é alguma coisa que o pensador formalmente já possui, alguma coisa para a qual ele está bem apetrechado e que poderá obter graças ao método e à boa vontade, alguma coisa, em suma, que só falta conquistar materialmente. Pensar não pode nunca ser uma operação reflexiva; o pensamento não pode se pensar a si mesmo, sem tornar-se vão. Pensar as próprias representações significa aprisionar-se em uma estéril interioridade. Se o pensamento tem como objeto alguma coisa que depende de si e somente de si, ele se condena ao subjetivismo, ao relativismo, à impotência. Portanto, o verdadeiro problema do pensamento é o de como pensar a exterioridade e, além disso, a necessidade dessa exterioridade. E é isso que o torna diferente da mera reflexão. A resposta a esse problema determina a imagem do pensamento à qual uma certa tradição filosófica faz referência. Pensemos, por exemplo, na tradicionalíssima definição de verdade como adaequation intellectus et rei: não é, talvez, uma resposta à exterioridade? De um lado, há o intelecto, como faculdade do pensamento; do outro, há a coisa, objeto externo, correlato do intelecto e a solução do problema dá-se em termos de adequação: a verdade é a correspondência entre a coisa, naquilo que ela essencialmente é, e a representação da coisa. Como se compreende essa relação? As aporias e as tentativas de sua superação, à qual esse dualismo entre uma interioridade pura e uma exterioridade indiferente tem dado lugar, representam uma parte notável da história da filosofia. Mas que significa para o pensamento pensar o seu “fora”, o diferente de si, o seu outro? Exatamente sobre esse problema, segundo Deleuze, encontram-se duas imagens do pensamento, entre si radicalmente diferentes, uma baseada no modelo do reconhecimento (fora de si o pensamento reconhece materialmente o que formalmente já possui), a outra baseada no modelo do encontro. O pensamento como reconhecimento Para a primeira, pensar significa substancialmente conhecer. O pensador é aquele que, graças a (e por força de) um ato fundador, graças às individuações de um ou mais conceitos fundadores, sabe romper com a doxa, com a opinião, e pode, assim, dispor-se a acolher as coisas na sua essência. Pensemos nas duas vias de Parmênides, a via da verdade e a via da opinião; ou em Platão e sua luta contra os sofistas, em nome de uma verdade certa e não sujeita à opinião; ou ainda em Descartes e em sua posição do cogito-sum como garantia de uma verdade colocada ao abrigo das dúvidas e dos erros da opinião. É sempre uma rejeição das coisas como aparecem, em favor das coisas como elas verdadeiramente são. Pensar, portanto, significa haver realizado o gesto fundador que nos subtrai à doxa, significa saber responder corretamente à pergunta “o que é?”, significa conhecer as coisas, os objetos, os entes, todo ente, o mundo, na sua verdadeira natureza, de modo que o pensamento possa se encontrar no ser das coisas. Se corretamente orientado, se eficazmente ajudado por todas as outras faculdades (sensação, imaginação, memória), operando em harmonioso concerto, o pensamento pode reconhecer-se fora de si, naquilo que em si já havia pre-figurado, comprazendo-se nisso. É por acaso que as idéias fundamentais, aquelas que nos fazem verdadeiramente conhecer a essência das coisas, a trama da realidade, não sejam nunca idéias que o homem produziu no seu encontro com o fora, mas sejam sempre idéias que são já preliminarmente possuídas pelo homem? Pensemos na anamnese platônica: o homem já viu as idéias antes de nascer, com os olhos da mente, conhecer significa, no contato com as coisas reais, saber perguntar à mente aquelas visões ideais esquecidas. Ou pensemos em Descartes: as idéias fundamentais não são nunca as dos fatos, mas sempre as idéias inatas. No início do capítulo 3 de Diferença e repetição, dedicado à imagem do pensamento, Deleuze mostra como a necessidade de começar, de fundar (momento essencial para a imagem dogmática do pensamento), é, na realidade, uma ilusão, porque todo fundamento, todo início, é pre-filosófico em um sentido bem preciso, desde o momento em que não pode senão referir-se à opinião, diretamente ou sob alguma forma disfarçada (Urdoxa). Qual filosofia parece ser mais radical que o cartesianismo na sua busca de um fundamento puro e livre de pressupostos? O que há de mais original no cogito? Não é difícil responder: pressupõe-se tacitamente que qualquer um conhece espontaneamente e sem conceito o que significa “pensamento”, “ser”, “eu”, só para dar alguns exemplos. Trata-se de lugares comuns dos quais se tem uma pre-compreensão, que nada mais é que a opinião que se tem desses conceitos. A esse respeito, antes de discutir a outra imagem do pensamento, comentemos brevemente um “exemplo” (exemplo 5, O que é a filosofia) que se encontra no início do capítulo dedicado aos personagens conceituais. O cogito - escreve Deleuze - tem certos pressupostos, mas não da maneira pela qual um conceito pressupõe outros (por exemplo, o conceito de homem pressupõe o de animal e de racional). Os verdadeiros pressupostos de um conceito não são outros conceitos, são opiniões e Deleuze os lista: todos sabem o que significa pensar, todos são dotados da capacidade de pensar (o bom senso é a coisa mais bem partilhada do mundo, como escreve Descartes no Discurso sobre o método); todos querem o verdadeiro, etc. Antes do cogito, como conceito fundador, há essa seqüência de lugares-comuns. Mas, ao lado do cogito e de seus pressupostos conceituais, há também os intermediários entre esses dois planos, os personagens conceituais. O personagem conceitual que interpreta o papel do cogito é o idiota (em grego idiótes era o cidadão privado, sem cargos públicos; vem de ídios, que significa próprio, particular, que está sozinho), que, de um lado, não deixa de usar o pronome “eu” e, de outro, se junta ao senso comum. Reconhecemos, por certos versos, o sujeito das Meditações: é o pensador privado que se opõe aos eruditos, aos escolásticos, aos professores, todas pessoas portadoras de conceitos adquiridos e, por isso, pessoas, portanto, que, quando falam, não podem mais dizer “eu penso”, porque o que dizem já foi pensado por outros. O idiota, ao contrário, enquanto pensador privado, oposto ao especialista público e reconhecido, é “aquele que forma um conceito com aquela força inata que todo mundo, de direito, possui por conta própria”. Por isso, o idiota é um precursor e não um pressuposto do cogito e, como todo personagem, tem as suas metamorfoses. Nas suas versões clássicas, o idiota quer o verdadeiro, busca o fundamento das coisas e quer que seja ele, não um professor, que determine o que é compreensível, o que é verdadeiro. Mas, observa Deleuze, o idiota reaparece em uma outra época e em um outro contexto, o do cristianismo russo: pensemos no romance de Dostoiveski de título homônimo, e as suas buscas são radicalmente transformadas, mesmo que um tênue fio una os dois personagens. O antigo idiota queria evidências, às quais ele chegaria por si mesmo: nessa expectativa, duvidaria de tudo, mesmo de 3 + 2 = 5; colocaria em dúvida todas as verdades da Natureza. O novo idiota não quer, de maneira alguma, evidências, não se “resignará” jamais a que 3 + 2 = 5, ele quer o absurdo - não é a mesma imagem do pensamento. O antigo idiota queria o verdadeiro, mas o novo quer fazer do absurdo a mais alta potência do pensamento, isto é, criar. O antigo idiota queria não prestar contas à razão, mas o novo idiota, mais próximo de Jó que de Sócrates, quer se lhe preste conta de “cada vítima da história (...) (O que é a filosofia, pp. 84-5). Não quer mais resolver sozinho a questão do que é compreensível e do que não é, do que é razoável ou não, do que está perdido ou do que está salvo. Quer alguma coisa de muito mais radical, alguma coisa de radicalmente diferente, quer reapropriar-se do perdido, do incompreensível, do absurdo. O pensamento como encontro À imagem do pensamento como reconhecimento Deleuze opõe uma outra imagem, a do pensamento como encontro: pensar não é, de forma alguma, reconhecer, não tem nada a ver com um exercício de boa vontade e com a correta aplicação de um método, não tem a ver com a verdade e com a pergunta sobre a essência das coisas. É uma exterioridade suspeita aquela na qual reconheço essências que correspondem às minhas perguntas, às minhas definições. Na realidade, trata-se de uma efetivação da minha interioridade, que já contém tais essências como puras possibilidades de ser. Pensar, na realidade, significa encontrar signos que me forçam, me constrangem, me obrigam, a pensar. Não foi nunca suficiente uma boa vontade, nem um método elaborado, para aprender a pensar (...). (...) o espírito não engendra mais do que o possível. Faltam, às verdades da filosofia, a necessidade e a garra da necessidade. (...) a verdade não se entrega, ela se trai; ela não se comunica, ela se interpreta; ela não é resultado da vontade, ela é involuntária. (...) Mais importante que o pensamento é o aquilo que “dá o que pensar” (...). (...) o essencial está fora do pensamento, naquilo que força a pensar. O leitmotiv de O tempo perdido é a palavra “forçar”: impressões que nos forçam a olhar, encontros que nos forçam a interpretar expressões que nos forçam a pensar (Proust et les signes, pp. 116-7). Não é a essência, pois, mas o signo a ser dotado da violência da exterioridade, o signo que é capaz de arrancar o pensamento de seu natural torpor (a bêtise), da vacuidade das possibilidades meramente abstratas. É a violência do signo que impele o homem a fabricar conceitos, mas também perceptos, afectos, funções, em uma singular luta contra o caos, que esconde, na realidade, uma secreta aliança com ele, contra aquilo que é o inimigo comum, os lugares-comuns da opinião, as idées reçues. Essa significativa metáfora, que Deleuze encontra no escritor D. H. Lawrence, exprime com grande eficácia essa aliança do pensamento com o caos, contra a opinião. (...) os homens não deixam de fabricar um guarda-sol que os abriga, por baixo do qual traçam um firmamento e escrevem suas convenções, suas opiniões; mas o poeta, o artista abre uma fenda no guarda-sol, rasta até o firmamento, para fazer passar um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar numa luz brusca, uma visão que aparece através da fenda, primavera de Wordsworth ou maçã de Cézanne, silhueta de Macbeth ou de Ahab. Então, segue a massa dos imitadores, que remendam o guarda-sol, com uma peça que parece vagamento com a visão; e a massa dos glosadores que preenchem a fenda com opiniões: comunicação. Será preciso sempre outros artistas para fazer outras fendas, operar as necessárias destruições, talvez cada vez maiores, e restituir assim, a seus predecessores, a incomunicável novidade que não mais se podia ver. Significa dizer que o artista se debate menos contra o caos (que ele invoca em todos os seus votos, de uma certa maneira), que contra os “clichês” da opinião (O que é a filosofia, pp. 261-2). Nota do tradutor: As citações de Deleuze (& Guattari) são feitas de acordo com as seguintes edições brasileiras: Gilles Deleuze e Félix Guattari. O que é a filosofia. Rio: Editora 34, 1997. 2ª ed. Trad. de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Gilles Deleuze e Claire Parnet. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. Trad. de Eloisa Araújo Ribeiro. Gilles Deleuze. Conversações. Rio: Editora 34, 1998. Trad. de Peter Pál Pelbart. Gilles Deleuze. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998. 4ª ed. Trad. de Luiz Roberto Salinas Fortes. A citação extraída de Proust et les signes foi traduzida diretamente da edição francesa desse livro: Gilles Deleuze. Proust et les signes. Paris: Presses Universitaires de France, 1998. 2ª ed.