«Cientista que diz não saber quando inicia a vida humana está mentido» Entrevista com a Profª. Dra. Alice Teixeira Ferreira SÃO PAULO, sexta-feira, 3 de fevereiro de 2006 (ZENIT.org).- A Profª. Dra. Alice Teixeira Ferreira, Professora Associada de Biofísica, da UNIFESP/EPM, na área de Biologia Celular Sinalização Celular e Assessora da CNBB na Comissão Nacional de Bioética, conta um pouco a história da aprovação da Lei de Biossegurança, em 2 de março de 2005, e como vê hoje o movimento em defesa da vida no Brasil. A entrevista foi concedida ao jornalista Hermes Rodrigues Nery, e estará incluída juntamente com entrevistas de outras lideranças do movimento pró-vida no País, no livro “A Causa da Vida”, a ser lançado este ano. --Como podemos definir o conceito de VIDA? --Dra. Alice Teixeira Ferreira: Do ponto de vista da Ciência não se conceitua ou define vida. A Ciência se restringe à responder COMO? A descrever os fenômenos. Definição ou conceito de vida é com a Metafísica. --Os cientistas estão eufóricos com a era genômica. São tantas e ricas possibilidades, que as novas promessas de “admirável mundo novo” parecem confirmar a superação das doenças. O que há de concreto em termos de reais possibilidades positivas das conquistas biotecnológicas e o que há de ilusão? --Dra. Alice Teixeira Ferreira: A euforia já acabou, pois se constatou que o genoma humano foi uma ideologia que custou 5 bilhões de dólares e não resultou lucro imediato para a industria farmacêutica que mais investiu neste “avanço tecnológico”. Os que esperavam “brincar de Deus” melhorando a Sua obra estão desapontados. Foi só ilusão porque o determinismo biológico ou genético não existe. O dogma um gene-uma proteína não é verdade. Além do mais a participação do meio na expressão do gene é importantíssima. Após 2002, quando o genoma humano foi completado verificou-se a necessidade de se estudar como o meio intervém na expressão dos genes: a epigenia.Dos 100.000 genes se reduziu à 20.000 a 30.000 genes humanos. Terapia gênica só para doenças com alteração em um gene, no caso de ser multigênicas não é solução. Por outro lado não se consegue dirigir onde o vetor (um vírus) vai se inserir no genoma e como sempre é acompanhado de um promotor, corre-se o risco deste se localizar junto de um oncogene (gene promotor de tumor). Esta é a explicação para o aparecimento de leucemia nas crianças que receberam esta terapia para restaurar sua imunidade. Existe ainda outro problema que é o da introdução de uma proteína estranha no organismo com a terapia gênica levando à reação imunológica. --Que avaliação a Sra. faz do Projeto Genoma? --Dra. Alice Teixeira Ferreira: Não foi um projeto de pesquisa, onde se faz hipóteses a serem testadas e comprovadas. Foi um projeto para desenvolver tecnologia. Verificou-se que patentear genes foi uma besteira. Afinal, como diz a Dra. Eliane de Azevedo, não sabemos como definir o gene. Serviu para enriquecer a indústria de biotecnologia que vendeu os aparelhos de seqüenciamento e reagentes de identificação. --Quais são realmente as vantagens do uso terapêutico das células-troncos? --Dra. Alice Teixeira Ferreira: Seria uma solução para as doenças degenerativas. Mas devemos desenvolver a pesquisa de maneira tradicional, isto é, antes de mais nada saber como estas células funcionam. É uma tarefa hercúlea pois, não sabemos identificá-las com certeza . Discutese ainda se existe uma hierarquia na sua diferenciação bem como a sua renovação. A sua sinalização é extremante complexa, envolvendo muitas proteínas na sua característica plasticidade. --A polêmica em torno do uso das células-tronco embrionárias se dá porque não há consenso entre os especialistas do momento exato em que se dá o início da vida humana. A moral cristã afirma que a vida começa no momento da fecundação, no entanto, prevalece o relativismo, com todas as incertezas e jogo de interesses que esta questão suscita. Afinal, que argumentos podemos ter para refutar, de vez, o posicionamento daqueles que insistem em dizer que o embrião humano não é vida, pessoa potente? --Dra. Alice Teixeira Ferreira: Cientista que diz não saber quando inicia a vida humana está mentindo. Qualquer texto de embriologia clínica (ou humana) afirma que se inicia na concepção. Em 1827, com o aumento da sensibilidade do microscópio, permitindo visualizar o óvulo e os espermatozóides, Karl Ernst Von Baer descreveu a fecundação e o desenvolvimento embrionário. Os médicos europeus, frente tais evidências, passaram a defender o ser humano desde a concepção, contra o aborto. Em 1869 a Inglaterra foi o primeiro pais a tornar o aborto ilegal. O Papa Pio IX, também em 1869 aceitou que o fato de que a vida humana se inicia na concepção. É um fato científico e não um dogma da Igreja Católica ou de qualquer religião. Para não dizer que está ultrapassado os embriologistas, em 2005, afirmam não só que a origem do ser humano se dá na fecundação como, do ponto de vista molecular, a primeira divisão do zigoto define o nosso destino. --Quando começou seus estudos com células-troncos e quando e porque a Sra. se engajou no movimento pró-vida? --Dra. Alice Teixeira Ferreira: Meus estudos com as CTs se iniciou quando começamos estudar a medula óssea de camundongos em 1994. --Como a Sra. avalia a ação do movimento pró-vida hoje no Brasil? Quais os desafios? --Dra. Alice Teixeira Ferreira: Tem de ficar em alerta. Continuo tendo em vista que existem interesses econômicos fortíssimos para que embriões humanos sejam utilizados em pesquisa. Hwang, o “cientista” fraudulento, recebeu 40 milhões de dólares para desenvolver tais pesquisas. Até agora não se conseguiu clonar o ser humano e o cão porque as proteínas que vem na organela do espermatozóide, o acrossoma, são fundamentais para a divisão adequada do zigoto. Além do mais deve existir compatibilidade entre o núcleo celular e as mitocôndrias, organelas celulares importantíssimas para a sobrevivência das células. --Como tem sido a ação da Igreja, especialmente da CNBB, nesse processo? --Dra. Alice Teixeira Ferreira: A CNBB foi de certa forma pega de surpresa, pois não contava que nossos parlamentares aprovariam ou fossem favoráveis a tal degradação do ser humano. Atualmente vem dando TODO apoio aos movimentos em defesa da vida humana e de sua dignidade. --Como tem sido a ação da sociedade civil e de outras igrejas também? --Dra. Alice Teixeira Ferreira: Os espíritas, os evangélicos, os sheicho-no-iê, os budistas são nossos aliados e estão mobilizados. A sociedade civil por outro lado vem sendo muito mal representada através da manifestação de minorias esquerdistas, materialistas. Temos de deixar claro que tais pessoas não nos representam. --Quais as maiores dificuldades de organização do movimento? O que falta? --Dra. Alice Teixeira Ferreira: A dificuldade está na mídia e meios de comunicação que tentam ridicularizar a posição em defesa da vida atacando religiosos, as organizações católicas como OPUS DEI e CÁRITAS, alegando que a nossa sociedade é laica. --Por que o movimento anti-vida no País recebe tanto apoio financeiro, espaço na mídia, etc.? Como superar esta situação? --Dra. Alice Teixeira Ferreira: Numa sociedade materialista em que os valores morais desapareceram, tem-se a desvalorização da família, intensificou o utilitarismo, vive-se na ditadura do neoliberalismo. Temos de usar todos os meios, todos os canais que nos abrem para INFORMAR nosso povo, alertá-los das mentiras. Convencer o nosso povo de que estão sendo enganados, roubados ao se pegar nosso dinheiro e dá-lo às industrias farmacêuticas para anticoncepcionais, camisinhas, pílula do dia seguinte. Um aborto custa entre 1000 a 2000 reais. Sempre temos o poder econômico corrompendo nossos ministérios. Nosso povo tem de exigir que este dinheiro tem de ser aplicado em melhor atendimento no SUS, em saneamento básico, em melhoramentos de sua condição de vida. O que nosso povo quer é educação, saúde e emprego, mas o dinheiro de nossos impostos estão sendo mal empregados. --Por que nos países em que foi aprovada legislações anti-vida (nos EUA, já são 33 anos), não se conseguiu uma mobilização forte suficiente para barrar esta legislação, com projetos de iniciativa popular e outras ações? --Dra. Alice Teixeira Ferreira: Dr. Bernard Nathanson e Andrew Goliszek informam o que existe por trás do poder econômico, extremamente forte em favor do aborto. Dr. Nathanson diz que o aborto custa 300 dólares e Goliszek dá uma lista de preço de pedaços de feto humano onde o cérebro de um bebê de 8 semanas custa 1000 dólares. Na Rússia tem mulher que engravida para vender seu feto por 50 dólares à industria de cosméticos. --Como foi, aqui no Brasil, o processo que culminou com a aprovação da Lei de Biossegurança? E agora, o que podemos fazer para reverter essa situação? --Dra. Alice Teixeira Ferreira: Em 16 de dezembro de 2002, Mayana Zatz e Lygia Pereira vieram à reunião da CTNBio com o propósito de juntar clonagem terapêutica e utilização de embriões humanos em pesquisa nesta lei de Biosegurança. Eu apresentei argumentos contrários irrefutáveis mostrando que tudo o que elas propunham podia ser realizado com CTs adultas. Apresentei como exemplo os resultados do Dr. Radovan Borojemic com o qual colaboro. O único argumento delas foi então que queriam pesquisar as células embrionárias humanas. Dra Maria Celeste, advogada, disse ser inconstitucional esta carona legislativa e que nossa constituição garantia os direitos do ser humano à vida desde a concepção. Mayana e Lygia retrucaram que o embrião era um amontoado de células qualquer. Retruquei que não era verdade, que era um sistema muito bem organizado que diferentemente de uma cultura de células dava origem à um ser humano completo.Aí começou a história que meu argumento era religioso. Este projeto foi para a Câmara que retirou o artigo 5 e enviou para o Senado a lei de Biossegurança. Mayana e Lygia tendo a FAPESP como aliada foram ao Senado e tiveram Eduardo Campos, Ministro de Ciência e Tecnologia, como aliado; conseguiram incluir novamente o artigo 5, mas excluindo a clonagem terapêutica e incluíram embriões humanos congelados por mais de 3 anos. Afirmavam que estes não eram mais viáveis e iam ser jogados no lixo. Mayana liderou o movimento “Cura ou Lixo” e com ajuda do banqueiro Salles levou ao Congresso no dia 28/2/05 mais de 300 deficientes físicos de todas as idades que lá montaram um “circo”, onde crianças de cadeiras de roda se atiravam sobre os parlamentares implorando a aprovação da Lei de Biossegurança, em particular o artigo 5. O então Presidente da Câmara, Severino Cavalcanti nos recebeu muito mal e não quis dar ouvidos aos nossos argumentos. Quem liderava nossa comissão era D. Odilo Pedro Scherer, da CNBB. Na ocasião, entreguei mais de 1000 assinaturas de médicos e cientistas que eram contra a utilização de embriões humanos para a pesquisa. A mídia estava do lado da Mayana e o Severino queria cartaz, por isto foi bastante solícito com a Mayana e companhia, aparecendo no JN da Globo, sorridente, no meio deles. Vendo isto às 20:15 de 1/3/05 já contava que meus esforços em 2/3/05 seriam em vão. Em 2/3/05 na reunião das 14:00hs com os nossos aliados e o ministro de CT, a Patrícia Prank não respondeu meus argumentos e abandonou a reunião. Eduardo Campos disse que uma vez aprovada a Lei de Biossegurança, e sua aprovação era certa, viria investimento externo. Que tinha-se demorado muito sua aprovação. Lygia confessou no programa Roda Viva que a matéria não havia sido devidamente discutida no Congresso por desinteresse dos parlamentares. Disse também que quando lá esteve para dar esclarecimentos só havia 4 parlamentares e no fim de sua exposição sobrou apenas o deputado que havia convidada-a. Nunca fui chamada por ter opinião contrária. Só no dia 2/3/05. Aliás, foi inesperado também a colocação em votação desta Lei, pois havíamos solicitado uma audiência pública para apresentarmos a verdade dos fatos e devido este afogadilho, tal não ocorreu. Uma vez aprovada a Lei de Biossegurança, no dia seguinte havia 2000 pacientes querendo ser cobaia para a prometida cura com CTs embrionárias humanas. Mayana declarou que se tratava de um mal entendido divulgado pela mídia, pois ela queria a liberação da pesquisa com embriões humanos. Dr. Cláudio Fonteles, quando era Procurado Geral da Justiça,ao saber numa entrevista de Dra. Lílian Piñero Eça o quanto nossa posição foi discriminada pela mídia, convocou-nos para elaborar a Ação de Inconstitucionalidade desta Lei (ADIN). Acreditamos que após o fiasco do sul-coreano existe grande possibilidade de ganharmos a causa. --Como a Sra. vê a ação da Frente Parlamentar em Defesa da Vida? --Dra. Alice Teixeira Ferreira: Pelo menos temos agora parlamentares se movimentando e espero que não aconteça o que ocorreu com a Lei de Biossegurança. Vê-se que a tática tem sido a mesma: audiência pública só com os favoráveis ao aborto e carona num projeto em andamento. Tem o MS favorável também. Infelizmente, há o poder econômico corrompendo nossos parlamentares. ZP06020315 Textos de 1 a 10 - Igreja e Bioética Nº: 10 Texto: Carta enviada pela CNBB aos Senadores Autoria: CNBB ________________________________________________________________ Nº: 09 Texto: Uso de células-tronco de embrião é debatido no Senado Autoria: Senado Federal - 07/06/2004 ________________________________________________________________ Nº: 08 Texto: Intervenção da Santa Sé na 2ª sessão da ONU para preparação de uma convenção internacional sobre clonagem humana "reprodutiva" Autoria: Santa Sé ________________________________________________________________ Nº: 07 Texto: A ética da investigação biomédica para uma visão cristã Autoria: Pontifícia academia para a Vida. Comunicado final da IX Assembléia. 24 a 26/02/2003 ________________________________________________________________ Nº: 06 Texto: Clonagem humana e ética Autoria: Dom Demétrio Valentini. Bispo de Jales-SP. ________________________________________________________________ Nº: 05 Texto: Razões para defender a vida do feto com anencefalia Autoria: Entrevista com Dernival da Silva Brandão, Especialista em Ginecologia e Obstetrícia ________________________________________________________________ Nº: 04 Texto: Aborto de fetos com anencefalia Autoria: Dom Odilo Pedro Scherer. Bispo auxiliar de São Paulo e Secretário Geral da CNBB ________________________________________________________________ Nº: 03 Texto: O recém-nascido anencefálico e a doação de órgãos Autoria: Comitê Nacional de Bioética da Itália ________________________________________________________________ Nº: 02 Texto: Homicídio Uterino Autoria: Dr. Ives Gandra da Silva Martins ________________________________________________________________ Nº: 01 Texto: Aborto e Anencefalia Autoria: Pe. Dr. Wilmar Luiz Barth Biosegurança: "Escolhe o caminho da vida" Praticamente não se passa um dia sem que seja noticiada uma nova descoberta no campo da biotecnologia. Essas descobertas ora dizem respeito à maior e melhor produtividade; ora à cura de certas doenças genéticas; ora à possibilidade de se combinar seres de espécies diferentes; ora ao que se denomina de reprodução humana assistida; ora à própria clonagem humana, seja numa linha terapêutica, seja numa linha reprodutiva. Todas essas notícias são veiculadas com grande sensacionalismo, e por isso mesmo devem ser examinadas com serenidade e senso crítico amadurecido. Para tanto convém se colocar ao menos três perguntas fundamentais: 1) O que está acontecendo? 2) Onde encontrar subsídios para nos posicionarmos adequadamente? 3) O que podemos fazer? 1) O que está acontecendo? As freqüentes notícias sobre descobertas e atuações no campo da biotecnologia vêm confirmar que vivemos num período inédito da história humana: dispomos hoje de ciência e tecnologias apropriadas não apenas para conhecer melhor as múltiplas formas de vida, mas também para interferir nos seus mecanismos mais profundos. Depois de os seres humanos haverem desvendado os mistérios da energia atômica, os mistérios da lua e de outros planetas, agora estão rapidamente desvendando os mistérios da vida biológica. Mais do que isto: não apenas estão desvendando, mas até alterando o código genético de muitos dos seres vivos. Com isso se quer conseguir o que se julga ser um aprimoramento, seja da natureza em geral, seja dos próprios seres humanos. No caso dos seres humanos a grande motivação apresentada são as doenças de cunho genético, várias delas de caráter degenerativo, tais como a síndrome de Down ( mongolismo), mal de Parkinson, mal de Alzheimer e outras. Tudo isso provoca debates acalorados, como os que vem se desenrolando no nosso Congresso Nacional em torno dos produtos transgênicos, e de modo mais amplo em torno da lei de biosegurança. Os debates são positivos, uma vez que ajudam a perceber que se está colocando em questão não apenas uma lei, mas o que ela pode representar, em termos dispositivos que conduzem à vida ou dispositivos que conduzem à morte de toda a criação. Em meio aos debates, não poucas vezes a Igreja católica e outras expressões religiosas são acusadas de estarem entravando a marcha do progresso. Segundo esses críticos, ao combater os transgênicos, os representantes das religiões estariam impedindo que se acabe com a fome; ao combater certos procedimentos de laboratório, que implicam na manipulação e até na morte de embriões, estariam impedindo a cura de doenças genéticas. Tudo isso leva muitos a se sentirem inseguros quanto à posição a ser tomada. Uns, se deixam arrastar por um entusiasmo muito grande, diante da perspectiva de uma vida melhor e mais longa para si e seus descendentes; outros estão assustados, pois nunca na história os seres humanos detiveram em suas mãos tamanho poder. 2) Onde encontrar subsídios? Quase todas as igrejas e religiões existentes em nosso meio se fundamentam nas coordenadas que brotam de duas fontes: as Escrituras e a experiência-sabedoria consignada numa longa trajetória de séculos e até milênios. É também baseada nesta dupla fonte que a Igreja católica, juntamente com outras igrejas cristãs, vem participando ativamente dos debates. A Palavra de Deus vem definida como palavra de vida. Assim, logo no início do Evangelho de São João lemos que “ no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus... Todas as coisas foram feitas por intermédio dele e sem ele nada se fez de tudo o que foi feito. Nele estava a vida, e a vida era a luz da humanidade. Essa mesma Palavra de Deus nos apresenta, com muita clareza o caminho para bem viver: é o caminho sinalizado pelas dez Palavras, também conhecidas como os dez mandamentos. Cristo mostrou que, na realidade, essas dez Palavras se resumem numa só, que é o Amor: amar a Deus e ao próximo resume toda a Lei e os Profetas. Com isso, encontramos uma certeza: o sonho de todos de terem uma vida de melhor qualidade só se torna possível na medida em que as relações humanas, tanto ao nível interpessoal, quanto social, forem pautadas por um autêntico amor a Deus e ao próximo. Mas as igrejas cristãs e as demais religiões com maior presença em nosso meio, contam igualmente com um acervo de experiência que foram adquirindo ao longo dos séculos. Não é de hoje que a humanidade busca viver mais e com melhor qualidade de vida. De fato essas aspirações são constantes na história. A experiência nos oferece várias certezas: a primeira, que a felicidade é um desejo que o próprio Deus implantou no coração humano; segundo, que as ciências e as tecnologias, na medida em que se colocam verdadeiramente ao serviço de todos, podem contribuir em muito para reduzir os sofrimentos e aumentar a qualidade de vida; terceiro, que devemos desconfiar de soluções fáceis para problemas difíceis. Como nos assegura Jesus Cristo, o caminho que leva à felicidade é um caminho estreito e cheio de renúncias. Por aí se percebe que não se pode confundir felicidade com facilidade. A felicidade tem que ser construída com a ajuda de Deus e a colaboração de todos: ela não cai pronta do céu, nem é automaticamente legada pelo nosso código genético. Felicidade e desgraça resultam da combinação de muitos fatores. Sobretudo quando se trata de saúde, fica sempre mais evidenciado que ela passa muito mais por sadias relações humanas de cunho religioso e político, do que pela genética, por mais importante que essa possa ser. Se esse é o caminho, segue-se uma pergunta espontânea: mas então, o que podemos fazer? Vamos deixar que grupos econômicos, ou cientistas e políticos decidam por nós, sem nos consultar? 3) O que podemos fazer? Há alguns anos atrás o Papa João Paulo II escreveu uma importante carta Encíclica, na qual fazia ver que hoje, mais do que nunca, se trava uma luta entre a cultura da vida e a cultura da morte. Esta carta leva o expressivo título: “ O Evangelho da Vida”. Evangelho significa “ boa notícia”. Nós devemos ser portadores de “ boa notícia”, alegrando-nos com as muitas conquistas de hoje, inclusive no campo da biotecnologia. Ao mesmo tempo devemos saber detectar certas loucuras que se estão dizendo e fazendo em nome do progresso. Saber discernir pressupõe, antes de mais nada, o desenvolvimento de uma consciência crítica. “ Sem consciência, a ciência pode conduzir à morte”: é nos diz outro importante documento da Igreja Católica, chamado “ o Dom da vida”. A consciência crítica, sobretudo quando alimentada pela luz do Evangelho, ajuda a perceber que por trás da batalha dos transgênicos se ocultam hábeis manipulações por parte de empresas nacionais e transnacionais, que não se importam tanto com a qualidade de vida, quanto com os lucros fáceis. Da mesma forma, a maneira como certos setores das áreas biomédicas se referem à produção de embriões e à clonagem humana, ainda que sob a capa do piedoso, mas equívoco adjetivo “ terapêutico”, nos dá a certeza de que para melhorar a vida de uns, não se pode tirar a vida de outros, ainda que seja uma vida incipiente. A descoberta das chamadas “ células tronco” , uma vez mais revelam a sabedoria do Criador, que fez bem todas as coisas, e que colocou à disposição dos seres humanos recursos para esses poderem enfrentar os sofrimentos fisicos em sua raíz. Não é preciso “fazer embriões”, nem manipular embriões, para depois descartá-los: as células tronco se encontram também no cordão umbilical, na medula da coluna vertebral, e um pouco por todo o corpo. Claro que esses procedimentos são mais lentos e mais trabalhosos. E naturalmente isso não interessa aos donos da biotecnologia, que não são cientistas, mas empresários. Diante deste quadro fica evidente que ninguém mais pode ficar de braços cruzados num momento tão decisivo para a humanidade. É preciso que se desenvolvam verdadeiras estratégias, seja de cunho pessoal, seja de cunho comunitário, seja de cunho social. Entre as de cunho pessoal, merecem ressalto: o cultivo do espírito de reverência diante dos mistérios da vida; a desconfiança diante das promessas de milagres fáceis; a humildade diante da grandeza de Deus e da sua obra criadora. Entre as estratégias comunitárias, importa adquirir uma visão de conjunto da realidade, vendo as implicações políticas e sociais do que se passa na biotecnologia; aprender a conviver com o diferente, pois não é produzindo seres geneticamente iguais que acabarão os conflitos no mundo: esses só acabam na medida em que cresce a capacidade de aceitar e amar os que são diferentes de nós; não deixar-se levar pelas emoções, que ora provocam ondas de entusiasmo ingênuo, ora de pessimismo derrotista. Entre as posturas sociais vão emergir a necessidade de saber acolher o que é novo, mas sem perder a sabedoria dos antigos; desconfiar daquilo que é votado e colocado em prática com muita rapidez, sem a devida cautela que requerem essas intervenções no código genético; bater-se para que os eventuais benefícios não se destinem apenas a alguns, mas que sejam distribuídos para todos. Mais do que da genética devemos esperar o retorno de políticas públicas e sociais adequadas no campo da saúde. Conclusão: sem dúvida vivemos um dos momentos mais fascinantes da história humana, quando não apenas passamos a conhecer em maior profundidade os mecanismos da vida, mas também somos capazes de intervir sobre eles. Ciência é técnica podem ser nossas aliadas, como também podem se transformar em inimigas da sociedade. Basta lembrar o que aconteceu quando, em vez de energia pacífica, se transformou a energia atômica em bombas. Daí a importância de todos saberem se posicionar e participar responsavelmente das decisões. Por fim, convém lembrar dois personagens que marcaram para sempre a humanidade. Um deles é Moisés, que, ao se despedir do seu povo mostrou haver dois caminhos: o da vida e o da morte. Sua recomendação foi esta: escolham o caminho da vida, amando o Senhor e escutando a sua voz ( Dt. 30,20). Ademais, animou Josué, seu sucessor, com estas palavras: “ sê forte e corajoso, pois... o Senhor marchará à tua frente, estará contigo e não te deixará nem te abandonará” ( Dt. 31,7). O segundo personagem é naturalmente Jesus Cristo. Ele se apresenta como sendo “o caminho, a verdade e a vida”. Ele nos garante que veio para que todos tenham vida, e a tenham em abundância. Dr. Frei Antônio Moser Teólogo, franciscano Aborto e Anencefalia Pe. Dr. Wilmar Luiz Barth [email protected] No dia 01 de julho de 2004 a imprensa publicou a liminar do Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, no qual entendeu que não há crime de aborto nos casos de interrupção da gravidez de fetos com anencefalia. No mesmo dia a CNBB criticou a decisão por se tratar de “uma decisão solitária” e porque “autorizou a interrupção voluntária da gestação de uma vida humana”. Além disto, a nota afirma que, “de fato, a vida humana, que se forma no seio da mãe, já é um novo sujeito de direitos e, por isso, tal vida deve ser respeitada sempre, não importando o estágio ou a condição em que ela se encontre”. A nota da CNBB, por outro lado, manifestou a surpresa desta conferência pela decisão unilateral que o ministro tomou, uma vez que se trata de uma questão tão delicada. Além disto, numa sociedade democrática, todos os setores devem ser ouvidos, caso contrário retornamos àquele estado absolutista de tempos idos. Segundo as afirmações de médicos ligados ao assunto, a anencefalia é a ausência total ou parcial do cérebro, ou seja, um defeito de formação do sistema nervoso do feto, de modo que as crianças geralmente não sobrevivem. Dependendo da gravidade da mal-formação, a morte pode se dar depois de algumas horas ou dentro de poucos dias. A maioria das crianças morre mesmo durante a gravidez ou do parto. Esta mal-formação é genética e não se sabe exatamente a causa do problema. O defeito de formação ocorre entre a 23º e 26º semana e como forma de prevenção os médicos indicam à gestante uma dieta rica em ácido fólico (um tipo de vitamina B), um suplemento vitamínico que pode ser tomado dois meses antes de engravidar até três meses depois. A anencefalia não tem cura, atingindo meninos e meninas. A incidência é de 4,6 casos em cada 10 mil nascimentos, quer dizer, é rara. Nos EUA, nascem 2.000 crianças com anencefalia a cada ano (Fonte: Folha Online, 01/07/2004). Apesar desta mal-formação, os demais órgãos do feto geralmente são completos e perfeitos, podendo ser doados. Para se ter uma idéia, enquanto a anencefalia tem uma freqüência de 0,2% na população em geral, os casos de lábios leporinos é de 0,07% e de pé torto é de 0,1%. As causas da anencefalia são difíceis de estabelecer. Esta mal-formação não é de hoje, no entanto, os estudos demonstram uma incidência maior destes casos devido a fatores ambientais, de modo direto, por causa dos altos índices de poluição aos quais a gestante esta sujeita. É preciso recordar os casos que se registraram na cidade de Cubatão. Quando os índices de poluição chegaram a patamares altíssimos, se registraram vários casos de anencefalia, o que forçou a adoção de medidas ambientais. Hoje, ao que se sabe, o problema praticamente desapareceu. Quanto ao ácido fólico, vitamina essencial para evitar a mal-formação, poderia muito bem ser acrescentado ao pão, consumido por todas as brasileiras, assim como o cloro é acrescentado à água. Existe uma grande possibilidade de se evitar casos de anencefalia. Cerca de 70 a 80% deles poderiam ser evitados. Nos EUA, por exemplo, ele foi acrescentado aos cereais consumidos no café matinal, o que diminui fortemente a incidência do fenômeno. Se já é rara, poderia ser evitada por completo, a exemplo de outras doenças controladas pelas campanhas de vacinação. A maioria dos médicos não recomenda à mãe os devidos cuidados necessários para uma gestação e nascimento de uma criança sadia. A pobreza e o ambiente poluído no qual vive a maior parte da população, realidade que tende a se tornar mais grave com o passar do tempo devido aos problemas ambientais, aumentará cada vez mais a incidência destes casos. Se não aprendermos a evitar a doença, tomando as medidas necessárias, fatalmente teremos que aprender a conviver com casos semelhantes. É preciso que as políticas ambientais também levem em conta estes problemas. Não são somente os animais e plantas que estão sendo extintos. A ecologia humana comporta fazer com que o “bicho homem” também possa se reproduzir normalmente e gerar vidas saudáveis. Infelizmente nos deparamos com este problema, mas temos que reconhecer que o progresso descontrolado e o mau gerenciamento dos recursos naturais afetam a vida humana na sua fonte. Precisamos aumentar o acompanhamento direto das mulheres e gestantes, de modo a evitar todas as possíveis causas do problema. Talvez para muitos seja fácil dizer que a mulher deve abortar. Porém, o aborto, mesmo nestes casos, comporta um drama psicológico muito forte para a mulher. Muitas mulheres, depois de realizado o aborto, tentam o suicídio. Sim, porque além de sofrerem com a malformação do feto, sofrem também, quase sempre sozinhas, com o trauma de terem eliminado injustamente uma vida. De ‘geradoras da vida' se vêem transformadas em ‘assassinas'. Temos que reconhecer que as mulheres e famílias não se deparam somente com a mal-formação do filho, já por si uma situação dramática, mas devem também se colocar diante de uma decisão moral e religiosa, igualmente problemática. Em nenhum dos dois casos existe um acompanhamento psicológico, o que não deixa de ser um drama pessoal e familiar. As acusações pela culpa da mal-formação acabam jogando a mulher e o casal em traumas, muitas vezes, com seqüelas insuperáveis. Afirmo que, nestes casos, o aborto não se revela a melhor opção. A decisão é difícil. A maioria das mulheres, como primeira reação, opta pelo aborto, mas esta decisão, de acordo com os psicólogos, deve ser superada. A mulher, quando aborta considera ter rejeitado o filho pela sua mal-formação, o que se torna motivo de condenação pessoal. Os estudos revelam que existindo acompanhamento e respeito aos princípios do casal, 63,5% dos casais decidem não abortar. É ainda preciso lembrar um elemento importante. Para a mulher, assim como para os casais, a gravidez e o filho representam o apogeu de uma trajetória de realização e a concretização de um desejo pessoal. O filho é extensão dos pais e do seu amor. É também a extensão de esforços profissionais e anos de trabalho. “Para quem vou deixar tudo ? ”; “Para que tanto esforço se não tenho para quem deixar ? ” Muitas vezes o filho deixa de ser visto como um dom. O filho se torna um desejo, assim como se desejam coisas. E quando a realização do desejo não é possível, a não aceitação de limites se torna inaceitável. O desejo se torna obsessão. Ora, vivemos no mundo dos desejos e da perfeição, do ilimitado, do “tudo é possível”. Quando algo não é possível, é preciso eliminar todas as barreiras. O que não é perfeito, do jeito que se deseja, elimina-se ou troca-se. Além disto, o período de gestação é longo demais diante dos apelos e empenhos aos quais a mulher hoje se vê forçada. Acabou o tempo da espera, da demora, tudo deve ser para ontem. Porque obrigar uma mulher a esperar meses por um nascimento se o filho que vai nascer morrerá ? Neste caso, a aceitação do filho com anencefalia ou de qualquer filho defeituoso somente é possível quando se aceita os limites da natureza humana e se supera a idéia de que todo desejo deve se tornar realidade. Mas, para muitos, esta é uma reflexão por demais abrangente e distante, para um problema que é momentâneo. Temos que aprender a tratar dos problemas de forma ampla. Como lembra J. Lejeune, “se a saúde da mãe está ameaçada, se mata a criança; se a saúde da criança está ameaçada, se mata a criança; se a saúde pública está ameaçada, se mata a criança”. É preciso lembrar também que o aborto não cura o paciente, no caso a criança, e nem resolve o problema, mas simplesmente mata o paciente. Dito isto, é preciso dar atenção à questão central do tema. Quando começa a vida humana e quando existe uma vida humana ? É na concepção, como afirma a Igreja ? É no 14º dia depois da fecundação, a partir da implantação do embrião no útero e quando se perde a capacidade de formar gêmeos ? É no momento das primeiras ondas elétricas cerebrais ? É no momento do nascimento ? É aos sete anos, quando a criança passa a ter consciência de seus atos ? Como se percebe, as posições variam. A Igreja acredita que a fecundação do óvulo e espermatozóide inicia uma nova vida que, num processo gradativo, contínuo e coordenado desenvolve uma nova individualidade humana, um novo ser humano. Neste processo não existem saltos qualitativos. Não há um momento em que se possa estabelecer o início da “pessoa humana”. Ou já é desde o início ou nunca será. Não existe um “mais pessoa” ou um “menos pessoa”, nem durante a gravidez nem durante a vida toda. Portanto, cada fecundação cria um embrião humano que deve ser respeitado como respeitamos todas as pessoas. Afinal, como ele é, assim já éramos nós um dia! O embrião não é um acúmulo de células, mas um ser humano que, embora ainda não tenha todas as características humanas plenamente desenvolvidas, já deve ser respeitado como tal. Da fecundação do óvulo e do espermatozóide humanos sempre resulta um ser humano, portanto, não se pode eliminá-lo. Existe um “salto qualitativo” no desenvolvimento do feto a tal ponto de podermos dizer que a partir de um exato momento estamos em presença de um ser humano e que antes daquele momento demarcado somente existia uma vida humana ? É certo que existe um “salto quantitativo” neste desenvolvimento, mas não “qualitativo”. O que não é humano desde o início também não o será depois disto. A partir da concepção estamos na presença de um ser humano que se desenvolverá, atingindo sua plena maturidade. Acaso um ser humano pode não ser considerado uma pessoa humana ? O embrião, o feto é a pessoa em vias de sê-la. Precisa tempo para chegar a ser o que já é. Se eventualmente neste processo algo deixar de se desenvolver, mesmo que seja somente uma parte de algum órgão ou até mesmo o cérebro, o que distingue a pessoa humana, o que está no ventre materno é um ser humano e deve ser respeitado como tal. Chamo também a atenção para uma outra questão. Existem aqueles que somente consideram humanos aqueles capazes de se relacionar. E se este critério passasse a ser o prioritário para considerar um feto humano ? Neste caso, se a mãe e a família, se a sociedade não reconhecesse como humano um feto porque incapaz ainda de relacionar-se, então ele poderia também ser eliminado ? Neste caso não teríamos como condenar Hitler pela sua ideologia. B. Häring, moralista católico, lembrava muito bem que não são as relações sociais que fazem as pessoas, mas são as pessoas que fazem as relações sociais. Quem já não é pessoa não o será, mesmo depois de anos de convivência social. As relações sociais somente aperfeiçoam a pessoa, mas não a fundamentam. Além desta questão, temos que refletir sobre a chamada “morte cerebral”. A Igreja aceita o princípio médico que estabelece este momento como a morte física da pessoa. Morre o corpo, mas não a pessoa. Afinal, a pessoa é corpo e alma. Neste caso, precisa recordar que a morte não é somente um ato físico, puramente biológico, mas é um dos elementos a ser considerado. Realizados os exames obrigatórios e não se constatando mais a presença de atividade elétrica no cérebro, observados os tempos estabelecidos, constata-se a morte e se pode desligar os aparelhos que ainda mantinham a atividade do coração e pulmões e oxigenavam os demais órgãos que podem ser doados para transplantes, depois do parecer favorável da família. Ora, assim como o paciente está ligado à máquina, embora já não tenha mais atividade cerebral, assim está o feto com anencefalia ligado à mãe por meio do cordão umbilical e por meio dele recebe os nutrientes necessários à sua vida. Cortado este cordão e dependendo da gravidade da mal-formação, este feto morrerá em pouco tempo. Pode-se comparar a morte cerebral de uma pessoa com a morte cerebral de um feto com anencefalia ? Existe uma diferença entre o feto com anencefalia e o paciente com morte cerebral. A morte cerebral é irreversível e o desligamento da máquina somente fará com que o coração e o pulmão parem de funcionar. No caso da criança que nasce com anencefalia, mesmo com a baixa expectativa de vida, ela possui o tronco encefálico, respira após o nascimento, esboça movimentos e, como ser vivente, a ninguém é dado o direito de praticar o homicídio, promovendo a retirada de órgãos para serem transplantados. Lembro ainda que a Resolução nº 1.480/97, do Conselho Federal de Medicina, estabelece que o critério de morte encefálica em portador de lesão irreversível de tronco encefálico somente poderá ser considerado após o sétimo dia de vida. As crianças com anencefalia simplesmente não podem ser incluídas sob a terminologia de “morte cerebral”, ao menos na base da nossa atual definição de morte, pois tem tronco cerebral que torna possível a respiração e o batimento cardíaco. A morte cerebral é sinal indicativo de morte humana, mas no caso do bebê, não. A criança com anencefalia não está morta, pois “o tronco cerebral está presente nos fetos com anencefalia e permite, em alguns casos, uma sobrevivência de alguns dias, fora do útero materno”. Além disto, as tentativas de declarar morta uma criança com anencefalia representa mais um passo na progressiva aceitação de algo menos que a morte legal para o objetivo de angariar órgãos transplantáveis. Michele Aramini, bioeticista católico, afirma que “tal prática poderia tornar-se uma tendência e ser estendida a outras categorias de pacientes, com os sujeitos que se encontram em estado vegetativo permanente”. Este interesse não é somente da mãe e da sua família, mas de se ter órgãos para transplantes. Além disto, a liminar contribui para aquela abertura para a legalização total do aborto. Louvável, neste caso, a atitude dos tribunais de alguns países que não aprovaram parecer semelhante sobre o caso, assim como vários de nossos juízes e desembargadores da justiça que se manifestaram contra a liminar. Chamo a atenção que, tanto no estabelecimento da morte cerebral de paciente adulto quanto de um feto ainda no útero materno, é preciso ter total certeza médica da morte cerebral. Causam alarme e geram sérias dúvidas os casos de pacientes que não morreram depois de decretada a morte cerebral. O exame de eletroencefalograma (EEG) deve ser total e não somente parcial. Há casos em que o tronco cerebral ainda se mantém em funcionamento, ao contrário da parte superior do cérebro. Será que no nosso país existe realmente certeza médica nos casos de anencefalia ? Será que os exames que decretaram a anencefalia são revistos ou refeitos, uma vez que nos fetos com anencefalia este exame nem sempre consegue captar atividade elétrica ou que existe uma retomada da respiração espontânea, mesmo depois de algumas horas de parada respiratória. E os inúmeros casos de diagnósticos de mal-formação física e outras doenças que não se confirmam ? Além disto, não se pode sempre estabelecer com total certeza se a mal-formação comportará a morte automática da criança no nascimento. Além disto, como é possível estabelecer a “morte cerebral” num feto que não tem o cérebro ? Causou uma longa discussão a lei de doação no nosso país que estabelecia a “doação presumida” de órgãos, caso a pessoa não se tivesse declarado contrária à doação de seus órgãos. A insegurança e o medo dos erros médicos nos casos de “morte cerebral” gerou uma onda contrária à doação de órgãos pós-morte. Com as pressões sociais e do Conselho Federal de Medicina a lei foi revista. No caso desta medida, não seria o caso de se tomar atitude semelhante ? Neste caso, lembro que a Associação Médica Americana mudou as suas recomendações sobre a retirada de órgãos de crianças com anencefalia. Em 1994 o Conselho de ética desta Associação havia dado parecer favorável para esta prática. Segundo a nova posição, assumida em 1997, esta prática rompe a regra que o doador de órgãos deve estar morto, o que não acontece nos casos de crianças com anencefalia. A prática do aborto, neste caso, não é a retirada de um feto já morto, mas a morte de um ser vivente com a finalidade de evitar sofrimentos à mãe ou para favorecer a vida de outra pessoa, quando os órgãos deste feto são doados. Por isto recordo o pensamento de E. Sgreccia, quando afirma que “o fato de a criança estar condenada a morrer por si não constitui uma razão suficiente para sua supressão, pois não se pode comparar a morte natural com a morte direta; se assim fosse, acabar-se-ia por justificar com esse princípio qualquer ato de eutanásia”. Ainda segundo tal Associação, “a nova recomendação dará tempo aos pesquisadores para aprenderem mais a respeito de função cerebral e crianças com anencefalia. Os pesquisadores querem esclarecer se essas crianças têm o potencial de desenvolver algum grau de consciência”. Como ainda lembra o moralista católico e bioeticista francês, P. Vespieren, das discussões realizadas sobre o assunto, o único consenso criado foi em torno da terminologia e não sobre a liceidade moral do ato. Este fato escapa, segundo o parecer dos moralistas, da norma geral sobre o aborto. Do meu ponto de vista, ressalto que se p recisa não somente de uma certeza biológica, física, mas de uma certeza moral, a máxima certeza e esta, nestes casos, não existe. Assim, enquanto existe dúvida, sempre é melhor legislar em favor do réu, como reconhece muito bem o direito. Afirmo que estes fetos devam ser protegidos e cuidados da mesma forma com a qual tratamos todas as pessoas que são dependentes dos outros. Algumas pessoas e moralistas não consideram ser um aborto a eliminação de fetos com anencefalia. Simplesmente não incluem este caso nos casos de aborto. Há uma longa discussão sobre o assunto e as opiniões realmente divergem entre si. Mas, lembramos também que existem pessoas que não têm pleno uso do cérebro. Aqueles que se encontram em coma, por exemplo, ou mesmo os deficientes mentais. Com relação à aprovação de um tal procedimento como o do aborto de crianças com anencefalia, teme-se pela eliminação legal de fetos defeituosos e mesmo daqueles que ainda não chegaram ao pleno desenvolvimento cerebral, como no caso de embriões congelados. Hoje existe já uma forte pressão para que estes embriões, por ainda não sentirem dor e sentimentos, possam ser destinados a ser usados para tratamentos de doenças como o mal de Parkinson, Alzheimer e outras mais. Tal liminar do ministro, portanto, contribui para enfraquecer o direito inalienável de toda vida humana vir a nascer e que algumas pessoas comecem a ver uma certa justificação do aborto na compensação moral do possível benefício para a mãe e a família que dele poderia se seguir. Mantenho-me no princípio de considerar como sendo “vida humana” todo fruto da concepção humana e penso que se deva respeitar a sua trajetória natural. Afirma-se que em torno de oito semanas já se percebem atividades elétricas no cérebro de um feto normal, mas a psicologia tem demonstrado que já mesmo antes desta data o feto armazena ações e reações da mãe e do ambiente familiar que muitas vezes somente vem à tona por meio de regressões feitas para esclarecer certos traumas. O fato é que, em se tratando do início da vida, embora tenhamos muitos elementos biológicos já analisados, existem ainda muitas dúvidas com relação a este início. No entanto, retornemos à questão: um feto sem cérebro pode ser considerado como não sendo um ser humano e, portanto, sem direito à vida ? A resposta deve ter presente que são seres humanos aqueles que ainda não formaram o cérebro, aqueles que perderam total ou parcialmente a capacidade cerebral, como os que estão em coma e aqueles que apresentam problemas cerebrais. Afinal, se consideramos ser possível eliminar crianças sem cérebro, por que não poderíamos eliminar as pessoas que não o utilizam ? Aceno ainda a outro problema. As últimas pesquisas afirmam que no Brasil a doação de órgãos aumentou muito nos últimos anos. Mas, ao lado deste número animador está outro assustador: 63% dos órgãos são comercializados e são clandestinos. Comércio de órgãos de pessoas adultas, de fetos abortados espontaneamente e tantos outros. Enquanto existirem números assim, será difícil acreditar que não hajam interesses outros ligados àquela de prestar solidariedade a mulher. No caso particular das crianças com anencefalia, elas são praticamente a única fonte de órgãos de pequenas dimensões, considerando que somente 1% dos possíveis beneficiários de transplante em idade pediátrica recebe um órgão doado. É interessante observar como utilizamos nossos modernos meios para matar e não para favorecer a vida. As instituições estatais, por exemplo, gastam somas muito mais altas para deixar presos adolescentes infratores do que as instituições particulares. Além disto, os resultados da recuperação destes adolescentes é bem maior nestas instituições particulares do que naquelas estatais, onde, como afirmam os próprios usuários, vive-se na “universidade do crime”. Da mesma forma, os modernos meios de ultra-sonografia e ecografia, em vez de servirem para realizar exames para detectar uma doença e deste modo, ajudar as equipes médicas na correção de problemas, passam a ser a certidão de óbito da criança. Se agíssemos assim com todos os doentes, jamais chegaríamos a solução de doença alguma. Eliminar um doente sem estudar as causas e possíveis tratamentos empobrece a medicina e adia ou impossibilita o avanço científico. Da mesma forma que o conhecimento da medicina fica estagnado, outras ciências, particularmente a psicologia, não conseguem criar um programa de acompanhamento para estes casos. Os conhecimentos adquiridos nos tornam somente mais responsáveis pela morte do feto e aumenta nossa culpa pelo aborto praticado. Interessante observar também que os governos não conseguem elaborar programas de assistência para as mulheres e famílias que passam por problemas nos casos em que se insiste com a prática do aborto. Parece ser o caminho mais fácil e que compromete menos a já tão escassa economia nacional e o orçamento do programa de saúde nacional. Se já os pobres e idosos sofrem com a falta de assistência pública e de saúde, o que dizer destes casos. Todos conhecemos a dificuldade dos pacientes e de suas famílias quando necessitam de remédios e tratamentos especiais. Muitas vezes a solução chega por meio de campanhas de solidariedade e de sensibilização da sociedade. E quanto bem elas tem feito, pois acabam sensibilizando a sociedade e colaborando para a consciência de que nenhum de nós, na verdade, é perfeito. Para os casais e, particularmente, para as mulheres, cabe chamar a atenção que a tarefa de ser mãe comporta o oferecimento de si mesmo. Todos condenamos os abusos sexuais e violências praticadas contra mulheres, muitas delas pelo próprio companheiro ou esposo, assim como reconhecemos ser necessário melhorar as condições sociais e ambientais para que o ser humano possa continuar gerando vidas humanas saudáveis. Sempre se diz, “ser mãe é uma vocação”. Um chamado que comporta a entrega da própria vida. Esta pode se dar no dia a dia ou até mesmo no ato heróico de aceitar a própria morte para salvar a vida do filho ainda por nascer. Não se pode querer ser mãe sem este grau de responsabilidade e consciência. Neste caso, assumir um filho mal-formado ou com graves deformações que o levam inevitavelmente à morte é sempre uma resposta àquela doação total. Heróicas aquelas mães que deram suas vidas para gerar novas vidas. Elas deixam marcas na sociedade e elevam o próprio espírito quando, de forma abnegada, acompanham o sofrimento do filho gerado e desenganado pelos médicos. Louvável a atitude de mães e pais que se fazem doadores de órgãos para seus filhos quando assim se faz necessário. Estas atitudes são guardadas na consciência coletiva e elevam o espírito humano, contribuindo para que outros também façam gestos semelhantes em favor do próximo. Por fim, eu não entendo porque esta mistura de sentimento de derrota, de intranqüilidade e silêncio se instala, sempre que se escutam discussões em torno do aborto, mesmo em se tratando de fetos com anencefalia. A verdade se concebe por si somente e não por meio da força ou de liminares. Eu simplesmente não me sinto tranqüilo e algo aflige minha consciência. Estamos agindo certo ? Afinal, o que é um feto com anencefalia ? ENDEREÇO DO AUTOR: Av. Flores da Cunha, 171 94910000 – CACHOEIRINHA – RS Fone: (51) 4711531 E-mail: [email protected] FORMAÇÃO DO AUTOR: Mestrado em Filosofia e Teologia Mestrado em Teologia Moral Mestrado em Ciências Ambientais Doutor em Teologia Moral e Bioética O Supremo e o Homicídio Uterino Ives Gandra da Silva Martins(*) Tenho pelo Ministro Marco Aurélio pessoal admiração, pela coragem de suas decisões e pelo acentuado amor ao direito, à justiça e à cidadania que sempre demonstrou nutrir. Por essa razão, é com imenso desconforto que escrevo este artigo discordando da decisão favorável à morte de nascituros, que proferiu nos estertores do primeiro semestre. Estou convencido -- apesar de ser eu um modesto advogado de província e ele, brilhante guardião da Constituição -- de que a decisão é manifestamente inconstitucional. Macula o artigo 5º da lei suprema, que considera inviolável o direito à vida. Fere o § 2º do mesmo artigo, que oferta aos tratados internacionais que cuidam de direitos humanos a condição de cláusula imodificável da Constituição. Viola o artigo 4º do Pacto de São José, tratado internacional sobre direitos fundamentais a que o Brasil aderiu, e que declara que a vida começa na concepção. Juridicamente, a antecipação, pelo aborto, da morte do anencéfalo é vedada pelo texto maior brasileiro. O argumento de que o anencéfalo pode ser abortado porque está condenado à morte escancara o caminho para a eutanásia de todos os doentes terminais ou afetados por doenças incuráveis. Possibilita a cultura do eugenismo, no melhor estilo do nacionalsocialismo, que propugnava uma raça pura, eliminando os imperfeitos ou socialmente inconvenientes. Fortalece a hipocrisia dos que defendem o aborto de seres humanos, embora considerem crime hediondo provocar o aborto em uma ursa panda ou eliminar baleias. Os animais merecem, de alguns -- e tenho a certeza de que meu prezado amigo Ministro Marco Aurélio não está entre eles --, mais proteção do que o ser humano, no ventre materno. Enfim, a decisão do antigo Presidente da Suprema Corte abre uma enorme avenida para os cultores da morte, os homicidas uterinos, os que pretendem transformar o ser humano em lixo hospitalar. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte americana, no caso Dred Scott, em 1857, defendeu a escravidão e o direito de matar o escravo negro, à luz dos seguintes argumentos: 1) o negro não é uma pessoa humana e pertence a seu dono; 2) não é pessoa perante a lei, mesmo que seja tido por ser humano; 3) só adquire personalidade perante a lei ao ser liberto, não havendo antes qualquer preocupação com sua vida; 4) quem julgar a escravidão um mal, que não tenha escravos, mas não deve impor essa maneira de pensar aos outros, pois a escravidão é legal; 5) o homem tem o direito de fazer o que quiser com o que lhe pertence, inclusive com seu escravo; 6) a escravidão é melhor do que deixar o negro enfrentar o mundo. Em 1973, no caso Roe vs. Wae, os argumentos utilizados, naquele país, para hospedar o aborto foram os seguintes: 1) o nascituro não é pessoa e pertence à sua mãe; 2) não é pessoa perante a lei, mesmo que seja tido por ser humano; 3) só adquire personalidade ao nascer; 4) quem julgar o aborto mau, não o faça, mas não deve impor essa maneira de pensar aos outros; 5) toda mulher tem o direito de fazer o que quiser com o seu corpo; 6) é melhor o aborto, do que deixar uma criança malformada enfrentar a vida (Roberto Martins, Aborto no Direito Comparado , in A Vida dos Direitos Humanos , Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999). Como se percebe, a corte americana usou os mesmos argumentos para justificar a escravidão e o aborto. Meu caro amigo Ministro Marco Aurélio -- de quem divergir no episódio causa-me profundo desconforto --, ao justificar o aborto, que é a pena de morte, no caso do nascituro anencéfalo, por ser ele um condenado à morte, está, também, justificando a pena de morte a todos os doentes terminais, pela eutanásia, e abrindo a porta para o culto à raça pura, inclusive às manipulações genéticas para que sejam produzidos somente seres humanos perfeitos e saudáveis, e -- o que é pior -- valorizando a cultura da morte e não a defesa da vida. Uma vez aberto o caminho, por ele passarão todas as teses antivida. Espero -- pois a Constituição garante a todos os seres humanos, bem ou malformados, sadios ou doentes, o direito à vida desde a concepção, sendo a morte apenas a decorrência natural de sua condição e não a decorrência antecipada de convicções ideológicas -- que venha a rever seu voto, quando a questão for levada ao plenário. Espero, também, que seus pares homenageiem a vida, proscrevendo a morte antecipada. (*) Ives Gandra Martins é Advogado e Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo. O presente artigo foi publicado, com sua autorização, no Jornal do Brasil - Caderno Opinião em 15/07/2004. O Recém Nascido Anencefálico e a Doação de Órgão COMITE NACIONAL PARA A BIOÉTICA Na defesa da vida em suas fases iniciais, o texto que segue foi aprovado por unanimidade, em 21 de junho de 1996, pelo Comitê Nacional de Bioética da Itália, com o título " O Recém-Nascido Anencefálico e a Doação de Órgãos". Este analisa, em profundidade e sob diferentes perspectivas (médico-científica, psicológica, jurídica, ética, estatistica, etc.), questões várias relativas à anencefalia e ao anencéfalo. TEXTO APROVADO PELO C.N.B. em 21 de Junho de 1996 PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DOS MINISTROS DEPARTAMENTO PARA A INFORMAÇÃO E PUBLICAÇÃO APRESENTAÇÃO Embora muito sensível e dividida sobre questões bioéticas, por sinal objetivamente cruciais, como a fecundação assistida, a eutanásia, o estatuto do embrião humano, a opinião pública tem com certeza bem poucas dúvidas no que se refere à liceidade ética da doação de órgãos e de maneira mais geral dos transplantes: prática essa que provavelmente suscita ainda (e pour cause) sentimentos complexos caracterizados por uma estreitíssima alternância entre admiração e temor, mas que mesmo assim parece já ter entrado numa lógica de rotina, de altíssimo nível. Mas com relação aos transplantes, as questões bioéticas continuam a apresentar-se, embora em formas a não envolver (ou a não envolver mais) a atenção neurótica dos meios de comunicação de massa: caso limitado, mas exemplar, justamente aquele da doação de órgãos na infância a partir de bebê anencefálico. Mesmo assim o Comitê Nacional para a Bioética, profundamente convicto que seja sua função levar muito a sério e dar pronta resposta aos questionamentos bioéticos que emergem da opinião pública, mesmo quando objetivamente superdimensionados, não por isto considera irrelevante tomar posição sobre questões que muitos considerariam marginais, seja por sua eventual sofisticação teórica, seja por sua limitada incidência estatística. Um caso típico é o dos recém-nascidos nos quais se manifestem formas de anencefalia: Patologia esta da qual geralmente se tem conhecimento entre um restrito número de pessoas, especialistas em sua maioria. Mesmo assim o problema bioético das crianças anencefálicas é de grande relevo e deve ser considerado sob diversos aspectos. Além de estimular sérias reflexões sobre a dignidade de pessoa que de qualquer forma a tais crianças deve ser reconhecida, este problema põe em discussão temáticas relativas à oportunidade de sua reanimação, à determinação do momento de sua morte e principalmente à liceidade de fazer uso de seu corpo como fonte de órgãos a serem transplantados. Mas os questionamentos não se limitam a estes. Não esqueçamos, por exemplo, o significado que pode ter um diagnóstico pré-natal de anencefalia do feto para seus pais. Tais problemáticas já chamaram a atenção do CNB durante a elaboração de alguns de seus mais importantes documentos a partir do primeiro, Definição e Constatação Da Morte no Homem (aprovado a 15 de fevereiro de 1991); Além deste documento limito-me a lembrar Diagnósticos Pré-Natais (18 de Julho de 1992), Transplante de Órgãos na Infância (21 de Janeiro de 1994), Bioética com a Infância (22 de Janeiro de 1994), até o mais recente, Vir ao Mundo (15 de Dezembro de 1995). O fato do tema da Anencefalia ser continuamente recolocado mesmo de maneira transversal, convenceu afinal os membros do Comitê a organizar, sobre este tema, um grupo específico de trabalho, para a direção do qual foi designado o professor Conrado Manni, para que fosse elaborado um texto sintético mas exaustivo, que pudesse servir como orientação sobre o Estatuto Bioético a ser reconhecido aos bebês anencefálicos, particularmente no que diz respeito à possibilidade de utilizá-los como doadores de órgãos. O grupo do qual participaram os colegas Barni, Benciolini, Coghi, Danesino, Gaddini, Leocata, Loreti Beghè, Sgreccia e Romanini, levou rapidamente ao final os seus trabalhos que foram examinados, discutidos e mais de uma vez ulteriormente discutidos pelo Comitê, reunido em sessão plena. Para elaboração do documento colaboraram também o Prof. Rodolfo Proietti e o Dr. Lorenzo Martinelli do Instituto de Anestesiologia e Reanimação da Universidade Católica do Sagrado Coração de Roma e o Prof. Píer Paolo Mastroiacovo do Instituto de Clinica Pediátrica da mesma universidade. No dia 21 de Junho de 1996, se deu afinal a aprovação unânime do documento. No momento de entregá-lo à imprensa, sinto o dever de expressar um agradecimento e formular um desejo. Um agradecimento para aqueles que colaboraram na redação deste documento principalmente para Conrado Manni, sem cuja decisiva contribuição científica e bioética, este documento nunca viria à luz; e o desejo de que este texto seja lido, meditado e amplamente discutido como ele merece. Roma, 21 de Junho de 1996. O Presidente Francesco D' Agostino PREMISSA O problema do recém-nascido anencefálico assumiu nestes últimos anos uma importância cada vez maior sob vários aspectos: médico, técnico, jurídico mas principalmente ético. Em 1967 foi relatado o primeiro caso de transplante de doador anencefálico, mas a relação científica não enfrentou de maneira alguma as numerosas questões que tal procedimento levantava, limitando-se a descrever os aspectos técnicos e observando que “os recémnascidos anencefálicos eram uma escolha razoável como doadores para os transplantes infantis” (1). Hoje em dia o verbete “anencephaly” do Index Médico, traz dezenas de referências, com notável aumento a partir de 1984; muitas delas analisam também a temática ética que este campo da medicina suscita (2). Isto significa que, junto com o aumentado interesse científico relativo aos transplantes, suscitado pelo feto anencefálico, cresceu também uma reflexão ética bastante extensa, reflexão esta que estava faltando no momento em que o problema se apresentou. Um primeiro conjunto de problemas se refere ao tratamento médico do anencéfalo após o nascimento: este aspecto se tornou mais evidente com a disponibilidade cada vez maior de meios de terapia intensiva e com os questionamentos que tal disponibilidade suscita neste caso particular. Um segundo conjunto de problemas, bem mais amplo e controvertido, compreende os aspectos relativos ao possível uso dos fetos anencefálicos, como doadores de órgãos para transplantes: este aspecto adquiriu grande importância devido aos progressos das técnicas dos transplantes nestes últimos anos; progressos que tornaram possíveis os transplantes também em idade neonatal e tornaram mais aguda a escassez de órgãos para esta específica faixa etária. As causas de morte cerebral são, por outro lado, bastante raras em idade infantil e a disponibilidade de doadores é limitada aos casos de morte por asfixia perinatal, aos casos de morte súbita neonatal (sudden infant death syndrome) acidentes ou maus tratos (child abuse) (2). Antes, porém, de adentrar-se nas problemáticas éticas do recém-nascido anencefálico fazse necessário um aprimoramento da terminologia: alguns autores têm contestado como errada a simples denominação de anencéfalo, pois ela levaria a considerar esses sujeitos como seres despersonalizados. Analogamente, é impróprio defini-los como doadores de órgãos, porquanto, na idade neonatal e infantil, não se pode falar em doação, ação que supõe capacidade de entender e querer livremente (3). Mesmo aceitando tais observações, os termos em questão serão aqui indiferentemente usados, por motivos de praticidade. Serão considerados, num primeiro momento, os aspectos biológicos fundamentais, com as margens de incerteza que ainda subsistem, e, num segundo momento, os aspectos antropológicos e éticos relativos à problemática do recém-nascido com malformação anencefálica. ASPECTOS BIOMÉDICOS DA ANENCEFALIA Definição: Literalmente, anencefalia significa ausência do encéfalo. Na realidade, define-se com este termo uma mal formação rara do tubo neural acontecida entre o 16° e o 26° dia de gestação, na qual se verifica “ ausência completa ou parcial da calota craniana e dos tecidos que a ela se sobrepõem e grau variado de mal formação e destruição dos esboços do cérebro exposto” (4) Verifica-se portanto ausência dos hemisférios cerebrais e dos tecidos cranianos que os encerram com presença do tronco encefálico e de porções variáveis do diencéfalo. A ausência dos hemisférios e do cerebelo pode ser variável, como variável pode ser o defeito da calota craniana. A superfície nervosa é coberta por um tecido esponjoso, constituído de tecido exposto degenerado. Este é o quadro de referência geral da malformação anencefálica; não se deve, todavia, pensar que esta malformação seja rigorosamente definível. O autor de um texto qualificado sobre anencefalia, estranha, com razão, a variedade de denominações e de classificações que existem na literatura sobre o assunto (4). A dificuldade de classificação baseia-se sobre o fato de que a anencefalia não é uma malformação do tipo tudo ou nada, ou seja, não está ausente ou presente, mas trata-se de uma malformação que passa, sem solução de continuidade, de quadros menos graves a quadros de indubitável anencefalia. Uma classificação rigorosa é, portanto quase que impossível (5). Algumas malformações do sistema nervoso central são próximos da anencefalia por alguns aspectos, mas não podem ser confundidas com ela. Entre elas lembramos: - A síndrome da banda amniótica (na qual a anencefalia pode associar-se a amputações, mas raramente a malformações de órgãos internos); - A iniencefalia, na qual temos malformações graves da coluna cervical e malformações múltiplas; - O encefalocele, um defeito do tubo neural no qual uma parte do encéfalo, mais ou menos gravemente mal formado, forma uma hérnia a partir de um defeito de fechamento do crânio .(6) Junto com tais malformações deve ser lembrada também a hidrocefalia, cujas formas mais graves podem ter significado funcional análogo ao da anencefalia (7); por este motivo, também esta malfomação è freqüentemente citada no debate sobre o feto anencefálico (8) Malformações associadas - são numerosas as malformações associadas a esta patologia: - graves e freqüentes as malformações de órgãos cranianos, como olho, ouvido e hipófise. - menos freqüentes as malformações do aparelho cardiocirculatório (2.8%) em comparação a 0,4% da população em geral e do aparelho genito-urinário (de 4 a 26%) (9,36) em comparação a 8,4% da população em geral. Tal incidência, embora deva ser levada em consideração e ela seja, até ao momento presente, de avaliação não definitiva, fez com que se concluísse que rins, fígado e coração, mesmo geralmente de dimensões mais reduzidas em relação ao peso corpóreo e acometidos por uma percentagem maior de malformações, são, na maioria dos fetos anencefálicos nascidos vivos, aptos pelo menos no começo a serem transplantados (10,91,36). Segundo os dados do IPIMC (Inquérito Policêntrico Italiano Malformações Congênitas) em 55 autópsias realizadas em recém-nascidos anencefálicos, 20 recém-nascidos apresentavam uma malformação associada, e entre eles 7 apresentavam uma cardiopatia. O peso médio era de 1.982 g para recém-nascidos sem malformações, 1670 para recém-nascidos com malformações extra cardíacas e 1355 g para recém-nascidos com cardiopatia. Etiologia: não è conhecida, mas se pensa numa origem multi fatorial na qual fatores genéticos e ambientais desenvolvam um papel proeminente; Não se trata de uma mal formação comum nas infecções virais e na patologia cromossômica. Prevalência: A prevalência da anencefalia embora variável devido aos critérios de diagnósticos e às medidas de “ screening prenatale”, é da ordem de grandeza de 0,3-1 por mil nascidos (11,12,13), considerando seja os nascidos mortos como os nascidos vivos. Este dado apresenta uma diminuição de cerca de 5% por ano e de 2,7% dos anencéfalos nascidos vivos. Pode-se prever, como conseqüência dos sempre mais amplos planos de “screening” pré-natal, que a prevalência dos defeitos do tubo neural ao nascimento será cada vez mais reduzida. Segundo os dados do IPIMC (Inquérito Policêntrico Italiano Malformações Congênitas) que se referem a 1.793.000 nascidos, observados no período de 1978-1994 em cerca de 100 hospitais italianos, verificaram-se 185 casos de recém-nascidos anencefálicos dos quais 120 nascidos vivos (68 falecidos dentro das 24 horas) e 65 nascidos mortos. Nos últimos 5-6 anos a prevalência da anencefalia é de cerca de 0.5- 1 por 10.000 nascidos. Reportando esses dados ao total dos nascimentos na Itália (cerca de 520.000 por ano) pode-se prever o nascimento anual de 25 a 50 recém-nascidos anencefálicos. Diagnóstico: o diagnóstico pré-natal é possível graças ao “screening” da alfa fetoproteína materna e a ultra-sonografia. Os dois métodos associados demonstraram sobre “ screening” di larga escala, uma sensibilidade entre 80 a 100% (14,15,16,17). De notar que muitas legislações permitem a interrupção da gravidez na presença de malformações graves do feto. Uma recente pesquisa revelou que no caso da anencefalia a interrupção voluntária da gravidez acontece em cerca de 80% dos casos (96). O diagnóstico é feito muitas vezes antes da vigésima semana de gestação (18). Aspectos funcionais: O feto anencefálico é gravemente deficiente no plano neurológico. Faltam as funções que dependem do córtex. Faltam, portanto não somente os fenômenos da vida psíquica mas também a sensibilidade (19,20), a mobilidade (21), a integração de quase todas as funções corpóreas (22). Geralmente é mantido um controle mais ou menos eficaz da função respiratória e circulatória, funções que dependem das estruturas localizadas no tronco encefálico. Sobrevivência: com os atuais tratamentos a sobrevivência do anencefálico é muito reduzida. São relatadas percentagens de nascidos vivos entre 40 – 60% (23-24) enquanto depois do nascimento somente 8% sobrevive mais de uma semana e 1% entre 1 e 3 meses (26 e 26). Foi relatado um caso único de sobrevivência até 14 meses (8) e dois casos de sobrevivência de 7 a 10 meses, sem recorrer a respiração mecânica (97). O registro da British Columbia no período 1952-1981 registrou 450 anencéfalos, dos quais 60% nascidos mortos e 40% nascidos vivos. Dos 180 nascidos vivos, 58% não sobreviveu além das 24 horas. A mortalidade até 72 horas foi de 86% e de 98% até uma semana (25). Apesar de uma expectativa de vida tão reduzida não é sempre possível definir a iminência do óbito (27) e a duração da vida pode ser influenciada em muito pelos tratamentos intensivos. Somente em pequena parte se assiste a uma progressiva degeneração do tecido nervoso, visto que a lesão aparece geralmente estabilizada no momento do nascimento. Um risco elevado se dá no momento do parto, devido ao trauma que o tecido nervoso resíduo sofre não sendo protegido pelas estruturas ósseas. Sucessivamente a morte ocorre principalmente por insuficiência respiratória causada pela insuficiência das estruturas nervosas de controle ou pela displasia pulmonar e em pequena parte por anomalias múltiplas de tipo endócrino (hipófise, supra-renais) (4,28,29). Recentemente, surgiu nos EUA um caso médico legal (conhecido como o caso do Bebê K) conseqüente ao nascimento com parto cesariano de uma recém-nascida anencefálica cuja condição era conhecida desde a vida intra-uterina. A mãe se opôs a interrupção da ventilação mecânica que fora instituída depois do nascimento. A Corte Distritual sentenciou, baseada no “ Emergency Treatment Act” que o tratamento respiratório com ventilador não era nem “inútil” ,nem “desumano”, e portanto conforme a lei americana. A pretensão do hospital em recusar este tipo de tratamento não era portanto legítima, porquanto a legislação americana não prevê algum tipo de exceção com relação ao tratamento de pacientes com anencefalia (98). De qualquer forma, mesmo com dados de sobrevivência variáveis, também na dependência do grau de tratamento intensivo, e da época da coleta das casuísticas, a anencefalia é uma condição letal e normalmente nenhum neonato sobrevive além dos três dias (6). PROBLEMAS CORRELATOS AO RECÉM-NASCIDO ANECEFÁLICO E À DOAÇÃO DE ÓRGÃOS O CNB em outro documento já enfrentou os complexos problemas bioéticos que surgem com relação aos transplantes infantis (cfr. Trapianti di Organi nell' infanzia, aprovado aos 21 de Janeiro de 1994). Já foi levantado que a necessidade de pequenos órgãos para fins de transplante é muito superior a oferta. A maior parte dos pacientes na lista de espera de transplante morre antes que seja encontrado um doador (30). Os órgãos em idade infantil são necessários para os transplantes em pequenos pacientes (síndrome da parte esquerda do coração hipoplásico, atresia biliar), e eles são de grande interesse também pelas características de sobrevivência e de possibilidade de crescimento de seu potencial funcional. Avanços promissores se apresentam, também, para o uso destes pequenos órgãos em sede heterotópica, com função auxiliar e não substitutiva, permanente ou transitória (30). Para o fururo levanta-se a hipótese de se usar linhas celulares no lugar de órgãos completos para tratamento de neoplasias do sistema hematopoiético, de déficit enzimáticos, imunológicos e endócrinos. Não obstante os múltiplos aspectos e resultados encorajadores, o tema dos transplantes infantis é ainda objeto de discussão crítica, seja por suas indicações, seja por suas técnicas e resultados, independentemente portanto dos aspectos éticos (27,31,32,33). Nesta avaliação se deve também levar em conta que se trata de uma cirurgia de elevadíssimo nível técnico organizativo que muito dificilmente estará a disposição de um número elevado de pacientes. (Para uma revisão da matéria da retirada de órgãos de doador anencefálico veja (34) ). Bastante controvertido é o papel que a eventual disponibilidade de órgãos de fetos anencefálicos poderia assumir para satisfazer as exigências de pequenos pacientes que necessitem de transplantes. Mesmo partindo de considerações numéricas análogas autores diferentes chegam a conclusões completamente opostas sobre o número de fetos disponíveis teoricamente nos EUA a cada ano: De 1800 fetos vivos (35) a 400 disponíveis para o transplante até a poucas unidades de transplantes realmente viáveis (27,89). A diferença de avaliação baseia-se sobre a diferente consideração do número dos prematuros, das malformações associadas, das dificuldades para se encontrar um receptor adequado, da sobrevivência a longo prazo e de muitos outros fatores. Para uma extensa análise desses dados veja (8). Mesmo que essa controvérsia não seja de particular relevância ética, todavia, é importante observar como a potencialidade do uso de fetos anencefálicos tenha sido avaliada de maneiras muito diferentes: de único recurso para uma situação de grande necessidade de órgãos à medida de efeito não relevante sobre o problema das graves malformações infantis, em grau de resolver somente pouquíssimas situações particulares. O problema do tratamento do recém-nascido anencefálico Prescindindo da possibilidade de utilizar os órgãos de reecém-nascidos anencefálicos para fins de transplante, o problema médico fundamental é aquele de estabelecer qual tratamento deve ser aplicado depois do nascimento, uma vez estabelecido o diagnóstico e confirmado que não existe a possibilidade de sobrevivência a longo prazo. A disponibilidade de recursos de terapia intensiva para sustentar as funções vitais levanta a pergunta se tais recursos devam ser utilizados. Geralmente existe concordância que nesses casos devem ser usados somente os meios ordinários de tratamento, levando em consideração que nenhum tratamento, por mais agressivo que seja, hoje em dia, pode modificar o decurso da doença que é sempre fatal e que tem como causa justamente a ausência daquelas estruturas que o tratamento intensivo deveria momentaneamente substituir (37,38, 39). Tais estruturas não têm nenhuma possibilidade de recuperação e estaríamos, portanto, num caso de isistência terapêutica sem nenhuma finalidade e possibilidade benéfica e, portanto sem razão de ser. O sujeito anencefálico e a possibilidade da doação de órgãos Enfrentando, ao invés, os problemas relativos ao anencefálico como possível doador, podemos evidenciar numerosas questões e três diferentes posições conceituais, no que diz respeito ao recém-nascido anencefálico. Ponto de partida comum é que a técnica dos transplantes pode aliviar os sofrimentos e permitir a sobrevivência de um grande número de doentes e que todo esforço deve ser envidado para prover a necessidade de órgãos. As diferenças de posições evidenciam-se no momento de estabelecer os limites éticos pelos quais este esforço deve ser delimitado. Uma primeira consideração é que a retirada dos órgãos complexos (fígado, rim e principalmente o coração), deva ser realizada em condições de relativa compensação hemodinâmica, ou seja, num momento em que o coração ainda pulsa de maneira válida e em grau de assegurar aos órgãos interessados uma perfusão suficiente. Em outras palavras, esperar a morte do anencefálico segundo os critérios cardiorespiratórios e só depois dela retirar os órgãos não é compatível com a preservação das funções destes mesmos órgãos, que já não seriam mais aptos para serem transplantados. É problema análogo ao apresentado pelo doador adulto, para o qual foi aprofundado o problema da morte cerebral. Em vários países, ocorreu uma diferente tradução legislativa mesmo se em geral quase todas as legislações respeitam o princípio da necessidade da completa e definitiva suspensão das funções de todo o encéfalo. A verificação deste estado é realizada de maneiras diferentes, mesmo se com a única finalidade de demonstrar a presença da mesma condição. No caso do recém-nascido anencefálico a demonstração da morte cerebral apresenta grandes dificuldades ligadas ao conhecimento ainda imperfeito da neurofisiologia neonatal em sentido geral e também à própria condição de malformação do sujeito (37). O exame do EEG é impossível pela própria ausência anatômica das estruturas que dão origem aos potenciais elétricos (córtex). Além disto a presença de ondas EEG no recémnascido e na criança não exclui o diagnóstico de morte cerebral (40). A medição do fluxo cerebral embora difícil não é significativa por causa das graves mal formações vasculares cerebrais. Da mesma forma a demonstração de fluxo cerebral não exclui na infância o diagnóstico de morte cerebral (41). Os reflexos do tronco são variáveis por causa das malformações a cargo de numerosos nervos cranianos. O exame clínico que visa verificar o comprometimento do tronco encefálico é, portanto de duvidosa confiabilidade, seja pela dificuldade de evocar os reflexos do tronco, seja de interpretar as respostas obtidas. Junto com isto apareceu um aspecto ainda mais fundamental na fisiopatologia do sistema nervoso central em idade neonatal. Um forte debate está surgindo sobre as potencialidades do encéfalo em idade neonatal. Uma grande capacidade de adaptação, mesmo em condições patológicas graves, é reconhecida nos primeiros dias de vida, nos quais particularmente ativos e válidos parecem os fenômenos de neuroplasticidade (42,43). Ampla bibliografia em (8). O encéfalo do recém-nascido parece hoje comparável cada vez menos a um cérebro adulto em miniatura, principalmente pelas funções da consciência e do contato com o ambiente, e cada vez mais comparável a um órgão em formação com potencialidades variáveis (8). A perda ou a falta de uma parte do cérebro durante a fase de desenvolvimento não é comparável à perda da mesma parte depois que o desenvolvimento tenha se acabado completamente. (8) Essas considerações têm particular relevo na avaliação das capacidades do anencéfalo. Não se trata, obviamente, da possibilidade por parte do tronco de suprir as funções do córtex faltante, mas de admitir que a neuroplasticidade do tronco poderia ser suficiente para garantir ao anencefálico, pelo menos, nas formas menos graves, uma certa primitiva possibilidade de consciência. Deveria, portanto, ser rejeitado o argumento que o anencefálico enquanto privado dos hemisférios cerebrais não está em condições, por definição, de ter consciência e provar sofrimentos (8,44) Para superar as dificuldades legislativas atualmente presentes, evidenciaram-se três diferentes classificações do problema do anencefálico: a) Classificar a parte os sujeitos anencefálicos A primeira posição põe em evidência o fato de que o anencefálico tem a particularidade de não possuir o córtex cerebral, de não ser dotado das estruturas anatômicas próprias que presidem as funções superiores. Tais funções são consideradas, por alguns, características da humanidade e esta grave mal formação significaria para o anencéfalo um status particular (31); Não teria sentido portanto, falar de “morte cerebral” mas dever-se-ia falar de “ ausência cerebral”. Ou seja, uma condição totalmente peculiar, segundo as intenções de quem a propõe, a qual deveria obter um reconhecimento legislativo apropriado. O anencefálico não é, portanto, um sujeito “brain dead” mas um caso particular de morte cerebral denominado “brain absence” (45, 46, 47, 90). Um indivíduo nestas condições incapaz de pensamento e de sensibilidade não tem interesse algum a defender e, portanto não é titular de direitos e não precisa das tutelas aplicadas a qualquer outro sujeito (48) Tal posição se presta a numerosas críticas, seja do ponto de vista médico como do ponto de vista moral. Ela é oriunda de um evidente intuito utilitaristico (3). Antes de mais nada vimos que a mal formação não é um fenômeno definido, mas um “ continuum” de gravidade para o qual se deveria por limites convencionais. Isto criaria, com certeza, dificuldade de diagnóstico e possibilidade de erro (49, 52, 89), muito embora a possibilidade de erro não seja de per si um elemento suficiente para proibir uma determinada prática médica. Uma segunda objeção diz respeito à possibilidade de sofrimento, que não pode ser excluída baseada nas considerações neurofisiológicas às quais acenamos e baseada nos atuais conhecimentos (44,53). A objeção de fundo, todavia, é que esses sujeitos são utilizados sem que para eles advenha um bem, aliás, com possível prejuízo, tendo como finalidade um benefício para outrem. Eles não têm condição de expressar um consentimento de alguma maneira e sua condição não é diferente daquela de muitos outros doentes em graves condições. A posição apresentada permitiria separar a condição de alguns sujeitos particulares com a finalidade de torná-los doadores de órgãos baseado na avaliação de sua qualidade de vida. Está ausente um equilíbrio entre vantagem para um sujeito e desvantagem para o mesmo e para os outros, só existe um desequilíbrio entre desvantagem para um indivíduo e vantagem para o outro(36). Aceitar esta posição significaria, além do mais, criar uma área de incerteza para a qual poderiam entrar numerosas outras condições, entre elas o estado vegetativo permanente (46). Este argumento, ou seja, a criação de um “slippery slope”, um declive escorregadio capaz de levar muito mais além das intenções originárias, é salientado por numerosos autores (3,31,36,48,51). Existe, ao contrário, a necessidade de definir o fenômeno da morte, através de uma série de regras válidas em todos os casos, que não permitam exceções para condições patológicas particulares. Também para a aceitação da doação de órgãos por parte dos cidadãos, uma política de clareza e essencialidade das regras é considerada por muitos autores mais promissora (27). A definição de morte deve permanecer distinta da necessidade do transplante, mesmo se as necessidades e possibilidades dos transplantes devem constituir um estímulo para o aprofundamento científico e clínico. A opinião pública deve ter a certeza de que a morte é verificada com critérios objetivos e não equívocos e que tais critérios não são modificados pela necessidade ou desnecessidade de encontrar órgãos para o transplante. É este um direito fundamental de cada um, antes ainda de ser um fundamento para uma sábia política do transplante. b) Rever o atual conceito de morte cerebral, introduzindo outros critérios de julgamento. Uma segunda posição, mais radical e extensiva do que a anterior, é aquela que propõe o abandono do critério de morte de todo encéfalo, considerando suficiente a morte do córtex cerebral (54,55). Nesta definição de morte se dá, portanto a máxima importância para a ausência da autoconsciência e da possibilidade de relacionamento, típica do homem e menor importância às funções vegetativas, que não são consideradas características da humanidade (27, 35, 56, 57, 58, 60, 61). Tratar-se-ia, portanto, de redefinir a morte cerebral trocando a necessidade da completa e definitiva suspensão das funções de todo o encéfalo com a suficiência da morte só do córtex cerebral e isto para todos os casos e não somente para o anencefálico. Sobre este problema, na realidade, o Comitê Nacional para a Bioética já expressou o próprio parecer, sustentando que “não se pode aprovar esta opinião (ou seja, definição de morte cortical) porque permanecendo íntegros os centros do paleoencéfalo (tronco), permanecem ativas as capacidades de regulação (central) homeoestáticas do organismo e a capacidade de realizar de modo integrado as funções vitais incluindo a respiração autônoma “. No caso particular do anencefálico a liceidade da retirada de órgãos é também justificada pela brevíssima expectativa de vida desses sujeitos (27). Segundo alguns autores a inevitabilidade da piora das condições clínicas do sujeito anencefálico e a iminência da morte justificaria a retirada dos órgãos “ ante-mortem” (85,86) Esta posição atribui grande importância a integração neurológica das várias funções de maneira que mesmo com a presença da respiração e da circulação, mas com a ausência de uma integração superior, o sujeito é considerado falecido (62). Esta argumentação é sujeita a numerosas críticas e, neste caso, é muitíssimo válido o risco de estender o julgamento de morte a sujeitos que não tenham destruição anatômica mas a incapacidade funcional do córtex cerebral. Um problema imenso se abriria e deste problema o anencefálico constituiria só uma pequena parte. Arriscar-se-ia a autorização da retirada de órgãos de sujeitos viventes, baseada nas considerações relativas a sua integração neurológica e a sua expectativa de vida (pessoas próximas da morte) (27,89). Repare-se que, por absurdo, uma vez aceito o princípio de que é lícito interromper a vida de um indivíduo, mesmo se em particulares condições físicas, em prol de outrem, poderiam entrar nesta categoria numerosos sujeitos (pensemos nos condenados à pena capital), e, entre eles, até os mesmos sujeitos acometidos por doenças graves e na lista da espera de transplantes( 89). A primeira posição apresentada constitui, como é evidente, uma tentativa de tipo jurídico para aplicar somente ao anencefálico o critério de morte cerebral como morte (ausência) somente do córtex e evitando enfrentar os problemas que a extensão desse critério a todos sujeitos inevitavelmente causaria. A avaliação dos problemas relativos à declaração de morte na presença de atividade do tronco cerebral extrapola a finalidade deste documento. Somente uma observação: à avaliação científica da morte cortical (avaliação que mesmo pelo que diz respeito ao problema do anencefálico fornece elementos inequívocos), deve ser associada também uma avaliação de tipo antropológico. A morte verificada somente pela falta de atividade do córtex cerebral, seja no adulto ou no recém-nascido anencefálico, contradiz, pela presença da respiração espontânea e dos reflexos dos nervos cranianos, a própria idéia de morte como nos foi transmitida há milênios. Estes sujeitos não estão mortos, apesar de uma lei poder declará-los mortos, e não parecem mortos para qualquer pessoa que se aproxime do seu leito (36). Houve, talvez por provocação, quem perguntasse aos adeptos desta tese, se eles estariam prontos para enterrar estes indivíduos, baseando-se no fato de que os consideravam mortos (63). Seria provavelmente impossível aceitar esta posição por parte da humanidade senão a custo de um ceticismo generalizado sobre a avaliação da morte e sobre a inviolabilidade do sujeito humano vivente, muito embora sem esperança de vida, mesmo com a finalidade de se obter vantagem para outro indivíduo (46,64). Alguns autores (65) falaram também de iatrogenesis ética observando que, mesmo prescindindo do fato de que um raciocínio seja mais ou menos válido, caso ele seja sutil demais, com facilidade pode causar erros (87). O princípio moral não deve ser complexo ao ponto que somente poucas pessoas estejam em condições de entendê-lo. c) Utilizar os critérios atuais de morte cerebral. As dificuldades Uma terceira posição é aquela que considera a utilização de critérios de morte cerebral atualmente em vigor e de esperar, portanto, o acontecer da morte cerebral total, antes de proceder ao explante (66,67). Fica claro também que a hipotermia induzida antes da morte não pode ser aceita (44). Também esta atitude, todavia, que satisfaz os critérios de certeza e uniformidade da verificação da morte, não é isenta de críticas e dificuldades. As dificuldades nascem, geralmente, da verificação da morte cerebral na infância e na primeira semana de vida, porque, nesta idade, os conhecimentos da fisiologia do SNC são ainda incompletos, em particular no caso da malformação com anencefalia (68). As incertezas dizem respeito principalmente aos tempos de observação necessários para se ter a certeza da morte do encéfalo (tempos mais longos do que aqueles do adulto), e dizem respeito à maior dificuldade de avaliar os reflexos dos nervos cranianos. Tal dificuldade è, como falamos, maior ainda no anencefálico. Com relação a isto foi sugerido de avaliar como reflexo do tronco cerebral somente a presença da respiração espontânea, que de todas as atividades do tronco, è, com certeza, a mais importante, pelo menos enquanto necessária à vida (69,70,92). A ausência de respiração espontânea poderia ser elemento suficiente para avaliar, no neonato anencefálico a morte do tronco cerebral. Tal hipótese criaria uma espécie de sub-categoria constituída pelos anencefálicos, para os quais ficariam válidos critérios parcialmente diferentes daqueles requeridos para todos os outros casos. Esta consideração contrasta com as observações anteriormente relatadas, mesmo se parece justificada pela presença de uma mal formação que acarreta particulares dificuldades de diagnóstico. Com relação à técnica necessária para verificar a ausência da respiração espontânea, não existe ainda acordo entre os estudiosos. Esta posição, todavia, embora com alguma particularidade, se situa no mesmo quadro de conceitos das legislações em vigor (56, 88, 94). CONSIDERAÇÕES ÉTICAS Âmago das legislações vigentes sobre a disciplina dos transplantes de cadáver é a rigorosa verificação da assim chamada “dead donor rule”, ou seja, o preceito que prescreve que em todos os casos o doador deva estar morto com certeza antes da retirada do órgão. Esta regra, que a um primeiro exame pode parecer de óbvia banalidade, é na realidade colocada em discussão por numerosas propostas. Numa perspectiva estritamente utilitarista, por exemplo, poderia ser julgado lícito, para a consecução de um bem, neste caso a saúde ou a vida de uma outra pessoa,retirar um órgão de um doador sem o consentimento dele, caso ele não venha a sofrer por isto e nem sejam violados os seus interesses. É o caso do anencefálico cuja morte é considerada iminente e inevitável e que não é considerado capaz de algum contato com o ambiente e, portanto incapaz de experimentar algum tipo de sofrimento. O anencefálico por estes motivos não é considerado portador de interesses a serem defendidos e que possam, portanto ser violados. Juntamente com este caso podem ser propostos ou pensados numerosos outros casos (doentes terminais, doentes em estado vegetativo persistente, acometidos de demência grave, pacientes que expressem o desejo de morrer, etc) que bem explicitam o conceito do “slippery slope” declive escorregadio, relatado por vários autores. Como se pode constatar, as posições apresentadas são bem diferentes entre elas, mesmo considerando as perspectivas futuras, hoje previsíveis, e derivam da impostação cultural de matriz utilitarista, de um lado, e de âmbito personalista do outro. Fica claro antes de mais nada que a morte é um processo à parte e não pode existir uma morte para o transplante e uma morte em si. A definição da morte não pode ser qualquer coisa que nós queremos que seja, mas existe independentemente das nossas finalidades (3). A morte não pode ser definida em sentido utilitarista de maneira a tornar máximo o bem que dela poderia eventualmente derivar, em prol de outras pessoas (3,84). A verificação poderá acontecer com técnicas diferentes dependendo das circunstâncias e do tratamento que está sendo dado (70). Mas esta verificação deverá dar um resultado válido de per si e independentemente da possibilidade ao menos de uma doação de órgãos. A própria necessidade de transplantes deve estimular a pesquisa neste campo, mas não se colocar como fonte da definição da morte. Este princípio deve valer também para o anencefálico, mesmo se neste caso, se deverá lançar mão de meios de diagnóstico de aplicação possível e em condição de dar um resultado de certeza. Certamente se trata de um caso limite, mas não por isto estamos autorizados a estabelecer para estes sujeitos uma categoria particular, biológica ou jurídica quer ela seja. O anencefálico tem uma expectativa de vida variável, mas sem dúvida breve, mesmo com as dificuldades inerentes a este julgamento. A tudo isso se acrescenta que a malformação, da qual é portador, impede uma sua recuperação e parece hoje, e provavelmente isto o será para sempre, sem uma terapia válida. É uma situação, porém, que, por vários aspectos particulares, embora não para todos contemporaneamente, é comum a outras categorias de doente, embora com diferente intensidade. Considerem-se por exemplo os doentes incuráveis, para os quais já foi esgotada toda possibilidade terapêutica ou os doentes que perderam o uso das funções intelectuais ou o contato com o ambiente. Como não é considerado lícito abreviar a existência desses sujeitos, nem tampouco provocar a morte deles, por análogas razões não se pode propor que nos comportemos desse modo com relação ao recém-nascido anencefálico (37,71,72). Nem parece importante a duração da vida a ser sacrificada como se uma vida breve fosse mais sacrificável para vantagem de outrem com expectativa de vida mais longa; com relação a isto, existem pessoas que observaram que se os sujeitos anencefálicos não vivessem tão pouco hoje não estariam no centro deste debate (36). Numa perspectiva que considera a pessoa humana como tal, prescindindo, portanto, de seu estado de saúde e de desenvolvimento, como valor central de uma ética para as ciências biológicas, parece proponível somente a determinação de tornar disponível para a doação de órgãos somente o corpo daqueles sujeitos dos quais tenha sido verificada com certeza, a morte. Com relação ao recém-nascido anencefálico isto significa que, na situação atual dos conhecimentos, é provavelmente prematuro estabelecer critérios válidos e verificáveis para determinar a morte deles com critérios neurológicos (27, 73, 74, 75, 76, 77). Um suplemento de estudo se faz indispensável (68). A necessidade de uma moratória, no uso dos sujeitos anencefálicos como doadores de órgãos, foi sustentada por diferentes autores a partir do fato de que são incompletos os conhecimentos atuais sobre numerosos pontos, fonte de controvérsia bioética. O preceito de que uma boa ética nasce de bons pressupostos reais foi citado relembrando o quanto sejam ainda discutidos numerosos problemas teóricos e práticos no campo do tratamento dos sujeitos anencefálicos (3). Esta posição de espera parece naturalmente justificada pelo menos até o dia em que as diferentes posições sobre o problema não alcancem, baseado em novos elementos de julgamento, uma mais razoável possibilidade de acordo. Nesta altura, devemos sublinhar pelo menos uma contradição e um problema complexo. A contradição seria aquela das legislações que permitissem a interrupção da gravidez em caso de graves mal formações mesmo nas fases adiantadas da gestação e ao mesmo tempo impedissem a retirada de órgãos de tais sujeitos, uma vez que tivessem sido voluntariamente paridos. É uma contradição evidente já assinalada por parte de quem sustenta a posição da liceidade da retirada de órgãos do anencéfalo independentemente de exames neurológicos, (condição de brain absence), mas que pode ser facilmente lida também ao contrário, sustentando a ilicitude da interrupção da gravidez que priva da tutela da lei sujeitos que seriam de outra forma, amparados pela tutela legal. Embora as duas condições, antes e depois do nascimento, tenham diferentes significados biológico e jurídico, parece claro que as duas atitudes são bem dificilmente conciliáveis. Juntamente com isto vai a sugestão de encorajar a continuação da gravidez de fetos mal formados também na perspectiva altamente humanitária da eventual doação de órgãos depois de sua morte (78). O problema sucessivo diz respeito à realização concreta da retirada de órgãos de doador anencefálico. No que diz respeito ao problema da verificação da morte cerebral do anencefálico para fins de transplante, viu-se que esses sujeitos não têm lesões neurológicas evolutivas e que o comprometimento neurológico não aparece entre as causas de morte mais importantes. Em outros termos o feto anencefálico embora portador de um mal formação neurológica gravíssima não manifesta tendência à evolução da mesma, e é improvável que possa encontrar-se em breve numa situação de morte cerebral, visto que a morte acontece na maioria dos casos por causas respiratórias (3,79). Isto significa que para tornar disponíveis os órgãos para o transplante (e isto pode acontecer somente se foi mantida uma boa perfusão, portanto uma boa funcionalidade cardio-respiratória até o momento da retirada) o feto anencefálico deve ser submetido a tratamento de terapia intensiva até o momento em que se verifique a morte cerebral. Pressupostos do tratamento são que a morte cerebral seja iminente nestas condições, que ela possa ser diagnosticada com certeza comparável à de outros potenciais doadores e que o tratamento prestado, no exclusivo interesse de uma terceira pessoa e não do recémnascido, sejam eticamente válidos (27). O problema consiste justamente nesta situação: encontramo-nos frente ao prolongamento artificial da vida por meios excepcionais, numa condição que não apresenta possibilidade alguma de recuperação, por motivos até anatômicos, e isto com a finalidade de preservar os órgãos para um sucessivo transplante. Descrito nestes termos aparece evidente o risco da insistência terapêutica no sentido mais pleno e do uso do feto anencefálico somente como meio coloczdo a serviço de um benefício alheio. Na avaliação ética dessa perspectiva devem, todavia, ser levados em conta também outros aspectos. Em primeiro lugar uma prática análoga é realizada também em outros casos: -no período de observação no doador adulto (80). Como a morte remonta ao início do período de observação, não se trata evidentemente de uma insistência terapêutica sobre um sujeito vivo, mas de um particular procedimento ao qual é submetido o sujeito já falecido com a finalidade de preservar seus órgãos, mesmo se este julgamento pode ser expressado somente a posteriori, quando os pressupostos da morte cerebral tenham sido verificados. No anencéfalo o tratamento intensivo pelo contrário, inicia já no momento do nascimento ou no início da insuficiência respiratória, na espera da verificabilidade da morte cerebral, antes, portanto, do momento da morte, mesmo retrospectivamente avaliado. -no caso de mulheres grávidas com morte cerebral, com a finalidade de permitir ao feto de alcançar uma idade gestacional que lhe permita a sobrevivência (81). Também neste caso específico não se pode falar de “Insistência terapêutica” porque o tratamento é evidentemente dirigido para a sobrevivência do feto e não para a sobrevivência da mãe, já falecida. -no caso de recém-nascidos em graves condições, nas quais não há possibilidade de recuperação, com a finalidade simplesmente humana de permitir aos pais, que estão viajando, de alcançarem os filhos (37). O uso de terapias extraordinárias com a finalidade de preservar os órgãos do recém-nascido anencefálico è considerado como caso de uso não rotineiro da terapia intensiva, em caso de morte inevitável e iminente de um paciente permanentemente privado de consciência. Seguramente deve-se estabelecer um limite à terapia intensiva, ultrapassado o qual, esta terapia deve ser interrompida, e, por outro lado, sobrevém as condições que as normas vigentes fazem coincidir com a morte assim chamada cerebral (para o sentido exato a ser dado a essa expressão remetemos ao Glossário colocado em apêndice a este documento). É evidente que a excepcionalidade da condição do sujeito anencefálico não isenta o médico da obrigação de prestar a sua assistência de reanimação favorecida pelas condições cardiocirculatórias e respiratórias normalmente satisfatórias.Esta obrigação assistencial se concilia plenamente com a eventual possibilidade de doação de órgãos, que é tornada viável justamente graças a este suporte terapêutico, da mesma forma como acontece com o menor e com o adulto que se encontrem na condição de poder doar órgãos para fins de transplante. Nestes casos, deveriam ser respeitados uma série de elementos já analisados pelo CNB no citado documento sobre os transplantes infantis, como em particular a validade do transplante proposto, a seriedade da equipe e em particular o consentimento dos pais. Este é um aspecto debatido e chamado em causa par sustentar as mais disparatadas posições. Com certeza os pais que se encontrem em tal situação, seja que para eles se conceda a faculdade de interromper a gravidez, seja que isto não seja possível, estão no centro de tensões e dificuldades gravíssimas. O fato de saber que uma tragédia pessoal oferece a possibilidade de aliviar o sofrimento de outros doentes, pode contribuir para dar um sentido a um acontecimento que por muitos aspectos pode ser gravemente traumático. Nesse sentido tornar, através de uma prática eticamente correta, disponíveis os órgãos para o transplante, é certamente uma grande ajuda também para os pais, que vislumbram assim uma saída, embora mínima, para o seu compromisso e o seu sofrimento; por este motivo a sua participação e o seu consentimento para todos os procedimentos propostos adquire uma importância determinante. Em alguns casos, foram os mesmos pais que pediram com insistência a possibilidade de um transplante e foi também pensada a possibilidade de pressões por parte dos pais (27,44). Com relação às dificuldades que o diagnóstico de anencefalia pode criar não somente para os pais mas também para o médico que ocasionalmente entre em contacto com eles, consulte (82). Tais dificuldades justificam uma adequada intervenção de caráter psicológico que, geralmente é prestada em centros especializados, mas que seria de grande valia bioética institucionalizar definitivamente. O Council on Ethical and Judicial Affairs da American Medical Association recentemente modificou sua posição com relação ao problema dos recém-nascidos anencefálicos como doadores de órgãos (99). São relatados sumariamente os elementos de julgamento que modificaram a posição anterior, de 1988, na qual a retirada de órgãos do doador anencefálico tinha sido considerada aceitável só depois da morte do próprio doador, verificada com critérios cardio-circulatórios e respiratórios e neurológicos (100): Anencefalia: embora o aspecto externo do anencefálico (funcionalidade dos órgãos viscerais, reflexo de sucção, de afastamento dos estímulos doloríficos, movimentos dos olhos e dos membros, emissão de sons, expressões do rosto) possam dar a impressão de um certo grau de consciência, na realidade não existe nenhuma. Pais: o transplante de anencefálico traz benefícios não só ao receptor mas também aos pais, que vislumbram uma justificação, embora parcial, para a experiência vivida. Resposta às objeções mais comuns no que diz respeito a retirada de órgãos de anencéfalo: a) É infringida a regra do “dead donor rule”, que veta a retirada de órgãos vitais de sujeitos vivos. O anencefálico enquanto não teve não tem e nem terá consciência, não tem algum interesse em defender a vida. Se a existência é abreviada não fica nenhuma marca consciente e não se tem melhora ou piora do seu status dependendo da duração da vida. A exceção à regra não põe em alerta a coletividade ou os outros potenciais doadores: com efeito, eles não podem sentir-se ameaçados por tal decisão, porquanto nunca se encontrarão na situação do anencefálico. Esta decisão não altera o respeito pela vida e as considerações do seu valor. Como o anencefálico não tem nenhum interesse em ver preservada a sua existência é aceita a possibilidade dos pais pedirem a interrupção do tratamento sem que isto reduza o respeito pela vida. b) problemas relativos à precisão do diagnóstico O documento confirma que o diagnóstico errado de anencefalia é possível principalmente se o diagnóstico não é realizado em estruturas especializadas ou por uma pessoa especificamente capacitada. Propõe-se de superar tais problemas: -Aplicando os critérios de diagnóstico para anencefalia (101). Tais critérios são: - ausência de uma larga porção óssea da calota craniana; - ausência do escalpo acima do defeito ósseo; - presença de tecido fibro-hemorrágico exposto por causa do defeito craniano; - ausência de hemisférios cerebrais que podem ser reconhecíveis; - chamando para confirmar o diagnóstico duas pessoas com particular competência neste campo, não ligados à equipe do centro de transplante. No caso da não certeza do diagnóstico, a retirada dos órgãos seja proibida. c) Argumentações relativas ao slippery slope argument (argumento do declive escorregadio) (a decisão abriria as portas a futuros abusos em detrimento de outras categorias de doentes). A exceção á regra não poderia prejudicar outras categorias (doentes em estado vegetativo persistente, grave dano neurológico, idosos com demência). Deve-se demonstrar que tais perigos existem não somente ter medo da possibilidade. Este risco não é real porque os recém-nascidos anencefálicos são uma categoria totalmente particular, sem história de consciência e nenhuma possibilidade de adquiri-la e isto diferentemente de todas as outras categorias lembradas. d) Número de transplantes realizáveis Muitas críticas evidenciaram que a retirada do doador anencefálico influiria de maneira limitadíssima sobre o problema dos transplantes infantis. Na realidade as técnicas de transplantes evoluem, permitindo o uso de órgãos em condições diferentes com relação ao passado e além disto cada doador poderia fornecer quatro órgãos vitais (dois rins, coração e fígado). Ainda que existissem somente 20 doadores por ano, (nos EUA), como alguns previram, tratar-se-ia sempre de uma vantagem em termos de possibilidade de sobrevivência para outras tantas crianças. São estas, no momento, as problemáticas que exigem um atento debate com a finalidade de formular um julgamento sobre a liceidade de retirada de órgãos de doador anencefálico. Portanto, as argumentações do Council on Ethical and Judicial Affairs da American Medical Association aparecem como a tentativa - não aceitável - de justificar a declaração de morte para pessoas ainda viventes com o fim de favorecer a retirada e o sucessivo transplante. O anencefálico é uma pessoa vivente e a reduzida expectativa de vida não limita os seus direitos e a sua dignidade. A supressão de um ser vivente não é justificável mesmo quando proposta para salvar outros seres de uma morte certa. 1) KANTROWITZ ª, HALLER J.D., HOOS H. et al., transplantation of the heart in an infant and in an adult, Am. J. Cardiol., 22:782-790, 1968 2) CAPLAN A.L., Ethical issues in the use of anencephalic infants as a source of organs and tissues for transplantation, Transpl. Proc., vol. XX, n. 4 (Suppl.5), 42-49, 1988 3) FOST N., Organs from anencephalic infants: an idea whose time has not yet come, Hasting Center Rep.,October/November, 5-10, 1988 4) LEMIRE R.J., BECKWITH J.B.,WAR KANY J., Anencephaly, Raven Press, New York, 1978. 5) CHAURASIA B.D, Calvarial defect in human anencephaly, Teratology, 29, 165-172, 1984. 6) MCGILLIVRAY B.C., Anencephaly: the potential for survival, Transpl. Proc., Vol. XX n.4(Suppl. 5).aug., 12-16,1988 7) BRACKBILL Y., The role of the cortex in orienting: Clonagem Humana e Ética Dom Demétrio Valentini Bispo de Jales-SP Já a primeira clonagem bem sucedida, da ovelha Doly, mostrou a importância de critérios éticos para colocar a ciência a serviço da vida e da dignidade humana. O avanço da biogenética urge que seja acompanhado por avanços da bioética. É salutar constatar como a humanidade estremece quando se mexe com a vida humana, e desperta para a urgência de agir com responsabilidade. Todos foram unânimes em advertir que era preciso ter cuidados redobrados para a aplicação dos avanços da genética em organismos humanos. A idéia da produção de clones humanos, que trariam as mesmas características genéticas do organismo de onde seriam derivados, foi rejeitada com veemência. Agora, o “The Journal of Regenerative Medicine” anuncia que um laboratório particular dos Estados Unidos conseguiu produzir, por clonagem, um embrião humano, com a alegada finalidade de extrair dele células estaminais, que poderiam ser utilizadas com fins medicinais para cura de doenças. Portanto, o embrião seria destruído, e serviria de matéria para fornecimento de células para serem usadas em outros organismos humanos. Mesmo que assim se evite a monstruosidade da produção de organismos humanos a partir da manipulação genética, o experimento implica em outra conseqüência que fere frontalmente os critérios éticos que precisam presidir toda ação que interfere na vida humana. Pois provoca a constituição de um embrião humano, para em seguida destruí-lo. Aí reside o fato gerador do impasse ético que incide sobre o projeto anunciado pelo referido laboratório. Cria-se um embrião, que já é vida humana, com todas as potencialidades de desenvolvimento inerentes a este estágio inicial da vida humana, e em seguida se destrói este embrião. Isto é, se destrói a vida humana. Mesmo alegando que sua destruição é para servir a outros organismos, esta alegação é insustentável do ponto de vista ético. Pois aceitá-la seria abrir caminho para a arbitrariedade, além de ignorar o valor único e irrepetível de qualquer organismo humano. Pois não somos só organismos fisiológicos. Cada organismo humano é constituído em pessoa, sujeito inalievável de direito à existência, e nunca instrumento manipulável para servir a outros organismos. Ignorar isto é desconhecer o diferencial que nos distingue como humanos e como pessoas possuidoras de dignidade e de valor único e absoluto. Não somos ovelhas, que podem ser clonadas, e usadas para a melhoria genética de raças que possam servir melhor à ciência e a economia. Somos pessoas, esta a nossa responsabilidade, e este o fato que precisa servir de referência fundamental para guiar toda ação que interfere na vida humana. Diante da evidente força deste princípio, a discussão sobre o recente experimento se situa em torno do momento em que o embrião se constitui em vida humana. A convicção da Igreja, amparada na genética moderna, é que desde o primeiro instante de sua constituição o embrião é vida humana, pois nele já estão presentes todas as potencialidades que irão determinar sua existência, como pessoa, como indivíduo com suas características bem determinadas. Destruir um embrião, mesmo em seus primeiros momentos de existência, é destruir uma vida humana já constituída. Por isto, fica evidente a repulsa diante do anúncio do laboratório. Não é correto destruir vidas humanas, mesmo alegando que é para curar doenças que afligem a humanidade. O respeito incondicional pela vida humana é o caminho certo, e mais seguro, para colocar os recursos disponíveis, também os científicos, a serviço de todas as pessoas humanas. “A Ética da Investigação Biomédica para uma Visão Cristã” PONTIFÍCIA ACADEMIA PARA A VIDA COMUNICADO FINAL DA IX ASSEMBLEIA GERAL 1. Durante os dias 24-26 do passado mês de Fevereiro, teve lugar no Vaticano a IX Assembléia Geral da Pontifícia Academia para a Vida, que neste ano foi subordinada a um tema de grandes atualidade e impacto social: "A ética da investigação biomédica. Para uma visão cristã". É evidente que, de maneira particular nas últimas décadas, o caminho da biomedicina conheceu um desenvolvimento extraordinário, ajudado também pelo grandioso progresso da tecnologia e da informática, que ampliaram enormemente as possibilidades de intervenção sobre os seres vivos e, de modo especial, sobre o homem. Por exemplo, foram alcançadas grandes conquistas no campo da genética, da biologia molecular e também no sector da transplantologia e das neurociências. Entre os fatores determinantes deste desenvolvimento, sem dúvida a investigação biomédica constitui, hoje mais do que nunca, um instrumento privilegiado para fazer progredir os conhecimentos neste sector da medicina, como o próprio Papa realçou nos últimos dias: "Todos reconhecem que os progressos da medicina na cura das doenças dependem prioritariamente dos progressos da investigação" (João Paulo II, Discurso aos participantes na IX Assembléia Geral da Pontifícia Academia para a Vida , n. 2). 2. Cada uma das novas descobertas no campo da biomedicina, no contexto atual, já parece ser destinada a produzir efeitos "em série", abrindo múltiplos horizontes novos, em ordem à possibilidade de diagnósticos e de terapias para muitas patologias ainda hoje incuráveis. Obviamente, a conquista de uma crescente possibilidade técnica de intervenção sobre o homem, sobre os outros seres vivos e sobre o meio ambiente, alcançando além disso efeitos cada vez mais marcantes e duradouros, exige da parte dos cientistas e de toda a ciência, a assunção de uma maior responsabilidade, em proporção do maior poder de intervenção. Daqui deriva que as ciências experimentais e, por conseguinte, também a biomedicina, enquanto "instrumento" nas mãos do homem, não são suficientes por si mesmas, mas têm necessidade de ser orientadas para determinadas finalidades e confrontadas com o mundo dos valores. 3. O protagonista deste contínuo processo de "orientação ética" é, inequivocadamente, o homem. Como uma unidade inseparável de corpo e alma, o ser humano caracteriza-se pela sua capacidade de escolher livremente e de modo responsável a finalidade das suas ações e os instrumentos para a alcançar. O seu anseio em relação à investigação da verdade, que pertence à sua própria natureza e à sua vocação particular, encontra uma ajuda indispensável na própria Verdade, que é Deus que vem ao encontro do homem, revelando-lhe o seu Rosto através da criação e, de maneira mais direta, mediante a Revelação; desta forma, Ele secunda e sustém os esforços da razão humana, permitindo-lhe reconhecer as inúmeras "sementes de verdade" presentes na realidade e, finalmente, entrar em comunhão com a própria Verdade, que é Ele mesmo. Por conseguinte, em linha de princípio, não subsistem limites éticos para o conhecimento da verdade, ou seja, não existe qualquer "barreira" para além da qual o homem jamais deveria ir mais além no seu esforço cognoscitivo: com sabedoria, o Santo Padre definiu o homem como "aquele que procura a verdade" (João Paulo II, Carta Encíclica Fides et ratio, 28); contudo, existem limites éticos específicos para o modo de agir do homem, que procura esta verdade, porque "tudo aquilo que é tecnicamente possível não é, por este mesmo motivo, moralmente admissível" (Congregação para a Doutrina da Fé, Donum vitae, 4). Por conseguinte, é a dimensão ética do homem, que ele realiza através dos juízos da consciência moral, que dá uma conotação existencial à sua vida. 4. No compromisso em ordem a procurar e a reconhecer a verdade objetiva em cada criatura, um papel de particular relevo é reservado aos cientistas da área médica, que são chamados a trabalhar pelo bem-estar e a saúde dos seres humanos; por conseguinte, cada atividade de investigação realizada neste campo deve ter sempre como finalidade última o bem integral do homem e, nos instrumentos utilizados, deve respeitar plenamente em cada um dos indivíduos a sua dignidade inalienável de pessoa, o direito à vida e a integridade física substancial. Contra toda a falsa acusação ou mal-entendido, queremos afirmar de novo, em comunhão com o Papa, que: "A Igreja respeita e apóia a investigação científica, quando procura uma orientação autenticamente humanista, evitando qualquer forma de instrumentalização ou destruição do ser humano e mantendo-se livre da escravidão dos interesses políticos e econômicos" ( João Paulo II, Discurso..., op. cit., n. 4). Nesta perspectiva, é necessário manifestar a maior gratidão aos milhares de médicos e investigadores do mundo inteiro que, de forma generosa e com grande profissionalidade, se dedicam todos os dias com as suas próprias forças ao serviço das pessoas que sofrem e à cura das patologias. Além disso, o Papa recordou ainda que: "Todos nós, crentes e não-crentes, devemos prestar homenagem e expressar o nosso apoio sincero a este esforço da investigação biomédica, orientado não apenas a fazer-nos conhecer melhor as maravilhas do corpo humano, mas também a favorecer um digno nível de saúde e de vida para as populações de todo o planeta" ( Ibidem, n. 2). 5. Portanto, pelos motivos já recordados, é com razão que se pode e se deve falar de uma "ética da investigação biomédica" que, efetivamente, se desenvolveu e se afirmou cada vez mais nos últimos trinta anos. Para este desenvolvimento, também a reflexão cristã soube dar a sua importante contribuição, fazendo sobressair algumas novas problemáticas, à luz da sua visão antropológica original. Historicamente, podem ser citados pelo menos dois temas, como exemplo da atenção ética da comunidade cristã pelo mundo da investigação biomédica: a exortação ao respeito pela pessoa, quando ela se torna objeto de investigação, de maneira especial no caso da experimentação não diretamente terapêutica; o realce da estreita relação existente entre ciência, sociedade e indivíduo, que se realiza em todo o processo da investigação. 6. Por conseguinte, na elaboração de um itinerário de investigação biomédica, que seja respeitador do verdadeiro bem da pessoa, é necessário fazer convergir em sinergia as várias disciplinas envolvidas com uma metodologia integrativa, que justifique a complexa unidade constitutiva do ser humano. Para esta finalidade, torna-se apropriada a proposta do chamado "método triangular"; ele divide-se em três momentos: a exposição dos dados biomédicos; o aprofundamento do significado antropológico e o reconhecimento dos valores em questão, que este fato comporta; e a elaboração das normas éticas que possam orientar o comportamento dos agentes, na situação específica, segundo os significados e os valores anteriormente realçados. 7. Outro tema de grande relevância, no âmbito da investigação biomédica é, sem dúvida, o da experimentação terapêutica e não terapêutica, considerada segundo a perspectiva da sua aplicação no homem. Ele envolve muitos aspectos e problemáticas, tanto de ordem científica como ética. Por exemplo, uma exigência imprescindível consiste em assegurar um alto nível de profissionalidade dos investigadores interessados do plano experimental, assim como em adotar uma metodologia que seja rigorosa na identificação e na aplicação dos critérios de procedimento. Além disso, é eticamente necessário que o cientista que orienta a experiência, juntamente com os seus colaboradores, mantenha uma independência pessoal e profissional integral, em relação aos eventuais interesses (econômicos, ideológicos, políticos, etc.), alheios à finalidade da investigação, ao bem dos sujeitos envolvidos e ao autêntico progresso da humanidade. 8. Além disso, deseja afirmar-se a necessidade de fazer preceder a fase clínica experimental (aplicação no homem) de uma adequada experiência realizada nos animais, que permita aos investigadores adquirir previamente todos os conhecimentos necessários acerca dos possíveis danos e riscos que esta experiência poderia comportar, com a finalidade de garantir a segurança dos sujeitos humanos interessados. Naturalmente, também a experiência nos animais deve ser levada a cabo na observância de normas éticas específicas que salvaguardem, na máxima medida possível, o bem-estar dos exemplares utilizados. 9. Em seguida, deve reservar-se uma atenção especial ao envolvimento nos protocolos de investigação, de sujeitos humanos considerados particularmente "vulneráveis", por causa das suas condições vitais, como mostra com clarividência o caso exemplar do embrião humano. Com efeito, pela delicadeza da sua fase de desenvolvimento, uma eventual experiência sobre ele comportaria, à luz das actuais possibilidades técnicas, riscos muito elevados e por isso, não eticamente aceitáveis de lhe causar danos irreversíveis ou mesmo a sua morte. É também totalmente inaceitável a motivação, por alguns apresentada, acerca da liceidade de sacrificar a integridade (física e genética) de um sujeito humano na fase embrionária, até à sua destruição, se for necessário, em ordem a alcançar benefícios para outros indivíduos humanos: nunca é moralmente lícito realizar um mal de maneira intencional, nem sequer para alcançar finalidades que, em si mesmas, são boas. De resto, é necessário ter presente o fato de que o indivíduo humano que se encontra na fase embrionária, embora merecendo o respeito devido a toda a pessoa humana, não é certamente um sujeito capaz de dar o seu consenso pessoal a intervenções que o expõem a grandes riscos, sem ter uma eficácia diretamente terapêutica para ele mesmo; por conseguinte, qualquer intervenção experimental feita no embrião humano, que não tenha a finalidade de obter benefícios diretos para a sua saúde, não pode ser considerada moralmente lícita. 10. O atual processo de globalização progressiva, que está a interessar todo o planeta, e cujas conseqüências nem sempre parecem ser positivas, leva-nos a considerar o tema da investigação biomédica também sob o ponto de vista das suas conseqüências sociais, políticas e econômicas. Com efeito, considerando o limite crescente dos recursos que se podem destinar ao desenvolvimento da investigação biomédica, é necessário prestar uma grande atenção à distribuição eqüitativa dos mesmos nos vários países, tendo em conta as condições de vida nas diversas regiões do mundo e a emergência das necessidades primárias nas populações mais pobres e provadas. Isto significa que a todos deveriam ser garantidas as condições e os instrumentos mínimos, tanto para poderem usufruir dos benefícios que derivam da própria investigação, como para poderem desenvolver e manter uma capacidade endogénica de investigação. 11. Depois, a nível legislativo, renovam-se os votos e a recomendação, a fim de que se chegue a uma norma internacional unificada nos conteúdos, que se fundamente nos valores inscritos na própria natureza da pessoa humana. Desta maneira, ultrapassar-seiam as atuais disparidades que, em muitos casos, tornam possíveis os abusos e a instrumentalização dos indivíduos e de populações inteiras. 12. Por fim, reconhecendo o enorme influxo que os massa media têm na formação da opinião pública e o importante papel que eles desempenham, suscitando expectativas e anseios mais ou menos fundamentados no grande público, torna-se cada vez mais necessário que os agentes deste sector, que escolhem ocupar-se da área biomédica e, de modo mais geral, da bioética, se formem cuidadosamente tanto no campo científico como ético, para serem capazes de comunicar, com uma linguagem simples e sintética, a realidade dos fatos, sem gerar confusão nem ambigüidades. 13. Para concluir, a Pontifícia Academia para a Vida deseja renovar, com grande entusiasmo e profundo sentido de responsabilidade, o seu próprio compromisso e a sua própria dedicação à causa da vida, em sincera e respeitadora colaboração com todos aqueles que trabalham no campo da investigação biomédica, como o próprio Papa indicou no seu discurso aos participantes na IX Assembléia Geral da Pontifícia Academia para a Vida: "Por conseguinte, no campo da investigação biomédica, a Pontifícia Academia para a Vida pode constituir um ponto de referência e de iluminação, não só para os investigadores católicos, mas também para quantos desejam trabalhar neste sector da biomedicina, para o verdadeiro bem de cada homem" ( Ibidem, n. 3). A sua tarefa principal continua a ser a de pôr à disposição da Igreja, da sociedade no seu conjunto e da comunidade científica em particular, o seu serviço "estatutário", de estudo, de formação e de informação, no esforço em ordem a reconhecer e a indicar à sociedade inteira os valores radicados na dignidade da pessoa humana e exigidos pela procura do verdadeiro bem de todos os homens e do homem todo, com a finalidade de tirar daqui as indicações éticas que possam orientar os agentes no seu compromisso quotidiano. Intervenção da Santa Sé na Segunda Sessão da Comissão Geral da ONU para a Preparação de uma Convenção Internaconal Sobre a Clonagem Humana “Reprodutuva”. 27 de Setembro de 2002 A posição da Santa Sé é bem conhecida. A Santa Sé apóia e promove a eliminação mundial e completa da clonagem de embriões humanos, que tenham finalidades tanto reprodutivas como científicas. Mesmo quando é realizada em nome do aperfeiçoamento da humanidade, a clonagem de embriões humanos ainda constitui uma afronta contra a dignidade da pessoa humana. A clonagem de embriões humanos objectiva a sexualidade do homem e modifica a vida humana. Como o Papa João Paulo II quis afirmar recentemente, "A vida humana não pode ser vista como um objecto de que se possa dispor arbitrariamente, mas como a realidade mais sagrada e inviolável que existe sobre a face da terra. Não pode haver paz, quando falta a salvaguarda deste bem fundamental... à [lista das injustiças do mundo] há que acrescentar as práticas irresponsáveis de engenharia genética, tais como a clonagem e o uso de embriões humanos para a investigação, procurando justificá-las com um apelo ilegítimo à liberdade, ao avanço da cultura, ao fomento do progresso humano. Quando os sujeitos mais frágeis e indefesos da sociedade sofrem tais atrocidades, a própria noção de família humana, assente nos valores da pessoa, da confiança e do respeito e auxílio recíprocos, acaba por ficar gravemente danificada. Uma civilização baseada sobre o amor e a paz deve opor-se a estas experimentações indignas do homem". Assente na condição biológica e antropológica do embrião humano e na lei moral e civil fundamental, é ilícito matar um ser inocente, mesmo que seja para o benefício da sociedade em geral. A Santa Sé considera inaceitável a distinção entre a clonagem "reprodutiva" e a chamada clonagem "terapêutica" (ou "experimental"). Esta distinção oculta a realidade da criação de um ser humano, com a finalidade de o destruir, em ordem a produzir linhas de células estaminais de embriões ou a realizar outras experiências. A clonagem de embriões humanos deve ser proibida em todos os casos, independentemente das finalidades que se têm em vista. A Santa Sé fomenta a investigação no campo das células estaminais de origem pós-natal, uma vez que esta abordagem - como tem sido demonstrado pela vasta maioria dos recentes estudos científicos realizados - constitui um modo sadio, promissor e ético de obter o transplante de tecidos e a terapia celular que poderão beneficiar a humanidade. Como Sua Santidade o Papa João Paulo II afirmou, "em todo o caso, será preciso evitar sempre os métodos [científicos] que não respeitam a dignidade e o valor da pessoa; penso de modo particular nas tentativas de clonagem humana, que visam a obtenção de órgãos de transplante: enquanto implicam a manipulação e a destruição de embriões humanos, tais técnicas não são moralmente aceitáveis, mesmo que tenham em vista um objectivo em si bom. A ciência deixa entrever outras vias de intervenção terapêutica, que não comportam a clonagem nem o uso de células embrionárias, bastando para essa finalidade a utilização de células estaminais extraídas de organismos adultos. É ao longo desta via que deverá progredir a investigação, se quiser ser respeitadora da dignidade de cada ser humano, mesmo na fase embrionária". A clonagem de embriões, levada a cabo em nome da investigação biomédica ou da produção de células embrionárias, contribui para debilitar a dignidade e a integridade da pessoa humana. Clonar um embrião humano e, intencionalmente, programar a sua destruição, institucionalizaria a destruição deliberada e sistemática da vida humana nascente, em nome do desconhecido "bem" da terapia potencial ou da descoberta científica. Esta perspectiva é repugnante para a maioria das pessoas, inclusive para aquelas que propriamente defendem o progresso da ciência e da medicina. Dado que a clonagem de embriões gera uma nova vida humana, orientada não para um futuro de florescimento humano, mas para um futuro destinado à servidão e à destruição certa, trata-se de um processo que não pode ser justificado com base na afirmação segundo a qual pode beneficiar outros seres humanos. A clonagem de embriões viola as normas fundamentais contidas na lei dos direitos do homem. "A partir de 1988, duas grandes divisões planetárias aprofundaram-se ainda mais: a primeira é o fenómeno cada vez mais trágico da pobreza e da discriminação social... e a outra, mais recente e condenada de maneira menos ampla, diz respeito à criança nascitura... como sujeito de experiências e de intervenções tecnológicas (através das técnicas de procriação artificial, do uso dos chamados "embriões supérfluos", da denominada "clonagem terapêutica", etc.). Aqui há o risco de uma nova forma de racismo, dado que o desenvolvimento destas técnicas poderia levar à criação de uma "sub-categoria de seres humanos", destinada basicamente para a conveniência de determinadas pessoas. E isto corresponderia a uma nova e terrível forma de escravidão. Infelizmente, não se pode negar que a tentação da eugenia ainda é latente, de maneira especial quando é explorada pelos poderosos interesses comerciais. Os governos e a comunidade científica devem permanecer vigilantes neste campo". Desde a fundação da Organização das Nações Unidas, a centralidade do bem-estar e a salvaguarda de todos os seres humanos nos seus trabalhos são inquestionáveis. Tanto a salvaguarda das gerações de seres humanos do presente e do futuro, como o progresso dos direitos fundamentais humanos são essenciais para os trabalhos da Organização das Nações Unidas. A Declaração Universal dos Direitos do Homem reitera a santidade de toda a vida humana e a urgente necessidade de a proteger contra os ataques. A este propósito, o Artigo 3 da mencionada Declaração afirma que todos têm o direito à vida. Com a vida, vem a esperança no futuro - uma esperança que a Declaração Universal dos Direitos do Homem protege, reconhecendo que todos os seres humanos são iguais em termos de dignidade e de direitos. Com o direito à vida, vêm a liberdade e a segurança da pessoa. Para garantir que assim seja, a referida Declaração Universal confirma que cada ser humano é uma entidade à qual se deve garantir um futuro repleto de esperança na autodeterminação. Para continuar a promover esta finalidade, as condições que degradam o ser humano, com condições servis, e a negação dos direitos fundamentais à vida e à autodeterminação, são repreensíveis e inaceitáveis. Independentemente do objetivo pelo qual é realizada, a clonagem de embriões humanos entra em conflito com as normas legais internacionais que salvaguardam a dignidade humana. A lei internacional garante o direito à vida para todos os seres humanos - e não apenas para alguns. Facilitar a formação de seres humanos destinados à destruição, o aniquilamento intencional dos seres humanos clonados uma vez que se alcança a finalidade de uma específica investigação relegando cada ser humano a uma existência de servidão involuntária ou de escravidão, e realizando experiências médicas e biológicas também involuntárias com seres humanos, é moralmente errado e inadmissível. A clonagem de embriões humanos apresenta também grandes ameaças à norma da lei, dando às pessoas responsáveis pela clonagem a possibilidade de selecionar e de propagar determinadas características humanas, assentes no gênero, na raça, etc., e de eliminar as outras. Isto corresponderia à prática da eugenia, que levaria à instituição de uma "super-raça" e à inevitável discriminação contra as pessoas que nascem através do processo natural. A clonagem de embriões nega inclusivamente aos sujeitos gerados para finalidades de investigação, os direitos internacionais ao seu devido processo e à proteção eqüitativa por parte da lei. Além disso, deve recordar-se que a administração do Estado e o desenvolvimento dos acordos regionais reconheceram que a clonagem de embriões humanos, levada a cabo para qualquer finalidade que seja, é contrária à norma da lei. Senhor Presidente, devemos recordar que todo o processo que inclui a clonagem humana é, por si só, um processo reprodutivo, porque gera um ser humano no próprio início do seu desenvolvimento, ou seja, um embrião humano. Obrigado, Senhor Presidente! Notas 1) Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 1 de Janeiro de 2001, n. 19. 2) Discurso no XVIII Congresso Internacional sobre a Sociedade dos Transplantes, 29 de Agosto de 2000, em: ed. port. de L'Osservatore Romano 2 de Setembro de 2000, pág. 9, n. 8. 3) Contribuição da Santa Sé na Conferência mundial contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e a relativa intolerância, realizada em Durban (África do Sul), de 31 de Agosto a 7 de Setembro de 2001, n. 21. Voltar Uso de células-tronco de embrião é debatido no Senado Entre a ansiedade de doentes e cientistas e as ponderações de religiosos, o Parlamento terá a responsabilidade de encontrar uma saída que preserve o direito à vida saudável e as implicações éticas dos tratamentos com base na mudança de genes. Esta a conclusão a que chegou nesta segunda-feira (7) o senador Tião Viana (PT-AC) durante debate realizado no programa Conexão Senado, da Rádio Senado, sobre o uso de células-tronco de embriões humanos no tratamento de doenças genéticas e degenerativas. - Temos de achar esse caminho do meio - afirmou Tião Viana que apresenta proposta para criação do Conselho Nacional de Bioética para as Ciências da Vida. Outra participante do debate, a diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), Mayana Zatz , é favorável ao uso das células de embriões não utilizados nos processos de fertilização artificiais. Ela argumenta que esses embriões serão em algum momento descartados e que as células-tronco dessa fonte têm mais chance de se diferenciar em todo o tipo de tecido humano, facilitando a regeneração. - Torço para que possamos encontrar em humanos adultos e em cordões umbilicais células tão eficientes, mas enquanto isso não é possível, seriam muito úteis os embriões a serem descartados - afirmou Mayana. Para o frei Antônio Moser , presidente da Editora Vozes, é preciso refletir mais sobre o tema, a fim de que o “mistério da vida” não seja violentado e que interesses comerciais não venham a prevalecer sobre o interesse da sociedade . Para Moser, a cura é um processo que vai além da correção de uma deficiência, mas que significa o encontro dos homens com Deus, consigo próprios e com a criação . O mais importante, em sua visão , é humanizar a vida, ainda que esse ou aquele indivíduo continuem padecendo de alguma doença. Por que Jesus não curou a todos? Talvez porque a cura seja algo mais amplo - ponderou o frei. Tanto a professora da USP quanto mães de crianças com problemas genéticos apelam justamente para a imagem de um Cristo que estaria mais propenso a defender a vida do que uma discussão prolongada sobre quando começa um ser humano. “Eu vim para que todos tenham vida, e vida em abundância” foi o versículo da Bíblia recitado por uma cidadã de Mato Grosso do Sul, mãe de duas filhas deficientes. Para o senador Tião Viana, o estabelecimento de legislação clara sobre o assunto e a criação de bancos genéticos públicos destinados armazenar material de transplante evitará problemas éticos e a comercialização da vida. Tanto ele quanto Mayana são contra a produção de embriões para a utilização das células-tronco. Ou seja, são a favor de que se usem apenas os embriões congelados e sem chance de geração de bebês. Moser disse não acreditar na inocência da pesquisa científica e questionou a necessidade da fertilização artificial. ( Fonte Senado Federal em 07/06/04.) Carta Enviada pela CNBB aos Senadores Brasília - DF, 24 de junho de 2004 P – nº 0496/04 Excelentíssimo Senador da República, Excelência, Os Bispos Católicos do Conselho Permanente da CNBB, reunidos em Brasília, de 22 a 25 de junho de 2004, desejam fraternalmente saudar Vossa Excelência. Acompanhamos, com vivo interesse, os trabalhos legislativos do Senado. Constatamos que está em votação, em fase adiantada, o Projeto sobre Biossegurança com temas referentes à Bioética (PL n.2.401-A-2003). Os últimos decênios vêm apresentando grande progresso no campo da biogenética e da biotecnologia, abrindo perspectivas, tanto no sentido da cura de certas doenças como também no aprimoramento da nossa vida na terra. Contudo, com as esperanças, erguem-se novas interrogações e preocupações. Estas interrogações não são apenas científicas, mas sobretudo de cunho ético . Queremos louvar o empenho dos Senadores que, ao longo dos últimos anos, se têm dedicado ao conhecimento da problemática, por meio de debates e seminários. Isto bem mostra como os representantes eleitos pelo povo têm consciência do peso de suas decisões, mormente daquelas que dizem respeito às manifestações da vida em suas múltiplas formas. Alegramo-nos com as conquistas da ciência que permitem sanar certos males oriun dos de causas genéticas e outras, e com a crescente expectativa da biotecnologia agir eficazmente na superação de deficiências e enfermidades. O progresso da ciência e da tecnologia abre novas possibilidades para que possamos levar adiante a missão que o Criador nos confia. Neste sentido, nos congratulamos com as pesquisas recentes e o uso responsável de células-tronco encontradas no cordão umbilical, na medula óssea e um pouco espalhadas por todo o corpo humano. Incentivamos a continuação das pesquisas, visando descobrir outras fontes para se obter células-tronco, sem recorrer aos embriões humanos. A vida humana, que é fim em si mesma, deve ser respeitada sempre, desde a sua concepção até o seu termo. Não é lícito jamais sacrificar uma vida humana já presente no embrião em benefício de outra. É necessário, portanto, rejeitar com firmeza a produção de embriões, e a utilização de embriões já existentes, tanto para pesquisas, quanto para eventual produção de tecidos e órgãos. Preocupa-nos a maneira apressada com a qual certas pessoas e entidades se pronunciam em relação à denominada terapia gênica, como se por meio dela pudessem ser sanados todos os males do mundo. A vida saudável não se reduz aos genes nem aos organismos, mas remete a relações sociais, econômicas, políticas, afetivas e espirituais. Há pessoas e grupos que mais parecem vendedores de ilusão de vida fácil do que preocupados com a saúde e a vida de todos. Ainda que devamos buscar minorar os sofrimentos provenientes de falhas genéticas, de acidentes e de doenças degenerativas, preocupa-nos, igualmente, a exploração emocional oriunda da exposição na mídia de portadores de necessidades especiais. Diante destes pressupostos e baseados no Evangelho da Vida, confiamos que os Senhores Senadores não se deixarão dobrar pela pressão de grupos que investem na biotecnologia para auferir lucros. A liberação, sem mais, de embriões para obter células-tronco, se nos afigura não como sinal de progresso, mas como sinal de uma postura antiética sem precedentes na história, porque sacrifica vidas humanas. Por que não conceder a esta questão tão importante o tempo necessário para a justa ponderação dos aspectos complexos, científicos e morais, sem precipitar decisões com graves consequências? Em muitos países de avançada tecnologia, a questão permanece em profundos estudos e debates. Na certeza de que nossos legisladores hão de se orientar pelo valor supremo da vida humana na elaboração das leis, pedimos a Deus que os guie no alto desempenho de sua missão legislativa. Atenciosamente, agradecemos a Vossa Excelência o empenho pessoal na defesa desta causa em prol do padrão ético do povo brasileiro. Pelo a Presidência da CNBB, Conselho Permanente, Cardeal Geraldo Majella Arcebispo de São Salvador da Bahia e Presidente da CNBB Dom Antônio Celso Bispo de Catanduva-SP e Vice-Presidente da CNBB Dom Odilo Pedro Bispo Auxiliar de São Pauloe Secretário-Geral da CNBB Agnelo de Queirós Scherer CNTS PEDE AO STF QUE DESCARACTERIZE COMO ABORTO A ANTECIPAÇÃO DO FETO SEM CÉREBRO No último dia 18 de junho, a CNTS pediu ao STF que a antecipação do parto de feto sem cérebro não seja caracterizada como aborto. A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) quer que o Supremo Tribunal Federal (STF) fixe entendimento de que antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico (ausência de cérebro) não é aborto e permita que gestantes em tal situação tenham o direito de interromper a gravidez sem a necessidade de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado. Na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54) ajuizada na Corte, com pedido de liminar, a entidade sustenta que “o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal tornou-se indispensável na matéria”. A entidade registra que o Judiciário vinha firmando jurisprudência, por meio de decisões proferidas em todo o País, reconhecendo o direito das gestantes de se submeterem à antecipação terapêutica do parto nesses casos, mas que decisões em sentido inverso desequilibraram essa jurisprudência. Segundo a CNTS, a anencefalia é uma má formação fetal congênita incompatível com a vida intra-uterina e fatal em 100% dos casos. A entidade sustenta que um exame de ecografia detecta a anomalia com índice de erro praticamente nulo e que não existe possibilidade de tratamento ou reversão do problema. Afirma que não há controvérsia sobre o tema na literatura científica ou na experiência médica. Por outro lado, diz a CNTS, “a permanência do feto anômalo no útero da mãe é potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde da gestante e até perigo de vida, em razão do alto índice de óbitos intra-uterinos desses fetos”. A entidade alega que “a antecipação do parto nessa hipótese constitui indicação terapêutica médica: a única possível e eficaz para o tratamento da gestante, já que para reverter a inviabilidade do feto não há solução”. Com esses argumentos, a CNTS sustenta que a antecipação desses partos não caracteriza o crime de aborto tipificado no Código Penal. Isso porque, diz a entidade, no caso de aborto, “a morte do feto deve ser resultado direto dos meios abortivos, sendo imprescindível tanto a comprovação da relação causal como a potencialidade de vida extra-uterina do feto”, o que inexiste nos casos de fetos com anencefalia. “Não há potencial de vida a ser protegido, de modo que falta à hipótese o suporte fático exigido pela norma. Apenas o feto com capacidade potencial de ser pessoa pode ser passivo de aborto”, sustenta. Para a CNTS, nessas situações, “o foco da atenção há de voltar-se para o estado da gestante” e o reconhecimento desses direitos não causam lesão a bem ou ao direito à vida do feto. “A gestante portadora de feto anencefálico que opte pela antecipação terapêutica do parto está protegida por direitos constitucionais que imunizam a sua conduta da incidência da legislação ordinária repressiva”, alega a entidade, que aponta a violação de três direitos básicos da mulher impedida de interromper esse tipo gravidez. O direito da dignidade da pessoa humana, da legalidade, liberdade e autonomia da vontade, e do direito à saúde. A CNTS pede que o Supremo reconheça o descumprimento desses preceitos fundamentais em relação à mulher, nos casos em que as normas penais são interpretadas de forma a impedir a an tecipação terapêutica de partos de fetos anencefálicos. E que seja dada interpretação conforme a Constituição dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal, para declarar inconstitucional, com eficácia erga omnes (para todos) e efeito vinculante, a aplicação desses dispositivos para impedir a intervenção nos casos em que a anomalia é diagnosticada por médico habilitado. Requer, também, a concessão de liminar para suspender o andamento de processos ou anular os efeitos de decisões judiciais que pretendam aplicar ou tenham aplicado os dispositivos do Código Penal para caracterizar como aborto a interrupção desses tipos de gravidez. O relator da ação é o ministro Marco Aurélio. (Fonte: www.stf.gov.br) CNBB requer ao STF para atuar como “amigo da Corte” em favor dos fetos anencéfalos e da dignidade da vida A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por seu advogado Dr. Luís Carlos Martins Alves Jr., protocolizou neste último dia 23 de junho um requerimento ao Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, relator da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), tendo como advogado o Dr. Luís Roberto Barroso, para atuar como “ amicus curiae ”. Essa mencionada Argüição proposta pela CNTS tem como objetivo provocar o STF para que esse Tribunal decida no sentido de descaracterizar como crime de aborto a interrupção da gestação se o feto for anencéfalo, uma vez que esses fetos teriam poucas condições de sobrevida, após o parto. A Igreja do Brasil, em comunhão com a Sé universal, se posicionará radicalmente favorável à vida, especialmente daqueles que estejam desprotegidos. Nesse sentido, a CNBB recorda o chamado do Santo Padre João Paulo II, na encíclica “Evangelho da Vida”, que afirmou, com palavras e idéias de permanente atualidade: “Como há um século, oprimida nos seus direitos fundamentais era a classe operária, e a Igreja com grande coragem tomou a sua defesa, proclamando os sacrossantos direitos da pessoa do trabalhador, assim agora, quando outra categoria de pessoas é oprimida no direito fundamental à vida, a Igreja sente que deve, com igual coragem, dar voz a quem a não tem. O seu é sempre o grito evangélico em defesa dos pobres do mundo, de quantos estão ameaçados, desprezados e oprimidos nos seus direitos humanos. Espezinhada no direito fundamental à vida, é hoje uma grande multidão de seres humanos débeis e indefesos, como o são, em particular, as crianças ainda não nascidas. Se, ao findar do século passado, não fora consentido à Igreja calar perante as injustiças então reinantes, menos ainda pode ela calar hoje, quando às injustiças sociais do passado — infelizmente ainda não superadas — se vêm somar, em tantas partes do mundo, injustiças e opressões ainda mais graves, mesmo se disfarçadas em elementos de progresso com vista à organização de uma nova ordem mundial. A presente Encíclica, fruto da colaboração do Episcopado de cada país do mundo, quer ser uma reafirmação precisa e firme do valor da vida humana e da sua inviolabilidade, e, conjuntamente, um ardente apelo dirigido em nome de Deus a todos e cada um: respeita, defende, ama e serve a vida, cada vida humana! Unicamente por esta estrada, encontrarás justiça, progresso, verdadeira liberdade, paz e felicidade! Cheguem estas palavras a todos os filhos e filhas da Igreja! Cheguem a todas as pessoas de boa vontade, solícitas pelo bem de cada homem e mulher e pelo destino da sociedade inteira!” Imbuída desse espírito evangélico, de um Evangelho da Vida, de plena vida para todos, é que a CNBB, voz coletiva dos sucessores dos Apóstolos, requereu seu ingresso no mencionado processo, para que possa atuar em favor dos direitos daqueles que estão indefesos para lutar contra as forças da morte. A CNBB conclama a todas as pessoas de boa vontade para lutarmos pela vida