Cientista que diz não saber quando inicia a vida humana

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«Cientista que diz não saber quando inicia a vida humana está mentido»
Entrevista com a Profª. Dra. Alice Teixeira Ferreira
SÃO PAULO, sexta-feira, 3 de fevereiro de 2006 (ZENIT.org).- A Profª. Dra. Alice Teixeira
Ferreira, Professora Associada de Biofísica, da UNIFESP/EPM, na área de Biologia Celular Sinalização Celular e Assessora da CNBB na Comissão Nacional de Bioética, conta um pouco a
história da aprovação da Lei de Biossegurança, em 2 de março de 2005, e como vê hoje o
movimento em defesa da vida no Brasil.
A entrevista foi concedida ao jornalista Hermes Rodrigues Nery, e estará incluída juntamente
com entrevistas de outras lideranças do movimento pró-vida no País, no livro “A Causa da
Vida”, a ser lançado este ano.
--Como podemos definir o conceito de VIDA?
--Dra. Alice Teixeira Ferreira: Do ponto de vista da Ciência não se conceitua ou define vida. A
Ciência se restringe à responder COMO? A descrever os fenômenos. Definição ou conceito de
vida é com a Metafísica.
--Os cientistas estão eufóricos com a era genômica. São tantas e ricas possibilidades, que as
novas promessas de “admirável mundo novo” parecem confirmar a superação das doenças.
O que há de concreto em termos de reais possibilidades positivas das conquistas
biotecnológicas e o que há de ilusão?
--Dra. Alice Teixeira Ferreira: A euforia já acabou, pois se constatou que o genoma humano foi
uma ideologia que custou 5 bilhões de dólares e não resultou lucro imediato para a industria
farmacêutica que mais investiu neste “avanço tecnológico”. Os que esperavam “brincar de Deus”
melhorando a Sua obra estão desapontados. Foi só ilusão porque o determinismo biológico ou
genético não existe. O dogma um gene-uma proteína não é verdade. Além do mais a participação
do meio na expressão do gene é importantíssima. Após 2002, quando o genoma humano foi
completado verificou-se a necessidade de se estudar como o meio intervém na expressão dos
genes: a epigenia.Dos 100.000 genes se reduziu à 20.000 a 30.000 genes humanos. Terapia
gênica só para doenças com alteração em um gene, no caso de ser multigênicas não é solução.
Por outro lado não se consegue dirigir onde o vetor (um vírus) vai se inserir no genoma e como
sempre é acompanhado de um promotor, corre-se o risco deste se localizar junto de um oncogene
(gene promotor de tumor). Esta é a explicação para o aparecimento de leucemia nas crianças que
receberam esta terapia para restaurar sua imunidade. Existe ainda outro problema que é o da
introdução de uma proteína estranha no organismo com a terapia gênica levando à reação
imunológica.
--Que avaliação a Sra. faz do Projeto Genoma?
--Dra. Alice Teixeira Ferreira: Não foi um projeto de pesquisa, onde se faz hipóteses a serem
testadas e comprovadas. Foi um projeto para desenvolver tecnologia. Verificou-se que patentear
genes foi uma besteira. Afinal, como diz a Dra. Eliane de Azevedo, não sabemos como definir o
gene. Serviu para enriquecer a indústria de biotecnologia que vendeu os aparelhos de
seqüenciamento e reagentes de identificação.
--Quais são realmente as vantagens do uso terapêutico das células-troncos?
--Dra. Alice Teixeira Ferreira: Seria uma solução para as doenças degenerativas. Mas devemos
desenvolver a pesquisa de maneira tradicional, isto é, antes de mais nada saber como estas
células funcionam. É uma tarefa hercúlea pois, não sabemos identificá-las com certeza . Discutese ainda se existe uma hierarquia na sua diferenciação bem como a sua renovação. A sua
sinalização é extremante complexa, envolvendo muitas proteínas na sua característica
plasticidade.
--A polêmica em torno do uso das células-tronco embrionárias se dá porque não há
consenso entre os especialistas do momento exato em que se dá o início da vida humana. A
moral cristã afirma que a vida começa no momento da fecundação, no entanto, prevalece o
relativismo, com todas as incertezas e jogo de interesses que esta questão suscita. Afinal,
que argumentos podemos ter para refutar, de vez, o posicionamento daqueles que insistem
em dizer que o embrião humano não é vida, pessoa potente?
--Dra. Alice Teixeira Ferreira: Cientista que diz não saber quando inicia a vida humana está
mentindo. Qualquer texto de embriologia clínica (ou humana) afirma que se inicia na concepção.
Em 1827, com o aumento da sensibilidade do microscópio, permitindo visualizar o óvulo e os
espermatozóides, Karl Ernst Von Baer descreveu a fecundação e o desenvolvimento
embrionário. Os médicos europeus, frente tais evidências, passaram a defender o ser humano
desde a concepção, contra o aborto. Em 1869 a Inglaterra foi o primeiro pais a tornar o aborto
ilegal. O Papa Pio IX, também em 1869 aceitou que o fato de que a vida humana se inicia na
concepção. É um fato científico e não um dogma da Igreja Católica ou de qualquer religião. Para
não dizer que está ultrapassado os embriologistas, em 2005, afirmam não só que a origem do ser
humano se dá na fecundação como, do ponto de vista molecular, a primeira divisão do zigoto
define o nosso destino.
--Quando começou seus estudos com células-troncos e quando e porque a Sra. se engajou
no movimento pró-vida?
--Dra. Alice Teixeira Ferreira: Meus estudos com as CTs se iniciou quando começamos estudar a
medula óssea de camundongos em 1994.
--Como a Sra. avalia a ação do movimento pró-vida hoje no Brasil? Quais os desafios?
--Dra. Alice Teixeira Ferreira: Tem de ficar em alerta. Continuo tendo em vista que existem
interesses econômicos fortíssimos para que embriões humanos sejam utilizados em pesquisa.
Hwang, o “cientista” fraudulento, recebeu 40 milhões de dólares para desenvolver tais pesquisas.
Até agora não se conseguiu clonar o ser humano e o cão porque as proteínas que vem na
organela do espermatozóide, o acrossoma, são fundamentais para a divisão adequada do zigoto.
Além do mais deve existir compatibilidade entre o núcleo celular e as mitocôndrias, organelas
celulares importantíssimas para a sobrevivência das células.
--Como tem sido a ação da Igreja, especialmente da CNBB, nesse processo?
--Dra. Alice Teixeira Ferreira: A CNBB foi de certa forma pega de surpresa, pois não contava
que nossos parlamentares aprovariam ou fossem favoráveis a tal degradação do ser humano.
Atualmente vem dando TODO apoio aos movimentos em defesa da vida humana e de sua
dignidade.
--Como tem sido a ação da sociedade civil e de outras igrejas também?
--Dra. Alice Teixeira Ferreira: Os espíritas, os evangélicos, os sheicho-no-iê, os budistas são
nossos aliados e estão mobilizados. A sociedade civil por outro lado vem sendo muito mal
representada através da manifestação de minorias esquerdistas, materialistas. Temos de deixar
claro que tais pessoas não nos representam.
--Quais as maiores dificuldades de organização do movimento? O que falta?
--Dra. Alice Teixeira Ferreira: A dificuldade está na mídia e meios de comunicação que tentam
ridicularizar a posição em defesa da vida atacando religiosos, as organizações católicas como
OPUS DEI e CÁRITAS, alegando que a nossa sociedade é laica.
--Por que o movimento anti-vida no País recebe tanto apoio financeiro, espaço na mídia,
etc.? Como superar esta situação?
--Dra. Alice Teixeira Ferreira: Numa sociedade materialista em que os valores morais
desapareceram, tem-se a desvalorização da família, intensificou o utilitarismo, vive-se na
ditadura do neoliberalismo. Temos de usar todos os meios, todos os canais que nos abrem para
INFORMAR nosso povo, alertá-los das mentiras. Convencer o nosso povo de que estão sendo
enganados, roubados ao se pegar nosso dinheiro e dá-lo às industrias farmacêuticas para
anticoncepcionais, camisinhas, pílula do dia seguinte. Um aborto custa entre 1000 a 2000 reais.
Sempre temos o poder econômico corrompendo nossos ministérios. Nosso povo tem de exigir
que este dinheiro tem de ser aplicado em melhor atendimento no SUS, em saneamento básico,
em melhoramentos de sua condição de vida. O que nosso povo quer é educação, saúde e
emprego, mas o dinheiro de nossos impostos estão sendo mal empregados.
--Por que nos países em que foi aprovada legislações anti-vida (nos EUA, já são 33 anos),
não se conseguiu uma mobilização forte suficiente para barrar esta legislação, com projetos
de iniciativa popular e outras ações?
--Dra. Alice Teixeira Ferreira: Dr. Bernard Nathanson e Andrew Goliszek informam o que existe
por trás do poder econômico, extremamente forte em favor do aborto. Dr. Nathanson diz que o
aborto custa 300 dólares e Goliszek dá uma lista de preço de pedaços de feto humano onde o
cérebro de um bebê de 8 semanas custa 1000 dólares. Na Rússia tem mulher que engravida para
vender seu feto por 50 dólares à industria de cosméticos.
--Como foi, aqui no Brasil, o processo que culminou com a aprovação da Lei de
Biossegurança? E agora, o que podemos fazer para reverter essa situação?
--Dra. Alice Teixeira Ferreira: Em 16 de dezembro de 2002, Mayana Zatz e Lygia Pereira vieram
à reunião da CTNBio com o propósito de juntar clonagem terapêutica e utilização de embriões
humanos em pesquisa nesta lei de Biosegurança. Eu apresentei argumentos contrários
irrefutáveis mostrando que tudo o que elas propunham podia ser realizado com CTs adultas.
Apresentei como exemplo os resultados do Dr. Radovan Borojemic com o qual colaboro. O
único argumento delas foi então que queriam pesquisar as células embrionárias humanas. Dra
Maria Celeste, advogada, disse ser inconstitucional esta carona legislativa e que nossa
constituição garantia os direitos do ser humano à vida desde a concepção. Mayana e Lygia
retrucaram que o embrião era um amontoado de células qualquer. Retruquei que não era verdade,
que era um sistema muito bem organizado que diferentemente de uma cultura de células dava
origem à um ser humano completo.Aí começou a história que meu argumento era religioso.
Este projeto foi para a Câmara que retirou o artigo 5 e enviou para o Senado a lei de
Biossegurança. Mayana e Lygia tendo a FAPESP como aliada foram ao Senado e tiveram
Eduardo Campos, Ministro de Ciência e Tecnologia, como aliado; conseguiram incluir
novamente o artigo 5, mas excluindo a clonagem terapêutica e incluíram embriões humanos
congelados por mais de 3 anos. Afirmavam que estes não eram mais viáveis e iam ser jogados no
lixo. Mayana liderou o movimento “Cura ou Lixo” e com ajuda do banqueiro Salles levou ao
Congresso no dia 28/2/05 mais de 300 deficientes físicos de todas as idades que lá montaram um
“circo”, onde crianças de cadeiras de roda se atiravam sobre os parlamentares implorando a
aprovação da Lei de Biossegurança, em particular o artigo 5. O então Presidente da Câmara,
Severino Cavalcanti nos recebeu muito mal e não quis dar ouvidos aos nossos argumentos.
Quem liderava nossa comissão era D. Odilo Pedro Scherer, da CNBB. Na ocasião, entreguei
mais de 1000 assinaturas de médicos e cientistas que eram contra a utilização de embriões
humanos para a pesquisa. A mídia estava do lado da Mayana e o Severino queria cartaz, por isto
foi bastante solícito com a Mayana e companhia, aparecendo no JN da Globo, sorridente, no
meio deles. Vendo isto às 20:15 de 1/3/05 já contava que meus esforços em 2/3/05 seriam em
vão. Em 2/3/05 na reunião das 14:00hs com os nossos aliados e o ministro de CT, a Patrícia
Prank não respondeu meus argumentos e abandonou a reunião. Eduardo Campos disse que uma
vez aprovada a Lei de Biossegurança, e sua aprovação era certa, viria investimento externo. Que
tinha-se demorado muito sua aprovação. Lygia confessou no programa Roda Viva que a matéria
não havia sido devidamente discutida no Congresso por desinteresse dos parlamentares. Disse
também que quando lá esteve para dar esclarecimentos só havia 4 parlamentares e no fim de sua
exposição sobrou apenas o deputado que havia convidada-a. Nunca fui chamada por ter opinião
contrária. Só no dia 2/3/05. Aliás, foi inesperado também a colocação em votação desta Lei, pois
havíamos solicitado uma audiência pública para apresentarmos a verdade dos fatos e devido este
afogadilho, tal não ocorreu. Uma vez aprovada a Lei de Biossegurança, no dia seguinte havia
2000 pacientes querendo ser cobaia para a prometida cura com CTs embrionárias humanas.
Mayana declarou que se tratava de um mal entendido divulgado pela mídia, pois ela queria a
liberação da pesquisa com embriões humanos. Dr. Cláudio Fonteles, quando era Procurado Geral
da Justiça,ao saber numa entrevista de Dra. Lílian Piñero Eça o quanto nossa posição foi
discriminada pela mídia, convocou-nos para elaborar a Ação de Inconstitucionalidade desta Lei
(ADIN). Acreditamos que após o fiasco do sul-coreano existe grande possibilidade de
ganharmos a causa.
--Como a Sra. vê a ação da Frente Parlamentar em Defesa da Vida?
--Dra. Alice Teixeira Ferreira: Pelo menos temos agora parlamentares se movimentando e espero
que não aconteça o que ocorreu com a Lei de Biossegurança. Vê-se que a tática tem sido a
mesma: audiência pública só com os favoráveis ao aborto e carona num projeto em andamento.
Tem o MS favorável também. Infelizmente, há o poder econômico corrompendo nossos
parlamentares.
ZP06020315
Textos de 1 a 10 - Igreja e Bioética
Nº: 10
Texto: Carta enviada pela CNBB aos Senadores
Autoria: CNBB
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Nº: 09
Texto: Uso de células-tronco de embrião é debatido no Senado
Autoria: Senado Federal - 07/06/2004
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Nº: 08
Texto: Intervenção da Santa Sé na 2ª sessão da ONU para preparação de uma convenção
internacional sobre clonagem humana "reprodutiva"
Autoria: Santa Sé
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Nº: 07
Texto: A ética da investigação biomédica para uma visão cristã
Autoria: Pontifícia academia para a Vida. Comunicado final da IX Assembléia. 24 a
26/02/2003
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Nº: 06
Texto: Clonagem humana e ética
Autoria: Dom Demétrio Valentini. Bispo de Jales-SP.
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Nº: 05
Texto: Razões para defender a vida do feto com anencefalia
Autoria: Entrevista com Dernival da Silva Brandão, Especialista em Ginecologia e
Obstetrícia
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Nº: 04
Texto: Aborto de fetos com anencefalia
Autoria: Dom Odilo Pedro Scherer. Bispo auxiliar de São Paulo e Secretário Geral da CNBB
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Nº: 03
Texto: O recém-nascido anencefálico e a doação de órgãos
Autoria: Comitê Nacional de Bioética da Itália
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Nº: 02
Texto: Homicídio Uterino
Autoria: Dr. Ives Gandra da Silva Martins
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Nº: 01
Texto: Aborto e Anencefalia
Autoria: Pe. Dr. Wilmar Luiz Barth
Biosegurança: "Escolhe o caminho da vida"
Praticamente não se passa um dia sem que seja noticiada uma nova descoberta no campo
da biotecnologia. Essas descobertas ora dizem respeito à maior e melhor produtividade; ora
à cura de certas doenças genéticas; ora à possibilidade de se combinar seres de espécies
diferentes; ora ao que se denomina de reprodução humana assistida; ora à própria
clonagem humana, seja numa linha terapêutica, seja numa linha reprodutiva. Todas essas
notícias são veiculadas com grande sensacionalismo, e por isso mesmo devem ser
examinadas com serenidade e senso crítico amadurecido. Para tanto convém se colocar ao
menos três perguntas fundamentais: 1) O que está acontecendo? 2) Onde encontrar
subsídios para nos posicionarmos adequadamente? 3) O que podemos fazer?
1)
O
que
está
acontecendo?
As freqüentes notícias sobre descobertas e atuações no campo da biotecnologia vêm
confirmar que vivemos num período inédito da história humana: dispomos hoje de ciência e
tecnologias apropriadas não apenas para conhecer melhor as múltiplas formas de vida, mas
também para interferir nos seus mecanismos mais profundos. Depois de os seres humanos
haverem desvendado os mistérios da energia atômica, os mistérios da lua e de outros
planetas, agora estão rapidamente desvendando os mistérios da vida biológica. Mais do que
isto: não apenas estão desvendando, mas até alterando o código genético de muitos dos
seres vivos. Com isso se quer conseguir o que se julga ser um aprimoramento, seja da
natureza em geral, seja dos próprios seres humanos. No caso dos seres humanos a grande
motivação apresentada são as doenças de cunho genético, várias delas de caráter
degenerativo, tais como a síndrome de Down ( mongolismo), mal de Parkinson, mal de
Alzheimer
e
outras.
Tudo isso provoca debates acalorados, como os que vem se desenrolando no nosso
Congresso Nacional em torno dos produtos transgênicos, e de modo mais amplo em torno
da lei de biosegurança. Os debates são positivos, uma vez que ajudam a perceber que se
está colocando em questão não apenas uma lei, mas o que ela pode representar, em
termos dispositivos que conduzem à vida ou dispositivos que conduzem à morte de toda a
criação. Em meio aos debates, não poucas vezes a Igreja católica e outras expressões
religiosas são acusadas de estarem entravando a marcha do progresso. Segundo esses
críticos, ao combater os transgênicos, os representantes das religiões estariam impedindo
que se acabe com a fome; ao combater certos procedimentos de laboratório, que implicam
na manipulação e até na morte de embriões, estariam impedindo a cura de doenças
genéticas. Tudo isso leva muitos a se sentirem inseguros quanto à posição a ser tomada.
Uns, se deixam arrastar por um entusiasmo muito grande, diante da perspectiva de uma
vida melhor e mais longa para si e seus descendentes; outros estão assustados, pois nunca
na história os seres humanos detiveram em suas mãos tamanho poder.
2)
Onde
encontrar
subsídios?
Quase todas as igrejas e religiões existentes em nosso meio se fundamentam nas
coordenadas que brotam de duas fontes: as Escrituras e a experiência-sabedoria
consignada numa longa trajetória de séculos e até milênios. É também baseada nesta dupla
fonte que a Igreja católica, juntamente com outras igrejas cristãs, vem participando
ativamente dos debates. A Palavra de Deus vem definida como palavra de vida. Assim, logo
no início do Evangelho de São João lemos que “ no princípio era o Verbo, e o Verbo estava
com Deus, e o Verbo era Deus... Todas as coisas foram feitas por intermédio dele e sem ele
nada se fez de tudo o que foi feito. Nele estava a vida, e a vida era a luz da humanidade.
Essa mesma Palavra de Deus nos apresenta, com muita clareza o caminho para bem viver:
é o caminho sinalizado pelas dez Palavras, também conhecidas como os dez mandamentos.
Cristo mostrou que, na realidade, essas dez Palavras se resumem numa só, que é o Amor:
amar a Deus e ao próximo resume toda a Lei e os Profetas. Com isso, encontramos uma
certeza: o sonho de todos de terem uma vida de melhor qualidade só se torna possível na
medida em que as relações humanas, tanto ao nível interpessoal, quanto social, forem
pautadas
por
um
autêntico
amor
a
Deus
e
ao
próximo.
Mas as igrejas cristãs e as demais religiões com maior presença em nosso meio, contam
igualmente com um acervo de experiência que foram adquirindo ao longo dos séculos. Não
é de hoje que a humanidade busca viver mais e com melhor qualidade de vida. De fato
essas aspirações são constantes na história. A experiência nos oferece várias certezas: a
primeira, que a felicidade é um desejo que o próprio Deus implantou no coração humano;
segundo, que as ciências e as tecnologias, na medida em que se colocam verdadeiramente
ao serviço de todos, podem contribuir em muito para reduzir os sofrimentos e aumentar a
qualidade de vida; terceiro, que devemos desconfiar de soluções fáceis para problemas
difíceis. Como nos assegura Jesus Cristo, o caminho que leva à felicidade é um caminho
estreito
e
cheio
de
renúncias.
Por aí se percebe que não se pode confundir felicidade com facilidade. A felicidade tem que
ser construída com a ajuda de Deus e a colaboração de todos: ela não cai pronta do céu,
nem é automaticamente legada pelo nosso código genético. Felicidade e desgraça resultam
da combinação de muitos fatores. Sobretudo quando se trata de saúde, fica sempre mais
evidenciado que ela passa muito mais por sadias relações humanas de cunho religioso e
político, do que pela genética, por mais importante que essa possa ser. Se esse é o
caminho, segue-se uma pergunta espontânea: mas então, o que podemos fazer? Vamos
deixar que grupos econômicos, ou cientistas e políticos decidam por nós, sem nos
consultar?
3)
O
que
podemos
fazer?
Há alguns anos atrás o Papa João Paulo II escreveu uma importante carta Encíclica, na qual
fazia ver que hoje, mais do que nunca, se trava uma luta entre a cultura da vida e a cultura
da morte. Esta carta leva o expressivo título: “ O Evangelho da Vida”. Evangelho significa “
boa notícia”. Nós devemos ser portadores de “ boa notícia”, alegrando-nos com as muitas
conquistas de hoje, inclusive no campo da biotecnologia. Ao mesmo tempo devemos saber
detectar certas loucuras que se estão dizendo e fazendo em nome do progresso. Saber
discernir pressupõe, antes de mais nada, o desenvolvimento de uma consciência crítica. “
Sem consciência, a ciência pode conduzir à morte”: é nos diz outro importante documento
da
Igreja
Católica,
chamado
“
o
Dom
da
vida”.
A consciência crítica, sobretudo quando alimentada pela luz do Evangelho, ajuda a perceber
que por trás da batalha dos transgênicos se ocultam hábeis manipulações por parte de
empresas nacionais e transnacionais, que não se importam tanto com a qualidade de vida,
quanto com os lucros fáceis. Da mesma forma, a maneira como certos setores das áreas
biomédicas se referem à produção de embriões e à clonagem humana, ainda que sob a
capa do piedoso, mas equívoco adjetivo “ terapêutico”, nos dá a certeza de que para
melhorar a vida de uns, não se pode tirar a vida de outros, ainda que seja uma vida
incipiente. A descoberta das chamadas “ células tronco” , uma vez mais revelam a
sabedoria do Criador, que fez bem todas as coisas, e que colocou à disposição dos seres
humanos recursos para esses poderem enfrentar os sofrimentos fisicos em sua raíz. Não é
preciso “fazer embriões”, nem manipular embriões, para depois descartá-los: as células
tronco se encontram também no cordão umbilical, na medula da coluna vertebral, e um
pouco por todo o corpo. Claro que esses procedimentos são mais lentos e mais trabalhosos.
E naturalmente isso não interessa aos donos da biotecnologia, que não são cientistas, mas
empresários.
Diante deste quadro fica evidente que ninguém mais pode ficar de braços cruzados num
momento tão decisivo para a humanidade. É preciso que se desenvolvam verdadeiras
estratégias, seja de cunho pessoal, seja de cunho comunitário, seja de cunho social. Entre
as de cunho pessoal, merecem ressalto: o cultivo do espírito de reverência diante dos
mistérios da vida; a desconfiança diante das promessas de milagres fáceis; a humildade
diante da grandeza de Deus e da sua obra criadora. Entre as estratégias comunitárias,
importa adquirir uma visão de conjunto da realidade, vendo as implicações políticas e
sociais do que se passa na biotecnologia; aprender a conviver com o diferente, pois não é
produzindo seres geneticamente iguais que acabarão os conflitos no mundo: esses só
acabam na medida em que cresce a capacidade de aceitar e amar os que são diferentes de
nós; não deixar-se levar pelas emoções, que ora provocam ondas de entusiasmo ingênuo,
ora de pessimismo derrotista. Entre as posturas sociais vão emergir a necessidade de saber
acolher o que é novo, mas sem perder a sabedoria dos antigos; desconfiar daquilo que é
votado e colocado em prática com muita rapidez, sem a devida cautela que requerem essas
intervenções no código genético; bater-se para que os eventuais benefícios não se destinem
apenas a alguns, mas que sejam distribuídos para todos. Mais do que da genética devemos
esperar o retorno de políticas públicas e sociais adequadas no campo da saúde.
Conclusão: sem dúvida vivemos um dos momentos mais fascinantes da história humana,
quando não apenas passamos a conhecer em maior profundidade os mecanismos da vida,
mas também somos capazes de intervir sobre eles. Ciência é técnica podem ser nossas
aliadas, como também podem se transformar em inimigas da sociedade. Basta lembrar o
que aconteceu quando, em vez de energia pacífica, se transformou a energia atômica em
bombas. Daí a importância de todos saberem se posicionar e participar responsavelmente
das
decisões.
Por fim, convém lembrar dois personagens que marcaram para sempre a humanidade. Um
deles é Moisés, que, ao se despedir do seu povo mostrou haver dois caminhos: o da vida e
o da morte. Sua recomendação foi esta: escolham o caminho da vida, amando o Senhor e
escutando a sua voz ( Dt. 30,20). Ademais, animou Josué, seu sucessor, com estas
palavras: “ sê forte e corajoso, pois... o Senhor marchará à tua frente, estará contigo e não
te deixará nem te abandonará” ( Dt. 31,7). O segundo personagem é naturalmente Jesus
Cristo. Ele se apresenta como sendo “o caminho, a verdade e a vida”. Ele nos garante que
veio para que todos tenham vida, e a tenham em abundância.
Dr. Frei Antônio Moser
Teólogo, franciscano
Aborto e Anencefalia
Pe. Dr. Wilmar Luiz Barth
[email protected]
No dia 01 de julho de 2004 a imprensa publicou a liminar do Ministro Marco Aurélio, do
Supremo Tribunal Federal, no qual entendeu que não há crime de aborto nos casos de
interrupção da gravidez de fetos com anencefalia.
No mesmo dia a CNBB criticou a decisão por se tratar de “uma decisão solitária” e porque
“autorizou a interrupção voluntária da gestação de uma vida humana”. Além disto, a nota
afirma que, “de fato, a vida humana, que se forma no seio da mãe, já é um novo sujeito de
direitos e, por isso, tal vida deve ser respeitada sempre, não importando o estágio ou a
condição em que ela se encontre”.
A nota da CNBB, por outro lado, manifestou a surpresa desta conferência pela decisão
unilateral que o ministro tomou, uma vez que se trata de uma questão tão delicada. Além
disto, numa sociedade democrática, todos os setores devem ser ouvidos, caso contrário
retornamos àquele estado absolutista de tempos idos.
Segundo as afirmações de médicos ligados ao assunto, a anencefalia é a ausência total ou
parcial do cérebro, ou seja, um defeito de formação do sistema nervoso do feto, de modo
que as crianças geralmente não sobrevivem. Dependendo da gravidade da mal-formação, a
morte pode se dar depois de algumas horas ou dentro de poucos dias. A maioria das
crianças morre mesmo durante a gravidez ou do parto. Esta mal-formação é genética e não
se sabe exatamente a causa do problema. O defeito de formação ocorre entre a 23º e 26º
semana e como forma de prevenção os médicos indicam à gestante uma dieta rica em ácido
fólico (um tipo de vitamina B), um suplemento vitamínico que pode ser tomado dois meses
antes de engravidar até três meses depois. A anencefalia não tem cura, atingindo meninos
e meninas. A incidência é de 4,6 casos em cada 10 mil nascimentos, quer dizer, é rara. Nos
EUA, nascem 2.000 crianças com anencefalia a cada ano (Fonte: Folha Online,
01/07/2004). Apesar desta mal-formação, os demais órgãos do feto geralmente são
completos e perfeitos, podendo ser doados. Para se ter uma idéia, enquanto a anencefalia
tem uma freqüência de 0,2% na população em geral, os casos de lábios leporinos é de
0,07% e de pé torto é de 0,1%.
As causas da anencefalia são difíceis de estabelecer. Esta mal-formação não é de hoje, no
entanto, os estudos demonstram uma incidência maior destes casos devido a fatores
ambientais, de modo direto, por causa dos altos índices de poluição aos quais a gestante
esta sujeita. É preciso recordar os casos que se registraram na cidade de Cubatão. Quando
os índices de poluição chegaram a patamares altíssimos, se registraram vários casos de
anencefalia, o que forçou a adoção de medidas ambientais. Hoje, ao que se sabe, o
problema praticamente desapareceu.
Quanto ao ácido fólico, vitamina essencial para evitar a mal-formação, poderia muito bem
ser acrescentado ao pão, consumido por todas as brasileiras, assim como o cloro é
acrescentado à água. Existe uma grande possibilidade de se evitar casos de anencefalia.
Cerca de 70 a 80% deles poderiam ser evitados. Nos EUA, por exemplo, ele foi
acrescentado aos cereais consumidos no café matinal, o que diminui fortemente a incidência
do fenômeno. Se já é rara, poderia ser evitada por completo, a exemplo de outras doenças
controladas pelas campanhas de vacinação.
A maioria dos médicos não recomenda à mãe os devidos cuidados necessários para uma
gestação e nascimento de uma criança sadia. A pobreza e o ambiente poluído no qual vive a
maior parte da população, realidade que tende a se tornar mais grave com o passar do
tempo devido aos problemas ambientais, aumentará cada vez mais a incidência destes
casos. Se não aprendermos a evitar a doença, tomando as medidas necessárias, fatalmente
teremos que aprender a conviver com casos semelhantes. É preciso que as políticas
ambientais também levem em conta estes problemas. Não são somente os animais e
plantas que estão sendo extintos. A ecologia humana comporta fazer com que o “bicho
homem” também possa se reproduzir normalmente e gerar vidas saudáveis. Infelizmente
nos deparamos com este problema, mas temos que reconhecer que o progresso
descontrolado e o mau gerenciamento dos recursos naturais afetam a vida humana na sua
fonte. Precisamos aumentar o acompanhamento direto das mulheres e gestantes, de modo
a evitar todas as possíveis causas do problema.
Talvez para muitos seja fácil dizer que a mulher deve abortar. Porém, o aborto, mesmo
nestes casos, comporta um drama psicológico muito forte para a mulher. Muitas mulheres,
depois de realizado o aborto, tentam o suicídio. Sim, porque além de sofrerem com a malformação do feto, sofrem também, quase sempre sozinhas, com o trauma de terem
eliminado injustamente uma vida. De ‘geradoras da vida' se vêem transformadas em
‘assassinas'. Temos que reconhecer que as mulheres e famílias não se deparam somente
com a mal-formação do filho, já por si uma situação dramática, mas devem também se
colocar diante de uma decisão moral e religiosa, igualmente problemática. Em nenhum dos
dois casos existe um acompanhamento psicológico, o que não deixa de ser um drama
pessoal e familiar. As acusações pela culpa da mal-formação acabam jogando a mulher e o
casal em traumas, muitas vezes, com seqüelas insuperáveis. Afirmo que, nestes casos, o
aborto não se revela a melhor opção.
A decisão é difícil. A maioria das mulheres, como primeira reação, opta pelo aborto, mas
esta decisão, de acordo com os psicólogos, deve ser superada. A mulher, quando aborta
considera ter rejeitado o filho pela sua mal-formação, o que se torna motivo de condenação
pessoal. Os estudos revelam que existindo acompanhamento e respeito aos princípios do
casal, 63,5% dos casais decidem não abortar.
É ainda preciso lembrar um elemento importante. Para a mulher, assim como para os
casais, a gravidez e o filho representam o apogeu de uma trajetória de realização e a
concretização de um desejo pessoal. O filho é extensão dos pais e do seu amor. É também
a extensão de esforços profissionais e anos de trabalho. “Para quem vou deixar tudo ? ”;
“Para que tanto esforço se não tenho para quem deixar ? ” Muitas vezes o filho deixa de ser
visto como um dom. O filho se torna um desejo, assim como se desejam coisas. E quando a
realização do desejo não é possível, a não aceitação de limites se torna inaceitável. O
desejo se torna obsessão. Ora, vivemos no mundo dos desejos e da perfeição, do ilimitado,
do “tudo é possível”. Quando algo não é possível, é preciso eliminar todas as barreiras. O
que não é perfeito, do jeito que se deseja, elimina-se ou troca-se. Além disto, o período de
gestação é longo demais diante dos apelos e empenhos aos quais a mulher hoje se vê
forçada. Acabou o tempo da espera, da demora, tudo deve ser para ontem. Porque obrigar
uma mulher a esperar meses por um nascimento se o filho que vai nascer morrerá ?
Neste caso, a aceitação do filho com anencefalia ou de qualquer filho defeituoso somente é
possível quando se aceita os limites da natureza humana e se supera a idéia de que todo
desejo deve se tornar realidade. Mas, para muitos, esta é uma reflexão por demais
abrangente e distante, para um problema que é momentâneo. Temos que aprender a tratar
dos problemas de forma ampla. Como lembra J. Lejeune, “se a saúde da mãe está
ameaçada, se mata a criança; se a saúde da criança está ameaçada, se mata a criança; se
a saúde pública está ameaçada, se mata a criança”. É preciso lembrar também que o aborto
não cura o paciente, no caso a criança, e nem resolve o problema, mas simplesmente mata
o paciente.
Dito isto, é preciso dar atenção à questão central do tema. Quando começa a vida humana
e quando existe uma vida humana ? É na concepção, como afirma a Igreja ? É no 14º dia
depois da fecundação, a partir da implantação do embrião no útero e quando se perde a
capacidade de formar gêmeos ? É no momento das primeiras ondas elétricas cerebrais ? É
no momento do nascimento ? É aos sete anos, quando a criança passa a ter consciência de
seus atos ? Como se percebe, as posições variam. A Igreja acredita que a fecundação do
óvulo e espermatozóide inicia uma nova vida que, num processo gradativo, contínuo e
coordenado desenvolve uma nova individualidade humana, um novo ser humano. Neste
processo não existem saltos qualitativos. Não há um momento em que se possa estabelecer
o início da “pessoa humana”. Ou já é desde o início ou nunca será. Não existe um “mais
pessoa” ou um “menos pessoa”, nem durante a gravidez nem durante a vida toda. Portanto,
cada fecundação cria um embrião humano que deve ser respeitado como respeitamos todas
as pessoas. Afinal, como ele é, assim já éramos nós um dia! O embrião não é um acúmulo
de células, mas um ser humano que, embora ainda não tenha todas as características
humanas plenamente desenvolvidas, já deve ser respeitado como tal. Da fecundação do
óvulo e do espermatozóide humanos sempre resulta um ser humano, portanto, não se pode
eliminá-lo.
Existe um “salto qualitativo” no desenvolvimento do feto a tal ponto de podermos dizer que
a partir de um exato momento estamos em presença de um ser humano e que antes
daquele momento demarcado somente existia uma vida humana ? É certo que existe um
“salto quantitativo” neste desenvolvimento, mas não “qualitativo”. O que não é humano
desde o início também não o será depois disto. A partir da concepção estamos na presença
de um ser humano que se desenvolverá, atingindo sua plena maturidade. Acaso um ser
humano pode não ser considerado uma pessoa humana ? O embrião, o feto é a pessoa em
vias de sê-la. Precisa tempo para chegar a ser o que já é. Se eventualmente neste processo
algo deixar de se desenvolver, mesmo que seja somente uma parte de algum órgão ou até
mesmo o cérebro, o que distingue a pessoa humana, o que está no ventre materno é um
ser humano e deve ser respeitado como tal.
Chamo também a atenção para uma outra questão. Existem aqueles que somente
consideram humanos aqueles capazes de se relacionar. E se este critério passasse a ser o
prioritário para considerar um feto humano ? Neste caso, se a mãe e a família, se a
sociedade não reconhecesse como humano um feto porque incapaz ainda de relacionar-se,
então ele poderia também ser eliminado ? Neste caso não teríamos como condenar Hitler
pela sua ideologia. B. Häring, moralista católico, lembrava muito bem que não são as
relações sociais que fazem as pessoas, mas são as pessoas que fazem as relações sociais.
Quem já não é pessoa não o será, mesmo depois de anos de convivência social. As relações
sociais somente aperfeiçoam a pessoa, mas não a fundamentam.
Além desta questão, temos que refletir sobre a chamada “morte cerebral”. A Igreja aceita o
princípio médico que estabelece este momento como a morte física da pessoa. Morre o
corpo, mas não a pessoa. Afinal, a pessoa é corpo e alma. Neste caso, precisa recordar que
a morte não é somente um ato físico, puramente biológico, mas é um dos elementos a ser
considerado. Realizados os exames obrigatórios e não se constatando mais a presença de
atividade elétrica no cérebro, observados os tempos estabelecidos, constata-se a morte e se
pode desligar os aparelhos que ainda mantinham a atividade do coração e pulmões e
oxigenavam os demais órgãos que podem ser doados para transplantes, depois do parecer
favorável da família. Ora, assim como o paciente está ligado à máquina, embora já não
tenha mais atividade cerebral, assim está o feto com anencefalia ligado à mãe por meio do
cordão umbilical e por meio dele recebe os nutrientes necessários à sua vida. Cortado este
cordão e dependendo da gravidade da mal-formação, este feto morrerá em pouco tempo.
Pode-se comparar a morte cerebral de uma pessoa com a morte cerebral de um feto com
anencefalia ?
Existe uma diferença entre o feto com anencefalia e o paciente com morte cerebral. A morte
cerebral é irreversível e o desligamento da máquina somente fará com que o coração e o
pulmão parem de funcionar. No caso da criança que nasce com anencefalia, mesmo com a
baixa expectativa de vida, ela possui o tronco encefálico, respira após o nascimento, esboça
movimentos e, como ser vivente, a ninguém é dado o direito de praticar o homicídio,
promovendo a retirada de órgãos para serem transplantados. Lembro ainda que a
Resolução nº 1.480/97, do Conselho Federal de Medicina, estabelece que o critério de morte
encefálica em portador de lesão irreversível de tronco encefálico somente poderá ser
considerado após o sétimo dia de vida. As crianças com anencefalia simplesmente não
podem ser incluídas sob a terminologia de “morte cerebral”, ao menos na base da nossa
atual definição de morte, pois tem tronco cerebral que torna possível a respiração e o
batimento cardíaco.
A morte cerebral é sinal indicativo de morte humana, mas no caso do bebê, não. A criança
com anencefalia não está morta, pois “o tronco cerebral está presente nos fetos com
anencefalia e permite, em alguns casos, uma sobrevivência de alguns dias, fora do útero
materno”. Além disto, as tentativas de declarar morta uma criança com anencefalia
representa mais um passo na progressiva aceitação de algo menos que a morte legal para o
objetivo de angariar órgãos transplantáveis. Michele Aramini, bioeticista católico, afirma que
“tal prática poderia tornar-se uma tendência e ser estendida a outras categorias de
pacientes, com os sujeitos que se encontram em estado vegetativo permanente”. Este
interesse não é somente da mãe e da sua família, mas de se ter órgãos para transplantes.
Além disto, a liminar contribui para aquela abertura para a legalização total do aborto.
Louvável, neste caso, a atitude dos tribunais de alguns países que não aprovaram parecer
semelhante sobre o caso, assim como vários de nossos juízes e desembargadores da justiça
que se manifestaram contra a liminar.
Chamo a atenção que, tanto no estabelecimento da morte cerebral de paciente adulto
quanto de um feto ainda no útero materno, é preciso ter total certeza médica da morte
cerebral. Causam alarme e geram sérias dúvidas os casos de pacientes que não morreram
depois de decretada a morte cerebral. O exame de eletroencefalograma (EEG) deve ser
total e não somente parcial. Há casos em que o tronco cerebral ainda se mantém em
funcionamento, ao contrário da parte superior do cérebro. Será que no nosso país existe
realmente certeza médica nos casos de anencefalia ? Será que os exames que decretaram a
anencefalia são revistos ou refeitos, uma vez que nos fetos com anencefalia este exame
nem sempre consegue captar atividade elétrica ou que existe uma retomada da respiração
espontânea, mesmo depois de algumas horas de parada respiratória. E os inúmeros casos
de diagnósticos de mal-formação física e outras doenças que não se confirmam ? Além
disto, não se pode sempre estabelecer com total certeza se a mal-formação comportará a
morte automática da criança no nascimento. Além disto, como é possível estabelecer a
“morte cerebral” num feto que não tem o cérebro ?
Causou uma longa discussão a lei de doação no nosso país que estabelecia a “doação
presumida” de órgãos, caso a pessoa não se tivesse declarado contrária à doação de seus
órgãos. A insegurança e o medo dos erros médicos nos casos de “morte cerebral” gerou
uma onda contrária à doação de órgãos pós-morte. Com as pressões sociais e do Conselho
Federal de Medicina a lei foi revista. No caso desta medida, não seria o caso de se tomar
atitude semelhante ? Neste caso, lembro que a Associação Médica Americana mudou as
suas recomendações sobre a retirada de órgãos de crianças com anencefalia. Em 1994 o
Conselho de ética desta Associação havia dado parecer favorável para esta prática. Segundo
a nova posição, assumida em 1997, esta prática rompe a regra que o doador de órgãos
deve estar morto, o que não acontece nos casos de crianças com anencefalia. A prática do
aborto, neste caso, não é a retirada de um feto já morto, mas a morte de um ser vivente
com a finalidade de evitar sofrimentos à mãe ou para favorecer a vida de outra pessoa,
quando os órgãos deste feto são doados. Por isto recordo o pensamento de E. Sgreccia,
quando afirma que “o fato de a criança estar condenada a morrer por si não constitui uma
razão suficiente para sua supressão, pois não se pode comparar a morte natural com a
morte direta; se assim fosse, acabar-se-ia por justificar com esse princípio qualquer ato de
eutanásia”.
Ainda segundo tal Associação, “a nova recomendação dará tempo aos pesquisadores para
aprenderem mais a respeito de função cerebral e crianças com anencefalia. Os
pesquisadores querem esclarecer se essas crianças têm o potencial de desenvolver algum
grau de consciência”. Como ainda lembra o moralista católico e bioeticista francês, P.
Vespieren, das discussões realizadas sobre o assunto, o único consenso criado foi em torno
da terminologia e não sobre a liceidade moral do ato. Este fato escapa, segundo o parecer
dos moralistas, da norma geral sobre o aborto. Do meu ponto de vista, ressalto que se p
recisa não somente de uma certeza biológica, física, mas de uma certeza moral, a máxima
certeza e esta, nestes casos, não existe. Assim, enquanto existe dúvida, sempre é melhor
legislar em favor do réu, como reconhece muito bem o direito. Afirmo que estes fetos
devam ser protegidos e cuidados da mesma forma com a qual tratamos todas as pessoas
que são dependentes dos outros.
Algumas pessoas e moralistas não consideram ser um aborto a eliminação de fetos com
anencefalia. Simplesmente não incluem este caso nos casos de aborto. Há uma longa
discussão sobre o assunto e as opiniões realmente divergem entre si. Mas, lembramos
também que existem pessoas que não têm pleno uso do cérebro. Aqueles que se encontram
em coma, por exemplo, ou mesmo os deficientes mentais. Com relação à aprovação de um
tal procedimento como o do aborto de crianças com anencefalia, teme-se pela eliminação
legal de fetos defeituosos e mesmo daqueles que ainda não chegaram ao pleno
desenvolvimento cerebral, como no caso de embriões congelados. Hoje existe já uma forte
pressão para que estes embriões, por ainda não sentirem dor e sentimentos, possam ser
destinados a ser usados para tratamentos de doenças como o mal de Parkinson, Alzheimer
e outras mais.
Tal liminar do ministro, portanto, contribui para enfraquecer o direito inalienável de toda
vida humana vir a nascer e que algumas pessoas comecem a ver uma certa justificação do
aborto na compensação moral do possível benefício para a mãe e a família que dele poderia
se seguir. Mantenho-me no princípio de considerar como sendo “vida humana” todo fruto da
concepção humana e penso que se deva respeitar a sua trajetória natural.
Afirma-se que em torno de oito semanas já se percebem atividades elétricas no cérebro de
um feto normal, mas a psicologia tem demonstrado que já mesmo antes desta data o feto
armazena ações e reações da mãe e do ambiente familiar que muitas vezes somente vem à
tona por meio de regressões feitas para esclarecer certos traumas. O fato é que, em se
tratando do início da vida, embora tenhamos muitos elementos biológicos já analisados,
existem ainda muitas dúvidas com relação a este início. No entanto, retornemos à questão:
um feto sem cérebro pode ser considerado como não sendo um ser humano e, portanto,
sem direito à vida ? A resposta deve ter presente que são seres humanos aqueles que ainda
não formaram o cérebro, aqueles que perderam total ou parcialmente a capacidade
cerebral, como os que estão em coma e aqueles que apresentam problemas cerebrais.
Afinal, se consideramos ser possível eliminar crianças sem cérebro, por que não poderíamos
eliminar as pessoas que não o utilizam ?
Aceno ainda a outro problema. As últimas pesquisas afirmam que no Brasil a doação de
órgãos aumentou muito nos últimos anos. Mas, ao lado deste número animador está outro
assustador: 63% dos órgãos são comercializados e são clandestinos. Comércio de órgãos de
pessoas adultas, de fetos abortados espontaneamente e tantos outros. Enquanto existirem
números assim, será difícil acreditar que não hajam interesses outros ligados àquela de
prestar solidariedade a mulher. No caso particular das crianças com anencefalia, elas são
praticamente a única fonte de órgãos de pequenas dimensões, considerando que somente
1% dos possíveis beneficiários de transplante em idade pediátrica recebe um órgão doado.
É interessante observar como utilizamos nossos modernos meios para matar e não para
favorecer a vida. As instituições estatais, por exemplo, gastam somas muito mais altas para
deixar presos adolescentes infratores do que as instituições particulares. Além disto, os
resultados da recuperação destes adolescentes é bem maior nestas instituições particulares
do que naquelas estatais, onde, como afirmam os próprios usuários, vive-se na
“universidade do crime”. Da mesma forma, os modernos meios de ultra-sonografia e
ecografia, em vez de servirem para realizar exames para detectar uma doença e deste
modo, ajudar as equipes médicas na correção de problemas, passam a ser a certidão de
óbito da criança. Se agíssemos assim com todos os doentes, jamais chegaríamos a solução
de doença alguma. Eliminar um doente sem estudar as causas e possíveis tratamentos
empobrece a medicina e adia ou impossibilita o avanço científico. Da mesma forma que o
conhecimento da medicina fica estagnado, outras ciências, particularmente a psicologia, não
conseguem criar um programa de acompanhamento para estes casos. Os conhecimentos
adquiridos nos tornam somente mais responsáveis pela morte do feto e aumenta nossa
culpa pelo aborto praticado.
Interessante observar também que os governos não conseguem elaborar programas de
assistência para as mulheres e famílias que passam por problemas nos casos em que se
insiste com a prática do aborto. Parece ser o caminho mais fácil e que compromete menos a
já tão escassa economia nacional e o orçamento do programa de saúde nacional. Se já os
pobres e idosos sofrem com a falta de assistência pública e de saúde, o que dizer destes
casos. Todos conhecemos a dificuldade dos pacientes e de suas famílias quando necessitam
de remédios e tratamentos especiais. Muitas vezes a solução chega por meio de campanhas
de solidariedade e de sensibilização da sociedade. E quanto bem elas tem feito, pois
acabam sensibilizando a sociedade e colaborando para a consciência de que nenhum de
nós, na verdade, é perfeito.
Para os casais e, particularmente, para as mulheres, cabe chamar a atenção que a tarefa de
ser mãe comporta o oferecimento de si mesmo. Todos condenamos os abusos sexuais e
violências praticadas contra mulheres, muitas delas pelo próprio companheiro ou esposo,
assim como reconhecemos ser necessário melhorar as condições sociais e ambientais para
que o ser humano possa continuar gerando vidas humanas saudáveis. Sempre se diz, “ser
mãe é uma vocação”. Um chamado que comporta a entrega da própria vida. Esta pode se
dar no dia a dia ou até mesmo no ato heróico de aceitar a própria morte para salvar a vida
do filho ainda por nascer. Não se pode querer ser mãe sem este grau de responsabilidade e
consciência. Neste caso, assumir um filho mal-formado ou com graves deformações que o
levam inevitavelmente à morte é sempre uma resposta àquela doação total. Heróicas
aquelas mães que deram suas vidas para gerar novas vidas. Elas deixam marcas na
sociedade e elevam o próprio espírito quando, de forma abnegada, acompanham o
sofrimento do filho gerado e desenganado pelos médicos. Louvável a atitude de mães e pais
que se fazem doadores de órgãos para seus filhos quando assim se faz necessário. Estas
atitudes são guardadas na consciência coletiva e elevam o espírito humano, contribuindo
para que outros também façam gestos semelhantes em favor do próximo.
Por fim, eu não entendo porque esta mistura de sentimento de derrota, de intranqüilidade e
silêncio se instala, sempre que se escutam discussões em torno do aborto, mesmo em se
tratando de fetos com anencefalia. A verdade se concebe por si somente e não por meio da
força ou de liminares. Eu simplesmente não me sinto tranqüilo e algo aflige minha
consciência. Estamos agindo certo ? Afinal, o que é um feto com anencefalia ?
ENDEREÇO DO AUTOR:
Av. Flores da Cunha, 171
94910000 – CACHOEIRINHA – RS
Fone: (51) 4711531
E-mail: [email protected]
FORMAÇÃO DO AUTOR:
Mestrado em Filosofia e Teologia
Mestrado em Teologia Moral
Mestrado em Ciências Ambientais
Doutor em Teologia Moral e Bioética
O Supremo e o Homicídio Uterino
Ives Gandra da Silva Martins(*)
Tenho pelo Ministro Marco Aurélio pessoal admiração, pela coragem de suas decisões e
pelo acentuado amor ao direito, à justiça e à cidadania que sempre demonstrou nutrir.
Por essa razão, é com imenso desconforto que escrevo este artigo discordando da
decisão favorável à morte de nascituros, que proferiu nos estertores do primeiro
semestre.
Estou convencido -- apesar de ser eu um modesto advogado de província e ele,
brilhante guardião da Constituição -- de que a decisão é manifestamente
inconstitucional. Macula o artigo 5º da lei suprema, que considera inviolável o direito à
vida. Fere o § 2º do mesmo artigo, que oferta aos tratados internacionais que cuidam
de direitos humanos a condição de cláusula imodificável da Constituição. Viola o artigo
4º do Pacto de São José, tratado internacional sobre direitos fundamentais a que o
Brasil
aderiu,
e
que
declara
que
a
vida
começa
na
concepção.
Juridicamente, a antecipação, pelo aborto, da morte do anencéfalo é vedada pelo texto
maior
brasileiro.
O argumento de que o anencéfalo pode ser abortado porque está condenado à morte
escancara o caminho para a eutanásia de todos os doentes terminais ou afetados por
doenças incuráveis. Possibilita a cultura do eugenismo, no melhor estilo do nacionalsocialismo, que propugnava uma raça pura, eliminando os imperfeitos ou socialmente
inconvenientes. Fortalece a hipocrisia dos que defendem o aborto de seres humanos,
embora considerem crime hediondo provocar o aborto em uma ursa panda ou eliminar
baleias. Os animais merecem, de alguns -- e tenho a certeza de que meu prezado amigo
Ministro Marco Aurélio não está entre eles --, mais proteção do que o ser humano, no
ventre materno. Enfim, a decisão do antigo Presidente da Suprema Corte abre uma
enorme avenida para os cultores da morte, os homicidas uterinos, os que pretendem
transformar
o
ser
humano
em
lixo
hospitalar.
Nos Estados Unidos, a Suprema Corte americana, no caso Dred Scott, em 1857,
defendeu a escravidão e o direito de matar o escravo negro, à luz dos seguintes
argumentos: 1) o negro não é uma pessoa humana e pertence a seu dono; 2) não é
pessoa perante a lei, mesmo que seja tido por ser humano; 3) só adquire personalidade
perante a lei ao ser liberto, não havendo antes qualquer preocupação com sua vida; 4)
quem julgar a escravidão um mal, que não tenha escravos, mas não deve impor essa
maneira de pensar aos outros, pois a escravidão é legal; 5) o homem tem o direito de
fazer o que quiser com o que lhe pertence, inclusive com seu escravo; 6) a escravidão é
melhor
do
que
deixar
o
negro
enfrentar
o
mundo.
Em 1973, no caso Roe vs. Wae, os argumentos utilizados, naquele país, para hospedar o
aborto foram os seguintes: 1) o nascituro não é pessoa e pertence à sua mãe; 2) não é
pessoa perante a lei, mesmo que seja tido por ser humano; 3) só adquire personalidade
ao nascer; 4) quem julgar o aborto mau, não o faça, mas não deve impor essa maneira
de pensar aos outros; 5) toda mulher tem o direito de fazer o que quiser com o seu
corpo; 6) é melhor o aborto, do que deixar uma criança malformada enfrentar a vida
(Roberto Martins, Aborto no Direito Comparado , in A Vida dos Direitos Humanos ,
Sérgio
Antonio
Fabris
Editor,
1999).
Como se percebe, a corte americana usou os mesmos argumentos para justificar a
escravidão
e
o
aborto.
Meu caro amigo Ministro Marco Aurélio -- de quem divergir no episódio causa-me
profundo desconforto --, ao justificar o aborto, que é a pena de morte, no caso do
nascituro anencéfalo, por ser ele um condenado à morte, está, também, justificando a
pena de morte a todos os doentes terminais, pela eutanásia, e abrindo a porta para o
culto à raça pura, inclusive às manipulações genéticas para que sejam produzidos
somente seres humanos perfeitos e saudáveis, e -- o que é pior -- valorizando a cultura
da morte e não a defesa da vida. Uma vez aberto o caminho, por ele passarão todas as
teses
antivida.
Espero -- pois a Constituição garante a todos os seres humanos, bem ou malformados,
sadios ou doentes, o direito à vida desde a concepção, sendo a morte apenas a
decorrência natural de sua condição e não a decorrência antecipada de convicções
ideológicas -- que venha a rever seu voto, quando a questão for levada ao plenário.
Espero, também, que seus pares homenageiem a vida, proscrevendo a morte
antecipada.
(*) Ives Gandra Martins é Advogado e Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da
Federação do Comércio do Estado de São Paulo. O presente artigo foi publicado, com
sua autorização, no Jornal do Brasil - Caderno Opinião em 15/07/2004.
O Recém Nascido Anencefálico e a Doação de Órgão
COMITE NACIONAL PARA A BIOÉTICA
Na defesa da vida em suas fases iniciais, o texto que segue foi aprovado por unanimidade,
em 21 de junho de 1996, pelo Comitê Nacional de Bioética da Itália, com o título " O
Recém-Nascido Anencefálico e a Doação de Órgãos". Este analisa, em profundidade e sob
diferentes perspectivas (médico-científica, psicológica, jurídica, ética, estatistica, etc.),
questões várias relativas à anencefalia e ao anencéfalo.
TEXTO APROVADO PELO C.N.B. em 21 de Junho de 1996
PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DOS MINISTROS DEPARTAMENTO PARA A INFORMAÇÃO E
PUBLICAÇÃO
APRESENTAÇÃO
Embora muito sensível e dividida sobre questões bioéticas, por sinal objetivamente cruciais,
como a fecundação assistida, a eutanásia, o estatuto do embrião humano, a opinião pública
tem com certeza bem poucas dúvidas no que se refere à liceidade ética da doação de
órgãos e de maneira mais geral dos transplantes: prática essa que provavelmente suscita
ainda (e pour cause) sentimentos complexos caracterizados por uma estreitíssima
alternância entre admiração e temor, mas que mesmo assim parece já ter entrado numa
lógica de rotina, de altíssimo nível. Mas com relação aos transplantes, as questões bioéticas
continuam a apresentar-se, embora em formas a não envolver (ou a não envolver mais) a
atenção neurótica dos meios de comunicação de massa: caso limitado, mas exemplar,
justamente aquele da doação de órgãos na infância a partir de bebê anencefálico. Mesmo
assim o Comitê Nacional para a Bioética, profundamente convicto que seja sua função levar
muito a sério e dar pronta resposta aos questionamentos bioéticos que emergem da opinião
pública, mesmo quando objetivamente superdimensionados, não por isto considera
irrelevante tomar posição sobre questões que muitos considerariam marginais, seja por sua
eventual sofisticação teórica, seja por sua limitada incidência estatística. Um caso típico é o
dos recém-nascidos nos quais se manifestem formas de anencefalia: Patologia esta da qual
geralmente se tem conhecimento entre um restrito número de pessoas, especialistas em
sua maioria. Mesmo assim o problema bioético das crianças anencefálicas é de grande
relevo e deve ser considerado sob diversos aspectos. Além de estimular sérias reflexões
sobre a dignidade de pessoa que de qualquer forma a tais crianças deve ser reconhecida,
este problema põe em discussão temáticas relativas à oportunidade de sua reanimação, à
determinação do momento de sua morte e principalmente à liceidade de fazer uso de seu
corpo como fonte de órgãos a serem transplantados. Mas os questionamentos não se
limitam a estes. Não esqueçamos, por exemplo, o significado que pode ter um diagnóstico
pré-natal de anencefalia do feto para seus pais. Tais problemáticas já chamaram a atenção
do CNB durante a elaboração de alguns de seus mais importantes documentos a partir do
primeiro, Definição e Constatação Da Morte no Homem (aprovado a 15 de fevereiro de
1991); Além deste documento limito-me a lembrar Diagnósticos Pré-Natais (18 de Julho de
1992), Transplante de Órgãos na Infância (21 de Janeiro de 1994), Bioética com a Infância
(22 de Janeiro de 1994), até o mais recente, Vir ao Mundo (15 de Dezembro de 1995). O
fato do tema da Anencefalia ser continuamente recolocado mesmo de maneira transversal,
convenceu afinal os membros do Comitê a organizar, sobre este tema, um grupo específico
de trabalho, para a direção do qual foi designado o professor Conrado Manni, para que fosse
elaborado um texto sintético mas exaustivo, que pudesse servir como orientação sobre o
Estatuto Bioético a ser reconhecido aos bebês anencefálicos, particularmente no que diz
respeito à possibilidade de utilizá-los como doadores de órgãos. O grupo do qual
participaram os colegas Barni, Benciolini, Coghi, Danesino, Gaddini, Leocata, Loreti Beghè,
Sgreccia e Romanini, levou rapidamente ao final os seus trabalhos que foram examinados,
discutidos e mais de uma vez ulteriormente discutidos pelo Comitê, reunido em sessão
plena. Para elaboração do documento colaboraram também o Prof. Rodolfo Proietti e o Dr.
Lorenzo Martinelli do Instituto de Anestesiologia e Reanimação da Universidade Católica do
Sagrado Coração de Roma e o Prof. Píer Paolo Mastroiacovo do Instituto de Clinica
Pediátrica da mesma universidade. No dia 21 de Junho de 1996, se deu afinal a aprovação
unânime do documento.
No momento de entregá-lo à imprensa, sinto o dever de expressar um agradecimento e
formular um desejo. Um agradecimento para aqueles que colaboraram na redação deste
documento principalmente para Conrado Manni, sem cuja decisiva contribuição científica e
bioética, este documento nunca viria à luz; e o desejo de que este texto seja lido, meditado
e amplamente discutido como ele merece.
Roma, 21 de Junho de 1996.
O Presidente
Francesco D' Agostino
PREMISSA
O problema do recém-nascido anencefálico assumiu nestes últimos anos uma importância
cada vez maior sob vários aspectos: médico, técnico, jurídico mas principalmente ético.
Em 1967 foi relatado o primeiro caso de transplante de doador anencefálico, mas a relação
científica não enfrentou de maneira alguma as numerosas questões que tal procedimento
levantava, limitando-se a descrever os aspectos técnicos e observando que “os recémnascidos anencefálicos eram uma escolha razoável como doadores para os transplantes
infantis” (1). Hoje em dia o verbete “anencephaly” do Index Médico, traz dezenas de
referências, com notável aumento a partir de 1984; muitas delas analisam também a
temática ética que este campo da medicina suscita (2).
Isto significa que, junto com o aumentado interesse científico relativo aos transplantes,
suscitado pelo feto anencefálico, cresceu também uma reflexão ética bastante extensa,
reflexão esta que estava faltando no momento em que o problema se apresentou. Um
primeiro conjunto de problemas se refere ao tratamento médico do anencéfalo após o
nascimento: este aspecto se tornou mais evidente com a disponibilidade cada vez maior de
meios de terapia intensiva e com os questionamentos que tal disponibilidade suscita neste
caso particular.
Um segundo conjunto de problemas, bem mais amplo e controvertido, compreende os
aspectos relativos ao possível uso dos fetos anencefálicos, como doadores de órgãos para
transplantes: este aspecto adquiriu grande importância devido aos progressos das técnicas
dos transplantes nestes últimos anos; progressos que tornaram possíveis os transplantes
também em idade neonatal e tornaram mais aguda a escassez de órgãos para esta
específica faixa etária.
As causas de morte cerebral são, por outro lado, bastante raras em idade infantil e a
disponibilidade de doadores é limitada aos casos de morte por asfixia perinatal, aos casos
de morte súbita neonatal (sudden infant death syndrome) acidentes ou maus tratos (child
abuse) (2).
Antes, porém, de adentrar-se nas problemáticas éticas do recém-nascido anencefálico fazse necessário um aprimoramento da terminologia: alguns autores têm contestado como
errada a simples denominação de anencéfalo, pois ela levaria a considerar esses sujeitos
como seres despersonalizados. Analogamente, é impróprio defini-los como doadores de
órgãos, porquanto, na idade neonatal e infantil, não se pode falar em doação, ação que
supõe capacidade de entender e querer livremente (3). Mesmo aceitando tais observações,
os termos em questão serão aqui indiferentemente usados, por motivos de praticidade.
Serão considerados, num primeiro momento, os aspectos biológicos fundamentais, com as
margens de incerteza que ainda subsistem, e, num segundo momento, os aspectos
antropológicos e éticos relativos à problemática do recém-nascido com malformação
anencefálica.
ASPECTOS BIOMÉDICOS DA ANENCEFALIA
Definição: Literalmente, anencefalia significa ausência do encéfalo. Na realidade, define-se
com este termo uma mal formação rara do tubo neural acontecida entre o 16° e o 26° dia
de gestação, na qual se verifica “ ausência completa ou parcial da calota craniana e dos
tecidos que a ela se sobrepõem e grau variado de mal formação e destruição dos esboços
do cérebro exposto” (4) Verifica-se portanto ausência dos hemisférios cerebrais e dos
tecidos cranianos que os encerram com presença do tronco encefálico e de porções
variáveis do diencéfalo. A ausência dos hemisférios e do cerebelo pode ser variável, como
variável pode ser o defeito da calota craniana. A superfície nervosa é coberta por um tecido
esponjoso, constituído de tecido exposto degenerado.
Este é o quadro de referência geral da malformação anencefálica; não se deve, todavia,
pensar que esta malformação seja rigorosamente definível. O autor de um texto qualificado
sobre anencefalia, estranha, com razão, a variedade de denominações e de classificações
que existem na literatura sobre o assunto (4).
A dificuldade de classificação baseia-se sobre o fato de que a anencefalia não é uma
malformação do tipo tudo ou nada, ou seja, não está ausente ou presente, mas trata-se de
uma malformação que passa, sem solução de continuidade, de quadros menos graves a
quadros de indubitável anencefalia. Uma classificação rigorosa é, portanto quase que
impossível (5).
Algumas malformações do sistema nervoso central são próximos da anencefalia por alguns
aspectos, mas não podem ser confundidas com ela. Entre elas lembramos:
- A síndrome da banda amniótica (na qual a anencefalia pode associar-se a amputações,
mas raramente a malformações de órgãos internos);
- A iniencefalia, na qual temos malformações graves da coluna cervical e
malformações múltiplas;
- O encefalocele, um defeito do tubo neural no qual uma parte do encéfalo, mais ou menos
gravemente mal formado, forma uma hérnia a partir de um defeito de fechamento do crânio
.(6)
Junto com tais malformações deve ser lembrada também a hidrocefalia, cujas formas mais
graves podem ter significado funcional análogo ao da anencefalia (7); por este motivo,
também esta malfomação è freqüentemente citada no debate sobre o feto anencefálico (8)
Malformações associadas - são numerosas as malformações associadas a esta patologia:
- graves e freqüentes as malformações de órgãos cranianos, como olho, ouvido e hipófise.
- menos freqüentes as malformações do aparelho cardiocirculatório (2.8%) em comparação
a 0,4% da população em geral e do aparelho genito-urinário (de 4 a 26%) (9,36) em
comparação a 8,4% da população em geral. Tal incidência, embora deva ser levada em
consideração e ela seja, até ao momento presente, de avaliação não definitiva, fez com que
se concluísse que rins, fígado e coração, mesmo geralmente de dimensões mais reduzidas
em relação ao peso corpóreo e acometidos por uma percentagem maior de malformações,
são, na maioria dos fetos anencefálicos nascidos vivos, aptos pelo menos no começo a
serem transplantados (10,91,36).
Segundo os dados do IPIMC (Inquérito Policêntrico Italiano Malformações Congênitas) em
55 autópsias realizadas em recém-nascidos anencefálicos, 20 recém-nascidos apresentavam
uma malformação associada, e entre eles 7 apresentavam uma cardiopatia. O peso médio
era de 1.982 g para recém-nascidos sem malformações, 1670 para recém-nascidos com
malformações extra cardíacas e 1355 g para recém-nascidos com cardiopatia.
Etiologia: não è conhecida, mas se pensa numa origem multi fatorial na qual fatores
genéticos e ambientais desenvolvam um papel proeminente; Não se trata de uma mal
formação comum nas infecções virais e na patologia cromossômica. Prevalência: A
prevalência da anencefalia embora variável devido aos critérios de diagnósticos e às
medidas de “ screening prenatale”, é da ordem de grandeza de 0,3-1 por mil nascidos
(11,12,13), considerando seja os nascidos mortos como os nascidos vivos. Este dado
apresenta uma diminuição de cerca de 5% por ano e de 2,7% dos anencéfalos nascidos
vivos. Pode-se prever, como conseqüência dos sempre mais amplos planos de “screening”
pré-natal, que a prevalência dos defeitos do tubo neural ao nascimento será cada vez mais
reduzida.
Segundo os dados do IPIMC (Inquérito Policêntrico Italiano Malformações Congênitas) que
se referem a 1.793.000 nascidos, observados no período de 1978-1994 em cerca de 100
hospitais italianos, verificaram-se 185 casos de recém-nascidos anencefálicos dos quais 120
nascidos vivos (68 falecidos dentro das 24 horas) e 65 nascidos mortos.
Nos últimos 5-6 anos a prevalência da anencefalia é de cerca de 0.5- 1 por 10.000
nascidos. Reportando esses dados ao total dos nascimentos na Itália (cerca de 520.000 por
ano) pode-se prever o nascimento anual de 25 a 50 recém-nascidos anencefálicos.
Diagnóstico: o diagnóstico pré-natal é possível graças ao “screening” da alfa fetoproteína
materna e a ultra-sonografia. Os dois métodos associados demonstraram sobre “ screening”
di larga escala, uma sensibilidade entre 80 a 100% (14,15,16,17). De notar que muitas
legislações permitem a interrupção da gravidez na presença de malformações graves do
feto. Uma recente pesquisa revelou que no caso da anencefalia a interrupção voluntária da
gravidez acontece em cerca de 80% dos casos (96).
O diagnóstico é feito muitas vezes antes da vigésima semana de gestação (18).
Aspectos funcionais: O feto anencefálico é gravemente deficiente no plano neurológico.
Faltam as funções que dependem do córtex. Faltam, portanto não somente os fenômenos
da vida psíquica mas também a sensibilidade (19,20), a mobilidade (21), a integração de
quase todas as funções corpóreas (22). Geralmente é mantido um controle mais ou menos
eficaz da função respiratória e circulatória, funções que dependem das estruturas
localizadas no tronco encefálico.
Sobrevivência: com os atuais tratamentos a sobrevivência do anencefálico é muito reduzida.
São relatadas percentagens de nascidos vivos entre 40 – 60% (23-24) enquanto depois do
nascimento somente 8% sobrevive mais de uma semana e 1% entre 1 e 3 meses (26 e 26).
Foi relatado um caso único de sobrevivência até 14 meses (8) e dois casos de sobrevivência
de 7 a 10 meses, sem recorrer a respiração mecânica (97).
O registro da British Columbia no período 1952-1981 registrou 450 anencéfalos, dos quais
60% nascidos mortos e 40% nascidos vivos. Dos 180 nascidos vivos, 58% não sobreviveu
além das 24 horas. A mortalidade até 72 horas foi de 86% e de 98% até uma semana (25).
Apesar de uma expectativa de vida tão reduzida não é sempre possível definir a iminência
do óbito (27) e a duração da vida pode ser influenciada em muito pelos tratamentos
intensivos.
Somente em pequena parte se assiste a uma progressiva degeneração do tecido nervoso,
visto que a lesão aparece geralmente estabilizada no momento do nascimento. Um risco
elevado se dá no momento do parto, devido ao trauma que o tecido nervoso resíduo sofre
não sendo protegido pelas estruturas ósseas. Sucessivamente a morte ocorre
principalmente por insuficiência respiratória causada pela insuficiência das estruturas
nervosas de controle ou pela displasia pulmonar e em pequena parte por anomalias
múltiplas de tipo endócrino (hipófise, supra-renais) (4,28,29).
Recentemente, surgiu nos EUA um caso médico legal (conhecido como o caso do Bebê K)
conseqüente ao nascimento com parto cesariano de uma recém-nascida anencefálica cuja
condição era conhecida desde a vida intra-uterina. A mãe se opôs a interrupção da
ventilação mecânica que fora instituída depois do nascimento. A Corte Distritual sentenciou,
baseada no “ Emergency Treatment Act” que o tratamento respiratório com ventilador não
era nem “inútil” ,nem “desumano”, e portanto conforme a lei americana. A pretensão do
hospital em recusar este tipo de tratamento não era portanto legítima, porquanto a
legislação americana não prevê algum tipo de exceção com relação ao tratamento de
pacientes com anencefalia (98).
De qualquer forma, mesmo com dados de sobrevivência variáveis, também na dependência
do grau de tratamento intensivo, e da época da coleta das casuísticas, a anencefalia é uma
condição letal e normalmente nenhum neonato sobrevive além dos três dias (6).
PROBLEMAS CORRELATOS AO RECÉM-NASCIDO ANECEFÁLICO E
À DOAÇÃO DE ÓRGÃOS
O CNB em outro documento já enfrentou os complexos problemas bioéticos que surgem
com relação aos transplantes infantis (cfr. Trapianti di Organi nell' infanzia, aprovado aos 21
de Janeiro de 1994). Já foi levantado que a necessidade de pequenos órgãos para fins de
transplante é muito superior a oferta. A maior parte dos pacientes na lista de espera de
transplante morre antes que seja encontrado um doador (30). Os órgãos em idade infantil
são necessários para os transplantes em pequenos pacientes (síndrome da parte esquerda
do coração hipoplásico, atresia biliar), e eles são de grande interesse também pelas
características de sobrevivência e de possibilidade de crescimento de seu potencial
funcional.
Avanços promissores se apresentam, também, para o uso destes pequenos órgãos em sede
heterotópica, com função auxiliar e não substitutiva, permanente ou transitória (30).
Para o fururo levanta-se a hipótese de se usar linhas celulares no lugar de órgãos completos
para tratamento de neoplasias do sistema hematopoiético, de déficit enzimáticos,
imunológicos e endócrinos.
Não obstante os múltiplos aspectos e resultados encorajadores, o tema dos transplantes
infantis é ainda objeto de discussão crítica, seja por suas indicações, seja por suas técnicas
e resultados, independentemente portanto dos aspectos éticos (27,31,32,33). Nesta
avaliação se deve também levar em conta que se trata de uma cirurgia de elevadíssimo
nível técnico organizativo que muito dificilmente estará a disposição de um número elevado
de pacientes. (Para uma revisão da matéria da retirada de órgãos de doador anencefálico
veja (34) ).
Bastante controvertido é o papel que a eventual disponibilidade de órgãos de fetos
anencefálicos poderia assumir para satisfazer as exigências de pequenos pacientes que
necessitem de transplantes.
Mesmo partindo de considerações numéricas análogas autores diferentes chegam a
conclusões completamente opostas sobre o número de fetos disponíveis teoricamente nos
EUA a cada ano: De 1800 fetos vivos (35) a 400 disponíveis para o transplante até a poucas
unidades de transplantes realmente viáveis (27,89). A diferença de avaliação baseia-se
sobre a diferente consideração do número dos prematuros, das malformações associadas,
das dificuldades para se encontrar um receptor adequado, da sobrevivência a longo prazo e
de muitos outros fatores. Para uma extensa análise desses dados veja (8).
Mesmo que essa controvérsia não seja de particular relevância ética, todavia, é importante
observar como a potencialidade do uso de fetos anencefálicos tenha sido avaliada de
maneiras muito diferentes: de único recurso para uma situação de grande necessidade de
órgãos à medida de efeito não relevante sobre o problema das graves malformações
infantis, em grau de resolver somente pouquíssimas situações particulares.
O problema do tratamento do recém-nascido anencefálico
Prescindindo da possibilidade de utilizar os órgãos de reecém-nascidos anencefálicos para
fins de transplante, o problema médico fundamental é aquele de estabelecer qual
tratamento deve ser aplicado depois do nascimento, uma vez estabelecido o diagnóstico e
confirmado que não existe a possibilidade de sobrevivência a longo prazo.
A disponibilidade de recursos de terapia intensiva para sustentar as funções vitais levanta a
pergunta se tais recursos devam ser utilizados. Geralmente existe concordância que nesses
casos devem ser usados somente os meios ordinários de tratamento, levando em
consideração que nenhum tratamento, por mais agressivo que seja, hoje em dia, pode
modificar o decurso da doença que é sempre fatal e que tem como causa justamente a
ausência daquelas estruturas que o tratamento intensivo deveria momentaneamente
substituir (37,38, 39). Tais estruturas não têm nenhuma possibilidade de recuperação e
estaríamos, portanto, num caso de isistência terapêutica sem nenhuma finalidade e
possibilidade benéfica e, portanto sem razão de ser.
O sujeito anencefálico e a possibilidade da doação de órgãos
Enfrentando, ao invés, os problemas relativos ao anencefálico como possível doador,
podemos evidenciar numerosas questões e três diferentes posições conceituais, no que diz
respeito ao recém-nascido anencefálico.
Ponto de partida comum é que a técnica dos transplantes pode aliviar os sofrimentos e
permitir a sobrevivência de um grande número de doentes e que todo esforço deve ser
envidado para prover a necessidade de órgãos. As diferenças de posições evidenciam-se no
momento de estabelecer os limites éticos pelos quais este esforço deve ser delimitado. Uma
primeira consideração é que a retirada dos órgãos complexos (fígado, rim e principalmente
o coração), deva ser realizada em condições de relativa compensação hemodinâmica, ou
seja, num momento em que o coração ainda pulsa de maneira válida e em grau de
assegurar aos órgãos interessados uma perfusão suficiente.
Em outras palavras, esperar a morte do anencefálico segundo os critérios cardiorespiratórios e só depois dela retirar os órgãos não é compatível com a preservação das
funções destes mesmos órgãos, que já não seriam mais aptos para serem transplantados. É
problema análogo ao apresentado pelo doador adulto, para o qual foi aprofundado o
problema da morte cerebral. Em vários países, ocorreu uma diferente tradução legislativa
mesmo se em geral quase todas as legislações respeitam o princípio da necessidade da
completa e definitiva suspensão das funções de todo o encéfalo. A verificação deste estado
é realizada de maneiras diferentes, mesmo se com a única finalidade de demonstrar a
presença da mesma condição. No caso do recém-nascido anencefálico a demonstração da
morte cerebral apresenta grandes dificuldades ligadas ao conhecimento ainda imperfeito da
neurofisiologia neonatal em sentido geral e também à própria condição de malformação do
sujeito (37).
O exame do EEG é impossível pela própria ausência anatômica das estruturas que dão
origem aos potenciais elétricos (córtex). Além disto a presença de ondas EEG no recémnascido e na criança não exclui o diagnóstico de morte cerebral (40). A medição do fluxo
cerebral embora difícil não é significativa por causa das graves mal formações vasculares
cerebrais. Da mesma forma a demonstração de fluxo cerebral não exclui na infância o
diagnóstico de morte cerebral (41).
Os reflexos do tronco são variáveis por causa das malformações a cargo de numerosos
nervos cranianos.
O exame clínico que visa verificar o comprometimento do tronco encefálico é, portanto de
duvidosa confiabilidade, seja pela dificuldade de evocar os reflexos do tronco, seja de
interpretar as respostas obtidas. Junto com isto apareceu um aspecto ainda mais
fundamental na fisiopatologia do sistema nervoso central em idade neonatal. Um forte
debate está surgindo sobre as potencialidades do encéfalo em idade neonatal. Uma grande
capacidade de adaptação, mesmo em condições patológicas graves, é reconhecida nos
primeiros dias de vida, nos quais particularmente ativos e válidos parecem os fenômenos de
neuroplasticidade (42,43). Ampla bibliografia em (8).
O encéfalo do recém-nascido parece hoje comparável cada vez menos a um cérebro adulto
em miniatura, principalmente pelas funções da consciência e do contato com o ambiente, e
cada vez mais comparável a um órgão em formação com potencialidades variáveis (8). A
perda ou a falta de uma parte do cérebro durante a fase de desenvolvimento não é
comparável à perda da mesma parte depois que o desenvolvimento tenha se acabado
completamente. (8)
Essas considerações têm particular relevo na avaliação das capacidades do anencéfalo.
Não se trata, obviamente, da possibilidade por parte do tronco de suprir as funções do
córtex faltante, mas de admitir que a neuroplasticidade do tronco poderia ser suficiente
para garantir ao anencefálico, pelo menos, nas formas menos graves, uma certa primitiva
possibilidade de consciência. Deveria, portanto, ser rejeitado o argumento que o
anencefálico enquanto privado dos hemisférios cerebrais não está em condições, por
definição, de ter consciência e provar sofrimentos (8,44)
Para superar as dificuldades legislativas atualmente presentes, evidenciaram-se três
diferentes classificações do problema do anencefálico:
a) Classificar a parte os sujeitos anencefálicos
A primeira posição põe em evidência o fato de que o anencefálico tem a particularidade de
não possuir o córtex cerebral, de não ser dotado das estruturas anatômicas próprias que
presidem as funções superiores. Tais funções são consideradas, por alguns, características
da humanidade e esta grave mal formação significaria para o anencéfalo um status
particular (31); Não teria sentido portanto, falar de “morte cerebral” mas dever-se-ia falar
de “ ausência cerebral”. Ou seja, uma condição totalmente peculiar, segundo as intenções
de quem a propõe, a qual deveria obter um reconhecimento legislativo apropriado. O
anencefálico não é, portanto, um sujeito “brain dead” mas um caso particular de morte
cerebral denominado “brain absence” (45, 46, 47, 90).
Um indivíduo nestas condições incapaz de pensamento e de sensibilidade não tem interesse
algum a defender e, portanto não é titular de direitos e não precisa das tutelas aplicadas a
qualquer outro sujeito (48)
Tal posição se presta a numerosas críticas, seja do ponto de vista médico como do ponto de
vista moral. Ela é oriunda de um evidente intuito utilitaristico (3). Antes de mais nada vimos
que a mal formação não é um fenômeno definido, mas um “ continuum” de gravidade para
o qual se deveria por limites convencionais. Isto criaria, com certeza, dificuldade de
diagnóstico e possibilidade de erro (49, 52, 89), muito embora a possibilidade de erro não
seja de per si um elemento suficiente para proibir uma determinada prática médica.
Uma segunda objeção diz respeito à possibilidade de sofrimento, que não pode ser excluída
baseada nas considerações neurofisiológicas às quais acenamos e baseada nos atuais
conhecimentos (44,53).
A objeção de fundo, todavia, é que esses sujeitos são utilizados sem que para eles advenha
um bem, aliás, com possível prejuízo, tendo como finalidade um benefício para outrem. Eles
não têm condição de expressar um consentimento de alguma maneira e sua condição não é
diferente daquela de muitos outros doentes em graves condições.
A posição apresentada permitiria separar a condição de alguns sujeitos particulares com a
finalidade de torná-los doadores de órgãos baseado na avaliação de sua qualidade de vida.
Está ausente um equilíbrio entre vantagem para um sujeito e desvantagem para o mesmo e
para os outros, só existe um desequilíbrio entre desvantagem para um indivíduo e
vantagem para o outro(36).
Aceitar esta posição significaria, além do mais, criar uma área de incerteza para a qual
poderiam entrar numerosas outras condições, entre elas o estado vegetativo permanente
(46). Este argumento, ou seja, a criação de um “slippery slope”, um declive escorregadio
capaz de levar muito mais além das intenções originárias, é salientado por numerosos
autores (3,31,36,48,51). Existe, ao contrário, a necessidade de definir o fenômeno da
morte, através de uma série de regras válidas em todos os casos, que não permitam
exceções para condições patológicas particulares. Também para a aceitação da doação de
órgãos por parte dos cidadãos, uma política de clareza e essencialidade das regras é
considerada por muitos autores mais promissora (27).
A definição de morte deve permanecer distinta da necessidade do transplante, mesmo se as
necessidades e possibilidades dos transplantes devem constituir um estímulo para o
aprofundamento científico e clínico. A opinião pública deve ter a certeza de que a morte é
verificada com critérios objetivos e não equívocos e que tais critérios não são modificados
pela necessidade ou desnecessidade de encontrar órgãos para o transplante.
É este um direito fundamental de cada um, antes ainda de ser um fundamento para uma
sábia política do transplante.
b) Rever o atual conceito de morte cerebral, introduzindo outros critérios de julgamento.
Uma segunda posição, mais radical e extensiva do que a anterior, é aquela que propõe o
abandono do critério de morte de todo encéfalo, considerando suficiente a morte do córtex
cerebral (54,55). Nesta definição de morte se dá, portanto a máxima importância para a
ausência da autoconsciência e da possibilidade de relacionamento, típica do homem e
menor importância às funções vegetativas, que não são consideradas características da
humanidade (27, 35, 56, 57, 58, 60, 61).
Tratar-se-ia, portanto, de redefinir a morte cerebral trocando a necessidade da completa e
definitiva suspensão das funções de todo o encéfalo com a suficiência da morte só do córtex
cerebral e isto para todos os casos e não somente para o anencefálico. Sobre este
problema, na realidade, o Comitê Nacional para a Bioética já expressou o próprio parecer,
sustentando que “não se pode aprovar esta opinião (ou seja, definição de morte cortical)
porque permanecendo íntegros os centros do paleoencéfalo (tronco), permanecem ativas as
capacidades de regulação (central) homeoestáticas do organismo e a capacidade de realizar
de modo integrado as funções vitais incluindo a respiração autônoma “. No caso particular
do anencefálico a liceidade da retirada de órgãos é também justificada pela brevíssima
expectativa de vida desses sujeitos (27). Segundo alguns autores a inevitabilidade da piora
das condições clínicas do sujeito anencefálico e a iminência da morte justificaria a retirada
dos órgãos “ ante-mortem” (85,86)
Esta posição atribui grande importância a integração neurológica das várias funções de
maneira que mesmo com a presença da respiração e da circulação, mas com a ausência de
uma integração superior, o sujeito é considerado falecido (62).
Esta argumentação é sujeita a numerosas críticas e, neste caso, é muitíssimo válido o risco
de estender o julgamento de morte a sujeitos que não tenham destruição anatômica mas a
incapacidade funcional do córtex cerebral. Um problema imenso se abriria e deste problema
o anencefálico constituiria só uma pequena parte.
Arriscar-se-ia a autorização da retirada de órgãos de sujeitos viventes, baseada nas
considerações relativas a sua integração neurológica e a sua expectativa de vida (pessoas
próximas da morte) (27,89). Repare-se que, por absurdo, uma vez aceito o princípio de que
é lícito interromper a vida de um indivíduo, mesmo se em particulares condições físicas, em
prol de outrem, poderiam entrar nesta categoria numerosos sujeitos (pensemos nos
condenados à pena capital), e, entre eles, até os mesmos sujeitos acometidos por doenças
graves e na lista da espera de transplantes( 89).
A primeira posição apresentada constitui, como é evidente, uma tentativa de tipo jurídico
para aplicar somente ao anencefálico o critério de morte cerebral como morte (ausência)
somente do córtex e evitando enfrentar os problemas que a extensão desse critério a todos
sujeitos inevitavelmente causaria. A avaliação dos problemas relativos à declaração de
morte na presença de atividade do tronco cerebral extrapola a finalidade deste documento.
Somente uma observação: à avaliação científica da morte cortical (avaliação que mesmo
pelo que diz respeito ao problema do anencefálico fornece elementos inequívocos), deve ser
associada também uma avaliação de tipo antropológico. A morte verificada somente pela
falta de atividade do córtex cerebral, seja no adulto ou no recém-nascido anencefálico,
contradiz, pela presença da respiração espontânea e dos reflexos dos nervos cranianos, a
própria idéia de morte como nos foi transmitida há milênios.
Estes sujeitos não estão mortos, apesar de uma lei poder declará-los mortos, e não
parecem mortos para qualquer pessoa que se aproxime do seu leito (36). Houve, talvez por
provocação, quem perguntasse aos adeptos desta tese, se eles estariam prontos para
enterrar estes indivíduos, baseando-se no fato de que os consideravam mortos (63). Seria
provavelmente impossível aceitar esta posição por parte da humanidade senão a custo de
um ceticismo generalizado sobre a avaliação da morte e sobre a inviolabilidade do sujeito
humano vivente, muito embora sem esperança de vida, mesmo com a finalidade de se
obter vantagem para outro indivíduo (46,64). Alguns autores (65) falaram também de
iatrogenesis ética observando que, mesmo prescindindo do fato de que um raciocínio seja
mais ou menos válido, caso ele seja sutil demais, com facilidade pode causar erros (87). O
princípio moral não deve ser complexo ao ponto que somente poucas pessoas estejam em
condições de entendê-lo.
c) Utilizar os critérios atuais de morte cerebral. As dificuldades
Uma terceira posição é aquela que considera a utilização de critérios de morte cerebral
atualmente em vigor e de esperar, portanto, o acontecer da morte cerebral total, antes de
proceder ao explante (66,67). Fica claro também que a hipotermia induzida antes da morte
não pode ser aceita (44). Também esta atitude, todavia, que satisfaz os critérios de certeza
e uniformidade da verificação da morte, não é isenta de críticas e dificuldades.
As dificuldades nascem, geralmente, da verificação da morte cerebral na infância e na
primeira semana de vida, porque, nesta idade, os conhecimentos da fisiologia do SNC são
ainda incompletos, em particular no caso da malformação com anencefalia (68).
As incertezas dizem respeito principalmente aos tempos de observação necessários para se
ter a certeza da morte do encéfalo (tempos mais longos do que aqueles do adulto), e dizem
respeito à maior dificuldade de avaliar os reflexos dos nervos cranianos. Tal dificuldade è,
como falamos, maior ainda no anencefálico. Com relação a isto foi sugerido de avaliar como
reflexo do tronco cerebral somente a presença da respiração espontânea, que de todas as
atividades do tronco, è, com certeza, a mais importante, pelo menos enquanto necessária à
vida (69,70,92). A ausência de respiração espontânea poderia ser elemento suficiente para
avaliar, no neonato anencefálico a morte do tronco cerebral. Tal hipótese criaria uma
espécie de sub-categoria constituída pelos anencefálicos, para os quais ficariam válidos
critérios parcialmente diferentes daqueles requeridos para todos os outros casos.
Esta consideração contrasta com as observações anteriormente relatadas, mesmo se parece
justificada pela presença de uma mal formação que acarreta particulares dificuldades de
diagnóstico. Com relação à técnica necessária para verificar a ausência da respiração
espontânea, não existe ainda acordo entre os estudiosos. Esta posição, todavia, embora
com alguma particularidade, se situa no mesmo quadro de conceitos das legislações em
vigor (56, 88, 94).
CONSIDERAÇÕES ÉTICAS
Âmago das legislações vigentes sobre a disciplina dos transplantes de cadáver é a rigorosa
verificação da assim chamada “dead donor rule”, ou seja, o preceito que prescreve que em
todos os casos o doador deva estar morto com certeza antes da retirada do órgão.
Esta regra, que a um primeiro exame pode parecer de óbvia banalidade, é na realidade
colocada em discussão por numerosas propostas. Numa perspectiva estritamente
utilitarista, por exemplo, poderia ser julgado lícito, para a consecução de um bem, neste
caso a saúde ou a vida de uma outra pessoa,retirar um órgão de um doador sem o
consentimento dele, caso ele não venha a sofrer por isto e nem sejam violados os seus
interesses.
É o caso do anencefálico cuja morte é considerada iminente e inevitável e que não é
considerado capaz de algum contato com o ambiente e, portanto incapaz de experimentar
algum tipo de sofrimento. O anencefálico por estes motivos não é considerado portador de
interesses a serem defendidos e que possam, portanto ser violados. Juntamente com este
caso podem ser propostos ou pensados numerosos outros casos (doentes terminais,
doentes em estado vegetativo persistente, acometidos de demência grave, pacientes que
expressem o desejo de morrer, etc) que bem explicitam o conceito do “slippery slope”
declive escorregadio, relatado por vários autores.
Como se pode constatar, as posições apresentadas são bem diferentes entre elas, mesmo
considerando as perspectivas futuras, hoje previsíveis, e derivam da impostação cultural de
matriz utilitarista, de um lado, e de âmbito personalista do outro.
Fica claro antes de mais nada que a morte é um processo à parte e não pode existir uma
morte para o transplante e uma morte em si.
A definição da morte não pode ser qualquer coisa que nós queremos que seja, mas existe
independentemente das nossas finalidades (3). A morte não pode ser definida em sentido
utilitarista de maneira a tornar máximo o bem que dela poderia eventualmente derivar, em
prol de outras pessoas (3,84). A verificação poderá acontecer com técnicas diferentes
dependendo das circunstâncias e do tratamento que está sendo dado (70). Mas esta
verificação deverá dar um resultado válido de per si e independentemente da possibilidade
ao menos de uma doação de órgãos. A própria necessidade de transplantes deve estimular
a pesquisa neste campo, mas não se colocar como fonte da definição da morte.
Este princípio deve valer também para o anencefálico, mesmo se neste caso, se deverá
lançar mão de meios de diagnóstico de aplicação possível e em condição de dar um
resultado de certeza.
Certamente se trata de um caso limite, mas não por isto estamos autorizados a estabelecer
para estes sujeitos uma categoria particular, biológica ou jurídica quer ela seja.
O anencefálico tem uma expectativa de vida variável, mas sem dúvida breve, mesmo com
as dificuldades inerentes a este julgamento. A tudo isso se acrescenta que a malformação,
da qual é portador, impede uma sua recuperação e parece hoje, e provavelmente isto o
será para sempre, sem uma terapia válida.
É uma situação, porém, que, por vários aspectos particulares, embora não para todos
contemporaneamente, é comum a outras categorias de doente, embora com diferente
intensidade. Considerem-se por exemplo os doentes incuráveis, para os quais já foi
esgotada toda possibilidade terapêutica ou os doentes que perderam o uso das funções
intelectuais ou o contato com o ambiente.
Como não é considerado lícito abreviar a existência desses sujeitos, nem tampouco
provocar a morte deles, por análogas razões não se pode propor que nos comportemos
desse modo com relação ao recém-nascido anencefálico (37,71,72). Nem parece importante
a duração da vida a ser sacrificada como se uma vida breve fosse mais sacrificável para
vantagem de outrem com expectativa de vida mais longa; com relação a isto, existem
pessoas que observaram que se os sujeitos anencefálicos não vivessem tão pouco hoje não
estariam no centro deste debate (36). Numa perspectiva que considera a pessoa humana
como tal, prescindindo, portanto, de seu estado de saúde e de desenvolvimento, como valor
central de uma ética para as ciências biológicas, parece proponível somente a determinação
de tornar disponível para a doação de órgãos somente o corpo daqueles sujeitos dos quais
tenha sido verificada com certeza, a morte.
Com relação ao recém-nascido anencefálico isto significa que, na situação atual dos
conhecimentos, é provavelmente prematuro estabelecer critérios válidos e verificáveis para
determinar a morte deles com critérios neurológicos (27, 73, 74, 75, 76, 77). Um
suplemento de estudo se faz indispensável (68).
A necessidade de uma moratória, no uso dos sujeitos anencefálicos como doadores de
órgãos, foi sustentada por diferentes autores a partir do fato de que são incompletos os
conhecimentos atuais sobre numerosos pontos, fonte de controvérsia bioética. O preceito de
que uma boa ética nasce de bons pressupostos reais foi citado relembrando o quanto sejam
ainda discutidos numerosos problemas teóricos e práticos no campo do tratamento dos
sujeitos anencefálicos (3).
Esta posição de espera parece naturalmente justificada pelo menos até o dia em que as
diferentes posições sobre o problema não alcancem, baseado em novos elementos de
julgamento, uma mais razoável possibilidade de acordo. Nesta altura, devemos sublinhar
pelo menos uma contradição e um problema complexo.
A contradição seria aquela das legislações que permitissem a interrupção da gravidez em
caso de graves mal formações mesmo nas fases adiantadas da gestação e ao mesmo tempo
impedissem a retirada de órgãos de tais sujeitos, uma vez que tivessem sido
voluntariamente paridos.
É uma contradição evidente já assinalada por parte de quem sustenta a posição da liceidade
da retirada de órgãos do anencéfalo independentemente de exames neurológicos, (condição
de brain absence), mas que pode ser facilmente lida também ao contrário, sustentando a
ilicitude da interrupção da gravidez que priva da tutela da lei sujeitos que seriam de outra
forma, amparados pela tutela legal.
Embora as duas condições, antes e depois do nascimento, tenham diferentes significados
biológico e jurídico, parece claro que as duas atitudes são bem dificilmente conciliáveis.
Juntamente com isto vai a sugestão de encorajar a continuação da gravidez de fetos mal
formados também na perspectiva altamente humanitária da eventual doação de órgãos
depois de sua morte (78). O problema sucessivo diz respeito à realização concreta da
retirada de órgãos de doador anencefálico.
No que diz respeito ao problema da verificação da morte cerebral do anencefálico para fins
de transplante, viu-se que esses sujeitos não têm lesões neurológicas evolutivas e que o
comprometimento neurológico não aparece entre as causas de morte mais importantes. Em
outros termos o feto anencefálico embora portador de um mal formação neurológica
gravíssima não manifesta tendência à evolução da mesma, e é improvável que possa
encontrar-se em breve numa situação de morte cerebral, visto que a morte acontece na
maioria dos casos por causas respiratórias (3,79). Isto significa que para tornar disponíveis
os órgãos para o transplante (e isto pode acontecer somente se foi mantida uma boa
perfusão, portanto uma boa funcionalidade cardio-respiratória até o momento da retirada) o
feto anencefálico deve ser submetido a tratamento de terapia intensiva até o momento em
que se verifique a morte cerebral.
Pressupostos do tratamento são que a morte cerebral seja iminente nestas condições, que
ela possa ser diagnosticada com certeza comparável à de outros potenciais doadores e que
o tratamento prestado, no exclusivo interesse de uma terceira pessoa e não do recémnascido, sejam eticamente válidos (27). O problema consiste justamente nesta situação:
encontramo-nos frente ao prolongamento artificial da vida por meios excepcionais, numa
condição que não apresenta possibilidade alguma de recuperação, por motivos até
anatômicos, e isto com a finalidade de preservar os órgãos para um sucessivo transplante.
Descrito nestes termos aparece evidente o risco da insistência terapêutica no sentido mais
pleno e do uso do feto anencefálico somente como meio coloczdo a serviço de um benefício
alheio.
Na avaliação ética dessa perspectiva devem, todavia, ser levados em conta também outros
aspectos. Em primeiro lugar uma prática análoga é realizada também em outros casos:
-no período de observação no doador adulto (80). Como a morte remonta ao início do
período de observação, não se trata evidentemente de uma insistência terapêutica sobre
um sujeito vivo, mas de um particular procedimento ao qual é submetido o sujeito já
falecido com a finalidade de preservar seus órgãos, mesmo se este julgamento pode ser
expressado somente a posteriori, quando os pressupostos da morte cerebral tenham sido
verificados.
No anencéfalo o tratamento intensivo pelo contrário, inicia já no momento do nascimento
ou no início da insuficiência respiratória, na espera da verificabilidade da morte cerebral,
antes, portanto, do momento da morte, mesmo retrospectivamente avaliado.
-no caso de mulheres grávidas com morte cerebral, com a finalidade de permitir ao feto de
alcançar uma idade gestacional que lhe permita a sobrevivência (81). Também neste caso
específico não se pode falar de “Insistência terapêutica” porque o tratamento é
evidentemente dirigido para a sobrevivência do feto e não para a sobrevivência da mãe, já
falecida.
-no caso de recém-nascidos em graves condições, nas quais não há possibilidade de
recuperação, com a finalidade simplesmente humana de permitir aos pais, que estão
viajando, de alcançarem os filhos (37).
O uso de terapias extraordinárias com a finalidade de preservar os órgãos do recém-nascido
anencefálico è considerado como caso de uso não rotineiro da terapia intensiva, em caso de
morte inevitável e iminente de um paciente permanentemente privado de consciência.
Seguramente deve-se estabelecer um limite à terapia intensiva, ultrapassado o qual, esta
terapia deve ser interrompida, e, por outro lado, sobrevém as condições que as normas
vigentes fazem coincidir com a morte assim chamada cerebral (para o sentido exato a ser
dado a essa expressão remetemos ao Glossário colocado em apêndice a este documento).
É evidente que a excepcionalidade da condição do sujeito anencefálico não isenta o médico
da obrigação de prestar a sua assistência de reanimação favorecida pelas condições cardiocirculatórias e respiratórias normalmente satisfatórias.Esta obrigação assistencial se concilia
plenamente com a eventual possibilidade de doação de órgãos, que é tornada viável
justamente graças a este suporte terapêutico, da mesma forma como acontece com o
menor e com o adulto que se encontrem na condição de poder doar órgãos para fins de
transplante. Nestes casos, deveriam ser respeitados uma série de elementos já analisados
pelo CNB no citado documento sobre os transplantes infantis, como em particular a validade
do transplante proposto, a seriedade da equipe e em particular o consentimento dos pais.
Este é um aspecto debatido e chamado em causa par sustentar as mais disparatadas
posições. Com certeza os pais que se encontrem em tal situação, seja que para eles se
conceda a faculdade de interromper a gravidez, seja que isto não seja possível, estão no
centro de tensões e dificuldades gravíssimas. O fato de saber que uma tragédia pessoal
oferece a possibilidade de aliviar o sofrimento de outros doentes, pode contribuir para dar
um sentido a um acontecimento que por muitos aspectos pode ser gravemente traumático.
Nesse sentido tornar, através de uma prática eticamente correta, disponíveis os órgãos para
o transplante, é certamente uma grande ajuda também para os pais, que vislumbram assim
uma saída, embora mínima, para o seu compromisso e o seu sofrimento; por este motivo a
sua participação e o seu consentimento para todos os procedimentos propostos adquire
uma importância determinante.
Em alguns casos, foram os mesmos pais que pediram com insistência a possibilidade de um
transplante e foi também pensada a possibilidade de pressões por parte dos pais (27,44).
Com relação às dificuldades que o diagnóstico de anencefalia pode criar não somente para
os pais mas também para o médico que ocasionalmente entre em contacto com eles,
consulte (82). Tais dificuldades justificam uma adequada intervenção de caráter psicológico
que, geralmente é prestada em centros especializados, mas que seria de grande valia
bioética institucionalizar definitivamente.
O Council on Ethical and Judicial Affairs da American Medical Association recentemente
modificou sua posição com relação ao problema dos recém-nascidos anencefálicos como
doadores de órgãos (99). São relatados sumariamente os elementos de julgamento que
modificaram a posição anterior, de 1988, na qual a retirada de órgãos do doador
anencefálico tinha sido considerada aceitável só depois da morte do próprio doador,
verificada com critérios cardio-circulatórios e respiratórios e neurológicos (100):
Anencefalia: embora o aspecto externo do anencefálico (funcionalidade dos órgãos
viscerais, reflexo de sucção, de afastamento dos estímulos doloríficos, movimentos dos
olhos e dos membros, emissão de sons, expressões do rosto) possam dar a impressão de
um certo grau de consciência, na realidade não existe nenhuma.
Pais: o transplante de anencefálico traz benefícios não só ao receptor mas também aos
pais, que vislumbram uma justificação, embora parcial, para a experiência vivida.
Resposta às objeções mais comuns no que diz respeito a retirada de órgãos de anencéfalo:
a) É infringida a regra do “dead donor rule”, que veta a retirada de órgãos vitais de sujeitos
vivos.
O anencefálico enquanto não teve não tem e nem terá consciência, não tem algum
interesse em defender a vida. Se a existência é abreviada não fica nenhuma marca
consciente e não se tem melhora ou piora do seu status dependendo da duração da vida.
A exceção à regra não põe em alerta a coletividade ou os outros potenciais doadores: com
efeito, eles não podem sentir-se ameaçados por tal decisão, porquanto nunca se
encontrarão na situação do anencefálico.
Esta decisão não altera o respeito pela vida e as considerações do seu valor. Como o
anencefálico não tem nenhum interesse em ver preservada a sua existência é aceita a
possibilidade dos pais pedirem a interrupção do tratamento sem que isto reduza o respeito
pela vida.
b) problemas relativos à precisão do diagnóstico
O documento confirma que o diagnóstico errado de anencefalia é possível principalmente se
o diagnóstico não é realizado em estruturas especializadas ou por uma pessoa
especificamente capacitada. Propõe-se de superar tais problemas:
-Aplicando os critérios de diagnóstico para anencefalia (101).
Tais critérios são:
- ausência de uma larga porção óssea da calota craniana;
- ausência do escalpo acima do defeito ósseo;
- presença de tecido fibro-hemorrágico exposto por causa do defeito craniano;
- ausência de hemisférios cerebrais que podem ser reconhecíveis;
- chamando para confirmar o diagnóstico duas pessoas com particular competência neste
campo, não ligados à equipe do centro de transplante. No caso da não certeza do
diagnóstico, a retirada dos órgãos seja proibida.
c) Argumentações relativas ao slippery slope argument (argumento do declive escorregadio)
(a decisão abriria as portas a futuros abusos em detrimento de outras categorias de
doentes).
A exceção á regra não poderia prejudicar outras categorias (doentes em estado vegetativo
persistente, grave dano neurológico, idosos com demência). Deve-se demonstrar que tais
perigos existem não somente ter medo da possibilidade. Este risco não é real porque os
recém-nascidos anencefálicos são uma categoria totalmente particular, sem história de
consciência e nenhuma possibilidade de adquiri-la e isto diferentemente de todas as outras
categorias lembradas.
d) Número de transplantes realizáveis
Muitas críticas evidenciaram que a retirada do doador anencefálico influiria de maneira
limitadíssima sobre o problema dos transplantes infantis. Na realidade as técnicas de
transplantes evoluem, permitindo o uso de órgãos em condições diferentes com relação ao
passado e além disto cada doador poderia fornecer quatro órgãos vitais (dois rins, coração e
fígado). Ainda que existissem somente 20 doadores por ano, (nos EUA), como alguns
previram, tratar-se-ia sempre de uma vantagem em termos de possibilidade de
sobrevivência para outras tantas crianças.
São estas, no momento, as problemáticas que exigem um atento debate com a finalidade
de formular um julgamento sobre a liceidade de retirada de órgãos de doador anencefálico.
Portanto, as argumentações do Council on Ethical and Judicial Affairs da American Medical
Association aparecem como a tentativa - não aceitável - de justificar a declaração de morte
para pessoas ainda viventes com o fim de favorecer a retirada e o sucessivo transplante. O
anencefálico é uma pessoa vivente e a reduzida expectativa de vida não limita os seus
direitos e a sua dignidade.
A supressão de um ser vivente não é justificável mesmo quando proposta para salvar outros
seres de uma morte certa.
1) KANTROWITZ ª, HALLER J.D., HOOS H. et al.,
transplantation of the heart in an infant and in an adult,
Am. J. Cardiol., 22:782-790, 1968
2) CAPLAN A.L., Ethical issues in the use of anencephalic infants as a source of organs and
tissues for transplantation, Transpl. Proc., vol. XX, n. 4 (Suppl.5), 42-49, 1988
3) FOST N., Organs from anencephalic infants: an idea whose time has not yet come,
Hasting Center Rep.,October/November, 5-10, 1988
4) LEMIRE R.J., BECKWITH J.B.,WAR KANY J., Anencephaly, Raven Press, New York, 1978.
5) CHAURASIA B.D, Calvarial defect in human anencephaly, Teratology, 29, 165-172, 1984.
6) MCGILLIVRAY B.C., Anencephaly: the potential for survival, Transpl. Proc., Vol. XX
n.4(Suppl. 5).aug., 12-16,1988
7) BRACKBILL Y., The role of the cortex in orienting:
Clonagem Humana e Ética
Dom Demétrio Valentini
Bispo de Jales-SP
Já a primeira clonagem bem sucedida, da ovelha Doly, mostrou a importância de critérios
éticos para colocar a ciência a serviço da vida e da dignidade humana. O avanço da
biogenética urge que seja acompanhado por avanços da bioética. É salutar constatar como
a humanidade estremece quando se mexe com a vida humana, e desperta para a urgência
de agir com responsabilidade.
Todos foram unânimes em advertir que era preciso ter cuidados redobrados para a
aplicação dos avanços da genética em organismos humanos. A idéia da produção de clones
humanos, que trariam as mesmas características genéticas do organismo de onde seriam
derivados, foi rejeitada com veemência.
Agora, o “The Journal of Regenerative Medicine” anuncia que um laboratório particular dos
Estados Unidos conseguiu produzir, por clonagem, um embrião humano, com a alegada
finalidade de extrair dele células estaminais, que poderiam ser utilizadas com fins
medicinais para cura de doenças.
Portanto, o embrião seria destruído, e serviria de matéria para fornecimento de células para
serem usadas em outros organismos humanos. Mesmo que assim se evite a
monstruosidade da produção de organismos humanos a partir da manipulação genética, o
experimento implica em outra conseqüência que fere frontalmente os critérios éticos que
precisam presidir toda ação que interfere na vida humana. Pois provoca a constituição de
um embrião humano, para em seguida destruí-lo.
Aí reside o fato gerador do impasse ético que incide sobre o projeto anunciado pelo referido
laboratório. Cria-se um embrião, que já é vida humana, com todas as potencialidades de
desenvolvimento inerentes a este estágio inicial da vida humana, e em seguida se destrói
este embrião. Isto é, se destrói a vida humana. Mesmo alegando que sua destruição é para
servir a outros organismos, esta alegação é insustentável do ponto de vista ético. Pois
aceitá-la seria abrir caminho para a arbitrariedade, além de ignorar o valor único e
irrepetível de qualquer organismo humano. Pois não somos só organismos fisiológicos. Cada
organismo humano é constituído em pessoa, sujeito inalievável de direito à existência, e
nunca instrumento manipulável para servir a outros organismos. Ignorar isto é desconhecer
o diferencial que nos distingue como humanos e como pessoas possuidoras de dignidade e
de valor único e absoluto. Não somos ovelhas, que podem ser clonadas, e usadas para a
melhoria genética de raças que possam servir melhor à ciência e a economia. Somos
pessoas, esta a nossa responsabilidade, e este o fato que precisa servir de referência
fundamental para guiar toda ação que interfere na vida humana.
Diante da evidente força deste princípio, a discussão sobre o recente experimento se situa
em torno do momento em que o embrião se constitui em vida humana. A convicção da
Igreja, amparada na genética moderna, é que desde o primeiro instante de sua constituição
o embrião é vida humana, pois nele já estão presentes todas as potencialidades que irão
determinar sua existência, como pessoa, como indivíduo com suas características bem
determinadas. Destruir um embrião, mesmo em seus primeiros momentos de existência, é
destruir uma vida humana já constituída. Por isto, fica evidente a repulsa diante do anúncio
do laboratório. Não é correto destruir vidas humanas, mesmo alegando que é para curar
doenças que afligem a humanidade.
O respeito incondicional pela vida humana é o caminho certo, e mais seguro, para colocar
os recursos disponíveis, também os científicos, a serviço de todas as pessoas humanas.
“A Ética da Investigação Biomédica para uma Visão Cristã”
PONTIFÍCIA ACADEMIA PARA A VIDA
COMUNICADO FINAL DA IX ASSEMBLEIA GERAL
1. Durante os dias 24-26 do passado mês de Fevereiro, teve lugar no Vaticano a IX
Assembléia Geral da Pontifícia Academia para a Vida, que neste ano foi subordinada a
um tema de grandes atualidade e impacto social: "A ética da investigação biomédica.
Para uma visão cristã".
É evidente que, de maneira particular nas últimas décadas, o caminho da biomedicina
conheceu um desenvolvimento extraordinário, ajudado também pelo grandioso
progresso da tecnologia e da informática, que ampliaram enormemente as
possibilidades de intervenção sobre os seres vivos e, de modo especial, sobre o homem.
Por exemplo, foram alcançadas grandes conquistas no campo da genética, da biologia
molecular e também no sector da transplantologia e das neurociências.
Entre os fatores determinantes deste desenvolvimento, sem dúvida a investigação
biomédica constitui, hoje mais do que nunca, um instrumento privilegiado para fazer
progredir os conhecimentos neste sector da medicina, como o próprio Papa realçou
nos últimos dias:
"Todos reconhecem que os progressos da medicina na cura das doenças dependem
prioritariamente dos progressos da investigação" (João Paulo II, Discurso aos
participantes na IX Assembléia Geral da Pontifícia Academia para a Vida , n. 2).
2. Cada uma das novas descobertas no campo da biomedicina, no contexto atual, já
parece ser destinada a produzir efeitos "em série", abrindo múltiplos horizontes novos,
em ordem à possibilidade de diagnósticos e de terapias para muitas patologias ainda
hoje incuráveis.
Obviamente, a conquista de uma crescente possibilidade técnica de intervenção sobre o
homem, sobre os outros seres vivos e sobre o meio ambiente, alcançando além disso
efeitos cada vez mais marcantes e duradouros, exige da parte dos cientistas e de toda a
ciência, a assunção de uma maior responsabilidade, em proporção do maior poder de
intervenção. Daqui deriva que as ciências experimentais e, por conseguinte, também a
biomedicina, enquanto "instrumento" nas mãos do homem, não são suficientes por si
mesmas, mas têm necessidade de ser orientadas para determinadas finalidades e
confrontadas com o mundo dos valores.
3. O protagonista deste contínuo processo de "orientação ética" é, inequivocadamente, o
homem. Como uma unidade inseparável de corpo e alma, o ser humano caracteriza-se
pela sua capacidade de escolher livremente e de modo responsável a finalidade das suas
ações e os instrumentos para a alcançar. O seu anseio em relação à investigação da
verdade, que pertence à sua própria natureza e à sua vocação particular, encontra uma
ajuda indispensável na própria Verdade, que é Deus que vem ao encontro do homem,
revelando-lhe o seu Rosto através da criação e, de maneira mais direta, mediante a
Revelação; desta forma, Ele secunda e sustém os esforços da razão humana,
permitindo-lhe reconhecer as inúmeras "sementes de verdade" presentes na realidade
e, finalmente, entrar em comunhão com a própria Verdade, que é Ele mesmo.
Por conseguinte, em linha de princípio, não subsistem limites éticos para o
conhecimento da verdade, ou seja, não existe qualquer "barreira" para além da qual o
homem jamais deveria ir mais além no seu esforço cognoscitivo: com sabedoria, o
Santo Padre definiu o homem como "aquele que procura a verdade" (João Paulo II,
Carta Encíclica Fides et ratio, 28); contudo, existem limites éticos específicos para o
modo de agir do homem, que procura esta verdade, porque "tudo aquilo que é
tecnicamente possível não é, por este mesmo motivo, moralmente admissível"
(Congregação para a Doutrina da Fé, Donum vitae, 4). Por conseguinte, é a dimensão
ética do homem, que ele realiza através dos juízos da consciência moral, que dá uma
conotação existencial à sua vida.
4. No compromisso em ordem a procurar e a reconhecer a verdade objetiva em cada
criatura, um papel de particular relevo é reservado aos cientistas da área médica, que
são chamados a trabalhar pelo bem-estar e a saúde dos seres humanos; por
conseguinte, cada atividade de investigação realizada neste campo deve ter sempre
como finalidade última o bem integral do homem e, nos instrumentos utilizados, deve
respeitar plenamente em cada um dos indivíduos a sua dignidade inalienável de pessoa,
o direito à vida e a integridade física substancial.
Contra toda a falsa acusação ou mal-entendido, queremos afirmar de novo, em
comunhão com o Papa, que: "A Igreja respeita e apóia a investigação científica, quando
procura
uma
orientação
autenticamente
humanista,
evitando qualquer forma de instrumentalização ou destruição do ser humano e
mantendo-se livre da escravidão dos interesses políticos e econômicos" ( João Paulo II,
Discurso..., op. cit., n. 4).
Nesta perspectiva, é necessário manifestar a maior gratidão aos milhares de médicos e
investigadores do mundo inteiro que, de forma generosa e com grande
profissionalidade, se dedicam todos os dias com as suas próprias forças ao serviço das
pessoas que sofrem e à cura das patologias. Além disso, o Papa recordou ainda
que: "Todos nós, crentes e não-crentes, devemos prestar homenagem e expressar o
nosso apoio sincero a este esforço da investigação biomédica, orientado não apenas a
fazer-nos conhecer melhor as maravilhas do corpo humano, mas também a favorecer
um digno nível de saúde e de vida para as populações de todo o planeta" ( Ibidem, n.
2).
5. Portanto, pelos motivos já recordados, é com razão que se pode e se deve falar de
uma "ética da investigação biomédica" que, efetivamente, se desenvolveu e se afirmou
cada vez mais nos últimos trinta anos. Para este desenvolvimento, também a reflexão
cristã soube dar a sua importante contribuição, fazendo sobressair algumas novas
problemáticas, à luz da sua visão antropológica original. Historicamente, podem ser
citados pelo menos dois temas, como exemplo da atenção ética da comunidade cristã
pelo mundo da investigação biomédica: a exortação ao respeito pela pessoa, quando
ela se torna objeto de investigação, de maneira especial no caso da experimentação não
diretamente terapêutica; o realce da estreita relação existente entre ciência, sociedade
e indivíduo, que se realiza em todo o processo da investigação.
6. Por conseguinte, na elaboração de um itinerário de investigação biomédica, que seja
respeitador do verdadeiro bem da pessoa, é necessário fazer convergir em sinergia as
várias disciplinas envolvidas com uma metodologia integrativa, que justifique a
complexa unidade constitutiva do ser humano. Para esta finalidade, torna-se apropriada
a proposta do chamado "método triangular"; ele divide-se em três momentos: a
exposição dos dados biomédicos; o aprofundamento do significado antropológico e o
reconhecimento dos valores em questão, que este fato comporta; e a elaboração das
normas éticas que possam orientar o comportamento dos agentes, na situação
específica, segundo os significados e os valores anteriormente realçados.
7. Outro tema de grande relevância, no âmbito da investigação biomédica é, sem
dúvida, o da experimentação terapêutica e não terapêutica, considerada segundo a
perspectiva da sua aplicação no homem. Ele envolve muitos aspectos e problemáticas,
tanto de ordem científica como ética. Por exemplo, uma exigência imprescindível
consiste em assegurar um alto nível de profissionalidade dos investigadores
interessados do plano experimental, assim como em adotar uma metodologia que seja
rigorosa na identificação e na aplicação dos critérios de procedimento. Além disso, é
eticamente necessário que o cientista que orienta a experiência, juntamente com os
seus colaboradores, mantenha uma independência pessoal e profissional integral, em
relação aos eventuais interesses (econômicos, ideológicos, políticos, etc.), alheios à
finalidade da investigação, ao bem dos sujeitos envolvidos e ao autêntico progresso da
humanidade.
8. Além disso, deseja afirmar-se a necessidade de fazer preceder a fase clínica
experimental (aplicação no homem) de uma adequada experiência realizada nos
animais, que permita aos investigadores adquirir previamente todos os conhecimentos
necessários acerca dos possíveis danos e riscos que esta experiência poderia comportar,
com a finalidade de garantir a segurança dos sujeitos humanos interessados.
Naturalmente, também a experiência nos animais deve ser levada a cabo na
observância de normas éticas específicas que salvaguardem, na máxima medida
possível, o bem-estar dos exemplares utilizados.
9. Em seguida, deve reservar-se uma atenção especial ao envolvimento nos protocolos
de investigação, de sujeitos humanos considerados particularmente "vulneráveis", por
causa das suas condições vitais, como mostra com clarividência o caso exemplar do
embrião humano. Com efeito, pela delicadeza da sua fase de desenvolvimento, uma
eventual experiência sobre ele comportaria, à luz das actuais possibilidades técnicas,
riscos muito elevados e por isso, não eticamente aceitáveis de lhe causar danos
irreversíveis ou mesmo a sua morte.
É também totalmente inaceitável a motivação, por alguns apresentada, acerca da
liceidade de sacrificar a integridade (física e genética) de um sujeito humano na fase
embrionária, até à sua destruição, se for necessário, em ordem a alcançar benefícios
para outros indivíduos humanos: nunca é moralmente lícito realizar um mal de maneira
intencional, nem sequer para alcançar finalidades que, em si mesmas, são boas.
De resto, é necessário ter presente o fato de que o indivíduo humano que se encontra
na fase embrionária, embora merecendo o respeito devido a toda a pessoa humana, não
é certamente um sujeito capaz de dar o seu consenso pessoal a intervenções que o
expõem a grandes riscos, sem ter uma eficácia diretamente terapêutica para ele
mesmo; por conseguinte, qualquer intervenção experimental feita no embrião humano,
que não tenha a finalidade de obter benefícios diretos para a sua saúde, não pode ser
considerada moralmente lícita.
10. O atual processo de globalização progressiva, que está a interessar todo o planeta, e
cujas conseqüências nem sempre parecem ser positivas, leva-nos a considerar o tema
da investigação biomédica também sob o ponto de vista das suas conseqüências sociais,
políticas e econômicas.
Com efeito, considerando o limite crescente dos recursos que se podem destinar ao
desenvolvimento da investigação biomédica, é necessário prestar uma grande atenção à
distribuição eqüitativa dos mesmos nos vários países, tendo em conta as condições de
vida nas diversas regiões do mundo e a emergência das necessidades primárias nas
populações mais pobres e provadas. Isto significa que a todos deveriam ser garantidas
as condições e os instrumentos mínimos, tanto para poderem usufruir dos benefícios
que derivam da própria investigação, como para poderem desenvolver e manter uma
capacidade endogénica de investigação.
11. Depois, a nível legislativo, renovam-se os votos e a recomendação, a fim de que se
chegue a uma norma internacional unificada nos conteúdos, que se fundamente nos
valores inscritos na própria natureza da pessoa humana. Desta maneira, ultrapassar-seiam as atuais disparidades que, em muitos casos, tornam possíveis os abusos e a
instrumentalização dos indivíduos e de populações inteiras.
12. Por fim, reconhecendo o enorme influxo que os massa media têm na formação da
opinião pública e o importante papel que eles desempenham, suscitando expectativas e
anseios mais ou menos fundamentados no grande público, torna-se cada vez mais
necessário que os agentes deste sector, que escolhem ocupar-se da área biomédica e,
de modo mais geral, da bioética, se formem cuidadosamente tanto no campo científico
como ético, para serem capazes de comunicar, com uma linguagem simples e sintética,
a realidade dos fatos, sem gerar confusão nem ambigüidades.
13. Para concluir, a Pontifícia Academia para a Vida deseja renovar, com grande
entusiasmo e profundo sentido de responsabilidade, o seu próprio compromisso e a sua
própria dedicação à causa da vida, em sincera e respeitadora colaboração com todos
aqueles que trabalham no campo da investigação biomédica, como o próprio Papa
indicou no seu discurso aos participantes na IX Assembléia Geral da Pontifícia Academia
para a Vida: "Por conseguinte, no campo da investigação biomédica, a Pontifícia
Academia para a Vida pode constituir um ponto de referência e de iluminação, não só
para os investigadores católicos, mas também para quantos desejam trabalhar neste
sector da biomedicina, para o verdadeiro bem de cada homem" ( Ibidem, n. 3). A sua
tarefa principal continua a ser a de pôr à disposição da Igreja, da sociedade no seu
conjunto e da comunidade científica em particular, o seu serviço "estatutário", de
estudo, de formação e de informação, no esforço em ordem a reconhecer e a indicar à
sociedade inteira os valores radicados na dignidade da pessoa humana e exigidos pela
procura do verdadeiro bem de todos os homens e do homem todo, com a finalidade de
tirar daqui as indicações éticas que possam orientar os agentes no seu compromisso
quotidiano.
Intervenção da Santa Sé na Segunda Sessão da Comissão Geral da ONU
para a Preparação de uma Convenção Internaconal Sobre
a Clonagem Humana “Reprodutuva”.
27 de Setembro de 2002
A posição da Santa Sé é bem conhecida. A Santa Sé apóia e promove a eliminação
mundial e completa da clonagem de embriões humanos, que tenham finalidades
tanto reprodutivas como científicas. Mesmo quando é realizada em nome do
aperfeiçoamento da humanidade, a clonagem de embriões humanos ainda constitui
uma afronta contra a dignidade da pessoa humana. A clonagem de embriões
humanos objectiva a sexualidade do homem e modifica a vida humana.
Como o Papa João Paulo II quis afirmar recentemente, "A vida humana não pode
ser vista como um objecto de que se possa dispor arbitrariamente, mas como a
realidade mais sagrada e inviolável que existe sobre a face da terra. Não pode
haver paz, quando falta a salvaguarda deste bem fundamental... à [lista das
injustiças do mundo] há que acrescentar as práticas irresponsáveis de engenharia
genética, tais como a clonagem e o uso de embriões humanos para a investigação,
procurando justificá-las com um apelo ilegítimo à liberdade, ao avanço da cultura,
ao fomento do progresso humano. Quando os sujeitos mais frágeis e indefesos da
sociedade sofrem tais atrocidades, a própria noção de família humana, assente nos
valores da pessoa, da confiança e do respeito e auxílio recíprocos, acaba por ficar
gravemente
danificada.
Uma
civilização
baseada
sobre o amor e a paz deve opor-se a estas experimentações indignas do
homem".
Assente na condição biológica e antropológica do embrião humano e na lei
moral e civil fundamental, é ilícito matar um ser inocente, mesmo que seja para o
benefício da sociedade em geral.
A Santa Sé considera inaceitável a distinção entre a clonagem "reprodutiva" e a
chamada clonagem "terapêutica" (ou "experimental"). Esta distinção oculta a
realidade da criação de um ser humano, com a finalidade de o destruir, em ordem
a produzir linhas de células estaminais de embriões ou a realizar outras
experiências. A clonagem de embriões humanos deve ser proibida em todos os
casos, independentemente das finalidades que se têm em vista. A Santa Sé
fomenta a investigação no campo das células estaminais de origem pós-natal, uma
vez que esta abordagem - como tem sido demonstrado pela vasta maioria dos
recentes estudos científicos realizados - constitui um modo sadio, promissor e ético
de obter o transplante de tecidos e a terapia celular que poderão beneficiar a
humanidade. Como Sua Santidade o Papa João Paulo II afirmou, "em todo o caso,
será preciso evitar sempre os métodos [científicos] que não respeitam a dignidade
e o valor da pessoa; penso de modo particular nas tentativas de clonagem
humana, que visam a obtenção de órgãos de transplante: enquanto implicam a
manipulação e a destruição de embriões humanos, tais técnicas não são
moralmente aceitáveis, mesmo que tenham em vista um objectivo em si bom. A
ciência deixa entrever outras vias de intervenção terapêutica, que
não comportam a clonagem nem o uso de células embrionárias, bastando para
essa finalidade a utilização de células estaminais extraídas de organismos adultos.
É ao longo desta via que deverá progredir a investigação, se quiser ser
respeitadora da dignidade de cada ser humano, mesmo na fase embrionária".
A clonagem de embriões, levada a cabo em nome da investigação biomédica ou da
produção de células embrionárias, contribui para debilitar a dignidade e a
integridade da pessoa humana. Clonar um embrião humano e, intencionalmente,
programar a sua destruição, institucionalizaria a destruição deliberada e
sistemática da vida humana nascente, em nome do desconhecido "bem" da terapia
potencial ou da descoberta científica. Esta perspectiva é repugnante para a maioria
das pessoas, inclusive para aquelas que propriamente defendem o progresso da
ciência e da medicina.
Dado que a clonagem de embriões gera uma nova vida humana, orientada não
para um futuro de florescimento humano, mas para um futuro destinado à
servidão e à destruição certa, trata-se de um processo que não pode ser justificado
com base na afirmação segundo a qual pode beneficiar outros seres humanos. A
clonagem de embriões viola as normas fundamentais contidas na lei dos direitos do
homem. "A partir de 1988, duas grandes divisões planetárias aprofundaram-se
ainda mais: a primeira é o fenómeno cada vez mais trágico da pobreza e da
discriminação social... e a outra, mais recente e condenada de maneira menos
ampla, diz respeito à criança nascitura... como sujeito de experiências e de
intervenções tecnológicas (através das técnicas de procriação artificial, do uso dos
chamados "embriões supérfluos", da denominada "clonagem terapêutica", etc.).
Aqui há o risco de uma nova forma de racismo, dado que o desenvolvimento
destas técnicas poderia levar à criação de uma "sub-categoria de seres humanos",
destinada basicamente para a conveniência de determinadas pessoas. E isto
corresponderia a uma nova e terrível forma de escravidão. Infelizmente, não se
pode negar que a tentação da eugenia ainda é latente, de maneira especial quando
é explorada pelos poderosos interesses comerciais. Os governos e a comunidade
científica devem permanecer vigilantes neste campo".
Desde a fundação da Organização das Nações Unidas, a centralidade do bem-estar
e a salvaguarda de todos os seres humanos nos seus trabalhos são
inquestionáveis. Tanto a salvaguarda das gerações de seres humanos do presente
e do futuro, como o progresso dos direitos fundamentais humanos são essenciais
para os trabalhos da Organização das Nações Unidas. A Declaração Universal dos
Direitos do Homem reitera a santidade de toda a vida humana e a urgente
necessidade de a proteger contra os ataques. A este propósito, o Artigo 3 da
mencionada Declaração afirma que todos têm o direito à vida. Com a vida, vem a
esperança no futuro - uma esperança que a Declaração Universal dos Direitos do
Homem protege, reconhecendo que todos os seres humanos são iguais em termos
de dignidade e de direitos. Com o direito à vida, vêm a liberdade e a segurança da
pessoa. Para garantir que assim seja, a referida Declaração Universal confirma que
cada ser humano é uma entidade à qual se deve garantir um futuro repleto de
esperança na autodeterminação. Para continuar a promover esta finalidade, as
condições que degradam o ser humano, com condições servis, e a negação dos
direitos fundamentais à vida e à autodeterminação, são repreensíveis e
inaceitáveis.
Independentemente do objetivo pelo qual é realizada, a clonagem de embriões
humanos entra em conflito com as normas legais internacionais que salvaguardam
a dignidade humana. A lei internacional garante o direito à vida para todos os
seres humanos - e não apenas para alguns.
Facilitar a formação de seres humanos destinados à destruição, o aniquilamento
intencional dos seres humanos clonados uma vez que se alcança a finalidade de
uma específica investigação relegando cada ser humano a uma existência de
servidão involuntária ou de escravidão, e realizando experiências médicas e
biológicas também involuntárias com seres humanos, é moralmente errado e
inadmissível. A clonagem de embriões humanos apresenta também grandes
ameaças à norma da lei, dando às pessoas responsáveis pela clonagem a
possibilidade de selecionar e de propagar determinadas características humanas,
assentes no gênero, na raça, etc., e de eliminar as outras. Isto corresponderia à
prática da eugenia, que levaria à instituição de uma "super-raça" e à inevitável
discriminação contra as pessoas que nascem através do processo natural. A
clonagem de embriões nega inclusivamente aos sujeitos gerados para finalidades
de investigação, os direitos internacionais ao seu devido processo e à proteção
eqüitativa por parte da lei. Além disso, deve recordar-se que a administração do
Estado e o desenvolvimento dos acordos regionais reconheceram que a clonagem
de embriões humanos, levada a cabo para qualquer finalidade que seja, é contrária
à norma da lei.
Senhor Presidente, devemos recordar que todo o processo que inclui a clonagem
humana é, por si só, um processo reprodutivo, porque gera um ser humano no
próprio início do seu desenvolvimento, ou seja, um embrião humano.
Obrigado, Senhor Presidente!
Notas
1) Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 1 de Janeiro de 2001, n. 19.
2) Discurso no XVIII Congresso Internacional sobre a Sociedade dos Transplantes,
29 de Agosto de 2000, em: ed. port. de L'Osservatore Romano 2 de Setembro de
2000, pág. 9, n. 8.
3) Contribuição da Santa Sé na Conferência mundial contra o racismo, a
discriminação racial, a xenofobia e a relativa intolerância, realizada em Durban
(África do Sul), de 31 de Agosto a 7 de Setembro de 2001, n. 21.
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Uso de células-tronco de embrião é debatido no Senado
Entre a ansiedade de doentes e cientistas e as ponderações de religiosos, o Parlamento terá
a responsabilidade de encontrar uma saída que preserve o direito à vida saudável e as
implicações éticas dos tratamentos com base na mudança de genes. Esta a conclusão a que
chegou nesta segunda-feira (7) o senador Tião Viana (PT-AC) durante debate realizado no
programa Conexão Senado, da Rádio Senado, sobre o uso de células-tronco de embriões
humanos no tratamento de doenças genéticas e degenerativas.
- Temos de achar esse caminho do meio - afirmou Tião Viana que apresenta proposta para
criação do Conselho Nacional de Bioética para as Ciências da Vida.
Outra participante do debate, a diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano da
Universidade de São Paulo (USP), Mayana Zatz , é favorável ao uso das células de embriões
não utilizados nos processos de fertilização artificiais. Ela argumenta que esses embriões
serão em algum momento descartados e que as células-tronco dessa fonte têm mais chance
de se diferenciar em todo o tipo de tecido humano, facilitando a regeneração.
- Torço para que possamos encontrar em humanos adultos e em cordões umbilicais células
tão eficientes, mas enquanto isso não é possível, seriam muito úteis os embriões a serem
descartados - afirmou Mayana.
Para o frei Antônio Moser , presidente da Editora Vozes, é preciso refletir mais sobre o
tema, a fim de que o “mistério da vida” não seja violentado e que interesses comerciais não
venham a prevalecer sobre o interesse da sociedade . Para Moser, a cura é um processo
que vai além da correção de uma deficiência, mas que significa o encontro dos homens com
Deus, consigo próprios e com a criação . O mais importante, em sua visão , é humanizar a
vida, ainda que esse ou aquele indivíduo continuem padecendo de alguma doença. Por que
Jesus não curou a todos? Talvez porque a cura seja algo mais amplo - ponderou o frei.
Tanto a professora da USP quanto mães de crianças com problemas genéticos apelam
justamente para a imagem de um Cristo que estaria mais propenso a defender a vida do
que uma discussão prolongada sobre quando começa um ser humano. “Eu vim para que
todos tenham vida, e vida em abundância” foi o versículo da Bíblia recitado por uma cidadã
de Mato Grosso do Sul, mãe de duas filhas deficientes.
Para o senador Tião Viana, o estabelecimento de legislação clara sobre o assunto e a criação
de bancos genéticos públicos destinados armazenar material de transplante evitará
problemas éticos e a comercialização da vida. Tanto ele quanto Mayana são contra a
produção de embriões para a utilização das células-tronco. Ou seja, são a favor de que se
usem apenas os embriões congelados e sem chance de geração de bebês. Moser disse não
acreditar na inocência da pesquisa científica e questionou a necessidade da fertilização
artificial. ( Fonte Senado Federal em 07/06/04.)
Carta Enviada pela CNBB aos Senadores
Brasília - DF, 24 de junho de 2004
P – nº 0496/04
Excelentíssimo Senador da República,
Excelência,
Os Bispos Católicos do Conselho Permanente da CNBB, reunidos em Brasília, de 22 a 25 de
junho de 2004, desejam fraternalmente saudar Vossa Excelência.
Acompanhamos, com vivo interesse, os trabalhos legislativos do Senado. Constatamos que
está em votação, em fase adiantada, o Projeto sobre Biossegurança com temas referentes à
Bioética (PL n.2.401-A-2003).
Os últimos decênios vêm apresentando grande progresso no campo da biogenética e da
biotecnologia, abrindo perspectivas, tanto no sentido da cura de certas doenças como
também no aprimoramento da nossa vida na terra.
Contudo, com as esperanças, erguem-se novas interrogações e preocupações. Estas
interrogações não são apenas científicas, mas sobretudo de cunho ético .
Queremos louvar o empenho dos Senadores que, ao longo dos últimos anos, se têm
dedicado ao conhecimento da problemática, por meio de debates e seminários. Isto bem
mostra como os representantes eleitos pelo povo têm consciência do peso de suas decisões,
mormente daquelas que dizem respeito às manifestações da vida em suas múltiplas formas.
Alegramo-nos com as conquistas da ciência que permitem sanar certos males oriun dos de
causas genéticas e outras, e com a crescente expectativa da biotecnologia agir eficazmente
na superação de deficiências e enfermidades. O progresso da ciência e da tecnologia abre
novas possibilidades para que possamos levar adiante a missão que o Criador nos confia.
Neste sentido, nos congratulamos com as pesquisas recentes e o uso responsável de
células-tronco encontradas no cordão umbilical, na medula óssea e um pouco espalhadas
por todo o corpo humano. Incentivamos a continuação das pesquisas, visando descobrir
outras fontes para se obter células-tronco, sem recorrer aos embriões humanos.
A vida humana, que é fim em si mesma, deve ser respeitada sempre, desde a sua
concepção até o seu termo. Não é lícito jamais sacrificar uma vida humana já presente no
embrião em benefício de outra. É necessário, portanto, rejeitar com firmeza a produção de
embriões, e a utilização de embriões já existentes, tanto para pesquisas, quanto para
eventual produção de tecidos e órgãos.
Preocupa-nos a maneira apressada com a qual certas pessoas e entidades se pronunciam
em relação à denominada terapia gênica, como se por meio dela pudessem ser sanados
todos os males do mundo. A vida saudável não se reduz aos genes nem aos organismos,
mas remete a relações sociais, econômicas, políticas, afetivas e espirituais. Há pessoas e
grupos que mais parecem vendedores de ilusão de vida fácil do que preocupados com a
saúde e a vida de todos.
Ainda que devamos buscar minorar os sofrimentos provenientes de falhas genéticas, de
acidentes e de doenças degenerativas, preocupa-nos, igualmente, a exploração emocional
oriunda da exposição na mídia de portadores de necessidades especiais.
Diante destes pressupostos e baseados no Evangelho da Vida, confiamos que os Senhores
Senadores não se deixarão dobrar pela pressão de grupos que investem na biotecnologia
para auferir lucros.
A liberação, sem mais, de embriões para obter células-tronco, se nos afigura não como sinal
de progresso, mas como sinal de uma postura antiética sem precedentes na história,
porque sacrifica vidas humanas.
Por que não conceder a esta questão tão importante o tempo necessário para a justa
ponderação dos aspectos complexos, científicos e morais, sem precipitar decisões com
graves consequências? Em muitos países de avançada tecnologia, a questão permanece em
profundos estudos e debates.
Na certeza de que nossos legisladores hão de se orientar pelo valor supremo da vida
humana na elaboração das leis, pedimos a Deus que os guie no alto desempenho de sua
missão legislativa.
Atenciosamente, agradecemos a Vossa Excelência o empenho pessoal na defesa desta
causa em prol do padrão ético do povo brasileiro.
Pelo
a Presidência da CNBB,
Conselho
Permanente,
Cardeal
Geraldo
Majella
Arcebispo de São Salvador da Bahia e Presidente da CNBB
Dom
Antônio
Celso
Bispo de Catanduva-SP e Vice-Presidente da CNBB
Dom
Odilo
Pedro
Bispo Auxiliar de São Pauloe Secretário-Geral da CNBB
Agnelo
de
Queirós
Scherer
CNTS PEDE AO STF QUE DESCARACTERIZE COMO ABORTO A ANTECIPAÇÃO DO FETO SEM
CÉREBRO
No último dia 18 de junho, a CNTS pediu ao STF que a antecipação do parto de feto sem
cérebro não seja caracterizada como aborto.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) quer que o Supremo Tribunal
Federal (STF) fixe entendimento de que antecipação terapêutica de parto de feto
anencefálico (ausência de cérebro) não é aborto e permita que gestantes em tal situação
tenham o direito de interromper a gravidez sem a necessidade de autorização judicial ou
qualquer outra forma de permissão específica do Estado. Na Argüição de Descumprimento
de Preceito Fundamental (ADPF 54) ajuizada na Corte, com pedido de liminar, a entidade
sustenta que “o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal tornou-se indispensável na
matéria”.
A entidade registra que o Judiciário vinha firmando jurisprudência, por meio de decisões
proferidas em todo o País, reconhecendo o direito das gestantes de se submeterem à
antecipação terapêutica do parto nesses casos, mas que decisões em sentido inverso
desequilibraram essa jurisprudência.
Segundo a CNTS, a anencefalia é uma má formação fetal congênita incompatível com a vida
intra-uterina e fatal em 100% dos casos. A entidade sustenta que um exame de ecografia
detecta a anomalia com índice de erro praticamente nulo e que não existe possibilidade de
tratamento ou reversão do problema. Afirma que não há controvérsia sobre o tema na
literatura científica ou na experiência médica.
Por outro lado, diz a CNTS, “a permanência do feto anômalo no útero da mãe é
potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde da gestante e até perigo de vida,
em razão do alto índice de óbitos intra-uterinos desses fetos”. A entidade alega que “a
antecipação do parto nessa hipótese constitui indicação terapêutica médica: a única possível
e eficaz para o tratamento da gestante, já que para reverter a inviabilidade do feto não há
solução”.
Com esses argumentos, a CNTS sustenta que a antecipação desses partos não caracteriza o
crime de aborto tipificado no Código Penal. Isso porque, diz a entidade, no caso de aborto,
“a morte do feto deve ser resultado direto dos meios abortivos, sendo imprescindível tanto
a comprovação da relação causal como a potencialidade de vida extra-uterina do feto”, o
que inexiste nos casos de fetos com anencefalia. “Não há potencial de vida a ser protegido,
de modo que falta à hipótese o suporte fático exigido pela norma. Apenas o feto com
capacidade potencial de ser pessoa pode ser passivo de aborto”, sustenta.
Para a CNTS, nessas situações, “o foco da atenção há de voltar-se para o estado da
gestante” e o reconhecimento desses direitos não causam lesão a bem ou ao direito à vida
do feto. “A gestante portadora de feto anencefálico que opte pela antecipação terapêutica
do parto está protegida por direitos constitucionais que imunizam a sua conduta da
incidência da legislação ordinária repressiva”, alega a entidade, que aponta a violação de
três direitos básicos da mulher impedida de interromper esse tipo gravidez. O direito da
dignidade da pessoa humana, da legalidade, liberdade e autonomia da vontade, e do direito
à saúde.
A CNTS pede que o Supremo reconheça o descumprimento desses preceitos fundamentais
em relação à mulher, nos casos em que as normas penais são interpretadas de forma a
impedir a an tecipação terapêutica de partos de fetos anencefálicos. E que seja dada
interpretação conforme a Constituição dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código
Penal, para declarar inconstitucional, com eficácia erga omnes (para todos) e efeito
vinculante, a aplicação desses dispositivos para impedir a intervenção nos casos em que a
anomalia é diagnosticada por médico habilitado.
Requer, também, a concessão de liminar para suspender o andamento de processos ou
anular os efeitos de decisões judiciais que pretendam aplicar ou tenham aplicado os
dispositivos do Código Penal para caracterizar como aborto a interrupção desses tipos de
gravidez. O relator da ação é o ministro Marco Aurélio. (Fonte: www.stf.gov.br)
CNBB requer ao STF para atuar como “amigo da Corte” em favor dos fetos anencéfalos e da
dignidade da vida
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por seu advogado Dr. Luís Carlos
Martins Alves Jr., protocolizou neste último dia 23 de junho um requerimento ao Ministro
Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, relator da Argüição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 54 proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Saúde (CNTS), tendo como advogado o Dr. Luís Roberto Barroso, para atuar como “ amicus
curiae ”.
Essa mencionada Argüição proposta pela CNTS tem como objetivo provocar o STF para que
esse Tribunal decida no sentido de descaracterizar como crime de aborto a interrupção da
gestação se o feto for anencéfalo, uma vez que esses fetos teriam poucas condições de
sobrevida, após o parto.
A Igreja do Brasil, em comunhão com a Sé universal, se posicionará radicalmente favorável
à vida, especialmente daqueles que estejam desprotegidos.
Nesse sentido, a CNBB recorda o chamado do Santo Padre João Paulo II, na encíclica
“Evangelho da Vida”, que afirmou, com palavras e idéias de permanente atualidade:
“Como há um século, oprimida nos seus direitos fundamentais era a classe operária, e a
Igreja com grande coragem tomou a sua defesa, proclamando os sacrossantos direitos da
pessoa do trabalhador, assim agora, quando outra categoria de pessoas é oprimida no
direito fundamental à vida, a Igreja sente que deve, com igual coragem, dar voz a quem a
não tem. O seu é sempre o grito evangélico em defesa dos pobres do mundo, de quantos
estão ameaçados, desprezados e oprimidos nos seus direitos humanos.
Espezinhada no direito fundamental à vida, é hoje uma grande multidão de seres humanos
débeis e indefesos, como o são, em particular, as crianças ainda não nascidas. Se, ao findar
do século passado, não fora consentido à Igreja calar perante as injustiças então reinantes,
menos ainda pode ela calar hoje, quando às injustiças sociais do passado — infelizmente
ainda não superadas — se vêm somar, em tantas partes do mundo, injustiças e opressões
ainda mais graves, mesmo se disfarçadas em elementos de progresso com vista à
organização de uma nova ordem mundial.
A presente Encíclica, fruto da colaboração do Episcopado de cada país do mundo, quer ser
uma reafirmação precisa e firme do valor da vida humana e da sua inviolabilidade, e,
conjuntamente, um ardente apelo dirigido em nome de Deus a todos e cada um: respeita,
defende, ama e serve a vida, cada vida humana! Unicamente por esta estrada, encontrarás
justiça, progresso, verdadeira liberdade, paz e felicidade!
Cheguem estas palavras a todos os filhos e filhas da Igreja! Cheguem a todas as pessoas de
boa vontade, solícitas pelo bem de cada homem e mulher e pelo destino da sociedade
inteira!”
Imbuída desse espírito evangélico, de um Evangelho da Vida, de plena vida para todos, é
que a CNBB, voz coletiva dos sucessores dos Apóstolos, requereu seu ingresso no
mencionado processo, para que possa atuar em favor dos direitos daqueles que estão
indefesos para lutar contra as forças da morte.
A CNBB conclama a todas as pessoas de boa vontade para lutarmos pela vida
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