DO PERÍODO ÉTICO À IDADE MÉDIA (contendo Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino) Murillo Mendes O HELENISMO O final do séc. IV a.C. até por volta de 400 d.C. marcou um longo período que é conhecido por helenismo, ou seja, a predominância da cultura grega nos três grandes reinos helênicos: Macedônia, Síria e Egito. Alexandre foi uma figura importante nesta época, pois ele conseguiu a derradeira e decisiva vitória sobre os persas e também uniu o Egito e todo o Oriente, até a Índia, à civilização grega. A partir de 50 a.C. Roma, que tinha sido província da cultura grega, assumiu o predomínio militar e começou o período romano também conhecido como final da Antigüidade. O helenismo foi marcado pelo rompimento de fronteiras entre países e culturas. Quanto à religião houve uma espécie de sincretismo; na ciência, a mistura de diferentes experiências culturais; e a filosofia dos pré-socráticos e de Sócrates, Platão e Aristóteles serviu como fonte de inspiração para diferentes correntes filosóficas as quais veremos algumas agora. Os Cínicos A filosofia cínica foi fundada em Atenas por Antístenes (discípulo de Sócrates) por volta de 400 a.C. Os cínicos diziam que a felicidade podia ser alcançada por todos, pois ela não consistia em luxúria, poder político ou boa saúde e sim em se libertar disto tudo. Achavam que as pessoas não deviam se preocupar com o sofrimento (próprio ou alheio) nem com a morte. O principal representante desta corrente filosófica foi Diógenes (discípulo de Antístenes). Os Estóicos A filosofia estóica surgiu em Atenas por volta de 300 a.C. e seu fundador foi Zenão, originário da ilha de Chipre. Os estóicos consideravam as pessoas como parte de uma mesma razão universal e isto levou à idéia de um direito universalmente válido, inclusive para os escravos. Eram monistas (negavam a oposição entre espírito e matéria) e cosmopolitas. Interessavam-se pela convivência em sociedade, por política e acreditavam que os processos naturais (morte, por exemplo) eram regidos pelas leis da natureza e por isso o homem deveria aceitar deu destino. O imperador romano Marco Aurélio (121-180), o filósofo e político Cícero (106-43 a.C.) e Sêneca (4 a.C. -65 d.C.) foram alguns que seguiram o estoicismo. Os Epicureus Aristipo foi aluno de Sócrates. Ele desenvolveu uma filosofia cujo objetivo era obter para a vida, através dos sentidos, o máximo possível de satisfação afastando toda e qualquer forma de sofrimento. Por volta de 300 a.C. Epicuro (341-270 a.C.) fundou em Atenas a escola dos epicureus que desenvolveu mais ainda a ética do prazer de Aristipo e a combinou com a teoria atômica de Demócrito. Epicuro ensinava que o resultado prazeroso de uma ação devia ser ponderado, por causa dos efeitos colaterais. Achava também que o prazer em longo prazo possibilitava mais satisfação ao homem. Ele se utilizava da teoria de Demócrito contra a religião e superstição. Os epicureus quase não se interessavam pela política e sociedade e sua palavra de ordem era "Viver o momento”. O Neoplatonismo O neoplatonismo foi a mais importante corrente filosófica da Antigüidade. Ela foi inspirada em Platão. O neoplatônico mais importante foi Plotino (c. 205-270). Ele via o mundo como algo dividido entre dois pólos: numa extremidade estava a luz divina, Uno ou Deus. Na outra reinavam as trevas absolutas. A seu ver, a luz do Uno iluminava a alma, ao passo que a matéria eram as trevas. O neoplatonismo exerceu forte influência sobre a teologia cristã. O Misticismo Uma experiência mística significa experimentar a sensação de fundir sua alma com Deus. É que o "eu" que conhecemos não é nosso "eu" verdadeiro e os místicos procuravam conhecer um "eu" maior que pode possuir várias denominações: Deus, espírito cósmico, universo, etc. No entanto, para chegar a esse estado de plenitude, é preciso passar por um caminho de purificação e iluminação através de uma vida simples. Encontram-se tendências místicas nas maiorias religiões do mundo. Na mística ocidental ( judaísmo, cristianismo e islamismo ), o místico diz que seu encontro é com um Deus pessoal. Na oriental ( hinduísmo, budismo e religião chinesa ) o que se afirma é que há uma fusão total com deus, que é o espírito cósmico. É importante notar que essas correntes místicas já existiam muito antes de Platão e que pessoas de nossa época têm relatado experiências místicas como uma forma de experimentar o mundo sob a perspectiva da eternidade. DOIS CÍRCULOS CULTURAIS Os indo-europeus A denominação indo-europeus é dada a todos os países e culturas nos quais são faladas as línguas indo-européias . Os indo-europeus primitivos viveram há mais ou menos quatro mil anos nas proximidades dos mares Negro e Cáspio. De lá, espalharam-se por diversos lugares: Irã, Índia, Grécia, Itália, Espanha, Inglaterra, França, Escandinávia, Leste Europeu e Rússia, formando o círculo cultural indo-europeu. Dentre outras coisas, pode-se dizer que sua cultura era marcada pelo politeísmo, a visão era o principal sentido para eles e acreditavam que a história era cíclica. As duas grandes religiões orientais – hinduísmo e budismo – são de origem indo-européia. O mesmo vale para a filosofia grega. Nessas religiões, enfatiza-se a presença de Deus em tudo (panteísmo). Outro ponto importante é a crença de que o homem pode chegar a uma unidade com Deus por meio do conhecimento religioso. No Oriente, a passividade e a vida reclusa são vistas como ideais religiosos e em muitas culturas indoeuropéias acredita-se na metempsicose ou transmigração da alma. Os semitas Os semitas pertencem a um círculo cultural completamente diferente, com uma língua completamente diferente também. Eles são originários da península da Arábia e também se expandiram para extensas e diferentes partes do mundo. As três religiões ocidentais – judaísmo, o cristianismo e o islamismo – têm base semita. De modo geral, o que se pode dizer dos semitas é que eram monoteístas, possuíam uma visão linear da história, a audição desempenhava papel preponderante e proibiam a representação pictórica. Quanto à história, é interessante saber que, para eles, ela começou com a criação do mundo por Deus e Este tinha o poder de intervir em seu curso. Em relação às imagens, ainda são proibidas no judaísmo e no islamismo, mas no cristianismo são permitidas devido à influência do mundo greco-romano. Israel Agora se examina o pano de fundo judeu do cristianismo. A história é a seguinte: houve a criação do mundo e a desobediência do homem contra Deus (Adão e Eva) e a partir de então, a morte passou a existir na Terra. A desobediência do homem a Deus atravessa toda a história contada na Bíblia. No Gênesis há a menção do pacto feito entre Deus e Abraão e seus descendentes que exigia a obediência rigorosa aos mandamentos de Deus. Esse pacto foi mais tarde renovado com a entrega das Tábuas da Lei a Moisés no monte Sinai. Naquela época, os israelitas viveram longo tempo na condição de escravos no Egito. Foram libertados e levados de volta a Israel onde se formou dois reinos – Israel (ao Norte) e Judá (ao Sul) – que foram assolados por guerras, e por todos os séculos que se seguiram até o nascimento de Jesus Cristo, os judeus continuaram sob dominação estrangeira. O povo judeu não entendia o motivo de tanta desgraça e atribuía isso ao castigo de Deus sobre Israel devido à sua desobediência. Então começaram a surgir profecias sobre o Juízo Final e também sobre a vinda de um "príncipe da paz" que iria restaurar o antigo reino de Davi e assegurar ao povo um futuro feliz. Esse messias viria restituir para Israel a sua grandeza e fundar um "Reino de Deus”. Jesus No contexto de toda essa efervescência nasceu Jesus Cristo. Naquela época, o povo imaginava o messias como um líder político, militar e religioso. Outros, duzentos anos antes do nascimento de Jesus, dizia-se que o messias seria o libertador de todo o mundo. Mas Jesus apareceu com pregações diferentes das que vigoravam e admitia publicamente não ser um comandante militar ou político. E mais, dizia que o Reino de Deus era o amor ao próximo e aos inimigos. Ele não considerava indigno conversar com prostitutas, funcionários corruptos e inimigos políticos do povo e achava que estes seriam vistos por Deus como pessoas justas bastando para isso que elas se voltassem para Ele e Lhe pedisse perdão. Jesus acreditava que nós mesmos não podíamos nos redimir de nossos pecados e que nenhuma pessoa era reta aos olhos de Deus. Ele foi um ser humano extraordinário. Soube usar de forma genial a língua de seu tempo e deu a conceitos antigos um sentido novo, extremamente ampliado. Tudo isto acrescentado a sua mensagem radical de redenção dos homens ameaçava tantos interesses e posições de poder que ele acabou sendo crucificado. Para o cristianismo, Jesus foi o único homem justo que viveu e o único que sofreu e morreu por todos os homens. Paulo Alguns dias depois da crucificação e enterro de Jesus, começaram a surgir boatos sobre sua ressurreição. Pode-se dizer que a Igreja cristã começou naquela manhã de Páscoa. Paulo disse: "Pois se Cristo não ressuscitou, então todo nosso sermão é vão; é vã toda a vossa crença". A partir de então todas as pessoas podiam ter esperança na "ressurreição da carne". Os primeiros cristãos passaram a divulgar a redenção pela fé em Cristo deles. Poucos anos depois da morte de Jesus, o fariseu Paulo se converteu ao cristianismo e suas viagens missionárias pelo mundo greco-romano transformaram o cristianismo numa religião universal. Quando esteve em Atenas, ele fez um discurso do Areópago que falava do Deus que os atenienses desconheciam e isso provocou um choque entre a filosofia grega e a doutrina da redenção cristã. Apesar de tudo, Paulo encontrou nessa cultura um sólido apoio, ao chamar atenção para o fato de que a busca por Deus estava dentro de todos os homens. Em Atos dos Apóstolos está escrito que depois de seu discurso, foi vítima de zombaria por parte de algumas pessoas, quando estas o ouviram dizer que Cristo havia ressuscitado dos mortos. Mas também houve os que se interessaram pelo assunto. Depois, Paulo prosseguiu em sua tarefa missionária e passadas algumas décadas da morte de Cristo já existiam comunidades cristãs em todas as cidades gregas e romanas mais importantes. O Credo Paulo não foi importante para o cristianismo apenas por suas pregações missionárias. Dentro das comunidades cristãs, sua influência era muito grande, pois as pessoas também queriam uma orientação espiritual. Pelo fato de o cristianismo não ser a única religião nova daquela época, a Igreja precisava definir claramente a doutrina cristã, a fim de estabelecer seus limites em relação às demais religiões e evitar uma cisão interna. Surgiram assim as primeiras profissões de fé, os primeiros credos resumindo princípios ou os dogmas cristãos mais importantes como àquele que afirmava ser Jesus, Deus e homem ao mesmo tempo e, ainda, que Jesus, realmente, tinha padecido na cruz. A IDADE MÉDIA A Idade Média teve início na Europa com as invasões germânicas (bárbaras ), no século V, sobre o Império Romano do Ocidente. Essa época estende-se até o século XV, com a retomada comercial e o renascimento urbano. A Idade Média caracteriza-se pela economia ruralizada, enfraquecimento comercial, supremacia da Igreja Católica, sistema de produção feudal e sociedade hierarquizada. Estrutura Política Prevaleceu na Idade Média às relações de vassalagem e suserania. O suserano era quem dava um lote de terra ao vassalo, sendo que este último deveria prestar fidelidade e ajuda ao seu suserano. O vassalo oferecia ao senhor, ou suserano, fidelidade e trabalho, em troca de proteção e um lugar no sistema de produção. As redes de vassalagem se estendiam por várias regiões, sendo o rei o suserano mais poderoso. Todos os poderes, jurídico, econômico e político, concentravam-se nas mãos dos senhores feudais, donos de lotes de terras (feudos). Sociedade Medieval A sociedade era estática (com pouca mobilidade social) e hierarquizada. A nobreza feudal (senhores feudais, cavaleiros, condes, duques, viscondes) era detentora de terras e arrecadava imposto dos camponeses. O clero (membros da Igreja Católica) tinha um grande poder, pois era responsável pela proteção espiritual da sociedade. Era isento de impostos e arrecadava o dízimo. A terceira camada da sociedade era formada pelos servos (camponeses) e pequenos artesãos. Os servos deviam pagar várias taxas e tributos aos senhores feudais, tais como: corvéia (trabalho de 3 a 4 dias nas terras do senhor feudal), talha (metade da produção), banalidades (taxas pagas pela utilização do moinho e forno do senhor feudal). Economia Medieval A economia feudal baseava-se principalmente na agricultura. Existiam moedas na Idade Média, porém eram pouco utilizadas. As trocas de produtos e mercadorias eram comuns nas economias feudais. O feudo era a base econômica deste período, pois quem tinha a terra possuía mais poder. O artesanato também era praticado na Idade Média. A produção era baixa, pois as técnicas de trabalho agrícola eram extremamente rudimentares. O arado puxado por bois era muito utilizado na agricultura. Pensamento Medieval O pensamento na Idade Média foi muito influenciado pela Igreja Católica Desta forma, o teocentrismo acabou por definir as formas de sentir, ver e também pensar durante o período medieval. Na Idade Nesse período se formou uma unidade cultural cristã sólida. Havia uma contradição entre Deus e razão. Essa contradição foi tratada por dois importantes filósofos desta época: Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. De acordo com Santo Agostinho, importante teólogo romano, o conhecimento e as idéias eram de origem divina. Dividiu o mundo entre bem e mal, mesclou sua concepção filosófica com a de Platão e a do cristianismo ("cristianizou Platão"); achava que o mal era a ausência de Deus e que a "boa vontade era obra de Deus". As verdades sobre o mundo e sobre todas as coisas deviam ser buscadas nas palavras de Deus. Porém, a partir do século V até o século XIII, uma nova linha de pensamento ganha importância na Europa. Surge a escolástica, conjunto de idéias que visava unir a fé com o pensamento racional de Platão e Aristóteles. O principal representante desta linha de pensamento foi Santo Tomás de Aquino, o filósofo quem "cristianizou Aristóteles". Foi atribuído à Tomáz de Aquino o mérito de ter conseguido fazer uma síntese da fé e do conhecimento. Achava que existiam dois caminhos para se chegar a Deus: a revelação cristã e a razão e os sentidos. Acreditava que Deus havia se revelado ao homem através da Bíblia e da razão. As Guerras Medievais A guerra na Idade Média era uma das principais formas de obter poder. Os senhores feudais envolviam-se em guerras para aumentar suas terras e o poder. Os cavaleiros formavam a base dos exércitos medievais. Corajosos, leais e equipados com escudos, elmos e espadas, representavam o que havia de mais nobre no período medieval Educação, artes e cultura A educação era para poucos, pois só os filhos dos nobres estudavam. Esta era marcada pela influência da Igreja, ensinando o latim, doutrinas religiosas e táticas de guerras. Grande parte da população medieval era analfabeta e não tinha acesso aos livros. A arte medieval também era fortemente marcada pela religiosidade da época. As pinturas retratavam passagens da Bíblia e ensinamentos religiosos. As pinturas medievais e os vitrais das igrejas eram formas de ensinar à população um pouco mais sobre a religião. Pode-se dizer que, no geral, a cultura medieval foi fortemente influenciada pela religião. Na arquitetura se destacou a construção de castelos, igrejas e catedrais. As Cruzadas No século XI, dentro do contexto histórico da expansão árabe, os muçulmanos conquistaram a cidade sagrada de Jerusalém. Diante dessa situação, o papa Urbano II convocou a Primeira Cruzada (1096), com o objetivo de expulsar os "infiéis" (árabes) da Terra Santa. Essas batalhas, entre católicos e muçulmanos, duraram cerca de dois séculos, deixando milhares de mortos e um grande rastro de destruição. Ao mesmo tempo em que eram guerras marcadas por diferenças religiosas, também possuíam um forte caráter econômico. Muitos cavaleiros cruzados, ao retornarem para a Europa, saqueavam cidades árabes e vendiam produtos nas estradas, nas chamadas feiras e rotas de comércio. De certa forma, as Cruzadas contribuíram para o renascimento urbano e comercial a partir do século XIII. Após as Cruzadas, o Mar Mediterrâneo foi aberto para os contatos comerciais. Peste Negra ou Peste Bubônica Em meados do século XIV, uma doença devastou a população européia. Historiadores calculam que aproximadamente um terço dos habitantes morreram desta doença. A Peste Negra era transmitida através da picada de pulgas de ratos doentes. Estes ratos chegavam à Europa nos porões dos navios vindos do Oriente. Como as cidades medievais não tinham condições higiênicas adequadas, os ratos se espalharam facilmente. Após o contato com a doença, a pessoa tinha poucos dias de vida. Febre, mal-estar e bulbos (bolhas) de sangue e pus espalhavam-se pelo corpo do doente, principalmente nas axilas e virilhas. Como os conhecimentos médicos eram pouco desenvolvidos, a morte era certa. Para complicar ainda mais a situação, muitos atribuíam a doença a fatores comportamentais, ambientais ou religiosos. Revoltas Camponesas: as Jacqueries Após a Peste Negra, a população européia diminuiu muito. Muitos senhores feudais resolveram aumentar os impostos, taxas e obrigações de trabalho dos servos sobreviventes. Muitos tiveram que trabalhar dobrado para compensar o trabalho daqueles que morreram na epidemia. Em muitas regiões da Inglaterra e da França estouraram revoltas camponesas contra o aumento da exploração dos senhores feudais. Combatidas com violência por partes dos nobres, muitas foram sufocadas e outras conseguiram conquistar seus objetivos, diminuindo a exploração e trazendo conquistas para os camponeses. OS FILÓSOFOS Santo Agostinho Aurélio Agostinho nasceu em Tagasta, cidade da Numídia, de uma família burguesa, a 13 de novembro do ano 354. Seu pai, Patrício, era pagão, recebido o batismo pouco antes de morrer; sua mãe, Mônica, pelo contrário, era uma cristã fervorosa, e exercia sobre o filho uma notável influência religiosa. Indo para Cartago, a fim de aperfeiçoar seus estudos, começados na pátria, desviou-se moralmente. Caiu em uma profunda sensualidade, que, segundo ele, é uma das maiores conseqüências do pecado original; dominou-o longamente, moral e intelectualmente, fazendo com que aderisse ao maniqueísmo, que atribuía realidade substancial tanto ao bem como ao mal, julgando achar neste dualismo maniqueu a solução do problema do mal e, por conseqüência, uma justificação da sua vida. Tendo terminado os estudos, abriu uma escola em Cartago, donde partiu para Roma e, em seguida, para Milão. Afastou-se definitivamente do ensino em 386, aos trinta e dois anos, por razões de saúde e, mais ainda, por razões de ordem espiritual. Entrementes - depois de maduro exame crítico - abandonara o maniqueísmo, abraçando a filosofia neoplatônica que lhe ensinou a espiritualidade de Deus e a negatividade do mal. Destarte chegara a uma concepção cristã da vida - no começo do ano 386. Entretanto a conversão moral demorou ainda, por razões de luxúria. Finalmente, como por uma fulguração do céu, sobreveio a conversão moral e absoluta, no mês de setembro do ano 386. Agostinho renuncia inteiramente ao mundo, à carreira, ao matrimônio; retira-se, durante alguns meses, para a solidão e o recolhimento, em companhia da mãe, do filho e de alguns discípulos, perto de Milão. Aí escreveu seus diálogos filosóficos, e, na Páscoa do ano 387, juntamente com o filho Adeodato e o amigo Alípio, receberam o batismo em Milão das mãos de Santo Ambrósio, cuja doutrina e eloqüência muito contribuíram para a sua conversão. Tinha trinta e três anos de idade. Depois da conversão, Agostinho abandona Milão, e, falecida a mãe em Óstia, volta para Tagasta. Aí vendeu todos os haveres e, distribuído o dinheiro entre os pobres, funda um mosteiro numa das suas propriedades alienadas. Ordenado padre em 391, e consagrado bispo em 395, governou a igreja de Hipona até à morte, que se deu durante o assédio da cidade pelos vândalos, a 28 de agosto do ano 430. Tinha setenta e cinco anos de idade. Após a sua conversão, Agostinho dedicou-se inteiramente ao estudo da Sagrada Escritura, da teologia revelada, e à redação de suas obras, entre as quais têm lugar de destaque as filosóficas. As obras de Agostinho que apresentam interesse filosófico são, sobretudo, os diálogos filosóficos: Contra os acadêmicos, Da vida beata, Os solilóquios, Sobre a imortalidade da alma, Sobre a quantidade da alma, Sobre o mestre, Sobre a música. Interessam também à filosofia os escritos contra os maniqueus: Sobre os costumes, Do livre arbítrio, Sobre as duas almas, Da natureza do bem. Dada, porém, a mentalidade agostiniana, em que a filosofia e a teologia andam juntas, compreende-se que interessam à filosofia também as obras teológicas e religiosas, especialmente: Da Verdadeira Religião, As Confissões, A Cidade de Deus, Da Trindade, Da Mentira. Agostinho considera a filosofia praticamente, platonicamente, como solucionadora do problema da vida, ao qual só o cristianismo pode dar uma solução integral. Todo o seu interesse central está, portanto, circunscrito aos problemas de Deus e da alma, visto serem os mais importantes e os mais imediatos para a solução integral do problema da vida. O problema gnosiológico é profundamente sentido por Agostinho, que o resolve, superando o ceticismo acadêmico mediante o iluminismo platônico. Inicialmente, ele conquista uma certeza: a certeza da própria existência espiritual; daí tira uma verdade superior, imutável, condição e origem de toda verdade particular. Embora desvalorizando, platonicamente, o conhecimento sensível em relação ao conhecimento intelectual, admite Agostinho que os sentidos, como o intelecto, são fontes de conhecimento. E como para a visão sensível além do olho e da coisa, é necessária a luz física, do mesmo modo, para o conhecimento intelectual, seria necessário uma luz espiritual. Esta vem de Deus, é a Verdade de Deus, o Verbo de Deus, para o qual são transferidas as idéias platônicas. No Verbo de Deus existem as verdades eternas, as idéias, as espécies, os princípios formais das coisas, e são os modelos dos seres criados; e conhecemos as verdades eternas e as idéias das coisas reais por meio da luz intelectual a nós participada pelo Verbo de Deus. Como se vê, é a transformação do inatismo, da reminiscência platônica, em sentido teísta e cristão. Permanece, porém, a característica fundamental, que distingue a gnosiologia platônica da aristotélica e tomista, pois, segundo a gnosiologia platônico-agostiniana, não bastam, para que se realize o conhecimento intelectual humano, as forças naturais do espírito, mas é mister uma particular e direta iluminação de Deus. A Metafísica Em relação com esta gnosiologia, e dependente dela, a existência de Deus é provada, fundamentalmente, a priori, enquanto no espírito humano haveria uma presença particular de Deus. Ao lado desta prova a priori, não nega Agostinho as provas a posteriori da existência de Deus, em especial a que se afirma sobre a mudança e a imperfeição de todas as coisas. Quanto à natureza de Deus, Agostinho possui uma noção exata, ortodoxa, cristã: Deus é poder racional infinito, eterno, imutável, simples, espírito, pessoa, consciência, o que era excluído pelo platonismo. Deus é ainda ser, saber, amor. Quanto, enfim, às relações com o mundo, Deus é concebido exatamente como livre criador. No pensamento clássico grego, tínhamos um dualismo metafísico; no pensamento cristão - agostiniano - temos ainda um dualismo, porém moral, pelo pecado dos espíritos livres, insurgidos orgulhosamente contra Deus e, portanto, preferindo o mundo a Deus. No cristianismo, o mal é, metafisicamente, negação, privação; moralmente, porém, tem uma realidade na vontade má, aberrante de Deus. O problema que Agostinho tratou, em especial, é o das relações entre Deus e o tempo. Deus não é no tempo, o qual é uma criatura de Deus: o tempo começa com a criação. Antes da criação não há tempo, dependendo o tempo da existência de coisas que vem-a-ser e são, portanto, criadas. Também a psicologia agostiniana harmonizou-se com o seu platonismo cristão. Por certo, o corpo não é mau por natureza, porquanto a matéria não pode ser essencialmente má, sendo criada por Deus, que fez boas todas as coisas. Mas a união do corpo com a alma é, de certo modo, extrínseca, acidental: alma e corpo não formam aquela unidade metafísica, substancial, como na concepção aristotélico-tomista, em virtude da doutrina da forma e da matéria. A alma nasce com o indivíduo humano e, absolutamente, é uma específica criatura divina, como todas as demais. Entretanto, Agostinho fica indeciso entre o criacionismo e o traducionismo, isto é, se a alma é criada diretamente por Deus, ou provém da alma dos pais. Certo é que a alma é imortal, pela sua simplicidade. Agostinho, pois, distingue, platonicamente, a alma em vegetativa, sensitiva e intelectiva, mas afirma que elas são fundidas em uma substância humana. A inteligência é divina em intelecto intuitivo e razão discursiva; e é atribuída a primazia à vontade. No homem a vontade é amor, no animal é instinto, nos seres inferiores, cego apetite. Quanto à cosmologia, pouco temos a dizer. Como já mais acima se salientou a natureza não entra nos interesses filosóficos de Agostinho, preso pelos problemas éticos, religiosos, Deus e a alma. Mencionaremos a sua famosa doutrina dos germes específicos dos seres - rationes seminales. Deus, a princípio, criou alguns seres já completamente realizados; de outros criou as causas que, mais tarde, desenvolvendo-se, deram origem às existências dos seres específicos. Esta concepção nada tem que ver com o moderno evolucionismo, como alguns erroneamente pensaram, porquanto Agostinho admite a imutabilidade das espécies, negada pelo moderno evolucionismo. A Moral Evidentemente, a moral agostiniana é teísta e cristã e, logo, transcendente e ascética. Nota característica da sua moral é o voluntarismo, a saber, a primazia do prático, da ação - própria do pensamento latino - , contrariamente ao primado da teorética, do conhecimento - próprio do pensamento grego. A vontade não é determinada pelo intelecto, mas precede-o. Não obstante, Agostinho tem também atitudes teorética como, por exemplo, quando afirma que Deus, fim último das criaturas, é possuído por um ato de inteligência. A virtude não é uma ordem de razão, hábito conforme à razão, como dizia Aristóteles, mas uma ordem do amor. Entretanto a vontade é livre, e pode querer o mal, pois é um ser limitado, podendo agir desordenadamente, imoralmente, contra a vontade de Deus. E deve-se considerar não causa eficiente, mas deficiente da sua ação viciosa, porquanto o mal não tem realidade metafísica. O pecado, pois, tem em si mesmo imanente a pena da sua desordem, porquanto a criatura, não podendo lesar a Deus, prejudica a si mesma, determinando a dilaceração da sua natureza. A fórmula agostiniana em torno da liberdade em Adão - antes do pecado original - é: poder não pecar; depois do pecado original é: não poder não pecar; nos bem-aventurados será: não poder pecar. A vontade humana, portanto, já é impotente sem a graça. O problema da graça - que tanto preocupa Agostinho tem, além de um interesse teológico, também um interesse filosófico, porquanto se trata de conciliar a causalidade absoluta de Deus com o livre arbítrio do homem. Como é sabido, Agostinho, para salvar o primeiro elemento, tende a descurar o segundo. Quanto à família, Agostinho, como Paulo apóstolo, considera o celibato superior ao matrimônio; se o mundo terminasse por causa do celibato, ele alegrar-se-ia, como da passagem do tempo para a eternidade. Quanto à política, ele tem uma concepção negativa da função estatal; se não houvesse pecado e os homens fossem todos justos, o Estado seria inútil. Consoante Agostinho, a propriedade seria de direito positivo, e não natural. Nem a escravidão é de direito natural, mas conseqüência do pecado original, que perturbou a natureza humana, individual e social. Ela não pode ser superada naturalmente, racionalmente, porquanto a natureza humana já é corrompida; pode ser superada sobrenaturalmente, asceticamente, mediante a conformação cristã de quem é escravo e a caridade de quem é amo. O Mal Agostinho foi profundamente impressionado pelo problema do mal - de que dá uma vasta e viva fenomenologia. Foi também longamente desviado pela solução dualista dos maniqueus, que lhe impediu o conhecimento do justo conceito de Deus e da possibilidade da vida moral. A solução deste problema por ele achada foi a sua libertação e a sua grande descoberta filosófico-teológica, e marca uma diferença fundamental entre o pensamento grego e o pensamento cristão. Antes de tudo, nega a realidade metafísica do mal. O mal não é ser, mas privação de ser, como a obscuridade é ausência de luz. Tal privação é imprescindível em todo ser que não seja Deus, enquanto criado, limitado. Destarte é explicado o assim chamado mal metafísico, que não é verdadeiro mal, porquanto não tira aos seres o lhes é devido por natureza. Quanto ao mal físico, que atinge também a perfeição natural dos seres, Agostinho procura justificá-lo mediante um velho argumento, por assim dizer, estético: o contraste dos seres contribuiria para a harmonia do conjunto. Mas é esta a parte menos afortunada da doutrina agostiniana do mal. Quanto ao mal moral, finalmente existe realmente a má vontade que livremente faz o mal; ela, porém, não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não-ser. Este não-ser pode unicamente provir do homem, livre e limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser. O mal moral entrou no mundo humano pelo pecado original e atual; por isso, a humanidade foi punida com o sofrimento, físico e moral, além de o ter sido com a perda dos dons gratuitos de Deus. Como se vê, o mal físico tem deste modo, uma outra explicação mais profunda. Remediou este mal moral a redenção de Cristo, Homem-Deus, que restituiu à humanidade os dons sobrenaturais e a possibilidade do bem moral; mas deixou permanecer o sofrimento, conseqüência do pecado, como meio de purificação e expiação. E a explicação última de tudo isso - do mal moral e de suas conseqüências - estaria no fato de que é mais glorioso para Deus tirar o bem do mal, do que não permitir o mal. Resumindo a doutrina agostiniana a respeito do mal, diremos: o mal é, fundamentalmente, privação de bem (de ser); este bem pode ser não devido (mal metafísico) ou devido (mal físico e moral) a uma determinada natureza; se o bem é devido nasce o verdadeiro problema do mal; a solução deste problema é estética para o mal físico, moral (pecado original e Redenção) para o mal moral (e físico). A História Como é notório, Agostinho trata do problema da história na Cidade de Deus, e resolve-o ainda com os conceitos de criação, de pecado original e de Redenção. A Cidade de Deus representa, talvez, o maior monumento da Antigüidade cristã e, certamente, a obra prima de Agostinho. Nesta obra é contida a metafísica original do cristianismo, que é uma visão orgânica e inteligível da história humana. O conceito de criação é indispensável para o conceito de providência, que é o governo divino do mundo; este conceito de providência é, por sua vez, necessário, a fim de que a história seja suscetível de racionalidade. O conceito de providência era impossível no pensamento clássico, por causa do basilar dualismo metafísico. Entretanto, para entender realmente, plenamente, o plano da história, é mister a Redenção, graças aos quais é explicado o enigma da existência do mal no mundo e a sua função. Cristo tornara-se o centro sobrenatural da história: o seu reino, a cidade de Deus é representada pelo povo de Israel antes da sua vinda sobre a terra, e pela Igreja depois de seu advento. Contra este cidade se ergue a cidade terrena, mundana, satânica, que será absolutamente separada e eternamente punida nos fins dos tempos. Agostinho distingue em três grandes seções a história antes de Cristo. A primeira concerne à história das duas cidades, após o pecado original, até que ficaram confundidas em um único caos humano, e chega até ao Abraão, época em que começou a separação. Na Segunda descreve Agostinho a história da cidade de Deus, recolhida e configurada em Israel, de Abraão até Cristo. A terceira retoma, em separado, a narrativa do ponto em que começa a história da Cidade de Deus separada, isto é, desde Abraão, para tratar paralela e separadamente da Cidade do mundo, que culmina no império romano. Esta história, pois, fragmentária e dividida, onde parece que Satanás e o mal têm o seu reino, representa, no fundo, uma unidade e um progresso. É o progresso para Cristo, sempre mais claramente, conscientemente e divinamente esperado e profetizado em Israel; e profetizado também, a seu modo, pelos povos pagãos, que, consciente ou inconscientemente, lhe preparavam diretamente o caminho. Depois de Cristo cessa a divisão política entre as duas cidades; elas se confundem como nos primeiros tempos da humanidade, com a diferença, porém, de que já não é mais união caótica, mas configurada na unidade da Igreja. Esta não é limitada por nenhuma divisão política, mas supera todas as sociedades políticas na universal unidade dos homens e na unidade dos homens com Deus. A Igreja, pois, é acessível, invisivelmente, também às almas de boa vontade que, exteriormente, dela não podem participar. A Igreja transcende, ainda, os confins do mundo terreno, além do qual está a pátria verdadeira. Entretanto, visto que todos, predestinados e ímpios, se encontram empiricamente confundidos na Igreja. Ainda que só na unidade dialética das duas cidades, para o triunfo da Cidade de Deus - a divisão definitiva, eterna, absoluta, justíssima, realizar-se-á nos fins dos tempos, depois da morte, depois do juízo universal, no paraíso e no inferno. É uma grande visão unitária da história, não é uma visão filosófica, mas teológica: é uma teologia, não uma filosofia da história. Tomás de Aquino A Vida e as Obras Após uma longa preparação e um desenvolvimento promissor, a escolástica chega ao seu ápice com Tomás de Aquino. Adquire plena consciência dos poderes da razão, e proporciona finalmente ao pensamento cristão uma filosofia. Assim, converge para Tomás de Aquino não apenas o pensamento escolástico, mas também o pensamento patrístico, que culminou com Agostinho, rico de elementos helenistas e neoplatônico, além do patrimônio de revelação judaico-cristã, bem mais importante. Para Tomás de Aquino, porém, converge diretamente o pensamento helênico, na sistematização imponente de Aristóteles. O pensamento de Aristóteles, pois, chega a Tomás de Aquino enriquecido com os comentários pormenorizados, especialmente árabes. Nasceu Tomás em 1225, no castelo de Roccasecca, na Campânia, da família feudal dos condes de Aquino. Era unido pelos laços de sangue da família imperial e das famílias reais de França, Sicília e Aragão. Recebeu a primeira educação no grande mosteiro de Monte cassino, passando a mocidade em Nápoles como aluno daquela universidade. Depois de ter estudado as artes liberais, entrou na ordem dominicana, renunciando a tudo, salvo à ciência. Tal acontecimento determinou uma forte reação por parte de sua família; entretanto, Tomás triunfou da oposição e se dedicou ao estudo assíduo da teologia, tendo como mestre Alberto Magno, primeiro na universidade de Paris (1245-1248) e depois em Colônia. Também Alberto, filho da nobre família de duques de Bollstädt (1207-1280), abandonou o mundo e entrou na ordem dominicana. Ensinou em Colônia, Friburgo, Estrasburgo, lecionou teologia na universidade de Paris, onde teve entre os seus discípulos também Tomás de Aquino, que o acompanhou a Colônia, aonde Alberto foi chamado para lecionar no estudo geral de sua ordem. A atividade científica de Alberto Magno é vastíssima: trinta e oito volumes tratando dos assuntos mais variados - ciências naturais, filosofia, teologia, exegese, ascética. Em 1252 Tomás voltou para a universidade de Paris, onde ensinou até 1269 quando regressou à Itália, chamado à corte papal. Em 1269 foi de novo à universidade de Paris, onde lutou contra o averroísmo de Siger de Brabante; em 1272, voltou a Nápoles, onde lecionou teologia. Dois anos depois, em 1274, viajando para tomar parte no Concílio de Lion, por ordem de Gregório X, faleceu no mosteiro de Fossa nova, entre Nápoles e Roma. Tinha apenas quarenta e nove anos de idade. As obras de Aquino podem ser dividir em quatro grupos: 1. Comentários sobre: a lógica, a física, metafísica, a ética de Aristóteles; a Sagrada Escritura; a Dionísio pseudo-areopagita; aos quatro livros das sentenças de Pedro Lombardo. 2. Sumas: Suma Contra os Gentios, baseada substancialmente em demonstrações racionais; Suma Teológica, começada em 1265, ficando inacabada devido à morte prematura do autor. 3. Questões: Questões Disputadas (Da verdade, Da alma, Do mal, etc.); Questões várias. 4. Opúsculos: Da Unidade do Intelecto Contra os Averroístas; Da Eternidade do Mundo, etc. O Pensamento: A Gnosiologia Diversamente do agostinianismo, e em harmonia com o pensamento aristotélico, Tomás considera a filosofia como uma disciplina essencialmente teorética, para resolver o problema do mundo. Considera também a filosofia como absolutamente distinta da teologia, - não oposta - visto ser o conteúdo da teologia arcano e revelado, o da filosofia evidente e racional. A gnosiologia tomista - diversamente da agostiniana e em harmonia com a aristotélica - é empírica e racional, sem inatismo e iluminação divinas. O conhecimento humano tem dois momentos, sensível e intelectual, e o segundo pressupõe o primeiro. O conhecimento sensível do objeto, que está fora de nós, realiza-se mediante a assim chamada espécie sensível. Esta é a impressão, a imagem, a forma do objeto material na alma, isto é, o objeto sem a matéria: como a impressão do sinete na cera, sem a materialidade do sinete; a cor do ouro percebido pelo olho, sem a materialidade do ouro. O conhecimento intelectual depende do conhecimento sensível, mas transcende-o. O intelecto vê em a natureza das coisas - intus legit - mais profundamente do que os sentidos, sobre os quais exerce a sua atividade. Na espécie sensível - que representa o objeto material na sua individualidade, temporalidade, espacialidade, etc., mas sem a matéria - o inteligível, o universal, a essência das coisas é contida apenas implicitamente, potencialmente. Para que tal inteligível se torne explícito, atual, é preciso extraí-lo, abstraí-lo, isto é, desindividualizá-lo das condições materiais. Tem-se, deste modo, a espécie inteligível, representando precisamente o elemento essencial, a forma universal das coisas. Pelo fato de que o inteligível é contido apenas potencialmente no sensível, é mister um intelecto agente que abstraia, desmaterialize, desindividualize o inteligível do fantasma ou representação sensível. Este intelecto agente é como que uma luz espiritual da alma, mediante a qual ilumina o mundo sensível para conhecê-lo; no entanto, é absolutamente desprovido de conteúdo ideal, sem conceitos diferentemente de quanto pretendia o inatismo agostiniano. E, ademais, é uma faculdade da alma individual, e não noa advém de fora, como pretendiam ainda o iluminismo agostiniano e o panteísmo Averroístas. O intelecto que propriamente entende o inteligível, a essência, a idéia, feita explícita, desindividualizada pelo intelecto agente, é o intelecto passivo, a que pertencem às operações racionais humanas: conceber, julgar, raciocinar, elaborar as ciências até à filosofia. Como no conhecimento sensível, a coisa sentida e o sujeito que sente, formam uma unidade mediante a espécie sensível, do mesmo modo e ainda mais perfeitamente, acontece no conhecimento intelectual, mediante a espécie inteligível, entre o objeto conhecido e o sujeito que conhece. Compreendendo as coisas, o espírito se torna todas as coisas, possui em si, tem em si mesmo imanentes todas as coisas, compreendendo-lhes as essências, as formas. É preciso claramente salientar que, na filosofia de Tomás de Aquino, a espécie inteligível não é a coisa entendida, quer dizer, a representação da coisa (id quod intelligitur), pois, neste caso, conheceríamos não as coisas, mas os conhecimentos das coisas, acabando, destarte, no fenomenismo. Mas, a espécie inteligível é o meio pelo qual a mente entende as coisas extras mentais (é, logo, id quo intelligitur). E isto corresponde perfeitamente aos dados do conhecimento, que nos garante conhecermos coisas e não idéias; mas as coisas podem ser conhecidas apenas através das espécies e das imagens, e não podem entrar fisicamente no nosso cérebro. O conceito tomista de verdade é perfeitamente harmonizado com esta concepção realista do mundo, e é justificado experimentalmente e racionalmente. A verdade lógica não está nas coisas e nem sequer no mero intelecto, mas na adequação entre a coisa e o intelecto: veritas est adaequatio speculativa mentis et rei. E tal adequação é possível pela semelhança entre o intelecto e as coisas, que contêm um elemento inteligível, a essência, a forma, a idéia. O sinal pelo qual a verdade se manifesta à nossa mente, é a evidência; e, visto que muitos conhecimentos nossos não são evidentes, intuitivos, tornam-se verdadeiros quando levados à evidência mediante a demonstração. Todos os conhecimentos sensíveis são evidentes, intuitivos, e, por conseqüência, todos os conhecimentos sensíveis são, por si, verdadeiros. Os chamados erros dos sentidos nada mais são que falsas interpretações dos dados sensíveis, devidas ao intelecto. Pelo contrário, no campo intelectual, poucos são os nossos conhecimentos evidentes. São certamente evidentes os princípios primeiros (identidade, contradição, etc.). Os conhecimentos não evidentes são reconduzidos à evidência mediante a demonstração, como já dissemos. É neste processo demonstrativo que se pode insinuar o erro, consistindo em uma falsa passagem na demonstração, e levando, destarte, à discrepância entre o intelecto e as coisas. A demonstração é um processo dedutivo, isto é, uma passagem necessária do universal para o particular. No entanto, os universais, os conceitos, as idéias, não são inatas na mente humana, como pretendia o agostinianismo, e nem sequer são inatas suas relações lógicas, mas se tiram fundamentalmente da experiência, mediante a indução, que colhe a essência das coisas. A ciência tem como objeto esta essência das coisas, universal e necessária. A Metafísica A metafísica tomista pode-se dividir em geral e especial. A metafísica geral - ou ontologia - tem como objeto o ser em geral e as atribuições e leis relativas. A metafísica especial estuda o ser em suas grandes especificações: Deus, o espírito, o mundo. Daí se tem a teologia racional - assim chamada, para distingui-la da teologia revelada; a psicologia racional (racional, porquanto é filosofia e se deve distinguir da moderna psicologia empírica, que é ciência experimental); a cosmologia ou filosofia da natureza (que estuda a natureza em suas causas primeiras, ao passo que a ciência experimental estuda a natureza em suas causas segundas). O princípio básico da ontologia tomista é a especificação do ser em potência e ato. Ato significa realidade, perfeição; potência quer dizer não-realidade, imperfeição. Não significa, porém, irrealidade absoluta, mas imperfeição relativa de mente e capacidade de conseguir uma determinada perfeição, capacidade de concretizarse. Tal passagem da potência ao ato é o vir-a-ser, que depende do ser que é ato puro; este não muda e faz com que tudo exista e venha-a-ser. Opõe-se ao ato puro a potência pura que, de per si, naturalmente é irreal, é nada, mas podem se tornar todas as coisas, e se chama matéria. A Natureza Uma determinação, especificação do princípio de potência e ato, válida para toda a realidade, é o princípio da matéria e de forma. Este princípio vale unicamente para a realidade material, para o mundo físico, e interessa, portanto especialmente à cosmologia tomista. A matéria não é absoluto, não-ente; porém é irreal sem a forma e, desse modo determinado como a potência é determinada e, como a potência é determinada pelo ato. É necessária para a forma, a fim de que possa existir um ser completo e real (substância). A forma é a essência das coisas (água, ouro, vidro) e é universal. A individuação, a concretização da forma, essência, em vários indivíduos, que só realmente existem (esta água, este ouro, este vidro), depende da matéria, que, portanto representa o princípio de individuação no mundo físico. Resume claramente Maritain esta doutrina com as palavras seguintes: "Na filosofia de Aristóteles e Tomás de Aquino, toda substância corpórea é um composto de duas partes substanciais complementares, uma passiva e em si mesma absolutamente indeterminada (a matéria), outra ativa e determinante (a forma)". Além destas duas causas constitutivas (matéria e forma), os seres materiais têm outras duas causas: a causa eficiente e a causa final. A causa eficiente é a que faz surgir um determinado ser na realidade, é a que realiza o sínolo, a saber, a síntese daquela determinada matéria com a forma que a especifica. A causa final é o fim para que opera a causa eficiente; é esta causa final que determina a ordem observada no universo. Em conclusão: todo ser material existe pelo concurso de quatro causas - material, formal, eficiente, final; estas causas constituem todo ser na realidade e na ordem com os demais seres do universo físico. O Espírito Quando a forma é princípio da vida, que é uma atividade cuja origem está dentro do ser, chama-se alma. Portanto, têm uma alma as plantas (alma vegetativa: que se alimenta, cresce e se reproduz), e os animais (alma sensitiva: que, a mais da alma vegetativa, sente e se move). Entretanto, a psicologia racional, que diz respeito ao homem, interessa apenas a alma racional. Além de desempenhar as funções da alma vegetativa e sensitiva, a alma racional entende e quer, pois segundo Tomás de Aquino, existe uma forma só e, por conseguinte, uma alma só em cada indivíduo; e a alma superior cumpre as funções da alma inferior, como a mais contém o menos. No homem existe uma alma espiritual - unida com o corpo, mas transcendendo-o - porquanto além das atividades vegetativa e sensitiva, que são materiais, se manifestam nele também atividades espirituais, como o ato do intelecto e o ato da vontade. A atividade intelectiva é orientada para entidades imateriais, como os conceitos; e, por conseqüência, esta atividade tem que depender de um princípio imaterial, espiritual, que é precisamente a alma racional. Assim, a vontade humana é livre, indeterminada - ao passo que o mundo material é regido por leis necessárias. E, portanto, a vontade não pode ser senão a faculdade de um princípio imaterial, espiritual, ou seja, da alma racional, que pelo fato de ser imaterial, isto é, espiritual, não é composta de partes e, por conseguinte, é imortal. Como a alma espiritual transcende a vida do corpo depois da morte deste, isto é, é imortal, assim transcende a origem material do corpo e é criada imediatamente por Deus, com relação ao respectivo corpo já formado, que a individualiza. Mas, diversamente do dualismo platônico-agostiniano, Tomás sustenta que a alma, espiritual embora, é unida substancialmente ao corpo material, de que é a forma. Desse modo o corpo não pode existir sem a alma, nem viver, e também a alma, por sua vez, ainda que imortal, não tem uma vida plena sem o corpo, que é o seu instrumento indispensável. Deus Como a cosmologia e a psicologia tomistas dependem da doutrina fundamental da potência e do ato, mediante a doutrina da matéria e da forma, assim a teologia racional tomista depende - e mais intimamente ainda - da doutrina da potência e do ato. Contrariamente à doutrina agostiniana que pretendia ser Deus conhecido imediatamente por intuição, Tomás sustenta que Deus não é conhecido por intuição, mas é cognoscível unicamente por demonstração; entretanto esta demonstração é sólida e racional, não recorre a argumentações a priori, mas unicamente a posteriori, partindo da experiência, que sem Deus seria contraditória. As provas tomistas da experiência de Deus são cinco: mas todas têm em comum a característica de se firmar em evidência (sensível e racional), para proceder à demonstração, como a lógica exige. E a primeira dessas provas que é fundamental e como que norma para as outras - baseia-se diretamente na doutrina da potência e do ato. "Cada uma delas se firma em dois elementos, cuja solidez e evidência são igualmente incontestáveis: uma experiência sensível, que pode ser a constatação do movimento, das causas, do contingente, dos graus de perfeição das coisas ou da ordem que entre elas reina; e uma aplicação do princípio de causalidade, que suspende o movimento ao imóvel, as causas segundas à causa primeira, o contingente ao necessário, o imperfeito ao perfeito, a ordem à inteligência ordenadora". Se conhecermos apenas indiretamente, pelas provas, a existência de Deus, ainda mais limitado é o conhecimento que temos da essência divina, como sendo a que transcende infinitamente o intelecto humano. Segundo o Aquinate, antes de tudo sabemos o que Deus não é (teologia negativa), entretanto conhecemos também algo de positivo em torno da natureza de Deus, graças precisamente à famosa doutrina da analogia. Esta doutrina é solidamente baseada no fato de que o conhecimento certo de Deus se deve realizar partindo das criaturas, porquanto o efeito deve Ter semelhança com a causa. A doutrina da analogia consiste precisamente em atribuir a Deus as perfeições criadas positivas, tirando, porém, as imperfeições, isto é, toda limitação e toda potencialidade. O que conhecemos a respeito de Deus é, portanto, um conjunto de negações e de analogias; e não é falso, mas apenas incompleto. Quanto aos problemas das relações entre Deus e o mundo, é resolvido com base no conceito de criação, que consiste numa produção do mundo por parte de Deus, total, livre e do nada.