ÉTICA GERAL E PROFISSIONAL MÓDULO 4 Índice 1. A evolução da ética .................................................. 3 2 Ética Geral e Profissional - Módulo 4 1. A EVOLUÇÃO DA ÉTICA A modernidade inicia quando começa a desaparecer a ideia de ordem universal e de hierarquia natural dos seres, cedendo para as ideias de universo infinito, desprovido de centro e de periferia, e de indivíduo livre, átomo no interior da natureza, para o qual já não possui a definição prévia de lugar próprio e, portanto, de suas virtudes próprias. A ordem do mundo não é mais dada de fora do mundo, quer seja pelo cosmos, como queriam os gregos, quer seja por Deus, como pensavam os cristãos na Idade Média. Assim, a modernidade afasta a ideia medieval de um universo regido por forças espirituais secretas que precisam ser decifradas para que com elas entremos em comunhão. O mundo desencanta-se – como escreveu Weber – e passa a ser governado por leis naturais racionais e impessoais que podem ser conhecidas por nossa razão e que permitirão aos homens o domínio técnico sobre a natureza. No livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, Weber relaciona o papel do protestantismo cristão à formação do comportamento típico do capitalismo moderno. Weber descobre que os valores do protestantismo, tais como a disciplina ascética, a poupança, a austeridade, a vocação, o dever e a valorização do trabalho como instrumento de salvação da ética protestante promovem o surgimento do capitalismo. Para Weber, tais valores são incorporados na ética ocidental como estrutura da confiança, valor essencial à manutenção da sociedade do contrato, que é a sociedade burguesa. Durante o período compreendido entre os séculos XVII e XX, pouco a pouco, a ética deixa de estar em conformidade com a Natureza ou com Deus para centrar sua reflexão na condição humana. No século XVIII, Rousseau faz uma crítica ao pensamento de Aristóteles, segundo o qual o homem se diferenciaria dos animais por ser racional. Para Rousseau o que diferencia o ser humano dos animais é sua capacidade de decisão por si só: a liberdade e a capacidade de aperfeiçoar-se ao longo da História. Como consequências dessa nova definição de humanidade: a historicidade, a igual dignidade entre os seres humanos. Por ser livre e por não ter nada a dirigir suas ações é que o ser humano é moral. É seu espírito crítico que vai dotar o homem de valores morais, pois o ser humano sempre busca o bem e nasce intrinsecamente bom. O maior representante da ética nos últimos séculos foi sem dúvida Immanuel Kant (1724 – 1804), talvez o mais importante filósofo da modernidade, sobretudo para quem se interesse pelo estudo da ética e mais ainda pela ética profissional. Seu pensamento talvez seja aquele que mais contribuiu para a forma de pensar ética tal como pensamos hoje. O homem é livre, diz Kant, porque não está sujeito às leis físicas da natureza. Sua virtude reside na ação ao mesmo tempo voltada para interesses individuais e universais. Esses são os princípios basilares da ética kantiana: o desinteresse e a universalidade. A ação moral é a única ação verdadeiramente humana, e a liberdade consiste na faculdade de transcender as tendências naturais. Uma vez que as tendências naturais nos levam sempre ao egoísmo é preciso resistir a essas tendências. Tal 3 Ética Geral e Profissional - Módulo 4 resistência é denominada por ele de “boa vontade”, ponto que ele vê como princípio de toda a moralidade verdadeira. Para Kant, na natureza há leis, na ética, deveres; e a existência do dever me diz que sou naturalmente livre. Do “dever”, porque, pelo fato de ser livre e ter boa vontade e preocupação com o interesse geral, há algo em nós que ordena uma resistência e até mesmo um combate contra a naturalidade ou animalidade que exista em nós. E Kant dá um exemplo: se um tirano obriga alguém a testemunhar de modo falso contra um inocente, ele pode ceder e dizer o que é falso; mas depois teria remorso, pois algo em nós nos orienta para o bem que é a voz da razão. Isto demonstra que a testemunha sabia que podia dizer a verdade: sabia, devia, podia. E sabia por que seria irracional, uma vez que num mundo em que todos dissessem o que é falso, seria impossível viver, sendo, portanto, para nossa razão, obrigatório dizer a verdade. Essa é a prova da universalidade e necessidade da norma ética. Essa voz da razão, que aparece sob a forma de ordens indiscutíveis, é chamada por Kant de imperativo categórico: imperativo, porque não se pode subtrair a ele, não é um conselho; e categórico, porque não admite o contrário daquilo que está mandando. Com a concepção de perfectibilidade, a ética kantiana vai propor que a liberdade humana consiste justamente na nossa capacidade de ir além das determinações naturais, de satisfazer nossos interesses particulares, para agir de acordo com os interesses gerais, isto é, universais. Por isso, a ética moderna vai repousar na ideia do mérito, ou seja, todos nós temos dificuldades em realizar nosso dever, em seguir os mandamentos da moral, apesar de todos nós o considerarmos legítimos. Daí nosso mérito em agir em conformidade com o bem comum e não em conformidade com nossos desejos e paixões. A modernidade vai valorizar toda a ação de dever, é a ética moderna fundamentalmente meritocrática de inspiração democrática. A partir de Kant, passa a vigorar, no campo de estudo da ética, o que se convencionou chamar de humanismo moderno. Não só no plano da moral, mas no político e no jurídico, o fundamento está unicamente na vontade dos homens, desde que se aceite como restrição a vontade dos outros. A liberdade de cada um termina onde começa a liberdade dos outros. É apenas essa limitação pacífica que pode permitir uma vida social harmônica e feliz. E essa harmonia é uma construção humana e não mais um fato pronto pela natureza ou dada por Deus, ou seja, os homens vivendo em liberdade, mas com a vontade dirigida pelo dever (responsabilidade), na construção de uma sociedade com valores comuns que Kant chama de “reino dos fins”. Como seres dotados de dignidade absoluta, os homens não poderiam ser tratados como meios usados para objetivos pretensamente superiores, ou seja, o fim absoluto digno de respeito absoluto: o centro do universo é a humanidade. Kant elaborou um imperativo categórico da razão do agir ético: “age tendo a humanidade como fim e jamais como meio” (não tratar os sujeitos como coisas) e “age como se a máxima de tua ação pudesse ser realizada por todos os homens e para qualquer homem” (a universalidade da razão garante a universalidade do sentido da ação). Isso significa que a pessoa deve agir espontaneamente, por sua vontade e não sob coação ou por vontade alheia, só sob essa forma o comportamento será eticamente 4 Ética Geral e Profissional - Módulo 4 valioso. Tal comportamento terá valor universal. O que o imperativo categórico pede é que a máxima (princípio subjetivo) seja de tal natureza que possa ser elevada à categoria de lei de universal, construindo assim o conceito de igualdade como principio ético. Kant propõe um valor absoluto para servir como fundamento objetivo dos imperativos. E esse valor absoluto é a pessoa humana. O objeto de nossos desejos tem valor relativo, é apenas um meio de alcançar nossos objetivos, pois só o homem tem valor absoluto. Sob dois prismas as pessoas diferem dos demais seres. Primeiro, uma vez que as pessoas têm desejos e objetivos, as outras coisas têm valor para elas em relação aos seus projetos, as meras coisas, e isto inclui os animais, que não são humanos, considerados por Kant incapazes de desejos e objetivos conscientes. Segundo, e ainda mais importante, os seres humanos têm um valor intrínseco, isto é, dignidade, porque são agentes racionais, ou seja, agentes livres com capacidade para tomar as suas próprias decisões, estabelecer os seus próprios objetivos e guiar a sua conduta pela razão. Uma vez que a lei moral é a lei da razão, os seres racionais são as encarnações da lei moral em si. E a única forma de bondade moral poder existir são as criaturas racionais apreenderem o que devem fazer e, agindo a partir de um sentido de dever, fazê-lo. Kant deixou para o Ocidente a ideia de que o ser humano é a única coisa com valor moral; assim, se não existissem seres racionais a dimensão moral do mundo simplesmente desapareceria. Tal reflexão foi essencial para que a humanidade deixasse de considerar seres humanos como coisa e abandonasse a ideia da escravidão de outros seres humanos como direito de propriedade, além de estruturar teoricamente a luta por direitos iguais, independentemente de diferenças físicas, psicológicas, culturais e étnicas. E como são os seres cujas ações são sempre conscientes? Kant conclui que o seu valor tem de ser absoluto, e não comparável com o valor de qualquer outra coisa. Se o seu valor está acima de qualquer preço, segue-se que os seres racionais têm de ser tratados sempre como um fim e nunca como um meio para atingir um determinado fim. Lança, aqui, numa construção racional, a ideia cristã da igualdade entre os homens e que será o núcleo do Estado democrático. O Estado democrático é o conjunto de iguais dentro de um determinado espaço geográfico. Isto significa que temos o dever estrito de buscar a prática do bem, não só para nós mesmos como para as outras pessoas. Temos de lutar para promover o seu bem-estar; temos de respeitar os seus direitos, evitar fazer-lhes mal, e, em geral, empenhar-nos, tanto quanto possível, em promover a realização dos fins dos outros. Somente se reveste de valor ético a conduta autônoma, fruto da vontade do agente. A conduta heterônoma é aquela que nos faz agir pela vontade alheia, é desprovida de valor moral. “A dignidade humana exige que o indivíduo não obedeça mais normas do que as que ele mesmo se impôs, usando de seu livre-a rbítrio”. Os valores kantianos de liberdade, de responsabilidade, de autonomia e de culto ao dever foram incorporados na ética ocidental como valores essenciais à civilização. Na modernidade conservou-se do cristianismo a ideia de que é virtude a obediência à razão contra o império caótico das paixões; que a virtude é 5 Ética Geral e Profissional - Módulo 4 dever e obrigação em face de normas e valores universais; e que a liberdade é o poder humano para enfrentar com suas próprias forças as contingências e a adversidade; que a responsabilidade é marca da honradez virtuosa, pois não há liberdade sem responsabilidade. Mas todos esses termos perderam a universalidade pretendida, pois, lhes falta o centro ordenador: o cosmos antigo ou a providência medieval. Somente com a ideia de civilização será possível definir um novo centro que permitiria o surgimento de uma razão prática com pretensões ao universal no campo ético. Ou seja, há que se viver de acordo com um conjunto de valores expressos por deveres ou imperativos que nos pedem respeito pelo outro, sem o qual uma vida pacífica é impossível. 6 Ética Geral e Profissional - Módulo 4