Aula 2 Por que uma ontologia do ser não é possível? Hegel e Heidegger Das divisões da Lógica Na aula de hoje, gostaria de mostrar como Hegel inicia sua Ciência da Lógica respondendo à pergunta : “por que uma ontologia do ser não é possível?”. Ou seja, por que “ser” é uma categoria que não serve como fundamento para a determinação normativa do que deve orientar nossa experiência do mundo. Devemos então nos perguntar sobre qual problema a categoria de “ser” oferece, qual a natureza de sua inadequação. Veremos como Hegel desenvolve a seguinte resposta: “Uma ontologia do ser não é possível porque o ser é pura abstração”. O ser é exatamente aquilo do qual se diz apenas uma tautologia auto-referencial (“O ser é aquilo que é”). Esta sua indeterminação não é resultado de sua realidade superior em relação a todo ente, como se estivéssemos diante de um Ens realissimus. Na verdade, para Hegel, ela é apenas substancialização de ausência de realidade concreta. Contra esta ausência de realidade, veremos em outras aulas como Hegel propõe uma ontologia assentada no conceito de essência (Wesen), isto depois de reconstruir a noção de essência através da absorção daquilo que Aristóteles entendia por energeia (que pode ser traduzido por atividade, ato) e dynamis (potência, movimento) no interior de uma teoria da reflexão. Hegel acredita que uma ontologia do ser irá necessariamente transformar o fundamento em normatividade sem temporalização, fundamento ligado à procura de expressão imediata do originário pensado como pré-subjetivo. Falar de ser, seria para Hegel sempre retornar aos domínios das identidades abstratas. Já a reconstrução hegeliana do conceito de essência seria, ao menos para Hegel, dotado da possibilidade de compreender os processos de temporalização. Tal forma hegeliana de desqualificar uma ontologia do ser nos leva, necessariamente, a avaliar as críticas que, um século depois, Heidegger fará à estratégia hegeliana. Como veremos, estará em confrontação duas maneiras distintas de se pensar a temporalização das categorias da ontologia, ou seja, esta maneira de pensar como a ontologia é capaz de dar conta do que se manifesta no interior do tempo. No entanto, se uma ontologia do ser não é possível, isto não significa que a experiência da indeterminação do ser seja uma simples ilusão. Ela tem um conteúdo de verdade, pois será a primeira manifestação de uma impossibilidade que servirá de motor para o movimento dialético, a saber, a impossibilidade de pôr a identidade imediata entre realidade (Wirklichkeit) e fenômeno (Erscheinung). A experiência da indeterminação nos lembra que há algo que não se esgota nas formas atualmente determinadas da presença. Em última instância, ela nos obrigará a reconstruir a própria noção do que significa “determinar algo”. De uma certa forma, a impossibilidade de uma ontologia do ser já é uma experiência com conseqüências ontológicas. Isto talvez nos explique porque a impossibilidade de uma ontologia do ser leva Hegel a afirmar algo como a possibilidade de uma ontologia que parte desta que será a primeira categoria concreta da Ciência da Lógica, a saber, o devir. Podemos dizer que uma ontologia que parte do devir não pode ser apenas uma doutrina que substitua a centralidade do conceito de ser por um conceito de outra natureza, como, no caso, o devir. Na verdade, sua operacionalidade deve ser diferente, seus processos devem ser descritos de outra maneira. Trocar um conceito por outro conservando a operacionalidade interna da teoria, seu modo de conceitualizar, não nos leva muito longe. Por isto, podemos dizer que a ontologia tentada por Hegel tem por característica principal procurar apreender os conceitos em seu processo de alteração. Ela parte da defesa de que nenhum conceito isolado apreende adequadamente os processos internos ao campo da experiência, mas tais processos podem ser apreendidos através da passagem de um conceito a outro. Vale aqui o que dirá posteriormente Adorno a respeito de Hegel: “Como cada proposição singular da filosofia hegeliana reconhece sua própria inadequação à unidade, a forma exprime então tal inadequação na medida em que ela não pode apreender nenhum conteúdo de maneira plenamente adequada”1. Este movimento de passagem, que mostra a insuficiência de conceitos pensados como descrição de objetos, é o fenômeno que funda uma ontologia de caráter especulativo, como quer Hegel. Uma maneira possível de compreender melhor este ponto passa pela tentativa de compreender a natureza da estrutura peculiar da Ciência da Lógica com suas divisões. Tal estrutura já nos introduz a certas especificidades do conceito hegeliano de ser. A primeira divisão com a qual nos defrontamos é a dualidade Lógica objetiva (que engloba a Doutrina do ser e a Doutrina da essência) e a Lógica subjetiva (Doutrina do Conceito). Grosso modo, a divisão não parece trazer maiores dificuldades, já que ele parece indicar um movimento de internalização no qual a tematização do ser (objeto da lógica objetiva), enquanto determinação aparentemente exterior à forma do pensar, entra em movimento até se transformar em tematização do conceito (objeto da lógica subjetiva). Ao alcançar a forma do conceito, o movimento que animou as categorias ligadas ao ser, dará a forma para a re-organização dos elementos da lógica tradicional (conceitos/formas do julgamento/modo s de inferência). Ou seja, a passagem da lógica objetiva à lógica subjetiva descreveria, em larga medida, o movimento através do qual a substância (o ser) é apreendida como sujeito (o conceito), já que esta dualidade é inspirada da distinção sujeito/objeto. No entanto, há duas peculiaridades importantes nesta divisão. Primeiro, a lógica objetiva é dividida internamente a partir de duas noções (ser e essência). Segundo, a lógica subjetiva não se contenta em apenas re-organizar os elementos da lógica tradicional. Ela tem ainda uma longa subdivisão intitulada exatamente “objetividade”, onde é questão de categorias normalmente vinculadas à filosofia da natureza, como o “mecanismo”, o “quimismo” e a “teleologia” própria a organismos biológicos (ou seja, os dispositivos de determinação da racionalidade dos fenômenos nos campos da física, da química e da biologia). Como se não bastasse, a última subdivisão, intitulada “A idéia”, dá espaço para a “vida”, assim como para a idéia do verdadeiro (objeto da teoria do conhecimento) e do bom (objeto da moral) não dando, curiosamente, desenvolvimento para a idéia do belo (objeto da estética). O que pode se explicar se levarmos em conta que Hegel quer, na verdade, insistir na maneira com que a Idéia unifica teoria e prática (o que o par verdadeiro/bom já parece dar conta). De qualquer forma, fica claro como a tendência da lógica subjetiva é retornar à exterioridade. Notese que a Idéia não é nem uma categoria da subjetividade, nem da objetividade. Ao contrário, ela é o que se encontra para além e para aquém da distinção sujeito e objeto. Por isto, ela deve aparecer como superação destas perspectivas particulares. Analisemos pois o sentido da primeira destas “peculiaridades” na estrutura da lógica hegeliana, a saber, a necessidade de dividir a lógica objetiva a partir das noções de ser e essência. Ela é justificada por Hegel a partir da exigência de introduzir uma: 1 ADORNO, Drei studien über Hegel, p. 104 esfera de mediação, esfera do conceito como sistema das determinações de reflexão, ou seja, do ser que se transforma em ser em-si do conceito, que desta forma não é ainda posto como para si [tal como na lógica subjetiva], mas que compreende o ser imediato como algo que também lhe é exterior. Isto é a Doutrina da essência que está no meio entre a Doutrina do ser e do conceito2. Ou seja, a essência é, fundamentalmente, uma noção que opera a mediação entre o ser e o conceito. Daí porque talvez seja correto dizer que esta é a região central do livro, onde os processos principais são apresentados. Mas qual a necessidade desta mediação? Grosso modo, podemos dizer que as categorias do ser (como “ser”, “nada”, “finito”, “infinito”, “um”, múltiplo”) tendem a produzir a ilusão de serem determinações isoladas e não relacionais. No conceito de ser não está imediatamente expresso que ele é impensável sem seu oposto, o nada. Já as categorias da essência (como “identidade”, “diferença”, ‘contradição”, “fundamento”) são imediatamente categorias relacionais, onde um termo traz imediatamente o seu oposto. Desta forma, a tematização da essência permite o abandono de uma noção fixa e identitária de objeto em prol de uma noção onde “objeto” nada mais é do que o nome de uma estrutura relacional. Tal passagem é fundamental porque, em Hegel, o conceito não é conceito de objeto, o conceito não tece relações bi-unívocas com objetos isolados. Antes ele é a formalização de relações entre objetos, o conceito é um conceito de estados de coisas. Daí porque podemos dizer que: “no Ser reina uma imediatez sem relação, na essência emerge uma estrutura relacional, que se eleva, no conceito, à pura reflexividade”3. A própria maneira como a Doutrina do ser é subdividida (qualidade, quantidade e medida) indica um movimento onde se parte da determinação imanente mais aparentemente singular e irredutível (a qualidade) a uma determinação que só é no interior de uma relação geral com outros (a medida). Mas é sempre bom lembrar que esta passagem do ser à essência é impulsionada pelo ritmo da explicitação: trata-se de explicitar uma estrutura relacional que já estava em operação, mas de maneira não-reflexiva, na compreensão das categorias do ser. Isto pode nos explicar porque: “a passagem do ser à essência é passagem das determinações que parecem existir por si nas ‘coisas’ (o ser) à revelação de que as determinações aparentemente as mais ‘imediatas’ estão desde sempre constituídas e organizadas em um pensamento unificado (...) Uma mesma unidade pensada organiza as percepção das coisas e a compreensão de suas relações: ser e essência são uma e outra o produto do conceito”4. Neste sentido, a necessidade desta região intermediária que é a Doutrina da essência demonstra como a Ciência da Lógica procura, acima de tudo, apreender os conceitos em seu processo interno de alteração. Começar com o ser Mas antes de passar diretamente à Doutrina do ser, Hegel deve responder à questão: Qual deve ser o começo da ciência? Como sabemos, já na Fenomenologia Hegel criticava todo empreendimento filosófico que fizesse apelo a estratégias de dedução transcendental a fim de assegurar o saber no campo prévio a toda e qualquer experiência. Neste caso, o primeiro passo do saber fenomenológico consistia em examinar a figura da consciência que procura afirmar a possibilidade da imediaticidade entre pensar e ser. Era daí que Hegel partia no primeiro capítulo do livro, este dedicado à Certeza sensível. Maneira hegeliana de proceder de forma imediata a fim de ver se é 2 HEGEL, Wissenschaft der Logik I, p. 58 HÖSLE, idem, p. 247 4 LONGUENESSE, Hegel et la critique de la métaphysique, p. 9 3 possível um saber que tenha duas características fundamentais: espontaneidade e caráter repentino (Plötzlichkeit)5. Saber que apreende de maneira imediata seu objeto e que estabelece a possibilidade de operações intuitivas aparentemente independentes de toda capacidade conceitual. Como dirá Heidegger: “O saber imediato tem precisamente este traço em si, este modo de saber: deixar o objeto completamente a si mesmo. O objeto se sustenta em si como o que não tem necessidade alguma de ser para uma consciência, e é exatamente ao tomá-lo como tal, como o que se dá em si que a consciência o sabe imediatamente”6. É a impossibilidade deste saber que deixa o objeto completamente a si mesmo que nos levará aos caminhos trilhados pela Fenomenologia. No entanto, a consciência acredita que o conteúdo concreto deste saber é “um conhecimento de riqueza infinda, para o qual é impossível achar limite”. Este saber é apresentado como uma certeza sensível (sinnliche Gewissheit), ou seja, certeza de que a presença do ser se dá através da receptividade da sensibilidade. Presença integral do ser, já que “do objeto nada ainda deixou de lado, mas o tem em toda a sua plenitude, diante de si”. Presença que, por se dar através de uma intuição imediata, não se completa através do desdobramento do espaço e do tempo ou da inspeção detalhada de suas partes. Ao tematizar o que chama de certeza sensível, Hegel procura assim dar conta de toda tentativa de pensar a tarefa filosófica como retorno à espontaneidade do ser, retorno à origem muda graças a receptividade plena de uma intuição não-dependente do trabalho do conceito. Retorno que Hegel descreve como a crença de que é possível filosofar como quem dá um tiro com uma pistola. Neste sentido, a Fenomenologia do Espírito e a Ciência da lógica se encontram nos seus respectivos pontos de partida. Se a Fenomenologia inicia seu trajeto através da tematização do saber imediato do puro ser, a Lógica também parte do puro ser a fim de mostrar como ele equivale ao nada indeterminado. Mas antes de apresentar suas reflexões sobre o ser, Hegel se pergunta porque não começar pelo Eu, elevando com isto o princípio de subjetividade à condição de fundamento da objetividade do saber e dando continuidade, desta forma, a uma seqüência que conhecemos atualmente como “filosofias da consciência”, que tem em Kant sua figura mais bem acabada, e que Hegel alude ao da maneira com que o “novo tempo” (ou seja, a modernidade) elevou o Eu a condição de fundamento do saber. As colocações de Hegel a este respeito são de extrema importância. Hegel insiste que a primeira verdade que constitui a série do saber deve ser uma certeza imediata (unmittelbar Gewisses). No entanto, há uma dificuldade estrutural em tomar o Eu como o fundamento desta certeza imediata. Mas o Eu, ao mesmo tempo em que procura afirmar-se como consciência-de-si imediatamente certa de si mesma, é uma instância empírica envolta na “multiplicidade infinita do mundo”. É isto que Hegel tem em mente ao afirmar : “mas Eu em geral é também, ao mesmo tempo, um concreto, ou ainda, na verdade, o Eu é o que há de mais concreto – a consciência de si como um mundo infinitamente múltiplo”7. Para ser fundamento, o Eu deve se separar desta multiplicidade empírica. Isto exige um ato absoluto através do qual o Eu se purifica de si mesmo como Eu abstrato (ou, se quisermos, como sujeito transcendental). Isto significa elevar-se a esta perspectiva do puro saber onde a diferença entre sujeito e objeto desaparece (já que o Eu aparece como fundamento para a constituição de todo e qualquer objeto da experiência). Mas Hegel insiste que este puro Eu não é um imediato acessível ao “Eu ordinário” (gewöhnlich Ich). Mesmo assim, para não ser uma perspectiva arbitrária e 5 THEUNISSEN, Michael; Sein und Schein, p. 201 HEIDEGGER, A fenomenologia do espírito de Hegel, p. 92 7 HEGEL, Wissenschaft der Logik, p. 76 6 imposta de maneira não-reflexiva, seria necessário que: “o movimento dos Eus concretos da consciência imediata até o puro saber fosse mostrado e apresentado neles mesmos a partir de uma necessidade interna”8, como se o fundamento do saber fosse gerado a partir da necessidade interna própria ao Eu empírico (caminho que, no fundo, é o sentido da Ciência da experiência da consciência), e não como ruptura radical em relação a toda e qualquer empiricidade do Eu psicológico. No entanto: Como este puro Eu deve ser essencialmente puro saber [determinação transcendental absoluta], e o puro saber só está posto na consciência individual através do ato absoluto de auto-elevação, não existindo imediatamente nela, perde-se a vantagem que deveria surgir deste começo da filosofia, a saber partir de algo absolutamente conhecido que cada um encontra imediatamente em si e ao qual se pode acrescentar reflexões posteriores9. Neste sentido, diz Hegel, fala-se de algo conhecido, ou seja, do Eu cuja referência não pode ser outro que o eu psicológico da consciência empírica, mas referese a algo que é absolutamente estranho (Unbekanntes) à consciência. No entanto, por ainda se falar do puro Eu: “a determinação do puro saber como Eu leva consigo à rememoração (Rückerinnerung) contínua do Eu subjetivo” como modo de construção de sínteses. O que explicaria porque o fundamento acaba por trazer para si a oposição insuperável ao objeto própria ao Eu enquanto conceito. Melhor seria abandonar o Eu como fundamento e mostrar como, através dos desdobramentos do Eu empírico demonstramos que ele não existe enquanto entidade isolada, mas é desde sempre Espírito, ou seja, aquilo que não é um Eu absoluto, mas o que aparece quando a individualidade irredutível do Eu se mostra como ilusão. Esta é uma das razões pelas quais Hegel pode dizer que a Fenomenologia é um pressuposto da Ciência da Lógica. Pois a Fenomenologia nos livra da ilusão de procurar no Eu o fundamento do saber e nos abre à tematização de um modo de síntese que não seja mais dependente da figura de um Eu. Desta forma, ficam abertas as portas para que o ser possa aparecer como fundamento, já que ele é o termo comum a todos os outros aspirantes à fundamento primeiro (o Uno, o absoluto, o divino). Para ser fundamento, o uno, Deus, o absoluto devem ser. Neste sentido, nada mais natural do que começar com esta categoria que parece estabelecer o campo no qual o fundamento poderá aparecer de maneira mais elaborada, a saber, o ser. Isto a ponto de Hegel afirmar que a própria história da filosofia começaria verdadeiramente com o compreensão do absoluto como ser, isto através de Parmênides e sua proposição: “o ser é, o nada não é”. Pura forma da intuição Ser, puro ser: sem nenhuma determinação outra. Na sua imediatez indeterminada, ele é apenas igual a si mesmo e não é desigual em relação a outra coisa; ele não tem diversidade alguma no interior de si nem fora. Qualquer determinação ou conteúdo que seriam postos nele como diferentes, ou através do qual ele seria posto como diferente de um outro não lhe permitiria manter-se em sua pureza. Ele é pura indeterminidade e vazio (Leere). Não há nada a intuir nele, se da intuição poderíamos aqui dizer; ou ele é apenas este próprio intuir, 8 9 Idem, p. 76 Idem, p. 77 puro e vazio (...) O ser, o imediato indeterminado é, na verdade, nada, não mais nem menos que nada10. Esta é, sem dúvida, uma das afirmações mais conhecidas e polêmicas de Hegel. Antes de comentá-la, notemos a peculiaridade que consiste em afirmar que a primeira manifestação da qualidade é a indeterminação. Hegel reconhece que, por ser indeterminado, o ser aparece como desprovido de qualidade; mas em-si o caráter de indeterminação é posto como oposto da determinação ou do qualitativo. Por isto, o ser: “faz da sua própria indeterminação sua qualidade”11. Esta posição do ser como indeterminação aparece a Hegel porque o ser, como começo, não pode referir-se a nada outro que ele mesmo, senão ele não seria começo, isto no sentido da categoria mais imediata do saber. O ser é auto-referência imediata e incondicional. No entanto, como a determinação é um processo relacional, só se determina algo em relação a outro algo que é posto ao mesmo tempo, então esta autoreferência imediata do ser só pode equivaler à absoluta indeterminação. Daí porque Hegel pode dizer: “Qualquer determinação ou conteúdo que seriam postos nele como diferentes, ou através do qual ele seria posto como diferente de um outro não lhe permitiria manter-se em sua pureza”. De fato, o ser só passa à determinação quando é posto em uma situação, ou seja, em um contexto (Zusammenhang) próprio à existência. O que nos explica porque a segunda categoria da qualidade deve necessariamente ser o Dasein (no sentido de existência, presença, ser-aí). Desprovido de uma situação, abstraído de todo contexto ôntico, o ser só pode ser apreendido como pura abstração: A reflexão deve, em vista disso, empenhar-se em procurar uma firme determinação para o ser, pela qual ele seria diferente do nada. Por exemplo: toma-se o ser como o que persiste em toda mudança, a matéria infinitamente determinável etc., ou, ainda sem reflexão, como uma existência singular qualquer, o sensível ou o espiritual mais próximo que houver. Porém todas as determinações ulteriores e mais concretas como essas não deixam mais o ser como puro ser; como é imediatamente, aqui no começo12. Desta forma, Hegel procura criticar todo conceito pré-reflexivo de ser por acreditar que isto significa fazer a filosofia determinar, como seu objeto privilegiado, nada mais do que um vazio total, um X inexprimível que, por se subtrair a toda predicação, advém um Ens realissimum. Hegel dirá então que o ser: “é apenas a própria intuição pura, vazia”, ou seja, o pensamento desprovido de objeto. Ao definir posteriormente o nada como “igualdade simples consigo mesmo, vazio perfeito (vollkommene)”, Hegel admite que ele pode existir em nossa intuição ou pensamento. O que não deixa de nos remeter à noção kantiana de ens imaginarium, uma intuição vazia sem objeto que Kant define nos seguintes termos: “A simples forma da intuição, sem substância, não é em si um objeto [determinado], mas a sua condição simplesmente formal (como fenômeno), como o espaço puro e o tempo puro que são algo, sem dúvida, como formas da intuição, mas não são em si objeto suscetíveis de intuição (ens imaginarium)”13. Neste sentido, se aceitarmos a definição proposta do ser como forma da intuição vazia sem objeto, como aquilo que nos permite nomear a forma do tempo puro e do espaço puro, então 10 HEGEL, Wissenschaft der Logik I, p. 82 HEGEL, idem, p. 82 12 HEGEL, Enciclopédia, par. 87 13 KANT, Crítica da razão pura, B 347/A 291 11 chegaremos a uma situação estruturalmente similar àquela que encontramos no primeiro capítulo da Fenomenologia do Espírito. Lá, vemos a consciência tomar a pura forma do tempo e do espaço como ser de realidade mais elevada. De uma certa forma, ela crê ser possível substancializar a pura forma do espaço e tempo, chamando tal substancialização de “ser”. Mas ao tentar expressar tal forma pura da intuição, a consciência fará a experiência contraditória da impossibilidade de tal expressão. Não posso expressar a pura forma da intuição. Ao tentar, ou digo apenas nada ou coloco o ser em relação, não tenho mais a pura forma da intuição, mas tenho um conteúdo situado. Hegel dirá : não tenho mais o ser (Sein), mas apenas o ser-aí (Da-sein). Hegel lembra que a consciência acredita ter muito mais do que o puro ser que constitui a essência da sua certeza sensível: “Uma certeza sensível efetiva (wirkliche sinnliche Gewissheit) não é apenas essa pura imediatez, mas é um exemplo da mesma”14. Ou seja, a consciência acredita ter uma colocação em cena desta imediatez, o que demonstraria que não estávamos diante de um puramente indeterminado. Esta colocação em cena é operada através da capacidade que teria a consciência de indicar o ser através de dêiticos como “isto”, “este”. Através deles, a consciência quer indicar, de maneira ostensiva, a significação do ser que lhe aparece à intuição. No entanto, o “isto” e o “este” produzirão a determinação diferenciadora da singularidade do ser. Não estaremos mais exatamente diante do puro ser. Colocar em cena a imediatez é necessariamente diferenciar, colocar o ser em relação e romper o absoluto. O que é interessante neste contexto será o saldo da experiência. Ao tentar substancializar o que deveria ser simples condição formal para os fenômenos (a saber, as formas pura da intuição), a consciência não cometia um simples equívoco. Na verdade, ela procurava tematizar o incondicionado. Mas ao procurar o incondicionado, ela apenas encontrou o indeterminado. Vai da astúcia de Hegel afirmar que tal experiência não é um simples fracasso, mas deslevamento do excesso que indica como toda estruturação de objeto será sempre assombrada pela indeterminação. Pois a afirmação segundo a qual o ser é, de fato, nada, não mais nem menos que nada, visa solapar a segurança ontológica do que deveria aparecer como fundamento para o processo de determinação dos objetos. Tentemos compreender melhor este ponto. A primeira categoria concreta Neste sentido, o devir (Werden) como resultado da posição da unidade entre ser e nada deve ser medido em todas as suas conseqüências. O pequeno parágrafo sobre o devir é, sem dúvida, um dos mais decisivos de todo o livro. Por isto, ele deve ser citado na íntegra: O puro ser e o puro nada são pois o mesmo. O verdadeiro não é nem o ser nem o nada, mas que o ser passou no nada (übergegangen ist) e que o nada passou no ser – não que ele passa. No entanto, ao mesmo tempo, a verdade não é a indiferenciação entre os dois, mas que eles não são o mesmo, que eles são a diferença absoluta, embora sejam inseparáveis e inseparados e que, imediatamente, cada um desaparece em seu oposto. Sua verdade é pois este movimento do imediato desaparecer de um no outro: o devir, um movimento através do qual ambos são diferentes, mas através de uma diferença que imediatamente se dissolveu (aufgelöst hat)15. 14 15 HEGEL, Fenomenologia, par. 91 HEGEL, idem, p. 83 Este pequeno parágrafo sintetiza o que Hegel entende por movimento e identidade dialética. Não se trata exatamente de dizer que “ser” e “nada” são termos que designam o mesmo, um pouco como “Vênus” e “estrela Dalva” designam o mesmo. Trata-se de dizer que eles alcançam uma identidade que é resultado de um movimento. No entanto, trata-se de um peculiar “movimento imediato”, ou seja, movimento que ocorre imediatamente a partir do momento em que um termo é posto, já que não é possível ao ser pôr-se sem passar no seu oposto (passagem no oposto que Hegel chama de Verkehrung - inversão). Esta é uma maneira de dizer que o conceito de ser não tem realidade. Da mesma forma, o conceito de nada não tem realidade. No entanto, a passagem do conceito de ser ao conceito de nada tem realidade. Esta passagem não é alguma forma de nadificação do ser, mas de reconhecimento da insuficiência de sua significação. A significação do ser demonstra sua inanidade quando é posta. Aqui, devemos entender melhor a idéia de posição. Tentemos, por exemplo, interpretar uma afirmação como: “ser e nada são o contrário em toda a sua imediatez, isto é, sem que em um deles já tinha sido posta uma determinidade, que contivesse sua relação para com o outro”16. Fica claro como a idéia de posição implica determinar, isto no sentido de passar à dimensão concreta, ôntica, fenomenal. Ser e nada são contrários quando não são postos, quando são imediatamente visados. Até porque: “não há nada no céu e na terra que não contenham em si ser e nada”17. Este é um ponto fundamental para todo penasamento dialético: a passagem à existência, a posição, sempre é um acréscimo em relação à determinação categorial, e não sua mera repetição, como se da determinação à existência não houvesse processo. Lembrem a este respeito da afirmação kantiana, segundo a qual cem táleres reais não contém mais do que já está presente em cem táleres possíveis18. Mas dizer isto implica afirmar que o próprio uso gramatical do verbo não pode ser visto de maneira indiferente pela especulação filosófica. Talvez isto explique porque Hegel fala a todo momento que a forma da proposição “O Ser é nada”, forma de um julgamento de identidade, é inadequada para expressão a verdade especulativa: “Sendo o conteúdo especulativo, então também a não-identidade do sujeito e do predicado é momento essencial, mas isto não está expresso no julgamento”19. Isto a ponto de Hegel afirmar que o conteúdo especulativo só poderia ser apreendido através de uma série de duas proposições contrárias (“O Ser é nada” e “O Ser não é nada”) que apresentam uma antinomia. Todas estas colocações visam indicar que não é possível pensar o devir a partir de uma gramática filosófica própria à entificação das categorias do entendimento. Pois o devir deve aparecer como movimento interno ao ser, isto a ponto de todas as utilizações do verbo “ser” no interior de proposições de identidade não poderem mais expor igualdades tautológicas, mas, digamos, “proposições de devir”. Esta afirmação do devir como verdade do ser é a maneira hegeliana de introduzir a temporalidade no interior do ser. Por isto, ele define os momentos do devir como “nascer e perecer” (Entstehen und Vergehen), além de determinar o devir como a potência da inquietude que corrói o ser por levá-lo ao ponto de evanescimento, o que fica claro em uma afirmação como: “O devir é o desaparecimento/ o desvanescer do ser no nada e do nada no ser, assim como o desaparecimento do ser e nada em geral (...) O 16 Idem, Enciclopédia, par. 88 HEGEL, ibidem, p. 86 18 Para uma boa discussão a este respeito a partir da afirmação kantiana de ver FAUSTO, Ruy; Marx: logique et politique, 19 Idem, Wissenschaft der Logik, p. 93 17 resultado é o ser que desaparece (Verschwundensein), mas não como nada”20. Ou seja, o devir é a categoria que determina a significação do ser e do nada como passagem ao seu limite, o que nos leva a superar o caráter limitado destas categorias e a problematizar uma gramática que visa fazer referência a uma experiência que a todo momento lhe escapa. O que pode nos explicar porque: “O devir é o primeiro pensamento concreto e, com isto, o primeiro conceito; ao contrário, ser e nada são abstrações vazias”21. Esta idéia do devir como dispositivo de formalização de determinações que estão passando no seu limite diz muito a respeito de um conceito renovado de determinação que parece animar as considerações hegelianas (e não devemos esquecer que o título desta nossa seção é exatamente “determinidade”). Neste ponto, devemos lembrar desta rápida, porém importante, consideração hegeliana sobre o caráter dialético das “grandezas infinitamente pequenas”. Tais considerações devem ser lidas juntamente com a idéia de que, como notaram alguns comentadores, o termo que teria valor de termo nulo está ausente da doutrina hegeliana do Conceito22. Isto acontece porque, em Hegel, o termo negado nunca alcança o valor zero, já que esta função do zero será criticada por Hegel como sendo um “nada abstrato” (abstrakte Nichts). Neste sentido, o interesse hegeliano pelo cálculo infinitesimal, base para sua reflexão sobre as grandeza infinitamente pequenas, estaria ligado à maneira com que Hegel estrutura sua compreensão da negação como um impulso ao limite da determinidade. A negação hegeliana nunca alcança o valor zero porque ela leva o nada ao limite do surgir (Entstehen) e o ser ao limite do desaparecer (Vergehen). O que nos explica porque ele afirma: “Estas grandezas foram determinadas de tal modo que são em seu desaparecer, não antes de seu desaparecer, pois seriam grandezas finitas, nem depois de seu desaparecer, senão seriam nada”23. Ou seja, elas são pensadas no processo em que as determinações discretas deixam de conseguir se referir às grandezas ou, se quiseremos, onde a distinção entre ser e nada deve dar lugar a algo que Hegel deplora por não ter, por enquanto, termo melhor do que “estado intermediário” (Mittelzustand) entre ser e nada. Na verdade, podemos dizer que a noção de grandezas infinitamente pequenas forneceria a exposição deste movimento no qual o ser está desaparecendo e onde o nada esta manifestando-se em uma determinidade. Movimento cuja exposição exige uma outra compreensão do que é um objeto, para além da idéia do objeto como pólo fixo de identidade, e de determinação, para além da idéia de determinação como definição atributiva de predicados limitadores. Notemos ainda como Sartre criticará esta maneira hegeliana de pensar a indissociabilidade entre ser e nada ao afirmar: “não é possível que ser e não-ser sejam conceitos de mesmo conteúdo porque, ao contrário, o não-ser supõe um encaminhamento irredutível do espírito: qualquer que seja a indiferenciação primitiva do ser, o não-ser é esta mesma indiferenciação negada. O que permite a Hegel “fazer passar” o ser no nada é que ele introduz implicitamente a negação na própria definição do ser”24. A crítica fará escola e consiste em dizer que ser e nada não podem ser tratados como similares já que o nada seria não-ser, negação do ser: “Ora, o ser é vazio de toda determinação diferente da identidade consigo mesmo, mas o não-ser é vazio de ser. Em uma palavras, o que se deve lembrar contra Hegel, é que o ser é o não-ser não é”25. No entanto, é exatamente a crença de que o ser seria identidade consigo mesmo o objeto da 20 Idem, p. 113. Idem 22 DUBARLE et DOZ, Logique et dialectique, Paris: Larousse:, 1972, pp.134-145 23 HEGEL, idem, p. 111 24 SARTRE, Jean-Paul, L’être et le néant, p. 49 25 Idem, p. 50 21 crítica hegeliana. Hegel insiste que tal identidade expressa no conceito de ser é simplesmente uma abstração inefetiva, por isto, ao tentar afirmar sua identidade ele passa necessariamente no nada. Ao menos neste sentido, a passagem do ser ao nada é simplesmente a forçagem da diferença enquanto potência de movimento. Heidegger, leitor de Hegel Neste ponto, podemos lembrar de um filósofo para quem esta desqualificação hegeliana de uma ontologia do ser era inaceitável, a saber, Martin Heidegger. A confrontação de Heidegger a Hegel é uma constante. Heidegger dedica cursos à Fenomenologia do Espírito, assim como vários artigos a Hegel (em especial, “Hegel e os gregos” e “Hegel e seu conceito de experiência”). Tal confrontação justifica-se pela necessidade de distinguir duas fenomenologias: esta que nos leva a compreensão do caráter produtor do Espírito (Hegel) e esta que nos leva à compreensão da história da ocultação do ser (Heidegger). Todas as duas partem da crítica da experiência fenomenal, embora seus resultados sejam profundamente distintos. Partamos de uma afirmação maior para nosso problema relativo à possibilidade de uma ontologia do ser. Diz Heidegger, a respeito de Hegel: “O ser, enquanto primeira e simples objetividade dos objetos, é pensado desde o ponto de vista da referência ao sujeito a ser pensado, por meio da pura abstração deste”26. Ou seja, a defesa hegeliana da natureza de abstração própria ao ser seria resultado da crença de que apenas a reflexão subjetiva poderia fornecer um fundamento ao pensar. Hegel pode afirmar que ser e nada são pois o mesmo porque, para ele, aquilo que resta quando a subjetividade retira seu representar é apenas o puramente indeterminado. Esta forma de compreender o ser nos explica porque Heidegger afirma, sempre a respeito de Hegel: “o ser e, por conseguinte, aquilo que é representado nas palavras fundamentais, não é ainda determinado e não é ainda mediado através e para o interior do movimento dialético da subjetividade absoluta”27. Pois é o sujeito com suas estruturas de reflexão que determina o que há a ser pensado e ele determina o que há a ser pensado necessariamente sob a forma de “entes”. “O que não é um ente”, dirá Heidegger a respeito de Hegel, “é nada”28. O que nos deixa com a questão de compreender o que pode significar determinar algo sob a forme de um ente. Para compreender este modo de produtividade da subjetividade devemos insistir que a interpretação de Heidegger deve partir de um pressuposto fundamental, a saber, desde Descartes “sujeito” é o que se fala da mesma maneira. Hegel chegaria apenas lá onde Descartes já havia definido a meta, a saber, compreender a essência do que é como objeto disponível ao entendimento calculador de um sujeito, o mesmo sujeito que diante de um pedaço de cera só verá res extensa. A terra firme que, segundo Hegel, Descartes descobre é a compreensão do saber como: “certeza de si do sujeito sabendo-se incondicionalmente”29. Compreensão que Hegel levará ao extremo através de seu idealismo absoluto. Em uma passagem célebre de seus cursos sobre Nietzsche, Heidegger insiste que a estrutura da reflexão que nasce com o princípio moderno de subjetividade é fundamentalmente posicional. Refletir é por diante de si no interior da representação, como se colocássemos algo diante de um “olho da mente”. Seguindo os rastros de texto cartesiano, ele nos lembra que, em várias passagens, Descartes usa cogitare e percipere 26 HEIDEGGER, Martin; Marcas do caminho, Petrópolis: Vozes, p. 444 Idem, p. 446 28 HEIDEGGER, Martin; Hegel, p. 44 29 HEIDEGGER, Martin; Holzwege, p. 163 27 como termos correlatos. Um uso necessariamente prenhe de consequências. De fato, Heidegger deve pensar aqui, primeiro, na maneira peculiar com que Descartes utiliza o termo latim percipere. Ele raramente é utilizado para designar processos sensoriais, como visão e audição (nestes casos, Descartes prefere utilizar o termo sentire). Percipere designa, normalmente, a apreensão puramente mental do intelecto, já que, em Descartes, é a inspeção intelectual que apreende os objetos, e não as sensações. Assim, por exemplo, na meditação terceira, ao falar daquilo que aparece ao pensamento de maneira clara e distinta, Descartes afirma: “todas as vezes que volto para as coisas que penso conceber mui claramente sou de tal modo persuadido delas ...”30. Mas, de fato, “penso conceber” é a tradução não muito fiel de percipere31. Da mesma forma, Descartes, mais a frente falará de : “tudo aquilo que concebo clara e distintamente”32 pelo pensamento. Mas, novamente, o termo “conceber” é uma tradução aproximada de percipere, já que o texto latim diz: “illa omnia quae clare percipio”. De onde se vê como percipere serve, nestes casos, para descrever o próprio ato mental do pensamento. Heidegger é sensível a este uso peculiar de percipere por Descartes pois a reconstrução etimológica do termo nos mostra que ele significa: ‘tomar posse de algo, apoderar-se (bemächtigen) de uma coisa, e aqui no sentido de dispor-para-si (Sich-zustellen) [lembremos que Sicherstellen é confiscar] na maneira de um dispor-diante-de-si (Vor-sich-stellen), de um re-presentar (Vor-stellen)”33. Desta forma, a compreensão de cogitare por Vor-stellen (re-presentar/por diante de si) estaria mais próxima do verdadeiro sentido deste fundamento que Descarte traz como terra firma da filosofia moderna. Tais aproximações permitem a Heidegger interpretar o cogitare cartesiano como uma representação que compreende o ente como aquilo que é essencialmente representável, como aquilo que pode ser essencialmente disposto no espaço da representação. É assim que devemos compreender a frase-chave: “O cogitare é um dispor-para-si do representável”34. Assim, cogitare não seria apenas um processo geral de representação, mas seria um ato de determinação da essência do todo ente como aquilo que acede a representação. Isto indicaria como todo ato de pensar é um ato de dominar através da submissão da coisa à representação. O diagnóstico de Heidegger seria claro: “algo só é para o homem na medida em que é estabelecido e assegurado como aquilo que ele pode por si mesmo, na ambiência (Umkreis) de seu dispor, a todo instante e sem equívoco ou dúvida, reinar como mestre”35. Pois a compreensão do pensamento como capacidade de articular representações, como competência representacional impõe um modo específico de manifestação dos entes ao pensamento. O ente será, a partir de agora, aquilo que aparece, para um sujeito cognoscente, como objeto adequado de uma representação categorizada em coordenadas espaço-temporais extremamente precisas. Neste sentido: “o homem se coloca si mesmo como a cena (Szene) sobre a qual o ente deve a partir de agora se apresentar (vor-stellen, präsetieren)”36. Daí porque Heidegger pode afirmar que o cogito traz uma nova maneira da essência da verdade. Nada disto é estranho a Hegel quando este insistir que a reflexão, enquanto disposição posicional dos entes diante de um sujeito, não pode deixar de operar 30 DESCARTES, Meditações, p. 108 Conforme o texto em latin: “Quoties vero ad ipsas res, que valde clare percipere arbitror ...” 32 ibidem, p. 116 33 HEIDEGGER, Nietzsche II 34 idem 35 idem 36 HEIDEGGER, Holzwege, p. 119 31 dicotomias e divisões no interior do que se oferece como objeto da experiência entre aquilo que é para-mim e aquilo que seria em-si, entre o que se dá através da receptividade da intuição e aquilo que é ordenado pela espontaneidade do entendimento com suas estruturas reflexivas de representação, entre o que é da ordem do espírito e o que é da ordem da natureza, entre o que é acessível à reflexão e o que é Absoluto. No entanto, Heidegger acredita que Hegel não é capaz de dar uma resposta adequada que possa superar tais divisões. Antes, ele seria apenas a culminação de um longo projeto de determinação pela representação e de afirmação da destinação técnica das coisas impulsionado pelo sujeito cartesiano. No interior deste modo de determinação, a verdade seria sempre definida como adequatio intellectus rei, ou seja, como adequação entre representações mentais e estados de coisa dotados de acessibilidade epistêmica e autonomia metafísica. O sujeito seria, assim, o fundamento de um modo de determinação por representação, modo no interior do qual “objeto” seria apenas aquilo que ocorre às coisas quando elas se deixam representar pelo sujeito. Dentro desta imagem do pensamento, o que não se deixa representar não pode ser pensado. Preso no interior da representação, o sujeito só pode relacionar-se à exterioridade do campo do representável através da “negatividade”. A negatividade seria assim a última astúcia de um pensamento incapaz de escapar da representação como único modo de determinação. Hegel admite aquilo que Heidegger chama de “diferença ontológica” entre ser e ente, mas apenas para reduzir o ser à imediaticidade indeterminada do nada. Tudo se passa assim como se houvesse uma antropologia insidiosa a se confundir com a modernidade, limitando as possibilidades do que há a ser experimentado devido ao horizonte estabelecido por nossos processos de racionalização. A possibilidade da filosofia abandonar uma época histórica marcada pela metafísica e suas estruturas reificadoras (época que seria fundamentalmente “metafísica do sujeito”) estaria vinculada à sua capacidade de acordar deste sono antropológico, abandonando um projeto que culmina com o império da filosofia da consciência. A reificação produzida pelas categorias metafísicas de nosso pensamento exigiria uma crítica radical das estruturas que constituíram o que entendemos pura e simplesmente por “pensamento racional”, isto para que um sentido originário do logos possa ser recuperado. O que explica proposições como: “Se o homem quiser voltar a se encontrar novamente nas cercanias do ser, então ele precisa antes aprender a existir no sem-nome (...) Antes de falar, o homem precisa novamente deixar-se interpelar, correndo o risco de que, sob esse apelo, ele pouco ou raramente tenha algo a dizer”37. Só assim, ele poderia: “libertar o ser no sentido grego, o ει ναι, da referência ao sujeito, para, então, entregá-lo à liberdade de sua própria essência”38. Assim, contra uma concepção correspondencialista de verdade como adequação (ou contra seu complemento hegeliano através da ontologização da inadequação), Heidegger se propõe a recuperar o conceito grego de aletheia (verdade como desvelamento, a-lethe: não-esquecimento). Uma verdade que apenas eclode lá onde a atividade subjetiva de determinação não é mais sentida. Nestas condições: “a liberdade revela-se como o deixar-ser (Gelassenheit) do ente”39. Daí uma afirmação como: “Deixar-ser o ente – a saber, como o ente que ele é – significa entregar-se ao aberto e à sua abertura, na qual todo ente entra e permanece, e que cada ente traz, por assim dizer, consigo. Esse aberto foi concebido pelo pensamento ocidental, desde o seu início, como 37 Idem, Marcas do caminho, p. 332 Idem, p. 449 39 Idem, p. 200 38 τα αληϑεα, o desvelado”40. Uma abertura que é deixar ser o que aparece à racionalidade instrumental como acontecimento: “imprevisível e inconcebível”41 ou, como dirá Heidegger, como Ereignis (acontecimento, evento, ocorrência). A primeira questão que podemos colocar diz respeito à correção deste modo de leitura que assimila a subjetividade hegeliana ao sujeito cartesiano. Pois, contrariamente a Descartes, para Hegel, pensar não é representar nem a verdade é uma questão de adequação. O conceito não é uma representação previamente definida em sua clareza e distinção, como o que se dispõe como o que há a ver, como imagem de uma coisa na presença, mas um processo de reconstrução normativa a partir do desdobramento da experiência, mesmo que Heidegger desqualifique o conceito hegeliano de experiência como a confirmação da “etantidade do ente” que se desdobra no campo da representação a si da consciência42. Como veremos daqui a duas aulas, a dialética desconhece representações porque, em seu interior, as relações entre conceitos e objetos não se dão sob a forma de subsunções, por isto não é possível falar em adequação entre conceito e objeto. As relações são pensadas a partir de negações determinadas. Hegel chega mesmo a eleger o pensar representativo como objeto maior de combate da dialética. A segunda questão diz respeito à estratégia heideggeriana de dissociar ser e sujeito a fim de abrir espaço à temporalidade fundamental do acontecimento. Heidegger critica a estratégia hegeliana de compor uma historicidade pensada através do desdobramento de negações determinadas pois, a seu ver, trata-se de uma confirmação do que a consciência inicialmente projetara. Ou seja, trata-se de uma historicidade sem acontecimento. Daí uma afirmação como: “o progresso na marcha histórica da história da formação da consciência não é empurrado para a frente, em direção ao ainda indeterminado, pela figura respectiva de cada momento da consciência, mas ele é impulsionado a partir do objeto já proposto”43. Esta é uma crítica que fará escola e consiste a dizer que a história em Hegel é a teleologia do Espírito que confirma a si mesmo no mundo e em uma progressão contínua. 40 Idem, p. 200 Idem, p. 205 42 “A experiência é a apresentação do sujeito absoluto se desdobrando na representação e assim se apreendendo. A experiência é a subjetividade do sujeito absoluto” (HEIDEGGER, Martin; Holzwege, p. 226) 43 Idem, Holzwege, p. 196 41