Curso Ciência da Lógica

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Aula 2
Por que uma ontologia do ser não é possível?
Hegel e Heidegger
Das divisões da Lógica
Na aula de hoje, gostaria de mostrar como Hegel inicia sua Ciência da Lógica
respondendo à pergunta : “por que uma ontologia do ser não é possível?”. Ou seja, por
que “ser” é uma categoria que não serve como fundamento para a determinação
normativa do que deve orientar nossa experiência do mundo. Devemos então nos
perguntar sobre qual problema a categoria de “ser” oferece, qual a natureza de sua
inadequação. Veremos como Hegel desenvolve a seguinte resposta: “Uma ontologia do
ser não é possível porque o ser é pura abstração”. O ser é exatamente aquilo do qual se
diz apenas uma tautologia auto-referencial (“O ser é aquilo que é”). Esta sua
indeterminação não é resultado de sua realidade superior em relação a todo ente, como
se estivéssemos diante de um Ens realissimus. Na verdade, para Hegel, ela é apenas
substancialização de ausência de realidade concreta.
Contra esta ausência de realidade, veremos em outras aulas como Hegel propõe
uma ontologia assentada no conceito de essência (Wesen), isto depois de reconstruir a
noção de essência através da absorção daquilo que Aristóteles entendia por energeia
(que pode ser traduzido por atividade, ato) e dynamis (potência, movimento) no interior
de uma teoria da reflexão. Hegel acredita que uma ontologia do ser irá necessariamente
transformar o fundamento em normatividade sem temporalização, fundamento ligado à
procura de expressão imediata do originário pensado como pré-subjetivo. Falar de ser,
seria para Hegel sempre retornar aos domínios das identidades abstratas. Já a
reconstrução hegeliana do conceito de essência seria, ao menos para Hegel, dotado da
possibilidade de compreender os processos de temporalização. Tal forma hegeliana de
desqualificar uma ontologia do ser nos leva, necessariamente, a avaliar as críticas que,
um século depois, Heidegger fará à estratégia hegeliana. Como veremos, estará em
confrontação duas maneiras distintas de se pensar a temporalização das categorias da
ontologia, ou seja, esta maneira de pensar como a ontologia é capaz de dar conta do que
se manifesta no interior do tempo.
No entanto, se uma ontologia do ser não é possível, isto não significa que a
experiência da indeterminação do ser seja uma simples ilusão. Ela tem um conteúdo de
verdade, pois será a primeira manifestação de uma impossibilidade que servirá de motor
para o movimento dialético, a saber, a impossibilidade de pôr a identidade imediata
entre realidade (Wirklichkeit) e fenômeno (Erscheinung). A experiência da
indeterminação nos lembra que há algo que não se esgota nas formas atualmente
determinadas da presença. Em última instância, ela nos obrigará a reconstruir a própria
noção do que significa “determinar algo”. De uma certa forma, a impossibilidade de
uma ontologia do ser já é uma experiência com conseqüências ontológicas. Isto talvez
nos explique porque a impossibilidade de uma ontologia do ser leva Hegel a afirmar
algo como a possibilidade de uma ontologia que parte desta que será a primeira
categoria concreta da Ciência da Lógica, a saber, o devir.
Podemos dizer que uma ontologia que parte do devir não pode ser apenas uma
doutrina que substitua a centralidade do conceito de ser por um conceito de outra
natureza, como, no caso, o devir. Na verdade, sua operacionalidade deve ser diferente,
seus processos devem ser descritos de outra maneira. Trocar um conceito por outro
conservando a operacionalidade interna da teoria, seu modo de conceitualizar, não nos
leva muito longe. Por isto, podemos dizer que a ontologia tentada por Hegel tem por
característica principal procurar apreender os conceitos em seu processo de alteração.
Ela parte da defesa de que nenhum conceito isolado apreende adequadamente os
processos internos ao campo da experiência, mas tais processos podem ser apreendidos
através da passagem de um conceito a outro. Vale aqui o que dirá posteriormente
Adorno a respeito de Hegel: “Como cada proposição singular da filosofia hegeliana
reconhece sua própria inadequação à unidade, a forma exprime então tal inadequação na
medida em que ela não pode apreender nenhum conteúdo de maneira plenamente
adequada”1. Este movimento de passagem, que mostra a insuficiência de conceitos
pensados como descrição de objetos, é o fenômeno que funda uma ontologia de caráter
especulativo, como quer Hegel.
Uma maneira possível de compreender melhor este ponto passa pela tentativa de
compreender a natureza da estrutura peculiar da Ciência da Lógica com suas divisões.
Tal estrutura já nos introduz a certas especificidades do conceito hegeliano de ser.
A primeira divisão com a qual nos defrontamos é a dualidade Lógica objetiva
(que engloba a Doutrina do ser e a Doutrina da essência) e a Lógica subjetiva
(Doutrina do Conceito). Grosso modo, a divisão não parece trazer maiores dificuldades,
já que ele parece indicar um movimento de internalização no qual a tematização do ser
(objeto da lógica objetiva), enquanto determinação aparentemente exterior à forma do
pensar, entra em movimento até se transformar em tematização do conceito (objeto da
lógica subjetiva). Ao alcançar a forma do conceito, o movimento que animou as
categorias ligadas ao ser, dará a forma para a re-organização dos elementos da lógica
tradicional (conceitos/formas do julgamento/modo s de inferência). Ou seja, a passagem
da lógica objetiva à lógica subjetiva descreveria, em larga medida, o movimento através
do qual a substância (o ser) é apreendida como sujeito (o conceito), já que esta
dualidade é inspirada da distinção sujeito/objeto.
No entanto, há duas peculiaridades importantes nesta divisão. Primeiro, a lógica
objetiva é dividida internamente a partir de duas noções (ser e essência). Segundo, a
lógica subjetiva não se contenta em apenas re-organizar os elementos da lógica
tradicional. Ela tem ainda uma longa subdivisão intitulada exatamente “objetividade”,
onde é questão de categorias normalmente vinculadas à filosofia da natureza, como o
“mecanismo”, o “quimismo” e a “teleologia” própria a organismos biológicos (ou seja,
os dispositivos de determinação da racionalidade dos fenômenos nos campos da física,
da química e da biologia). Como se não bastasse, a última subdivisão, intitulada “A
idéia”, dá espaço para a “vida”, assim como para a idéia do verdadeiro (objeto da teoria
do conhecimento) e do bom (objeto da moral) não dando, curiosamente,
desenvolvimento para a idéia do belo (objeto da estética). O que pode se explicar se
levarmos em conta que Hegel quer, na verdade, insistir na maneira com que a Idéia
unifica teoria e prática (o que o par verdadeiro/bom já parece dar conta). De qualquer
forma, fica claro como a tendência da lógica subjetiva é retornar à exterioridade. Notese que a Idéia não é nem uma categoria da subjetividade, nem da objetividade. Ao
contrário, ela é o que se encontra para além e para aquém da distinção sujeito e objeto.
Por isto, ela deve aparecer como superação destas perspectivas particulares.
Analisemos pois o sentido da primeira destas “peculiaridades” na estrutura da
lógica hegeliana, a saber, a necessidade de dividir a lógica objetiva a partir das noções
de ser e essência. Ela é justificada por Hegel a partir da exigência de introduzir uma:
1
ADORNO, Drei studien über Hegel, p. 104
esfera de mediação, esfera do conceito como sistema das determinações de
reflexão, ou seja, do ser que se transforma em ser em-si do conceito, que desta
forma não é ainda posto como para si [tal como na lógica subjetiva], mas que
compreende o ser imediato como algo que também lhe é exterior. Isto é a
Doutrina da essência que está no meio entre a Doutrina do ser e do conceito2.
Ou seja, a essência é, fundamentalmente, uma noção que opera a mediação entre
o ser e o conceito. Daí porque talvez seja correto dizer que esta é a região central do
livro, onde os processos principais são apresentados. Mas qual a necessidade desta
mediação? Grosso modo, podemos dizer que as categorias do ser (como “ser”, “nada”,
“finito”, “infinito”, “um”, múltiplo”) tendem a produzir a ilusão de serem determinações
isoladas e não relacionais. No conceito de ser não está imediatamente expresso que ele é
impensável sem seu oposto, o nada. Já as categorias da essência (como “identidade”,
“diferença”, ‘contradição”, “fundamento”) são imediatamente categorias relacionais,
onde um termo traz imediatamente o seu oposto. Desta forma, a tematização da essência
permite o abandono de uma noção fixa e identitária de objeto em prol de uma noção
onde “objeto” nada mais é do que o nome de uma estrutura relacional. Tal passagem é
fundamental porque, em Hegel, o conceito não é conceito de objeto, o conceito não tece
relações bi-unívocas com objetos isolados. Antes ele é a formalização de relações entre
objetos, o conceito é um conceito de estados de coisas. Daí porque podemos dizer que:
“no Ser reina uma imediatez sem relação, na essência emerge uma estrutura relacional,
que se eleva, no conceito, à pura reflexividade”3. A própria maneira como a Doutrina
do ser é subdividida (qualidade, quantidade e medida) indica um movimento onde se
parte da determinação imanente mais aparentemente singular e irredutível (a qualidade)
a uma determinação que só é no interior de uma relação geral com outros (a medida).
Mas é sempre bom lembrar que esta passagem do ser à essência é impulsionada
pelo ritmo da explicitação: trata-se de explicitar uma estrutura relacional que já estava
em operação, mas de maneira não-reflexiva, na compreensão das categorias do ser. Isto
pode nos explicar porque: “a passagem do ser à essência é passagem das determinações
que parecem existir por si nas ‘coisas’ (o ser) à revelação de que as determinações
aparentemente as mais ‘imediatas’ estão desde sempre constituídas e organizadas em
um pensamento unificado (...) Uma mesma unidade pensada organiza as percepção das
coisas e a compreensão de suas relações: ser e essência são uma e outra o produto do
conceito”4. Neste sentido, a necessidade desta região intermediária que é a Doutrina da
essência demonstra como a Ciência da Lógica procura, acima de tudo, apreender os
conceitos em seu processo interno de alteração.
Começar com o ser
Mas antes de passar diretamente à Doutrina do ser, Hegel deve responder à
questão: Qual deve ser o começo da ciência? Como sabemos, já na Fenomenologia
Hegel criticava todo empreendimento filosófico que fizesse apelo a estratégias de
dedução transcendental a fim de assegurar o saber no campo prévio a toda e qualquer
experiência. Neste caso, o primeiro passo do saber fenomenológico consistia em
examinar a figura da consciência que procura afirmar a possibilidade da imediaticidade
entre pensar e ser. Era daí que Hegel partia no primeiro capítulo do livro, este dedicado
à Certeza sensível. Maneira hegeliana de proceder de forma imediata a fim de ver se é
2
HEGEL, Wissenschaft der Logik I, p. 58
HÖSLE, idem, p. 247
4
LONGUENESSE, Hegel et la critique de la métaphysique, p. 9
3
possível um saber que tenha duas características fundamentais: espontaneidade e caráter
repentino (Plötzlichkeit)5. Saber que apreende de maneira imediata seu objeto e que
estabelece a possibilidade de operações intuitivas aparentemente independentes de toda
capacidade conceitual. Como dirá Heidegger: “O saber imediato tem precisamente este
traço em si, este modo de saber: deixar o objeto completamente a si mesmo. O objeto se
sustenta em si como o que não tem necessidade alguma de ser para uma consciência, e
é exatamente ao tomá-lo como tal, como o que se dá em si que a consciência o sabe
imediatamente”6. É a impossibilidade deste saber que deixa o objeto completamente a si
mesmo que nos levará aos caminhos trilhados pela Fenomenologia.
No entanto, a consciência acredita que o conteúdo concreto deste saber é “um
conhecimento de riqueza infinda, para o qual é impossível achar limite”. Este saber é
apresentado como uma certeza sensível (sinnliche Gewissheit), ou seja, certeza de que a
presença do ser se dá através da receptividade da sensibilidade. Presença integral do ser,
já que “do objeto nada ainda deixou de lado, mas o tem em toda a sua plenitude, diante
de si”. Presença que, por se dar através de uma intuição imediata, não se completa
através do desdobramento do espaço e do tempo ou da inspeção detalhada de suas
partes. Ao tematizar o que chama de certeza sensível, Hegel procura assim dar conta de
toda tentativa de pensar a tarefa filosófica como retorno à espontaneidade do ser,
retorno à origem muda graças a receptividade plena de uma intuição não-dependente do
trabalho do conceito. Retorno que Hegel descreve como a crença de que é possível
filosofar como quem dá um tiro com uma pistola.
Neste sentido, a Fenomenologia do Espírito e a Ciência da lógica se encontram
nos seus respectivos pontos de partida. Se a Fenomenologia inicia seu trajeto através da
tematização do saber imediato do puro ser, a Lógica também parte do puro ser a fim de
mostrar como ele equivale ao nada indeterminado.
Mas antes de apresentar suas reflexões sobre o ser, Hegel se pergunta porque
não começar pelo Eu, elevando com isto o princípio de subjetividade à condição de
fundamento da objetividade do saber e dando continuidade, desta forma, a uma
seqüência que conhecemos atualmente como “filosofias da consciência”, que tem em
Kant sua figura mais bem acabada, e que Hegel alude ao da maneira com que o “novo
tempo” (ou seja, a modernidade) elevou o Eu a condição de fundamento do saber. As
colocações de Hegel a este respeito são de extrema importância.
Hegel insiste que a primeira verdade que constitui a série do saber deve ser uma
certeza imediata (unmittelbar Gewisses). No entanto, há uma dificuldade estrutural em
tomar o Eu como o fundamento desta certeza imediata. Mas o Eu, ao mesmo tempo em
que procura afirmar-se como consciência-de-si imediatamente certa de si mesma, é uma
instância empírica envolta na “multiplicidade infinita do mundo”. É isto que Hegel tem
em mente ao afirmar : “mas Eu em geral é também, ao mesmo tempo, um concreto, ou
ainda, na verdade, o Eu é o que há de mais concreto – a consciência de si como um
mundo infinitamente múltiplo”7. Para ser fundamento, o Eu deve se separar desta
multiplicidade empírica. Isto exige um ato absoluto através do qual o Eu se purifica de
si mesmo como Eu abstrato (ou, se quisermos, como sujeito transcendental). Isto
significa elevar-se a esta perspectiva do puro saber onde a diferença entre sujeito e
objeto desaparece (já que o Eu aparece como fundamento para a constituição de todo e
qualquer objeto da experiência).
Mas Hegel insiste que este puro Eu não é um imediato acessível ao “Eu
ordinário” (gewöhnlich Ich). Mesmo assim, para não ser uma perspectiva arbitrária e
5
THEUNISSEN, Michael; Sein und Schein, p. 201
HEIDEGGER, A fenomenologia do espírito de Hegel, p. 92
7
HEGEL, Wissenschaft der Logik, p. 76
6
imposta de maneira não-reflexiva, seria necessário que: “o movimento dos Eus
concretos da consciência imediata até o puro saber fosse mostrado e apresentado neles
mesmos a partir de uma necessidade interna”8, como se o fundamento do saber fosse
gerado a partir da necessidade interna própria ao Eu empírico (caminho que, no fundo, é
o sentido da Ciência da experiência da consciência), e não como ruptura radical em
relação a toda e qualquer empiricidade do Eu psicológico. No entanto:
Como este puro Eu deve ser essencialmente puro saber [determinação
transcendental absoluta], e o puro saber só está posto na consciência individual
através do ato absoluto de auto-elevação, não existindo imediatamente nela,
perde-se a vantagem que deveria surgir deste começo da filosofia, a saber partir
de algo absolutamente conhecido que cada um encontra imediatamente em si e
ao qual se pode acrescentar reflexões posteriores9.
Neste sentido, diz Hegel, fala-se de algo conhecido, ou seja, do Eu cuja
referência não pode ser outro que o eu psicológico da consciência empírica, mas referese a algo que é absolutamente estranho (Unbekanntes) à consciência. No entanto, por
ainda se falar do puro Eu: “a determinação do puro saber como Eu leva consigo à
rememoração (Rückerinnerung) contínua do Eu subjetivo” como modo de construção de
sínteses. O que explicaria porque o fundamento acaba por trazer para si a oposição
insuperável ao objeto própria ao Eu enquanto conceito. Melhor seria abandonar o Eu
como fundamento e mostrar como, através dos desdobramentos do Eu empírico
demonstramos que ele não existe enquanto entidade isolada, mas é desde sempre
Espírito, ou seja, aquilo que não é um Eu absoluto, mas o que aparece quando a
individualidade irredutível do Eu se mostra como ilusão. Esta é uma das razões pelas
quais Hegel pode dizer que a Fenomenologia é um pressuposto da Ciência da Lógica.
Pois a Fenomenologia nos livra da ilusão de procurar no Eu o fundamento do saber e
nos abre à tematização de um modo de síntese que não seja mais dependente da figura
de um Eu.
Desta forma, ficam abertas as portas para que o ser possa aparecer como
fundamento, já que ele é o termo comum a todos os outros aspirantes à fundamento
primeiro (o Uno, o absoluto, o divino). Para ser fundamento, o uno, Deus, o absoluto
devem ser. Neste sentido, nada mais natural do que começar com esta categoria que
parece estabelecer o campo no qual o fundamento poderá aparecer de maneira mais
elaborada, a saber, o ser. Isto a ponto de Hegel afirmar que a própria história da filosofia
começaria verdadeiramente com o compreensão do absoluto como ser, isto através de
Parmênides e sua proposição: “o ser é, o nada não é”.
Pura forma da intuição
Ser, puro ser: sem nenhuma determinação outra. Na sua imediatez
indeterminada, ele é apenas igual a si mesmo e não é desigual em relação a outra
coisa; ele não tem diversidade alguma no interior de si nem fora. Qualquer
determinação ou conteúdo que seriam postos nele como diferentes, ou através do
qual ele seria posto como diferente de um outro não lhe permitiria manter-se em
sua pureza. Ele é pura indeterminidade e vazio (Leere). Não há nada a intuir
nele, se da intuição poderíamos aqui dizer; ou ele é apenas este próprio intuir,
8
9
Idem, p. 76
Idem, p. 77
puro e vazio (...) O ser, o imediato indeterminado é, na verdade, nada, não mais
nem menos que nada10.
Esta é, sem dúvida, uma das afirmações mais conhecidas e polêmicas de Hegel. Antes
de comentá-la, notemos a peculiaridade que consiste em afirmar que a primeira
manifestação da qualidade é a indeterminação. Hegel reconhece que, por ser
indeterminado, o ser aparece como desprovido de qualidade; mas em-si o caráter de
indeterminação é posto como oposto da determinação ou do qualitativo. Por isto, o ser:
“faz da sua própria indeterminação sua qualidade”11.
Esta posição do ser como indeterminação aparece a Hegel porque o ser, como
começo, não pode referir-se a nada outro que ele mesmo, senão ele não seria começo,
isto no sentido da categoria mais imediata do saber. O ser é auto-referência imediata e
incondicional. No entanto, como a determinação é um processo relacional, só se
determina algo em relação a outro algo que é posto ao mesmo tempo, então esta autoreferência imediata do ser só pode equivaler à absoluta indeterminação. Daí porque
Hegel pode dizer: “Qualquer determinação ou conteúdo que seriam postos nele como
diferentes, ou através do qual ele seria posto como diferente de um outro não lhe
permitiria manter-se em sua pureza”. De fato, o ser só passa à determinação quando é
posto em uma situação, ou seja, em um contexto (Zusammenhang) próprio à existência.
O que nos explica porque a segunda categoria da qualidade deve necessariamente ser o
Dasein (no sentido de existência, presença, ser-aí). Desprovido de uma situação,
abstraído de todo contexto ôntico, o ser só pode ser apreendido como pura abstração:
A reflexão deve, em vista disso, empenhar-se em procurar uma firme
determinação para o ser, pela qual ele seria diferente do nada. Por exemplo:
toma-se o ser como o que persiste em toda mudança, a matéria infinitamente
determinável etc., ou, ainda sem reflexão, como uma existência singular
qualquer, o sensível ou o espiritual mais próximo que houver. Porém todas as
determinações ulteriores e mais concretas como essas não deixam mais o ser
como puro ser; como é imediatamente, aqui no começo12.
Desta forma, Hegel procura criticar todo conceito pré-reflexivo de ser por
acreditar que isto significa fazer a filosofia determinar, como seu objeto privilegiado,
nada mais do que um vazio total, um X inexprimível que, por se subtrair a toda
predicação, advém um Ens realissimum.
Hegel dirá então que o ser: “é apenas a própria intuição pura, vazia”, ou seja, o
pensamento desprovido de objeto. Ao definir posteriormente o nada como “igualdade
simples consigo mesmo, vazio perfeito (vollkommene)”, Hegel admite que ele pode
existir em nossa intuição ou pensamento. O que não deixa de nos remeter à noção
kantiana de ens imaginarium, uma intuição vazia sem objeto que Kant define nos
seguintes termos: “A simples forma da intuição, sem substância, não é em si um objeto
[determinado], mas a sua condição simplesmente formal (como fenômeno), como o
espaço puro e o tempo puro que são algo, sem dúvida, como formas da intuição, mas
não são em si objeto suscetíveis de intuição (ens imaginarium)”13. Neste sentido, se
aceitarmos a definição proposta do ser como forma da intuição vazia sem objeto, como
aquilo que nos permite nomear a forma do tempo puro e do espaço puro, então
10
HEGEL, Wissenschaft der Logik I, p. 82
HEGEL, idem, p. 82
12
HEGEL, Enciclopédia, par. 87
13
KANT, Crítica da razão pura, B 347/A 291
11
chegaremos a uma situação estruturalmente similar àquela que encontramos no primeiro
capítulo da Fenomenologia do Espírito. Lá, vemos a consciência tomar a pura forma do
tempo e do espaço como ser de realidade mais elevada. De uma certa forma, ela crê ser
possível substancializar a pura forma do espaço e tempo, chamando tal
substancialização de “ser”. Mas ao tentar expressar tal forma pura da intuição, a
consciência fará a experiência contraditória da impossibilidade de tal expressão. Não
posso expressar a pura forma da intuição. Ao tentar, ou digo apenas nada ou coloco o
ser em relação, não tenho mais a pura forma da intuição, mas tenho um conteúdo
situado. Hegel dirá : não tenho mais o ser (Sein), mas apenas o ser-aí (Da-sein).
Hegel lembra que a consciência acredita ter muito mais do que o puro ser que
constitui a essência da sua certeza sensível: “Uma certeza sensível efetiva (wirkliche
sinnliche Gewissheit) não é apenas essa pura imediatez, mas é um exemplo da
mesma”14. Ou seja, a consciência acredita ter uma colocação em cena desta imediatez, o
que demonstraria que não estávamos diante de um puramente indeterminado. Esta
colocação em cena é operada através da capacidade que teria a consciência de indicar o
ser através de dêiticos como “isto”, “este”. Através deles, a consciência quer indicar, de
maneira ostensiva, a significação do ser que lhe aparece à intuição. No entanto, o “isto”
e o “este” produzirão a determinação diferenciadora da singularidade do ser. Não
estaremos mais exatamente diante do puro ser. Colocar em cena a imediatez é
necessariamente diferenciar, colocar o ser em relação e romper o absoluto.
O que é interessante neste contexto será o saldo da experiência. Ao tentar
substancializar o que deveria ser simples condição formal para os fenômenos (a saber,
as formas pura da intuição), a consciência não cometia um simples equívoco. Na
verdade, ela procurava tematizar o incondicionado. Mas ao procurar o incondicionado,
ela apenas encontrou o indeterminado. Vai da astúcia de Hegel afirmar que tal
experiência não é um simples fracasso, mas deslevamento do excesso que indica como
toda estruturação de objeto será sempre assombrada pela indeterminação. Pois a
afirmação segundo a qual o ser é, de fato, nada, não mais nem menos que nada, visa
solapar a segurança ontológica do que deveria aparecer como fundamento para o
processo de determinação dos objetos. Tentemos compreender melhor este ponto.
A primeira categoria concreta
Neste sentido, o devir (Werden) como resultado da posição da unidade entre ser
e nada deve ser medido em todas as suas conseqüências. O pequeno parágrafo sobre o
devir é, sem dúvida, um dos mais decisivos de todo o livro. Por isto, ele deve ser citado
na íntegra:
O puro ser e o puro nada são pois o mesmo. O verdadeiro não é nem o ser nem
o nada, mas que o ser passou no nada (übergegangen ist) e que o nada passou no
ser – não que ele passa. No entanto, ao mesmo tempo, a verdade não é a
indiferenciação entre os dois, mas que eles não são o mesmo, que eles são a
diferença absoluta, embora sejam inseparáveis e inseparados e que,
imediatamente, cada um desaparece em seu oposto. Sua verdade é pois este
movimento do imediato desaparecer de um no outro: o devir, um movimento
através do qual ambos são diferentes, mas através de uma diferença que
imediatamente se dissolveu (aufgelöst hat)15.
14
15
HEGEL, Fenomenologia, par. 91
HEGEL, idem, p. 83
Este pequeno parágrafo sintetiza o que Hegel entende por movimento e identidade
dialética. Não se trata exatamente de dizer que “ser” e “nada” são termos que designam
o mesmo, um pouco como “Vênus” e “estrela Dalva” designam o mesmo. Trata-se de
dizer que eles alcançam uma identidade que é resultado de um movimento. No entanto,
trata-se de um peculiar “movimento imediato”, ou seja, movimento que ocorre
imediatamente a partir do momento em que um termo é posto, já que não é possível ao
ser pôr-se sem passar no seu oposto (passagem no oposto que Hegel chama de
Verkehrung - inversão). Esta é uma maneira de dizer que o conceito de ser não tem
realidade. Da mesma forma, o conceito de nada não tem realidade. No entanto, a
passagem do conceito de ser ao conceito de nada tem realidade. Esta passagem não é
alguma forma de nadificação do ser, mas de reconhecimento da insuficiência de sua
significação. A significação do ser demonstra sua inanidade quando é posta.
Aqui, devemos entender melhor a idéia de posição. Tentemos, por exemplo,
interpretar uma afirmação como: “ser e nada são o contrário em toda a sua imediatez,
isto é, sem que em um deles já tinha sido posta uma determinidade, que contivesse sua
relação para com o outro”16. Fica claro como a idéia de posição implica determinar, isto
no sentido de passar à dimensão concreta, ôntica, fenomenal. Ser e nada são contrários
quando não são postos, quando são imediatamente visados. Até porque: “não há nada no
céu e na terra que não contenham em si ser e nada”17. Este é um ponto fundamental para
todo penasamento dialético: a passagem à existência, a posição, sempre é um acréscimo
em relação à determinação categorial, e não sua mera repetição, como se da
determinação à existência não houvesse processo. Lembrem a este respeito da afirmação
kantiana, segundo a qual cem táleres reais não contém mais do que já está presente em
cem táleres possíveis18.
Mas dizer isto implica afirmar que o próprio uso gramatical do verbo não pode
ser visto de maneira indiferente pela especulação filosófica. Talvez isto explique porque
Hegel fala a todo momento que a forma da proposição “O Ser é nada”, forma de um
julgamento de identidade, é inadequada para expressão a verdade especulativa: “Sendo
o conteúdo especulativo, então também a não-identidade do sujeito e do predicado é
momento essencial, mas isto não está expresso no julgamento”19. Isto a ponto de Hegel
afirmar que o conteúdo especulativo só poderia ser apreendido através de uma série de
duas proposições contrárias (“O Ser é nada” e “O Ser não é nada”) que apresentam uma
antinomia.
Todas estas colocações visam indicar que não é possível pensar o devir a partir
de uma gramática filosófica própria à entificação das categorias do entendimento. Pois o
devir deve aparecer como movimento interno ao ser, isto a ponto de todas as utilizações
do verbo “ser” no interior de proposições de identidade não poderem mais expor
igualdades tautológicas, mas, digamos, “proposições de devir”.
Esta afirmação do devir como verdade do ser é a maneira hegeliana de introduzir
a temporalidade no interior do ser. Por isto, ele define os momentos do devir como
“nascer e perecer” (Entstehen und Vergehen), além de determinar o devir como a
potência da inquietude que corrói o ser por levá-lo ao ponto de evanescimento, o que
fica claro em uma afirmação como: “O devir é o desaparecimento/ o desvanescer do ser
no nada e do nada no ser, assim como o desaparecimento do ser e nada em geral (...) O
16
Idem, Enciclopédia, par. 88
HEGEL, ibidem, p. 86
18
Para uma boa discussão a este respeito a partir da afirmação kantiana de ver FAUSTO, Ruy; Marx:
logique et politique,
19
Idem, Wissenschaft der Logik, p. 93
17
resultado é o ser que desaparece (Verschwundensein), mas não como nada”20. Ou seja, o
devir é a categoria que determina a significação do ser e do nada como passagem ao seu
limite, o que nos leva a superar o caráter limitado destas categorias e a problematizar
uma gramática que visa fazer referência a uma experiência que a todo momento lhe
escapa. O que pode nos explicar porque: “O devir é o primeiro pensamento concreto e,
com isto, o primeiro conceito; ao contrário, ser e nada são abstrações vazias”21.
Esta idéia do devir como dispositivo de formalização de determinações que
estão passando no seu limite diz muito a respeito de um conceito renovado de
determinação que parece animar as considerações hegelianas (e não devemos esquecer
que o título desta nossa seção é exatamente “determinidade”). Neste ponto, devemos
lembrar desta rápida, porém importante, consideração hegeliana sobre o caráter dialético
das “grandezas infinitamente pequenas”. Tais considerações devem ser lidas juntamente
com a idéia de que, como notaram alguns comentadores, o termo que teria valor de
termo nulo está ausente da doutrina hegeliana do Conceito22. Isto acontece porque, em
Hegel, o termo negado nunca alcança o valor zero, já que esta função do zero será
criticada por Hegel como sendo um “nada abstrato” (abstrakte Nichts). Neste sentido, o
interesse hegeliano pelo cálculo infinitesimal, base para sua reflexão sobre as grandeza
infinitamente pequenas, estaria ligado à maneira com que Hegel estrutura sua
compreensão da negação como um impulso ao limite da determinidade. A negação
hegeliana nunca alcança o valor zero porque ela leva o nada ao limite do surgir
(Entstehen) e o ser ao limite do desaparecer (Vergehen). O que nos explica porque ele
afirma: “Estas grandezas foram determinadas de tal modo que são em seu desaparecer,
não antes de seu desaparecer, pois seriam grandezas finitas, nem depois de seu
desaparecer, senão seriam nada”23. Ou seja, elas são pensadas no processo em que as
determinações discretas deixam de conseguir se referir às grandezas ou, se quiseremos,
onde a distinção entre ser e nada deve dar lugar a algo que Hegel deplora por não ter,
por enquanto, termo melhor do que “estado intermediário” (Mittelzustand) entre ser e
nada. Na verdade, podemos dizer que a noção de grandezas infinitamente pequenas
forneceria a exposição deste movimento no qual o ser está desaparecendo e onde o
nada esta manifestando-se em uma determinidade. Movimento cuja exposição exige
uma outra compreensão do que é um objeto, para além da idéia do objeto como pólo
fixo de identidade, e de determinação, para além da idéia de determinação como
definição atributiva de predicados limitadores.
Notemos ainda como Sartre criticará esta maneira hegeliana de pensar a
indissociabilidade entre ser e nada ao afirmar: “não é possível que ser e não-ser sejam
conceitos de mesmo conteúdo porque, ao contrário, o não-ser supõe um
encaminhamento irredutível do espírito: qualquer que seja a indiferenciação primitiva
do ser, o não-ser é esta mesma indiferenciação negada. O que permite a Hegel “fazer
passar” o ser no nada é que ele introduz implicitamente a negação na própria definição
do ser”24. A crítica fará escola e consiste em dizer que ser e nada não podem ser tratados
como similares já que o nada seria não-ser, negação do ser: “Ora, o ser é vazio de toda
determinação diferente da identidade consigo mesmo, mas o não-ser é vazio de ser. Em
uma palavras, o que se deve lembrar contra Hegel, é que o ser é o não-ser não é”25. No
entanto, é exatamente a crença de que o ser seria identidade consigo mesmo o objeto da
20
Idem, p. 113.
Idem
22
DUBARLE et DOZ, Logique et dialectique, Paris: Larousse:, 1972, pp.134-145
23
HEGEL, idem, p. 111
24
SARTRE, Jean-Paul, L’être et le néant, p. 49
25
Idem, p. 50
21
crítica hegeliana. Hegel insiste que tal identidade expressa no conceito de ser é
simplesmente uma abstração inefetiva, por isto, ao tentar afirmar sua identidade ele
passa necessariamente no nada. Ao menos neste sentido, a passagem do ser ao nada é
simplesmente a forçagem da diferença enquanto potência de movimento.
Heidegger, leitor de Hegel
Neste ponto, podemos lembrar de um filósofo para quem esta desqualificação
hegeliana de uma ontologia do ser era inaceitável, a saber, Martin Heidegger. A
confrontação de Heidegger a Hegel é uma constante. Heidegger dedica cursos à
Fenomenologia do Espírito, assim como vários artigos a Hegel (em especial, “Hegel e
os gregos” e “Hegel e seu conceito de experiência”). Tal confrontação justifica-se pela
necessidade de distinguir duas fenomenologias: esta que nos leva a compreensão do
caráter produtor do Espírito (Hegel) e esta que nos leva à compreensão da história da
ocultação do ser (Heidegger). Todas as duas partem da crítica da experiência fenomenal,
embora seus resultados sejam profundamente distintos.
Partamos de uma afirmação maior para nosso problema relativo à possibilidade
de uma ontologia do ser. Diz Heidegger, a respeito de Hegel: “O ser, enquanto primeira
e simples objetividade dos objetos, é pensado desde o ponto de vista da referência ao
sujeito a ser pensado, por meio da pura abstração deste”26. Ou seja, a defesa hegeliana
da natureza de abstração própria ao ser seria resultado da crença de que apenas a
reflexão subjetiva poderia fornecer um fundamento ao pensar. Hegel pode afirmar que
ser e nada são pois o mesmo porque, para ele, aquilo que resta quando a subjetividade
retira seu representar é apenas o puramente indeterminado. Esta forma de compreender
o ser nos explica porque Heidegger afirma, sempre a respeito de Hegel: “o ser e, por
conseguinte, aquilo que é representado nas palavras fundamentais, não é ainda
determinado e não é ainda mediado através e para o interior do movimento dialético da
subjetividade absoluta”27. Pois é o sujeito com suas estruturas de reflexão que determina
o que há a ser pensado e ele determina o que há a ser pensado necessariamente sob a
forma de “entes”. “O que não é um ente”, dirá Heidegger a respeito de Hegel, “é
nada”28. O que nos deixa com a questão de compreender o que pode significar
determinar algo sob a forme de um ente.
Para compreender este modo de produtividade da subjetividade devemos insistir
que a interpretação de Heidegger deve partir de um pressuposto fundamental, a saber,
desde Descartes “sujeito” é o que se fala da mesma maneira. Hegel chegaria apenas lá
onde Descartes já havia definido a meta, a saber, compreender a essência do que é como
objeto disponível ao entendimento calculador de um sujeito, o mesmo sujeito que diante
de um pedaço de cera só verá res extensa. A terra firme que, segundo Hegel, Descartes
descobre é a compreensão do saber como: “certeza de si do sujeito sabendo-se
incondicionalmente”29. Compreensão que Hegel levará ao extremo através de seu
idealismo absoluto.
Em uma passagem célebre de seus cursos sobre Nietzsche, Heidegger insiste que
a estrutura da reflexão que nasce com o princípio moderno de subjetividade é
fundamentalmente posicional. Refletir é por diante de si no interior da representação,
como se colocássemos algo diante de um “olho da mente”. Seguindo os rastros de texto
cartesiano, ele nos lembra que, em várias passagens, Descartes usa cogitare e percipere
26
HEIDEGGER, Martin; Marcas do caminho, Petrópolis: Vozes, p. 444
Idem, p. 446
28
HEIDEGGER, Martin; Hegel, p. 44
29
HEIDEGGER, Martin; Holzwege, p. 163
27
como termos correlatos. Um uso necessariamente prenhe de consequências. De fato,
Heidegger deve pensar aqui, primeiro, na maneira peculiar com que Descartes utiliza o
termo latim percipere. Ele raramente é utilizado para designar processos sensoriais,
como visão e audição (nestes casos, Descartes prefere utilizar o termo sentire).
Percipere designa, normalmente, a apreensão puramente mental do intelecto, já que, em
Descartes, é a inspeção intelectual que apreende os objetos, e não as sensações. Assim,
por exemplo, na meditação terceira, ao falar daquilo que aparece ao pensamento de
maneira clara e distinta, Descartes afirma: “todas as vezes que volto para as coisas que
penso conceber mui claramente sou de tal modo persuadido delas ...”30. Mas, de fato,
“penso conceber” é a tradução não muito fiel de percipere31. Da mesma forma,
Descartes, mais a frente falará de : “tudo aquilo que concebo clara e distintamente”32
pelo pensamento. Mas, novamente, o termo “conceber” é uma tradução aproximada de
percipere, já que o texto latim diz: “illa omnia quae clare percipio”. De onde se vê como
percipere serve, nestes casos, para descrever o próprio ato mental do pensamento.
Heidegger é sensível a este uso peculiar de percipere por Descartes pois a
reconstrução etimológica do termo nos mostra que ele significa: ‘tomar posse de algo,
apoderar-se (bemächtigen) de uma coisa, e aqui no sentido de dispor-para-si (Sich-zustellen) [lembremos que Sicherstellen é confiscar] na maneira de um dispor-diante-de-si
(Vor-sich-stellen), de um re-presentar (Vor-stellen)”33. Desta forma, a compreensão de
cogitare por Vor-stellen (re-presentar/por diante de si) estaria mais próxima do
verdadeiro sentido deste fundamento que Descarte traz como terra firma da filosofia
moderna.
Tais aproximações permitem a Heidegger interpretar o cogitare cartesiano como
uma representação que compreende o ente como aquilo que é essencialmente
representável, como aquilo que pode ser essencialmente disposto no espaço da
representação. É assim que devemos compreender a frase-chave: “O cogitare é um
dispor-para-si do representável”34. Assim, cogitare não seria apenas um processo geral
de representação, mas seria um ato de determinação da essência do todo ente como
aquilo que acede a representação. Isto indicaria como todo ato de pensar é um ato de
dominar através da submissão da coisa à representação. O diagnóstico de Heidegger
seria claro: “algo só é para o homem na medida em que é estabelecido e assegurado
como aquilo que ele pode por si mesmo, na ambiência (Umkreis) de seu dispor, a todo
instante e sem equívoco ou dúvida, reinar como mestre”35. Pois a compreensão do
pensamento como capacidade de articular representações, como competência
representacional impõe um modo específico de manifestação dos entes ao pensamento.
O ente será, a partir de agora, aquilo que aparece, para um sujeito cognoscente, como
objeto adequado de uma representação categorizada em coordenadas espaço-temporais
extremamente precisas. Neste sentido: “o homem se coloca si mesmo como a cena
(Szene) sobre a qual o ente deve a partir de agora se apresentar (vor-stellen,
präsetieren)”36. Daí porque Heidegger pode afirmar que o cogito traz uma nova maneira
da essência da verdade.
Nada disto é estranho a Hegel quando este insistir que a reflexão, enquanto
disposição posicional dos entes diante de um sujeito, não pode deixar de operar
30
DESCARTES, Meditações, p. 108
Conforme o texto em latin: “Quoties vero ad ipsas res, que valde clare percipere arbitror ...”
32
ibidem, p. 116
33
HEIDEGGER, Nietzsche II
34
idem
35
idem
36
HEIDEGGER, Holzwege, p. 119
31
dicotomias e divisões no interior do que se oferece como objeto da experiência entre
aquilo que é para-mim e aquilo que seria em-si, entre o que se dá através da
receptividade da intuição e aquilo que é ordenado pela espontaneidade do entendimento
com suas estruturas reflexivas de representação, entre o que é da ordem do espírito e o
que é da ordem da natureza, entre o que é acessível à reflexão e o que é Absoluto.
No entanto, Heidegger acredita que Hegel não é capaz de dar uma resposta
adequada que possa superar tais divisões. Antes, ele seria apenas a culminação de um
longo projeto de determinação pela representação e de afirmação da destinação técnica
das coisas impulsionado pelo sujeito cartesiano. No interior deste modo de
determinação, a verdade seria sempre definida como adequatio intellectus rei, ou seja,
como adequação entre representações mentais e estados de coisa dotados de
acessibilidade epistêmica e autonomia metafísica. O sujeito seria, assim, o fundamento
de um modo de determinação por representação, modo no interior do qual “objeto” seria
apenas aquilo que ocorre às coisas quando elas se deixam representar pelo sujeito.
Dentro desta imagem do pensamento, o que não se deixa representar não pode ser
pensado. Preso no interior da representação, o sujeito só pode relacionar-se à
exterioridade do campo do representável através da “negatividade”. A negatividade
seria assim a última astúcia de um pensamento incapaz de escapar da representação
como único modo de determinação. Hegel admite aquilo que Heidegger chama de
“diferença ontológica” entre ser e ente, mas apenas para reduzir o ser à imediaticidade
indeterminada do nada.
Tudo se passa assim como se houvesse uma antropologia insidiosa a se
confundir com a modernidade, limitando as possibilidades do que há a ser
experimentado devido ao horizonte estabelecido por nossos processos de racionalização.
A possibilidade da filosofia abandonar uma época histórica marcada pela metafísica e
suas estruturas reificadoras (época que seria fundamentalmente “metafísica do sujeito”)
estaria vinculada à sua capacidade de acordar deste sono antropológico, abandonando
um projeto que culmina com o império da filosofia da consciência. A reificação
produzida pelas categorias metafísicas de nosso pensamento exigiria uma crítica radical
das estruturas que constituíram o que entendemos pura e simplesmente por “pensamento
racional”, isto para que um sentido originário do logos possa ser recuperado. O que
explica proposições como: “Se o homem quiser voltar a se encontrar novamente nas
cercanias do ser, então ele precisa antes aprender a existir no sem-nome (...) Antes de
falar, o homem precisa novamente deixar-se interpelar, correndo o risco de que, sob
esse apelo, ele pouco ou raramente tenha algo a dizer”37. Só assim, ele poderia: “libertar
o ser no sentido grego, o ει ναι, da referência ao sujeito, para, então, entregá-lo à
liberdade de sua própria essência”38.
Assim, contra uma concepção correspondencialista de verdade como adequação
(ou contra seu complemento hegeliano através da ontologização da inadequação),
Heidegger se propõe a recuperar o conceito grego de aletheia (verdade como
desvelamento, a-lethe: não-esquecimento). Uma verdade que apenas eclode lá onde a
atividade subjetiva de determinação não é mais sentida. Nestas condições: “a liberdade
revela-se como o deixar-ser (Gelassenheit) do ente”39. Daí uma afirmação como:
“Deixar-ser o ente – a saber, como o ente que ele é – significa entregar-se ao aberto e à
sua abertura, na qual todo ente entra e permanece, e que cada ente traz, por assim dizer,
consigo. Esse aberto foi concebido pelo pensamento ocidental, desde o seu início, como
37
Idem, Marcas do caminho, p. 332
Idem, p. 449
39
Idem, p. 200
38
τα αληϑεα, o desvelado”40. Uma abertura que é deixar ser o que aparece à racionalidade
instrumental como acontecimento: “imprevisível e inconcebível”41 ou, como dirá
Heidegger, como Ereignis (acontecimento, evento, ocorrência).
A primeira questão que podemos colocar diz respeito à correção deste modo de
leitura que assimila a subjetividade hegeliana ao sujeito cartesiano. Pois, contrariamente
a Descartes, para Hegel, pensar não é representar nem a verdade é uma questão de
adequação. O conceito não é uma representação previamente definida em sua clareza e
distinção, como o que se dispõe como o que há a ver, como imagem de uma coisa na
presença, mas um processo de reconstrução normativa a partir do desdobramento da
experiência, mesmo que Heidegger desqualifique o conceito hegeliano de experiência
como a confirmação da “etantidade do ente” que se desdobra no campo da
representação a si da consciência42. Como veremos daqui a duas aulas, a dialética
desconhece representações porque, em seu interior, as relações entre conceitos e objetos
não se dão sob a forma de subsunções, por isto não é possível falar em adequação entre
conceito e objeto. As relações são pensadas a partir de negações determinadas. Hegel
chega mesmo a eleger o pensar representativo como objeto maior de combate da
dialética.
A segunda questão diz respeito à estratégia heideggeriana de dissociar ser e
sujeito a fim de abrir espaço à temporalidade fundamental do acontecimento. Heidegger
critica a estratégia hegeliana de compor uma historicidade pensada através do
desdobramento de negações determinadas pois, a seu ver, trata-se de uma confirmação
do que a consciência inicialmente projetara. Ou seja, trata-se de uma historicidade sem
acontecimento. Daí uma afirmação como: “o progresso na marcha histórica da história
da formação da consciência não é empurrado para a frente, em direção ao ainda
indeterminado, pela figura respectiva de cada momento da consciência, mas ele é
impulsionado a partir do objeto já proposto”43. Esta é uma crítica que fará escola e
consiste a dizer que a história em Hegel é a teleologia do Espírito que confirma a si
mesmo no mundo e em uma progressão contínua.
40
Idem, p. 200
Idem, p. 205
42
“A experiência é a apresentação do sujeito absoluto se desdobrando na representação e assim se
apreendendo. A experiência é a subjetividade do sujeito absoluto” (HEIDEGGER, Martin; Holzwege, p.
226)
43
Idem, Holzwege, p. 196
41
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