“CORAÇÃO IRRITÁVEL” (1871)

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Universidade Federal Fluminense
NESH - Núcleo de Estudos em Saúde e História
“CORAÇÃO IRRITÁVEL” (1871) -
DESAFIO À ANATOMOCLÍNICA
Marco A. T. Porto
Marcos F. S. Moreira
Bibiana Mattos Fonseca
“CORAÇÃO IRRITÁVEL” (1871) - DESAFIO À ANATOMOCLÍNICA
I - Introdução
Este trabalho representa o capítulo inicial de
pesquisa realizada no Núcleo de Estudos em Saúde e
História, da Universidade Federal Fluminense, dedicada
ao estudo das transformações conceituais no diagnóstico
da precordialgia sem lesão orgânica comprovada.
“CORAÇÃO IRRITÁVEL” (1871) - DESAFIO À ANATOMOCLÍNICA
II - A precordialgia sem lesão orgânica
na prática médica contemporânea
• Uma parcela significativa de casos de precordialgia não se associa a
qualquer lesão ou disfunção orgânica
Kroenke e Mangelsdorff (1989); Mayou (1991); Rondon (1995).
• Cerca de 10% dos pacientes encaminhados para estudo da árvore
coronariana devido a dor torácica apresentavam artérias coronarianas
normais e nenhuma outra doença cardíaca.
• A 57 pacientes cateterizados foi informado que seus corações eram
normais e suas dores “não cardíacas”. Após acompanhamento médio de
16 meses, 47% deles tinham atividade física limitada por precordialgia;
51% eram incapazes de trabalhar e 44% ainda acreditavam ser
portadores de doença cardíaca.
Ockene e cols. (1980)
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III -Transformações conceituais na medicina do século XIX:
a anatomoclínica
• Para a clínica clássica do século XVIII, a doença era uma combinação
de sintomas. Os médicos deviam aprender a reconhecê-los, isolar
semelhanças e classificá-los.
• A partir da obra de Xavier Bichat (1771-1802), a anatomia patológica
tornou-se o fundamento - enfim objetivo, real e indubitável - para a
descrição das doenças. Bichat parecia ter descoberto, na profundidade
do corpo, a ordem da superfície, isto é, dos sinais e sintomas.
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IV - Jacob Mendez DaCosta (1833 – 1900) e o “Coração Irritável”
Jacob Mendez DaCosta nasceu na ilha St.
Thomas, no Caribe, de uma família de origens
espanhola e portuguesa.
Aos 4 anos de idade, sua família foi viver na
Europa, o que lhe permitiu ser inicialmente
educado na Alemanha (Dresden).
Retornou aos Estados Unidos em 1849,
estudando Medicina no Jefferson Medical
College, na Filadélfia. Após a graduação,
esteve por 18 meses em Paris, como aluno de
Trusseau.
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IV - Jacob Mendez DaCosta (1833 – 1900) e o “Coração Irritável”
O artigo a que se refere este trabalho foi
foi publicado no American Journal of the
Medical Sciences, volume 61, páginas 17 a
52, em 1871.
Nos breves comentários retrospectivos do
segundo parágrafo, DaCosta informa que
casos similares aos seus já teriam sido
observados na Guerra da Criméia mas,
aparentemente, não foram submetidos a
estudo tão detalhado.
O autor foi ajudado pela correta política
do Departamento de Guerra dos E.U.A., que
concentrou os casos de “coração irritável”
no hospital Turner´s Lane, na Filadélfia, sob
seus cuidados.
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IV - Jacob Mendez DaCosta (1833 – 1900) e o “Coração Irritável”
“CORAÇÃO IRRITÁVEL” (1871) - DESAFIO À ANATOMOCLÍNICA
IV - Jacob Mendez DaCosta (1833 – 1900) e o “Coração Irritável”
Em uma comunicação enviada ao Departamento de
Guerra, em dezembro de 1862, DaCosta chamou atenção
para uma forma peculiar de doença cardíaca.
A seguir, por decisão do Departamento, a maioria destes
casos foi enviada a seus cuidados, permitindo o estudo da
afecção em mais de 200 pacientes. Alguns dos aspectos
gerais identificados nesta investigação, foram inicialmente
publicados em abril de 1864, na primeira edição do seu livro
“Medical Diagnosis”.
Eis uma descrição geral:
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III - Jacob Mendez DaCosta (1833 – 1900) e o “Coração Irritável”
História típica:
Homem jovem, há vários meses no serviço militar ativo, com relato
eventual
de
distúrbios
digestivos
sem
severidade,
desenvolvia
incapacidade para os esforços, com falta de ar, tonteira, sudorese,
palpitação e dor no peito de vários tipos, geralmente apical, com
irradiação para a axila esquerda.
Os sintomas tanto regrediam lenta, mas espontaneamente, como
podiam necessitar de medicamentos ou até tornarem-se irreversíveis.
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IV - Jacob Mendez DaCosta (1833 – 1900) e o “Coração Irritável”
Ausculta cardíaca: arritmias variadas e pequenas alterações
(B1 hipofonética, SS em área mitral).
Respiração: curta, com a freqüência aumentada.
Pulso radial: freqüência aumentada, mesmo em repouso.
Diagnóstico de doença cardíaca funcional:
1. A exclusão das cardiopatias então conhecidas: doenças
aneurismática, valvular e pericárdica;
2. O complexo sintomático e a incapacidade para desenvolver tarefas
físicas sob tensão;
3. A pobreza dos achados físicos usualmente associados a doença
orgânica.
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IV - Jacob Mendez DaCosta (1833 – 1900) e o “Coração Irritável”
Entre as possíveis causas da doença, DaCosta incluía as
condições objetivas e subjetivas proporcionadas pelo cenário
da guerra civil: marchas forçadas, alimentação inadequada,
distância do lar, sensação de morte iminente.
Mas, como cada um, ou mesmo, todos esses fatores
poderiam provocar alterações no funcionamento do coração?
Na convicção de ausência inicial de lesão orgânica, DaCosta
admitiu a existência de uma doença cardíaca funcional e, para
explicá-la, recorreu ao conceito de “irritação”.
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V - Breve trajetória do conceito de “irritação”
Francis Glisson (1597 – 1677) - De Ventriculo (1677): sua doutrina da irritabilidade
tecidual expressa a tendência geral do corpo animal a reagir às influências do
ambiente.
Albrecht von Haller (1708 – 1777): irritabilidade é uma característica de certos
órgãos - especialmente dos músculos -, de reagir aos estímulos, isto é, responder
com contração a influências mecânicas, térmicas, químicas e elétricas.
William Cullen (1710 – 1790): doutrina patológica em que era central o papel do
sistema nervoso, cuja energia dominaria todos os órgãos. Quando exagerada, o
tônus por ela produzido se transformaria em espasmo e, quando reduzida, se
manifestaria como atonia.
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V - Breve trajetória do conceito de “irritação”
John Brown (1735 – 1788)
O fator decisivo na geração de doenças não é a intensidade da energia nervosa,
mas o estímulo, o fator excitante capaz de movimentar esta energia.
As respostas do organismo são conseqüência dos estímulos provenientes do
ambiente - entre os quais, as emoções -, de forma que toda a vida é uma condição
determinada e mantida pelos estímulos.
Se os estímulos atuarem dentro de um nível normal, a reação do organismo também
o será. Alguns estímulos, como venenos, substâncias infecciosas, emoções violentas
etc., têm a capacidade de produzir doenças.
“É certo que a vida é um estado forçado; que os seres vivos tendem, a cada instante,
para a destruição; que estes seres, só a custo, se mantêm durante um tempo
reduzido e com o auxílio de potências exteriores, e que acabam por morrer,
sucumbindo a uma necessidade fatal.”
Elementa Medicinae, parágrafo 72, 1780.
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V - Breve trajetória do conceito de “irritação”
François Broussais (1772 – 1838): a excitação é o fato vital primordial
O homem só existe pela excitação exercida sobre seus órgãos pelos meios nos
quais é obrigado a viver. As superfícies de relação, tanto internas quanto externas,
transmitem, por sua enervação, essa excitação ao cérebro, que a reflete em todos os
tecidos.
A excitação pode se desviar do estado normal e constituir um estado doentio. Os
desvios podem ser de duas naturezas: por falta ou por excesso.
“Essa segunda fonte de doenças, o excesso de excitação convertido em irritação é,
portanto, muito mais fecunda que a primeira, ou a falta de excitação, e pode-se
afirmar que é dela que decorre a maior parte de nossos males”.
De l’irritation et de la folie, 1828.
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VI - Qual o futuro da Síndrome de DaCosta?
Para cruzar a fronteira do obscuro domínio da doença cardíaca
funcional, DaCosta valeu-se do conceito de “irritação”, que lhe
permitia correlacionar a dor precordial não a lesões orgânicas, mas a
estímulos externos.
Pode-se supor que alguns de seus pacientes apresentassem
febre reumática, hipertireoidismo, tuberculose, malária ou, até
mesmo, escorbuto, que também pode exercer influência sobre o
sistema cardiovascular.
Tudo isso subtraído, ainda permanece um grupo heterogêneo,
vagamente designado como “funcional”, para o qual a sofisticada
medicina de nosso tempo tampouco oferece explicação satisfatória.
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VI - Qual o futuro da Síndrome de DaCosta?
Na condução desta pesquisa utilizamos o referencial teórico
da epistemologia do médico Ludwig Fleck como fonte de
categorias de análise.
Para compreender o saber médico, Fleck propôs dois
instrumentos importantes: o ‘coletivo de pensamento’ (a
comunidade de cientistas de um determinado campo) e o ‘estilo
de pensamento’ (as pressuposições a partir das quais cada
coletivo constrói seu arcabouço teórico).
Em sua concepção, o tipo de saber se modifica segundo o
estilo de pensamento.
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VI - Qual o futuro da Síndrome de DaCosta?
Ludwig Fleck (1896 – 1961) e as transformações no pensamento médico
“Sobre algumas características especiais do pensamento” (1927)
As ‘doenças’ constituem construções dos médicos, são acontecimentos de
extrema complexidade, o que torna impossível um ponto de vista ‘global’;
“Sobre a crise da verdade científica” (1929)
Os agentes “causais” das doenças também são construídos. Os critérios de
classificação podem variar segundo o objetivo da investigação, podendo ser mais
restritiva (para excluir casos duvidosos) ou inclusiva (para evitar subavaliação).
“Coletivo de pensamento”: unidade social da comunidade de cientistas de um
determinado campo;
“Estilo de pensamento”: pressuposições a partir das quais o coletivo constrói
seu arcabouço teórico. Quando há mudança no estilo de pensamento, surge um
novo saber, incomparável ao anterior.
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VI - Qual o futuro da Síndrome de DaCosta?
A história do pensamento médico sobre distúrbios “funcionais” do
coração parece iniciar-se com Jacob Mendez DaCosta.
Logo a seguir, este quadro tomará outras designações que não
postulam um mecanismo causal, como “coração dos soldados” e
“síndrome de DaCosta”, ou procuram limitá-lo a uma hipótese particular,
a “síndrome de esforço”.
• DaCosta, 1871: Coração irritável
Síndrome de DaCosta
Coração dos Soldados
• Lewis, 1917: Síndrome de Esforço
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VI - Qual o futuro da Síndrome de DaCosta?
• Oppenheimer, 1918: Neurastenia, Astenia Neurocirculatória
Durante a I Guerra Mundial, a utilização da melhor tecnologia
disponível
(raios-X,
eletrocardiograma
etc.)
produziu
a
“astenia
neurocirculatória”, atribuída a um desequilíbrio ou disfunção do sistema
nervoso autônomo.
Este termo já fora utilizado em artigos científicos desde, pelo menos,
1869. Talvez, surja agora como tradução da supremacia de um novo
“coletivo”, que passa a impor seu “estilo de pensamento”.
A
seguir,
também
foi
proposta
a
autonômico”, referindo-se à mesma concepção.
expressão
“desequilíbrio
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VI - Qual o futuro da Síndrome de DaCosta?
• Astenia Neurocirculatória
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VI - Qual o futuro da Síndrome de DaCosta?
• Kessel e Hyman, 1926: Desequilíbrio autonômico
• Wood, 1941: Neurose Cardíaca
Durante a II Guerra Mundial, os cardiologistas britânicos associaram-se
a um “coletivo de pensamento”, até então, pouco presente no debate –
os psiquiatras -, e passaram a dar ênfase a uma explicação psicológica
para estes pacientes, introduzindo expressões como “neurose cardíaca”
e “neurose de guerra”.
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VI - Qual o futuro da Síndrome de DaCosta?
• Últimas décadas do século XX
Vertiginosa incorporação de tecnologias de imagem à prática médica.
Assim, com base em achados de cineangio e fonocardiografia, foi
demonstrada a associação entre sintomas muito similares aos atribuídos à
síndrome de DaCosta e alterações da ausculta cardíaca. Daí, surgiu uma
nova entidade clínica.
Barlow, 1963: Síndrome da Cúspide Redundante
Síndrome do Clic Mesossistólico
Síndrome de Barlow
Prolapso de Válvula Mitral
Finalmente, pareceu aplacar-se a obstinação de um sintoma à procura de
sua alteração orgânica. Mas, até quando?
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