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FACULDADE DE SÃO BENTO
Sebastião Cippiciani
ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE DA TEORIA DO DISCURSO
DE HABERMAS NO QUE CONCERNE À ÉTICA E AO DIREITO
MESTRADO EM FILOSOFIA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ÉTICA E POLÍTICA
São Paulo
2011
FACULDADE DE SÃO BENTO
Sebastião Cippiciani
ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE DA TEORIA DO DISCURSO
DE HABERMAS NO QUE CONCERNE À ÉTICA E AO DIREITO
MESTRADO EM FILOSOFIA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ÉTICA E POLÍTICA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Faculdade de São Bento, do Programa de Estudos de
Pós Graduação, como exigência parcial para
obtenção do título de MESTRE em Filosofia, área de
concentração Ética e Política, sob a orientação do
Professor Doutor Franklin Leopoldo e Silva.
São Paulo
2011
2
FACULDADE DE SÃO BENTO
BANCA EXAMINADORA:
Professor Doutor Franklin Leopoldo e Silva
Professsor Doutor José Carlos Bruni
Professor Doutor Sílvio Luís Ferreira da Rocha
São Paulo
2011
3
FACULDADE DE SÃO BENTO
Sebastião Cippiciani
ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE DA TEORIA DO DISCURSO
DE HABERMAS NO QUE CONCERNE À ÉTICA E AO DIREITO
AGRADECIMENTOS
Neste raro momento, agradeço a todos aqueles que direta ou
indiretamente contribuiram para a realização dessa etapa
acadêmica. Um agradecimento especial ao Professor Doutor
Franklin Leopoldo e Silva, pela humildade, paciência e
sabedoria com que se desincumbiu do penoso encargo de
orientador; ao Professor Doutor José Carlos Bruni que, desde a
graduação, nos agraciou com seus profundos conhecimentos
filosóficos; aos Professores Doutores Franklin Leopoldo e Silva
e Djalma Medeiros, coordenador e vice-coordenador da PósGraduação, pelos eficiente e eficaz desempenho dessa difícil
tarefa; ao Professor Doutor Carlos Eduardo Uchôa Fagundes
Junior - OSB, magnífico Reitor dessa conceituada e pioneira
Faculdade de Filosofia de São Bento.
Meus sinceros
agradecimentos ao corpo docente, à equipe da Secretaria da
Faculdade, especialmente à Nancy Oliveira e Aparecida
Bocuzzi, bem como aos colegas, pelo convívio profícuo e
salutar que tivemos durante a graduação e o mestrado.
4
FACULDADE DE SÃO BENTO
Sebastião Cippiciani
ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE DA TEORIA DO DISCURSO
DE HABERMAS NO QUE CONCERNE À ÉTICA E AO DIREITO
“É por isso que o conceito do direito moderno
— que intensifica e, ao mesmo tempo,
operacionaliza a tensão entre facticidade e
validade na área do comportamento —
absorve
o
pensamento
democrático,
desenvolvido por Kant e Rousseau, segundo o
qual a pretensão de legitimidade de uma
ordem
jurídica
construída
com
direitos
subjetivos só pode ser resgatada através da
força socialmente integradora da ‘vontade
unida e coincidente de todos’ os cidadãos livres
e
iguais”.
Jürgen
Habermas.
Direito
e
Democracia – entre facticidade e validade, v. I.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 53.
São Paulo
2011
5
CIPPICIANI, Sebastião. ENTRE FATIBILIDADE E VALIDADE DA
TEORIA DO DISCURSO DE HABERMAS NO QUE CONCERNE À ÉTICA E
AO DIREITO.
São Paulo. Junho de 2011. Dissertação apresentada para o
Programa de Estudos de Pós-Graduação em Filosofia, da Faculdade de São Bento,
como exigência para obtenção do título de Mestre em Ética e Filosofia Política, sob
orientação do Professor Doutor Franklin Leopoldo e Silva.
RESUMO
A condição da possibilidade da “ética discursiva” é a intersubjetividade – a
interação mediatizada pela linguagem. A moralidade habermasiana é dialógica em
contraste com a de Kant, monológica e é negociada no contexto do mundo vivido e
fruto de uma interação comunicativa que visa à autonomia da espécie.
Jürgen Habermas partilha com Karl-Otto Apel da tentativa de fundamentar
a ética em termos de filosofia da linguagem, à qual denominam de ético do discurso.
Tal proposta pretende enfrentar a situação paradoxal de nossa época: por um lado, a
carência de uma ética universal, isto é, vinculadora a toda humanidade, mas, por outro
lado, a fundamentação de uma ética universal jamais parece ter sido tão complexa, e
mesmo sem perspectiva. O ponto de partida para enfrentar esse paradoxo é a retomada
da questão kantiana sobre as condições transcendentais de possibilidade e validade de
fundamentação do conhecimento através do discernimento quanto ao status
transcendental da linguagem e da comunidade linguística.
Em nossas práticas
argumentativas cotidianas está sempre já pressuposta uma comunidade ideal de
comunicação como princípio regulativo que orienta as práticas argumentativas da
6
comunidade real.
Aquela serve também como parâmetro para o progresso da
comunidade real em sua aproximação cada vez maior da comunidade ideal de
comunicação. Tal aproximação visa buscar mediações históricas de superação dos
obstáculos à realização de uma ética universal. Essa mediação histórica envolve a
difícil relação dialética entre utopia e factibilidade, ou seja, se uma mediação histórica
entre ambas é realmente possível ou se seria apenas uma “ilusão transcendental” da
razão utópica. A análise da fundamentação da ética do discurso e o problema de sua
mediação são temas do presente trabalho.
Palavras-chave:
linguagem,
atos
de
fala,
discurso,
subjetividade,
intersubjetividade, reflexividade, consenso, entendimento, universalidade, ética, direito,
facticidade, validade.
7
CIPPICIANI, Sebastião. ENTRE FATIBILIDADE E VALIDADE DA
TEORIA DO DISCURSO DE HABERMAS NO QUE CONCERNE À ÉTICA E
AO DIREITO.
São Paulo. Junho de 2011. Dissertação apresentada para o
Programa de Estudos de Pós-Graduação em Filosofia, da Faculdade de São Bento,
como exigência para obtenção do título de Mestre em Ética e Filosofia Política, sob
orientação do Professor Doutor Franklin Leopoldo e Silva.
ABSTRACT
The possible condition of “discursive ethic” it is the intersubjectivity –
interaction mediated by language. The habermasian moral is dialogical in comparison
with the Kant’s one, monological and negotiated in the living world, a product of the
communicative interaction that seeks the species autonomy.
Jürgen Habermas shares with Karl-Otto Apel the idea that tries to
consubstantiate ethic in terms of the language’s philosophy which is the ethic of speech.
The proposal will have to face the paradoxal situation of our age. On one hand, the
absence of a universal ethic and on the other, the basis of the universal ethic that had
never seemed to be so complex even without perspective. The first way to deal with
this paradox is to reflect the kantian question about transcendental condition of
possibility and the veracity of basic knowledge relative to the transcendental language
status. In our everyday practice of argumentation there is always presupposed ideal
community of communication as a regulative principle which guides the argumentative
practices of real community. That also serves as a parameter for the progress of real
community in its ever-closer relationship of the ideal communication. This approach
8
aims to seek a universal ethic. This mediation involves the difficult historical dialectic
relationship between utopia and feasibility, whether a historical mediation between the
two is really possible or it was just an illusion of the possible condition of “discursive
ethic” it is the intersubjectivity – interaction mediated by language.
Whether a
historical mediation between the two is really possible or if it was just an illusion of
transcendental utopian reasoning. Analysis of the grounds of discourse ethics and the
problem of mediation are the themes of this work.
Key words: language, speech acts, discourse, subjectivity, intersubjectivity,
reflexivity, agreement, understanding, universality, ethics, law, facts and norms.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................
PARTE
13
I – GÊNESE DA ÉTICA DISCURSIVA
CAPÍTULO I – As mudanças de paradigmas até se chegar à ética
discursiva
1.1 – A predominância do “interesse” na modernidade ........................... 19
1.2 – Premissas para a fundamentação de uma ética universal ............... 25
1.3 - A fundamentação filosófica da questão da moralidade .................. 28
1.4 – A questão da moral em Kant .........................................................
29
CAPÍTULO II – A ética discursiva no contexto da modernidade
2.1 – Teoria da ação comunicativa como uma teoria da modernidade .. 34
2.2 - Da ação teleológica para a ação comunitária ...............................
35
2.3 - A superação da filosofia da consciência ......................................
38
CAPÍTULO III – A reconstrução de uma razão moral
3.1 - Razão comunicativa e responsabilidade solidária ......................... 41
3.2 - As determinantes da pragmática transcendental ............................ 45
3.3 - Caracterização da ética discursiva ................................................. 50
CAPÍTULO IV – Estrutura e desenvolvimento da ética discursiva
4.1 - A fundamentação da ética discursiva de Habermas ....................... 52
4.2 - Ética discursiva: mediadora entre transcendentalidade e história ... 64
4.3 - O caráter reflexivo da ética do discurso ..................................... ... 66
10
4.4 - Atos de linguagem orientados para o entendimento ....................... 67
4.5 - A linguagem como processo de comunicação intersubjetiva ......... 69
4.6 - As pretensões de validade referentes a algo do mundo objetivo,
social e subjetivo ...................................................................................................... 70
4.7 - Os atos de fala e sua capacidade de produzir consenso ................. 73
4.8 - O consenso como via de transição para a ação essencialmente ética 75
4.9 – Premissas do termo “mundo da vida” adotado por Habermas ...... 79
4.10 - A desidealização do mundo vivido ............................................. .. 81
4.11 - Campo de articulação do mundo vivido ...................................... 83
4.12 - Colonização do mundo vivido ..................................................... 85
4.13 - O processo de racionalização como substrato da linguagem ........ 87
4.14 - Patologias da sociedade contemporânea ...................................... 89
4.15 - Contradição entre a ação estratégica e a ação comunicativa ........ 90
PARTE
II – O DIREITO COMO UM MEIO PARA A VALIDAÇÃO
DA ÉTICA DO DISCURSO E A VERIFICAÇÃO DA SUA FACTICIDADE
CAPÍTULO V – O Direito e a ética discursiva
5.1 - A ética discursiva e sua relação com outros saberes práticos ........ 92
5.2 - A concepção discursiva do Direito ................................................ 94
5.3 - O raciocínio prático e o Direito ..................................................... 98
5.4 - Distinção entre moral e Direito ........................................................ 99
5.5 - O surgimento da ideia de lei ......................................................... 102
5.6 - O evolver do direito ...................................................................... 103
11
5.7 – Do positivismo jurídico ao pós-positivismo habermasiano ......... 104
5.8 - Intersecção entre Direito e moral ................................................ 109
5.9 – A posição habermasiana perante as correntes liberais e
comunitaristas no que tange ao direito e à justiça social ........................................ 112
5.10 - Complementariedade entre Direito, moral e política .................. 119
5.11 - Os fundamentos do Estado democrático de direito e a relação
com a ética, a política e a soberania popular .......................................................... 124
PARTE III – SÍNTESE ACERCA DA VALIDADE, FACTICIDADE E
CRÍTICAS QUE SE FAZEM À ÉTICA DISCURSIVA
CAPÍTULO VI – Validade e facticidade da ética do discurso
6.1 – Pretensões de validade ............................................................ ... 137
6.2 – Retitude ou correção (Richtigkeit) .............................................. 140
6.2.1 – Pretensões de correção ......................................................... 145
6.3 - Facticidade e validade ................................................................ 152
CAPÍTULO VII – Críticas que se fazem à ética discursiva
7.1 - Críticas á ética do discurso de Habermas .................................... 158
7.2 - Considerações de Habermas em relação às objeções feitas
à etica do discurso .................................................................................................. 163
CONCLUSÃO ............................................................................. ...... 166
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................ 171
ÍNDICE DE AUTORES ............................................................. ...... 175
12
INTRODUÇÃO
Primeiramente, peço escusas antecipadas a quem compulsar este trabalho,
por não apresentar a teoria habermasiana em toda a sua profundidade, pois, pela sua
abrangência, é impossível de ser tratada no espaço de uma dissertação de mestrado.
Tem-se, portanto, nesta peça acadêmica, apenas um percurso do caminho feito por
Habermas na construção de sua teoria da ética discursiva, as assimilações buscadas em
outros estudiosos do assunto e as correções de rumo feitas ao longo do tempo. O
aprofundamento fica postergado para uma futura ocasião.
Particularmente importante na obra de Habermas é a introdução de um
conceito que tomará uma posição fundamental no seu pensamento: o conceito de
discurso que representa a renúncia a qualquer perspectiva tecnocrática, e que será a
tônica deste trabalho.
Em sua obra “Teoria da ação comunicativa” (1981) Jürgen Habermas
pensa em uma nova totalidade, os três mundos (dos objetos, das normas e das vivências
subjetivas), desmembrados pelas críticas da razão pura de Kant. Concluiu que somente
a ação comunicativa é capaz de abarcar os três mundos, anteriormente isolados em
esferas de ações estanques (instrumental, normativa, reflexiva), em uma nova visão
teórica que os integrassem numa totalidade e que não apresentasse as limitações de
nenhum deles. Para pensar essa nova totalidade, Habermas propõe uma mudança de
paradigma: da filosofia da consciência para a teoria da interação, da razão reflexiva
para a razão comunicativa.
Com essa nova “revolução copernicana”, Habermas
procura resgatar a validade da teoria cognitiva da razão sem incorrer nas limitações
impostas por Kant, ou seja, a validade é pensada monologicamente — uma reflexão
subjetiva, de caráter transcendental, decide a priori se a norma é legítima ou não.
A razão comunicativa proposta por Habermas é essencialmente dialógica,
substituindo o conceito monológico da razão pura de Kant. Ela não mais se assenta no
sujeito epistêmico, mas pressupõe o grupo numa situação dialógica ideal. A verdade
13
produzida nesse novo contexto é processual e depende dos membros integrantes do
grupo. Nessa nova concepção da razão comunicativa a linguagem torna-se o elemento
constitutivo.
A perspectiva linguística introduzida na reflexão da teoria da ação
comunicativa parte do dado pragmático da linguagem como base de todo processo
interativo que abrange as práticas comunicativas dos três mundos: dos objetos, das
regras, do sujeito. Na fala quotidiana as práticas comunicativas que permeiam esses
três mundos permanecem inquestionadas.
A mesma linguagem que articula essas
práticas permite, contudo, seu questionamento, suspendendo as aspirações de validade
nelas subentendidas. Torna-se possível, através dessa linguagem, questionar a verdade
dos fatos (do mundo objetivo), a correção ou justeza das normas (do mundo social) e a
veracidade do interlocutor (mundo subjetivo). Habermas chama de “discurso” esse
questionamento das “aspirações de validade” embutidas na comunicação quotidiana. É
um processo argumentativo acompanhado do esforço de restabelecer um uso sui
generis da linguagem, que exige a argumentação e a justificação de cada ato da fala por
parte dos interlocutores participantes da interação.
No discurso teórico são problematizadas e revistas as afirmações feitas
sobre os fatos, é reassegurado verbalmente o nosso saber sobre o mundo dos objetos, é
redefinida a verdade até então vigente e aceita no grupo. No discurso prático são
postas em cheque a validade e a justeza das normas sociais que regulamentam a vida
social. Nesse processo argumentativo, em que cada afirmação precisa ser justificada,
cada julgamento defendido e reafirmada a validade das regras em questão, prevalece
unicamente o critério do melhor argumento, capaz de obter a aprovação dos membros
do grupo. Ambas as formas do discurso pressupõem interlocutores competentes e que
falam a verdade, atuando em situações dialógicas ideais, livres de coação1.
A questão da moralidade em Habermas insere-se, pois, no corpo de sua
teoria da ação comunicativa e é elaborada e repensada no contexto do discurso prático.
Se para Kant o critério último da moralidade se condensava no “imperativo
1
FREITAG, Bárbara. Dialogando com Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005 –
(Biblioteca Colégio do Brasil; 10).
14
categórico”, para Habermas ele se radica no “processo argumentativo”, desencadeado
pelo discurso prático. Essa mudança de foco constitui a essência da “ética discursiva”.
A filosofia, de certa forma, consiste sempre em uma atitude reflexiva a
partir de questões, problemas e do conhecimento científico de seu tempo. Exatamente
por consistir em uma reflexão, a tarefa que se coloca nesse âmbito do saber está muito
mais em levantar questões e problematizá-las do que propriamente oferecer soluções
prontas e acabadas. Nesse sentido, o que caracteriza a filosofia é essa atitude de voltarse para si mesma, de refletir criticamente sobre suas práticas, métodos e problemas. A
filosofia contemporânea, cada vez mais se mostra como uma reflexão do homem sobre
si mesmo e, mais especificamente, como uma reflexão sobre a liberdade.
Desse modo, centrando a investigação filosófica na preocupação com a
liberdade, não é difícil de se defender a necessidade e a relevância de um estudo sobre a
eticidade como reflexão sobre a possibilidade da liberdade no convívio intersubjetivo
dos homens no seio da sociedade. A ética, nesse caso, circunscrita à esfera da filosofia
prática, busca a realização da liberdade, que é uma preocupação comum do homem.
Nesta dissertação não é nossa pretensão dar uma resposta cabal a respeito de
todas as dúvidas e problemas relativos à facticidade e à validade da ética do discurso,
pois fugiria da proposta de um trabalho de mestrado, que se apresenta ainda como um
trabalho de formação.
Contudo, a partir da bibliografia de apoio e de algumas
discussões travadas com e entre os pares de Habermas, procuraremos apresentar um
panorama que reflita o espírito e a intenção, bem como a operacionalidade da ética
discursiva, atentando para a distinção entre facticidade e validade desta teoria.
As dificuldades intrínsecas da obra de Habermas também se demonstram
como um grande obstáculo a ser transposto. Os textos nem sempre nos permitem uma
exata compreensão do alcance que o autor quer dar a cada construção de sua tese, haja
vista a grande discussão que tem ocorrido entre os que analisam sua obra.
A estrutrura desta dissertação subdivide-se em três partes, como segue:
15
Para examinar a facticidade e à validade da ética discursiva, é preciso antes
dizer o que é essa ética discursiva, situá-la em seu contexto histórico e apresentá-la em
suas características intrínsecas e extrínsecas, assim como suas principais relações. Essa
é a razão da Parte I do trabalho.
Configura-se como um trabalho preliminar de
apresentação e desenvolvimento de conceitos que a caracterizam.
Por outro lado, também não se pode concluir sobre factibilidade e validade
sem que se tenha uma concepção sobre o Direito e uma análise sobre suas interrelações
com a ética, a moral, a política, o Estado democrático de direito, e uma noção de
sociedade civil. Esse é o escopo da Parte II.
Nesse
contexto,
parece
possível
formular
algumas
considerações
concernentes à facticidade e a validade da ética do discurso de Habermas e apresentar
uma breve referência a algumas críticas a essa teoria, com considerações de seu
instituidor a respeito de objeções feitas. Esse é, portanto, o objetivo da Parte III.
Por derradeiro, tem-se a conclusão e as referências bibliográficas.
Cada uma dessas três Partes é subdividida em capítulos e estes em subcapítulos, em relação aos quais se procurou estruturá-los de forma que não ficassem
muito extensos, que possibilitassem uma leitura aprazível, menos cansativa.
No primeiro capítulo da Parte I, procurou-se apresentar as premissas para a
fundamentação de uma ética universal, uma fundamentação filosófica da questão da
moralidade, culminando com uma síntese da razão prática de Immanuel Kant, bem
como algumas considerações sobre a filosofia prática em geral, como suporte preliminar
para os capítulos subsequentes.
O objetivo do segundo capítulo é o de apresentar as bases de que se valeu
Habermas para fundamentar e caracterizar sua ética discursiva, passando pela mediação
entre transcendentalidade e história, pelas determinantes da pragmática transcendental,
pelo caráter reflexivo da ética do discurso, e ainda, relacionando-se a razão
comunicativa com uma responsabilidade solidária.
16
No terceiro capítulo dessa primeira parte, completa-se o capítulo anterior
através de um panorama acerca da racionalidade comunicativa e a modernidade, a
passagem da ação teleológica para a ação comunicativa e a conclusão de Habermas
acerca da superação da filosofia da consciência.
O quarto capítulo da primeira parte cuida do núcleo da teoria da ética
discursiva. São objetos de exame: a linguagem orientada para o entendimento e como
processo de comunicação intersubjetiva e, ainda, como processo de racionalização. Os
atos de fala como via de transição para a ação essencialmente ética e sua capacidade de
produzir consenso. A idealização e colonização do mundo da vida e seu campo de
articulação. Esclareça-se, desde logo, que “vida”, para Habermas, não é adotada no
sentido nietzschiano, de esplendor, transbordamento, enunciada como “vontade de
potência”, mas assumida como “realidade”, o “mundo em que vivemos”, ou seja, o
mundo vivido. Assim, com o intuito de evitar confusões de sentidos, o termo alemão
“Lebenswelt”, usado por Habermas, nas transcrições traduziremos por “mundo da vida”
e nas demais situações por “mundo vivido”. Também fazem parte deste capítulo, as
patologias da sociedade contemporânea. A contradição entre a ação estratégica e a ação
comunicativa. E, por fim, as pretensões de validade referentes a algo do mundo
objetivo, social e subjetivo.
No quinto capítulo, que corresponde à Parte II, são discorridos temas
relacionados à ética, ao Direito, à política, à soberania popular, ou seja, a interrelação
entre eles, tais como o positivismo jurídico e o pós-positivismo habermasiano, a ética
discursiva e sua relação com outros saberes práticos, a concepção discursiva do Direito,
o raciocínio prático e o Direito, a distinção entre moral e Direito, o surgimento da ideia
de lei, o evolver do Direito, o projeto comunitarista de Habermas e o Direito,
complementariedade entre Direito, moral e política, os fundamentos do Estado
democrático de direito e a relação com a ética, a política e a soberania popular.
No capítulo seis, referente à Parte III, faz-se um resumo acerca da
facticidade e validade.
São examinadas as pretensões de validade – verdade,
veracidade, inteligibilidade e retitude ou correção. Em virtude das conexões no campo
17
do direito entre Habermas e Robert Alexy, para uma melhor compreensão, essas
pretensões, especialmente a de correção, foram examinadas em maior profundidade.
Indo além quanto à validade, procuramos, ainda, verificar se se, de fato, fundou-se
intersubjetivamente uma ética universal, ou seja, se é válida para toda a humanidade e
se uma ética do discurso apresenta reais possibilidades de oferecer respostas aos
problemas de nossa época. A questão da facticidade implica em examinar as condições
de possibilidade real de efetivação de projetos históricos como limite para realização da
ética do discurso. Há normas que são válidas e factíveis, pois o meio é adequado para
aplicá-las, mas também podemos ter normas que apesar de válidas não são factíveis, o
meio não é adequado.
18
PARTE I – GÊNESE DA ÉTICA DISCURSIVA
CAPÍTULO I – AS MUDANÇAS DE PARADIGMAS ATÉ SE
CHEGAR À ÉTICA DISCURSIVA
1.1 - A PREDOMINÂNCIA DO “INTERESSE” NA MODERNIDADE
No texto que o Professor Doutor Franklin Leopoldo e Silva elaborou para o
ciclo de conferências “O esquecimento da política”2, concebido pelo Centro de Estudos
Artepensamento em 2006, organizado por Adauto Novaes, sob o título “Política como
moralidade: a banalização da ética”, verificamos uma estreita aproximação com o que
vamos tratar neste trabalho, notadamente com relação às condições que levaram a uma
mudança de paradigma, por estar a ética encantoada a procura de novos caminhos.
Dentre aqueles que procuram teorizar uma nova vertente encontra-se Habermas3 com a
teoria do agir comunicativo que desagua na sua ética discursiva.
Assim, com o
objetivo de buscar um liame entre os ensinamentos do Professor Franklin e a teoria da
2
SILVA, Franklin Leopoldo e. Política como moralidade: a banalização da ética. in NOVAES, Adauto
(org.). O esquecimento da política. São Paulo: Agir, 2007, p. 127-137
3
BIOGRAFIA SUCINTA DE JÜRGEN HABERMAS:
Trata-se de um dos mais influentes filósofos vivos, alemão, 1929-, 81 anos, expoente da segunda geração
da Escola de Frankfurt. Nascido em Düsseldorf, colaborou com o Instituto de Pesquisa Social em
Frankfurt, antes de assumir a cátedra de filosofia e sociologia na Universidade de Frankfurt, onde ficou
até 1994. Dentre suas obras, em torno de quarenta, destacam-se a “Teoria da Ação Comunicativa”
(1981), na qual defende o universalismo e a vocação de transparência do discurso para articular consensos
a partir do choque de argumentos e “Direito e Democracia – entre factibilidade e validade” (1992), em
que procura abordar o impasse do Estado diante da globalização. Em sua vasta obra, na mesma linha das
mencionadas acima, busca dar respostas às questões acerca dos desafios, projetos e contradições de nossa
época, percorre o campo da filosofia, da sociologia, das ciências humanas, em particular a psicanálise
freudiana e a teoria piagentina, a política e o direito. Em cada um desses campos, nos quais introduziu
inovações profundas, Habermas defende especificamente a famosa “mudança de paradigma” que situa
sempre como princípio de seus trabalhos. A primeira fase do seu pensamento, influenciada por
Heidegger, é marcada por uma idéia à qual Habermas nunca renunciou e que pode ser chamada de
kantiana: a idéia de uma emancipação dos indivíduos enquanto seres autônomos. Em seus primeiros
trabalhos sobre temas ligados à atualidade, por um lado, ele toma uma atitude de crítica à tecnologia que
ecoa posições heideggerianas e, por outro lado, serve-se de conceitos como o lukacsiano de “reificação”,
o weberiano de “racionalização” e o marxiano de “alienação”.
19
ética do discurso de Habermas, o que facilita sobremaneira o entendimento dessa ainda
nascente teoria, tomamos a liberdade de extrair excertos de seu trabalho no sentido de
mostrar, como nos informa o Prof. Franklin, essa marca Ocidental consistente na
renúncia à dimensão pública do sujeito moral, do pensar comunitário, diferentemente
do modelo grego de democracia, não obstante suas características que nos parecem
restritivas, mas que é visto por Hannah Arendt como a vida política na sua maior
autenticidade, e que somente teria retornado à cena histórica por curtos períodos, o
qual, agora, Habermas, com as necessárias adequações e acrescido de novas ideias,
procura resgatar com a sua proposta de ética discursiva.
Os trechos deste capítulo foram extraídos do mencionado trabalho com o
único propósito de mostrar um panorama justificador da pretensão de Habermas em
fundar uma ética discursiva que, com as devidas cautelas, teria a aparência de uma
nova Ágora:
“O modelo grego de democracia” em que os juízos
ocorrem coletivamente, dialogicamente, acerca do
melhor para si mesmos, quando os homens se reúnem
na ágora para tratar de seu próprio destino, os
quais não detém qualquer saber específico acerca
daquilo que irão desempenhar.
“A política não
necessita, para o grego da polis, de qualquer
episteme ou techné, ou seja, nada do que ele
precisasse aprender e vir a saber.
O único
requísito é a disposição para o confronto das
opiniões subjetivas, num procedimento que visa ao
interesse da cidade.
Isso significa que o
sujeito político é aquele cuja opinião subjetiva
não
está
vinculada
à
defesa
do
interesse
particular: é esse despojamento que permite que a
discussão das opiniões singulares se encaminhe
para o estabelecimento de um resultado público
desse
confronto.
A
dimensão
pública,
verdadeiramente política, já é, desde o início do
processo, o critério orientador.
Por isso, o
20
cidadão ateniense não pode estar sujeito aos
interesses particulares (...) quando vai discutir
o destino da cidade em regime público e em
condições de total isonomia”.4
Nessas circunstâncias, afirma o Professor Franklin, cada um pode realizar o
que Hannah Arendt denomina deslocamento: a consideração da opinião do outro em
igualdade de condições com a sua própria opinião, sem que isso signifique adotar o
ponto de vista do outro, mas simplesmente compreendê-lo a partir de sua própria
autonomia deliberativa. Essa é a condição da experiência política da relação entre
subjetividade e alteridade. E, como todas as opiniões são consideradas dessa mesma
maneira, o que resulta do processo é uma generalização que não se fundamenta em
princípio lógico, mas no procedimento concreto da intersubjetividade.
Nessas
condições, cada um pode reconhecer-se no geral a partir de sua singularidade.
A individualidade se define pelo seu lastro comunitário e pela isonomia da
palavra compartilhada, que afasta a possibilidade da violência como componente do
espaço público. Isso significa que a universalidade do juízo político ocorre a partir da
relação dialógica entre os juízos singulares e a vida política fica assim dotada de uma
generalidade construída pela reunião de homens livres. Trata-se de uma universalidade
de consenso, especificamente política, que só pode ocorrer devido aos laços intrínsecos
que vinculam indivíduos em comunidade no espaço público. Para Hannah Arendt, a
política não é uma qualidade dos indivíduos, essencial ou acidental, mas algo que
ocorre entre os indivíduos, no espaço comum da vida pública. “Entre” subentende-se
pela possibilidade de o indivíduo projetar-se na direção dos outros sem abandonar a si
mesmo, o que quer dizer que a isonomia e a autonomia estão reciprocamente
implicadas.
Habermas não destoa desse posicionamento.
4
SILVA, Franklin Leopoldo e. Política como moralidade: a banalização da ética. in NOVAES, Adauto
(org.). O esquecimento da política. São Paulo: Agir, 2007, p. 129-130.
21
“Apenas a descrição dessa vida política [de
Atenas]
já
indica
suficientemente
a
sua
impossibilidade no contexto do individualismo
moderno
e
da
hegemonia
do
Estado
como
configuração do poder.
Marx já observava que o
indivíduo sob o Estado burguês é um ente
abstrato, exatamente por não estar enraizado numa
vida comunitária autêntica. A opção moderna pelo
indivíduo faz da comunidade um agregado de
elementos extrinsecamente relacionados por uma
instância a quem o poder foi delegado ou
transferido”.5 (sublinhei)
Uma das grandes preocupações de Habermas é justamente essa delegação
ou transferência de poder que deixa o homem sem referencial para com a vida pública.
No que segue, o Prof. Franklin observa o momento em que, do ponto de
vista ético, na modernidade, passa a predominar o “interesse” sobre as paixões, ou seja,
o momento em que se passa da subjetividade heróica à individualidade empreendedora.
“Não se pode negar, entretanto, que a política e
a ética permanecem como preocupações relevantes
no mundo moderno e na nossa contemporaneidade.
Devemos, porém, observar as diferenças na nova
configuração dessas preocupações.
Do ponto de
vista ético podemos dizer, de modo simples e
resumido, que a passagem à modernidade traz
entre
outras
características
morais,
a
predominância dos interesses sobre as paixões.
O herói homérico, o conquistador romano, o
cavaleiro medieval têm como marca característica
viver as paixões, tanto quando se submetem a
5
ibidem, p. 130-131.
22
elas como quando as dominam.
O homem moderno
tem seu centro de gravidade moral no interesse,
seja ele exacerbado ou regulado pela razão.
O
advento do capitalismo como modo de vida, no
sentido weberiano, explica a mudança, ou essa
passagem
da
subjetividade
heróica
à
individualidade empreendedora.
Por interesse
não se entende mais, na modernidade, a simples
satisfação de necessidades, mas o cultivo de
valores, algo que tem a ver com as grandes
transformações econômicas.
Se na antiguidade e
no
período
medieval
a
moralidade
estava
vinculada às paixões, na modernidade ela esta
ligada, sobretudo, aos interesses.
Isso traz,
naturalmente, consequências no que concerne à
questão do significado da ética e do alcance da
regulação
das
condutas
como
expansão
das
6
potencialidades humanas”.
Observe-se que o estatuto moral do interesse passa a defini-lo como valor,
fundamentando assim sua legitimidade moral no plano da vida individual e,
consequentemente, garantindo também a valorização social e política dos
compromissos morais assumidos individualmente.
Conclui o Prof. Franklin que se definimos o indivíduo como social, não em
termos de essência, mas como condição histórica efetiva, então a separação entre ética
e política configura a ruptura entre indivíduo e sociedade, o que no limite significa a
ruptura do indivíduo com ele mesmo. Essa divisão ou fragmentação, como perda da
integridade, pode ser considerada a primeira causa da heteronomia, entendida como
impossibilidade de o indivíduo reconhecer-se na sua identidade social e, assim, poder
atuar como sujeito político. Nessas condições, a ética ganha uma autonomia de caráter
ideológico na medida em que aparece como a ilusão da preservação de uma
subjetividade que já não encontra no plano social as possibilidades de realização, uma
6
ibidem, p. 131.
23
vez que a instância do social, precisamente por ter-se tornado apenas o lugar de
manifestação do interesse privado, mostra-se despida de qualquer caráter políticocomunitário. Acontece que, nas sociedades massificadas, esse reconhecimento de cada
um à sua individualidade restrita, se permite ao indivíduo manter-se alheio à sociedade,
não impede que cada indivíduo permaneça rigidamente submetido a um controle social
exercido pelos múltiplos instrumentos que o poder tem à sua disposição. Por isso não é
surpreendente que o individualismo exacerbado conviva perfeitamente com a
massificação e a uniformização dos comportamentos.
Dessa forma, o cultivo da
individualidade coincide com a alienação — e a liberdade se torna cada vez mais
abstrata. O grande trunfo da democracia formal e a condição de preservação do sistema
consistem exatamente em induzir os indivíduos a praticarem a indiferença política
como realização da liberdade individual. No entanto, o recolhimento do indivíduo à
sua individualidade coincide, no mundo moderno, com a preservação do interesse
privado e a manutenção das suas garantias. É nesse sentido que a moralidade privada
aparece como único critério de julgamento de qualquer conduta, inclusive daquelas
que, em princípio, deveriam ser definidas como públicas. Instala-se então o seguinte
círculo: nas suas ações, os indivíduos não distinguem o interesse privado do interesse
público; no julgamento dessas ações, também não se separa a esfera pública da vida
privada. Como consequência, não se tem propriamente conduta política nem se faz
qualquer juízo político sobre as condutas.
Aqueles que agem e aqueles que
eventualmente julgam essas ações estão igualmente comprometidos como o mesmo
critério, ou com o mesmo “valor”.
É justamente para contrapor a esse alheamento do indivíduo para com a
sociedade, esse cultivo da individualidade, essa alienação do homem que torna a
liberdade cada vez mais abstrata e que o afasta da ética tradicional, que Habermas
porpõe a sua ética discursiva, com o objetivo de recolocar o homem no seio da
sociedade,
que
entende
possível
pela
efetiva
participação
argumentativa
intersubjetivamente entre os concernidos, por meio da linguagem, na busca de um
consenso sobre algo no mundo vivido.
24
1.2 – PREMISSAS PARA A FUNDAMENTAÇÃO DE UMA ÉTICA
UNIVERSAL
Josué Cândido da Silva, em sua tese de doutorado em Filosofia, sob
orientação do Professor Doutor Ivo Assad Ibri, apresentada à Banca examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob o título “A ética do discurso entre a
validade e a factibilidade, em 2007, concluiu que pensar os problemas de nossa época
na perspectiva de responsabilidades individuais é hoje completamente ilusório. Faz
considerações que justificam sua inferência. Para tanto, vale-se do seguinte exemplo:
quando alguém se dirige de carro para o trabalho, contribui, sem dúvida, para o
aquecimento global, ainda que não está, moralmente falando, fazendo nada de errado
(embora assim o seja em termos globais). Esse exemplo apenas ilustra a insuficiência
em termos de uma moral individual, para responder a problemas de ordem global.
Igualmente insuficientes são as éticas que postulam que o comportamento moral é, em
si, algo singular e subjetivo, como no caso da filosofia analítica e do existencialismo.
Embora aparentemente opostas, ambas as correntes filosóficas chegam a conclusões
semelhantes sobre a impossibilidade de uma ética de validade intersubjetiva.
A
coincidência entre as conclusões da filosofia analítica e do existencialismo reflete no
plano ideológico a moderna separação liberal entre a esfera pública e privada, que se
formou com a separação entre Igreja e Estado. “Pois, em nome dessa separação, e isso
quer dizer: com a ajuda de um poder estatal secularizado, mais e mais o liberalismo
ocidental restringiu a obrigatoriedade da fé religiosa, e logo a seguir a das normas
morais, à esfera das decisões particulares de consciência moral”7. Assim, os sujeitos
são responsáveis apenas por suas decisões individuais cabendo aos meios sistêmicos
tomar as decisões na esfera pública. Nesse caso, a quem cabe a responsabilidade sobre
os fins ou pelos resultados das ações sistêmicas? Sequer se discute sobre os fins no
7
APEL, Karl-Otto. O a priori da comunidade de comunicação e os fundamentos da ética: o problema de
uma fundamentação racional na era da ciência. In: _________. Transformação da Filosofia 2: O a priori
da comunidade de comunicação. São Paulo: Loyola, 2000, p. 419.
25
âmbito da ciência objetiva, já que essa se considera isenta de valoração. Uma vez que
os valores são considerados no campo da irracionalidade ou de decisões humanas não
acessíveis à discussão racional, a ciência se isenta de se pronunciar sobre eles tratando
apenas das questões relativas à racionalidade meio-fim que é calculável e previsível.
Com isso, ela corre o risco de reduzir a racionalidade à sua dimensão puramente
instrumental que pode se tornar igualmente irracional quando vista de modo mais
abrangente. Como tentativa de solução para esse problema pode-se pensar na formação
de uma “vontade pública” através de eleições e votações na esfera política, capazes de
produzir normas intersubjetivamente vinculatórias. Essas normas poderiam regular
exteriormente os fins e os efeitos das ações das várias esferas da sociedade.
“Parece ser essa a resposta que se pode derivar
dos pressupostos filosóficos do sistema de
complementariedade ocidental; e tal resposta
parece
tornar
supérfua
à
fundamentação
filosófica de uma ética universalmente válida”8.
O problema de uma solução como essa é que a convenção fundada por
meio de um acordo coletivo, não funda uma ética, pois não garante a vinculação entre
os participantes. Deveras, a convenção não gera em cada indivíduo o dever de, em
todas as questões práticas, ater-se ao espírito do acordo. Sem um princípio ético
intersubjetivo qualquer tentativa de constituir uma normatividade vinculatória não
conseguirá transcender a esfera privada.
É por isso que seria mais apropriado falar em co-responsabilidade para
destacar o esvaziamento da noção de responsabilidade individual. O reconhecimento
da co-responsabilidade de todos os habitantes do planeta pelo destino comum é algo
importante para forjarmos uma nova ética capaz de responder à nossa situação atual,
mas não suficiente. Como já vimos, é preciso fundamentá-la em novas bases que sejam
válidas intersubjetivamente. Do mesmo modo, é preciso pensar as mediações históricas
8
ibidem, p. 423.
26
que tornem a ação apregoada como eticamente factível, ou seja, trata-se de superar a
ética meramente deontológica por uma ética que seja também teleológica e desta para a
ação comunicativa, como preconiza Habermas.
27
1.3 - A FUNDAMENTAÇÃO FILOSÓFICA DA QUESTÃO DA
MORALIDADE
Bárbara Freitag9 informa em sua obra Dialogando com Jürgen Habermas10
que, por volta de 1780, Kant lança a obra Crítica da razão prática, na qual reassenta
em novas bases a questão da moralidade. Reinterpretando a filosofia da ilustração
(Rousseau, Bentham, Kant), a sociologia clássica (Marx, Durkheim, Weber) debateu
essa questão sob o ângulo da normatividade e regularidade do comportamento social,
enquanto a sociologia moderna (Parsons, Luhmann, Habermas) focalizou-a de duas
óticas distintas: a sistêmica e a de mundo vivido. A questão da moralidade encontra,
porém, uma nova expressão na ética discursiva (Apel, Wellmer, Habermas) que
procura, calcada nas pesquisas do estruturalismo genético (Piaget, Kohlberg11), reatar o
elo perdido com a filosofia moral de Kant. Esta dissertação busca, a partir desse
contexto, demonstrar as bases nas quais Habermas estruturou sua teoria do agir
comunicativo que converge para a ética do discurso, para, a final, concluir acerca de
sua factibilidade e validade, não obstante sejam elas destacadas ao longo do texto.
9
FREITAG, Bárbara: Professora titular (aposentada) do Departamento de Sociologia da Universidade de
Brasília (UnB). Coordenou e apresentou trabalhos nos dois números monográficos sobre Jürgen
Habermas: Revista Tempo Brasileiro nºs. 98 e 138, comemorativos dos 60 e 70 anos do autor.
10
FREITAG, Bárbara. Dialogando com Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005. –
(Biblioteca Colégio do Brasil: 10)
11
KOHLBERG, Lawrence (1927-1987): foi professor na Universidade de Chicago, bem como a
Universidade de Havard. Especializou-se na investigação sobre educação e argumentação moral, sendo
mais conhecido pela sua teoria dos níveis de desenvolvimento moral. Muito influenciado pela teoria do
desenvolvimento cognitivo de Jean Piaget. Psicólogo estadunidense, nascido em Bronsville, Nova Iorque.
28
1.4 – A QUESTÃO DA MORAL EM KANT
A questão da moralidade em Kant resume-se, pois, em três postulados:
existe um sujeito moral; dotado de vontade e de razão; e é capaz de legislar para o
mundo dos costumes (sociedade) em defesa da dignidade do homem. Kant forneceu,
assim, todos os conceitos necessários para pensar em termos contemporâneos a questão
da moralidade. Ao distinguir entre razão prática e razão teórica, deixou claro que a
razão prática age no livre mundo do fazer – a sociedade – e que a razão teórica
reconhece um mundo determinado – a natureza. O sujeito epistêmico complementa o
sujeito moral; a ciência é necessária para sobreviver na natureza, a moralidade é
necessária para constituir a sociedade. Cidadão dos dois mundos (o natural e o social),
o homem precisa defender-se no primeiro e afirmar-se no segundo.
Na obra “Metafísica dos costumes” (1797), Kant estabelece uma sensível
distinção no significado das duas espécies de moralidade. O termo moral, para ele,
corresponderá à totalidade da doutrina dos costumes, ao prático em geral, ou seja, a
tudo aquilo que é possível por liberdade, da qual se deduzirão basicamente duas
espécies da moralidade: a) a moralidade como ética (a doutrina da virtude) e b) a
moralidade como direito (a doutrina no direito). Mas a originalidade de sua filosofia
prática consiste em ela se estruturar a partir de uma nova fundamentação da moral. Ao
contrário de outras éticas, que buscavam sua origem na ordem da natureza, ou da
comunidade humana, na aspiração à felicidade (Aristóteles), na vontade de Deus (éticas
cristãs), ou no sentido moral (utilitaristas ingleses), a moral kantiana busca a sua
origem e fundamento no próprio sujeito. Assim, como a ciência da natureza no plano
teórico, a moral no plano prático encontrará sua validade universal e objetiva
unicamente por intermédio do sujeito. Para Kant, a condição da possibilidade da
moralidade é o sujeito. Trata-se de um sujeito livre, disposto a agir segundo certos
princípios (máximas), concretizando fins autodeterminados. Este sujeito é dotado de
vontade e razão. É o sujeito moral do “imperativo categórico”.
29
Contudo, é na obra Crítica da razão prática que Kant reassenta as bases da
questão da moralidade, que, em última instância, resume-se na questão do “imperativo
categórico” que orienta a ação da razão prática e é o complemento necessário da razão
teórica. Enquanto esta permite ao sujeito epistêmico conhecer as leis que regem o
mundo da natureza, a razão prática pura desvenda as leis do mundo social, regido pela
vontade e liberdade dos homens. O mundo da natureza representa para Kant, o reino da
necessidade, contingência, determinação. O mundo social, o reino da liberdade, do
possível, da indeterminação. Cidadão dos dois mundos, o homem tem a faculdade de
conhecer o primeiro (reconstruindo e desvendando as suas leis) e de agir no segundo
(formulando as leis sociais que devem regê-lo). O mundo da natureza escapa à vontade
humana. O mundo social, cuja finalidade é definida pela vontade humana, motivo pelo
qual ele constitui o sistema dos fins.
No primeiro, o ser, valem os julgamentos
científicos; no mundo do dever-ser ou dos fins, valem os julgamentos morais. Por isso,
nesse mundo do dever-ser a ação dos homens pode ser julgada segundo os critérios do
bem e do mal, do certo e do errado, do justo e do injusto. Neste ponto, abro um
parêntese para um melhor aclaramento no que se refere a essas categorias “ser” e
“dever-ser”, tratadas por Kant na Fundamentação da metafísica dos costumes, pela
importância adquirida na filosofia e pela influência na obra de Habermas. Assim, para
Kant, “ser” compreende fatos e relações de causalidade, em forma de juízos de
realidade, isto é, leis físico-sociais e bio-sociológicas, encadeamentos objetivos da
história, relações concretas individuais submetidas a um determinismo inflexível.
Enquanto “dever-ser” compreende regras e imperativos categóricos, normas de conduta
humana, o ideal ético dessa conduta derivado de tipos concretos e vitais da existência
sob a forma de juízos de valores, de proposições jurídicas (na sua dimensão normativa)
e morais. Há a coisa em si e há o mundo dos fenômenos; há uma ordem na natureza,
subordinada à causalidade mecânica, e uma ordem da liberdade das ações humanas
livres. Em Kant “ser” e “dever-ser” se integram numa categoria mais ampla: a da
realidade. Essa posição de Kant colocando o “ser” como inatingível pelo pensamento
humano trouxe influência ao pensamento jurídico, já que aquele permanece prisioneiro
de suas próprias formas subjetivas de pensar, enquanto que o “dever-ser” impõe-se à
30
vontade humana. Influenciado por esse posicionamento, Hans Kelsen, na obra Teoria
pura do direito, reduziu o Direito a um mero “dever-ser”, sem relação com o “ser”,
confira-se no seguinte excerto:
“Do fato de algo ser não pode seguir-se que algo
deve ser, assim como do fato de algo dever ser
não pode seguir que algo é.
O fundamento de
validade de uma norma apenas pode ser a validade
de uma outra norma”12.
Quanto a Habermas, completaremos sua posição no que se refere a esse
dualismo entre “ser” e “dever-ser” no sub-capítulo 5.7. Agora, voltemos, pois, a Kant.
A extensão e a profundidade do “imperativo categórico” sustentam-se nos
conceitos de vontade, liberdade, autonomia, meios e fins, dignidade, universalidade,
dever, máxima, imperativo, entre outros. A “vontade” é pensada por Kant como a
faculdade de autodeterminação das próprias ações, segundo certas leis preconcebidas.
O exercício da vontade pressupõe por sua vez a “liberdade”, ou seja, a existência de um
espaço indeterminado dentro do qual a vontade consegue exprimir-se agindo,
perseguindo fins pré-fixados, com meio livremente selecionados. Para Kant a liberdade
não existe senão sob a forma de uma ideia, produzida pela razão.
Ela não tem
“realidade” fora da razão, mas sem ela não haveria vontade. A razão é “prática” porque
se torna a causa determinante da vontade. Neste sentido a própria moralidade reside no
conceito da liberdade que se expressa na vontade. O conceito de “autonomia” está
inseparavelmente ligado à ideia da liberdade; e nele o princípio geral da ética encontra
sua forma de expressão mais adequada.
A autonomia é definida no contexto da
liberdade e em contraposição à heteronomia.
O mundo social ou dos costumes
representa o espaço indeterminado, a autonomia. A autonomia do sujeito se expressa
na sua capacidade de autodeterminação, na sua vontade legisladora de estabelecer e
concretizar fins no mundo social. Faz parte do imperativo categórico a exigência de
12
KENSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes,
1997, p. 215.
31
que um ser humano jamais deve ser visto e usado como um meio, mas sim,
exclusivamente, como um fim em si. Isso significa que toda a legislação decorrente da
vontade legisladora dos homens precisa ter como finalidade o homem, a espécie
humana enquanto tal. Mais especificamente, a vida e a dignidade do homem. O
imperativo categórico orienta-se, pois, segundo um valor básico, inquestionável e
universal: a dignidade da vida humana. O “dever” é compreendido por Kant como
sendo a necessidade de uma ação por respeito à lei. Seguir uma lei por dever significa
seguir a instrução racional do imperativo categórico, que em outra formulação diz:
“Age segundo a máxima que possa simultaneamente transformar-se na lei geral”.
Os imperativos categóricos têm valor moral, enquanto que os imperativos
hipotéticos, nos quais se formulam as regras de ação para lidar com as coisas
(imperativos técnicos) e com o bem estar (imperativos pragmáticos), encontram-se fora
do âmbito da questão da moralidade.
Em suma, na filosofia kantiana, para agir moralmente devo pautar-me pelo
imperativo categórico e agir por respeito a uma regra que eu queria ver adotada numa
legislação universal. E, quando nos questionamos sobre as características particulares
dessa regra, a resposta será: a máxima universal. Ao aplicar o imperativo categórico de
Kant, cada qual se esforçará, salvo nos casos excepcionais em que semelhante
empreitada se mostra impossível, em propor como regras universalizáveis aquelas que
se respeita em seu próprio meio.
De sorte que o imperativo categórico, e isso é
geralmente admitido, é compatível com variadas regras da moral prática.
Para Karl-Otto Apel, a história da ciência do ético encontra em Kant uma
reviravolta fundamental, posto que, pela primeira vez na história do pensamento
ocidental, se explicitou o princípio pós-convencional de universalização como princípio
que mudou pelas raízes o sentido da ciência do ético: Kant articula filosoficamente o
que caracteriza a fase evolucionária que gerou eticamente a modernidade, ou seja, a
32
passagem de uma “vinculação piedosa” às ordens vitais tradicionais para uma
orientação livre em princípios universais13.
Manfredo A. de Oliveira14, em sua obra “Ética e racionalidade moderna”,
esclarece que, sob muitos aspectos, a ética comunicativa é uma tentativa de
reconstrução da ética kantiana através do espaço aberto pela teoria pragmática da
linguagem. A mudança básica em relação a Kant é a passagem do quadro categorial da
consciência moral solitária para a comunidade discursiva de sujeitos. Com isso, supera
a concepção kantiana da vontade autônoma, que abstrai da relação ética dos sujeitos em
comunicação. Pode-se dizer, a partir daqui, que em Kant as leis morais são universais
abstratamente, pois, se elas valem para mim universalmente, valem para qualquer
sujeito racional. Conclui o comentarista, “Ora, a mudança se revela precisamente no
fato de que não se pode decidir monologicamente sobre a racionalidade e a
universalidade das máximas em ação, mas só através do discurso, em que a única força
deve ser a do argumento. Assim, o modelo do discurso efetua uma ‘reinterpretação
procedurística’ do imperativo categórico: todas as máximas devem ser submetidas à
prova discursiva a respeito de sua pretensão de universalidade.” Na ética comunicativa
de Habermas e Apel, a questão é saber que interesses são universalizáveis, e isso só se
decide pela mediação do processo discursivo.
Habermas vai se valer, sobretudo desse contexto kantiano, na elaboração de
sua ética discursiva, como veremos adiante, contudo, é preciso esclarecer em que
condições se dá essa apropriação. É o que faremos a seguir.
13
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e racionalidade moderna. 3ª edição. São Paulo: Loyola, 2002,
p. 35 - (Coleção Filosofia: 28).
14
ibidem, p. 65-66.
33
CAPÍTULO II – A ÉTICA DISCURSIVA NO CONTEXTO DA
MODERNIDADE
2.1 – TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA COMO UMA TEORIA
DA MODERNIDADE
A sociedade moderna, e agora a chamada pós-modernidade, avança a passos
largos. Desde que a máquina foi introduzida como esfera intermediária entre os homens
e a natureza, a humanidade passou a conhecer não uma, mas sucessivas revoluções
industriais. A produção industrial e a racionalização do trabalho avançam num processo
cada vez maior de abstração que vai desde o trabalho de homens transformados em
objetos técnicos até a possibilidade pós-industrial do sistema tecnológico controlar o
homem. Entramos na era da informática, ou da terceira revolução industrial que estende
a inovação tecnológica aos campos da robótica, telemática, cibernética, ...
É neste contexto que, mais uma vez, se coloca para a filosofia a tarefa de
pensar “o que é?”, não com uma finalidade puramente teórica, mas também como
compreensão das possibilidades que a realidade contém na perspectiva de uma
libertação.
É neste sentido que se situa a grande obra de Habermas “Teoria da ação
comunicativa”, na qual projeta uma teoria da modernidade em grande escala, na forma
de uma teoria da ação comunicativa, ou seja, Habermas empreende uma análise das
estruturas racionais da ação capaz de explicar, ao mesmo tempo, as deformações
patológicas que caracterizam a modernidade. Nesse sentido, apresentaremos a seguir,
como Habermas, a partir da racionalidade comunicativa, oferece um instrumento
conceptual capaz de compreender a sociedade atual, de criticá-la e de abrir novos
caminhos para a sua práxis transformadora.
34
2.2 – DA AÇÃO TELEOLÓGICA PARA A AÇÃO COMUNITÁRIA
Antes de adentrar nesse tema, é importante aclarar, sinteticamente, a ideia
positivista e as posições éticas de Karl Marx e Max Weber, uma vez que são fontes
primordiais para Habermas e Apel na formulação de suas éticas discursivas. Suas teses
são acolhidas em diversas oportunidades, mas, em outras, veementemente refutadas. O
positivismo pensa em um mundo objetivo externo a nós, ou seja, pensa somente naquilo
que aparece, nos fenômenos. Na concepção marxista a realidade direciona-se para o
econômico, traz a ideia da práxis em que tudo é primordialmente determinado pelo
econômico.
Para Weber não é assim.
Para ele, o mundo está em constante
transformação. As realidades são múltiplas. Há infinitos sentidos. Não é possível dizer
qual o melhor sentido e menos ainda a verdade. Em Weber, a realidade é relativa,
caótica, não dá para absolutizar. Valem as representações, os valores, nunca a própria
coisa e tampouco existe uma única realidade, como queria Marx. As realidades são
tantas, quantas culturas houverem. É nesse contexto de contradições que Habermas
extrai elementos para a sua teoria comunicativa.
Max Weber é o primeiro autor clássico a que Habermas se refere que tratou
de “conceber a modernidade da sociedade da antiga Europa como o resultado de um
processo de racionalização histórico-universal”15. Ele funda a sua teoria da sociedade
sobre uma teoria das atividades racionais. O tema central é a modernização como
racionalização progressiva da sociedade a partir de sistemas de atividades socialmente
organizadas como a economia e a burocracia modernas. Mas ele estudou “os processos
de racionalização da sociedade só sob o ponto de vista da racionalidade teleológica”16,
isto é, a modernização é para ele a extensão progressiva ao conjunto da sociedade de um
tipo determinado de racionalidade que ele chamou de racionalidade teleológica
15
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. v. I. Madri/Espanha: Taurus, p. 197 – “a
entender la modernización de la sociedad viejoeuropea como resultado de un proceso histórico-universal
de racionalización.”
16
ibidem, v. I, p. 361 – “Weber sólo puede considerar como aspectos susceptibles de racionalización los
que se siguen del modelo de la actividad teleológica.”
35
(atividade racional com relação a um fim). A sociedade se moderniza na medida em
que submete as atividades, as relações e instituições sociais aos critérios de uma
racionalidade formal essencialmente orientada à eficácia estratégia e ao sucesso técnico
das empresas econômicas e políticas.
Habermas vê a origem desse reducionismo na identificação que ele fez de
fato entre racionalização como tal e a modalidade concreta realizada historicamente na
sociedade europeia.
“Weber não hesitou em equiparar esta forma histórica de
racionalização como uma racionalização simplista”17, apesar de que na sua análise dos
processos históricos de desmitologização das religiões dispunha de um conceito mais
amplo de racionalidade, como esclarecido no início do capítulo. De fato, ele reconstroi
este processo como uma progressiva “diferenciação de três esferas de valor, obedecendo
cada uma delas a uma lógica própria”18: a cognitiva, a moral e a estética.
Esta
reconstrução lhe permite chegar a um amplo conceito de racionalidade cultural que
inclui tanto a dimensão instrumental da ciência e da técnica como as dimensões práticas
da moral e da arte. Mas ao passar da análise cultural à sociológica, Weber reduz esse
conceito amplo à sua versão instrumental e teleológica.
Em consequência, Habermas entende que M. Weber não dispõe de um
instrumento adequado para explicar satisfatoriamente as patologias da sociedade
moderna. Os excessos da racionalidade instrumental não podem ser dominados
teoricamente com um conceito de racionalidade reduzida à sua forma teleológica. Para
tanto, seria necessário contrastar a nova forma de racionalidade desenvolvida no
capitalismo nascente com as possibilidades estruturalmente abertas por aquele amplo
processo de racionalização das religiões que Weber reconstruiu na sua análise cultural19,
mesmo assim ele prevê, como conseqüência da burocratização, uma reificação das
relações sociais que sufoca os impulsos motivacionais da conduta racional da vida.
17
ibidem, v. I, p. 291 – “Weber no vacila en identificar esta forma histórica de racionalización con
racionalización social simpliciter.”
18
ibidem, v. I, p. 222 – “diferenciación de tres esferas de valor, cada una de las cuales obedece a su
propia lógica.”
19
ibidem, v. II, 1987, p. 448.
36
Habermas tentará tornar frutífero sociologicamente esse conceito amplo de
racionalidade do Weber culturalista, não, porém, transpondo-o sem mais para a sua
análise da sociedade, mas redescobrindo-o através da mudança de paradigma da ação
teleológica para o modelo de ação comunitária.
37
2.3 - A SUPERAÇÃO DA FILOSOFIA DA CONSCIÊNCIA
Com Descartes, a metafísica realizou uma mudança de paradigma, do
pensamento do ser (ontologia) para a filosofia da consciência. Algo parecido é válido,
desde o século XVIII, para a teoria da moral e para a teoria do direito. Pergunta-se não
mais pelo “bom”, mas por formalismos que garantam o tratamento igualitário. No lugar
de uma filosofia normativa da moral e do direito, aparecem aqui as regras de
procedimento.
Para além disso, originam-se no século XIX as ciências históricohermenêuticas, sobretudo a filologia, mas também a ciência histórica do direito e da
historicização da filosofia através de Hegel e seus discípulos. Os conceitos básicos de
validade aparentemente eternos são reconhecidos enquanto tal. Essa é a “irrupção da
consciência histórica”, que torna a metafísica algo temporal e com isso ultrapassável.
Um outro momento que levou à liberação da metafísica é a mudança de paradigma da
filosofia da consciência para a filosofia da linguagem20.
Por outro prisma, esclarece Xavier Herrero21, Adorno e Horkheimer
abandonam a teoria da consciência de classe e elaboram a sua teoria crítica da sociedade
na forma de uma crítica da razão instrumental, que retoma a ideia de reificação, mas
entendendo-a agora, não como alienação ligada à forma capitalista de produção, mas
como uma categoria histórico-universal, isto é, como a propriedade essencial e universal
do projeto de domínio do homem sobre a natureza, da razão sobre a realidade, que na
Dialética da Ilustração é identificado com o processo de civilização e de racionalização
ocidental. A racionalidade que dirige e anima esse processo equivale a uma instância
intrínseca e essencialmente instrumental que, por toda parte onde ela é atuada, engendra
reificação, tanto nas sociedades capitalistas como socialistas. A razão instrumental une
20
REESE-SCHÄFER, Walter. Compreender Habermas. Tradução Vilmar Schneider. Petrópolis/RJ:
Vozes, 2008 (série Compreender).
21
HERRERO, Xavier. Racionalidade comunicativa e modernidade. in Revista Síntese nº 37 (1986), p.
13-32.
38
e amalgama a racionalidade teleológica e a domina de tal modo que o resultado não
pode ser outro senão um mundo administrado, totalmente reificado. Ela não pode, pois,
orientar um processo de libertação.
Habermas vê a fraqueza desta teoria “em que ela reconduz a erosão do
mundo da vida ao encanto de uma racionalidade teleológica demonizada em razão
instrumental”22. Com isso, a crítica da razão instrumental cai na mesma senda da teoria
da racionalização de Weber, que é a própria irracionalidade, e, além disso, se priva dos
frutos positivos do processo de racionalização sistêmica. Habermas atribui essa redução
da razão “ao esgotamento do paradigma da filosofia da consciência”23. No horizonte da
filosofia da consciência, no qual a teoria crítica concebe a reificação, a referência do
sujeito ao objeto é concebida ou nos modos cognitivos do conhecer ou naqueles técnicopráticos de produzir. Mas tanto o conhecimento como a produção são considerados
como processos instrumentais ou operações funcionais para o domínio do sujeito sobre
o objeto, da razão sobre a realidade. Assim, em princípio são excluídos da razão
precisamente aqueles aspectos de racionalidade que estariam em condições de
contrapor-se à mera instrumentalidade inerente aos processos de reificação.
Habermas abandona, pois, a teoria da reificação concebida em termos de
uma filosofia da consciência e substitui a referência ao horizonte da consciência pela
referência à linguagem como horizonte universal e intransponível. Através da análise
da linguagem ele introduz o paradigma da racionalidade comunicativa, com a qual
mostra que a racionalidade não se esgota em seus momentos instrumentais mas, ao
contrário, estes aparecem como formas particulares e casos limites da ideia de
racionalidade mais ampla que é a comunicativa.
Essa mudança de paradigma
possibilitou a Habermas entrar em diálogo com as duas grandes correntes filosóficas do
século XX, quais sejam, a fenomenológica-existencial-hermenêutica e a empíricalógico-analítica, e apropriar-se dos seus resultados mais significativos.
Ambas as
22
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. v. II. Madri/Espanha: Taurus, 1987, p. 471 –
“... en que tiene que hacer derivar la erosión del mundo de la vida del embrujo de una racionalización con
arreglo a fines demonizada en razón instrumental.”
23
ibidem, vol. I, p. 493 – “... por el agotamiento del paradigma de la filosofia de la conciencia.”
39
correntes convergem na superação da filosofia da consciência pela descoberta da
linguagem, que passa a ser igualmente o novo paradigma, dentro do qual são
reformulados os problemas filosóficos. E a linguagem é vista, sobretudo na filosofia
analítica, na sua ligação com a práxis. Habermas se apropria destes dois elementos:
lingüísticos e pragmáticos, e mostra, ao mesmo tempo, as insuficiências das duas
correntes, e as reintegra numa nova estrutura, ou seja, na comunicação.
40
CAPÍTULO III – A RECONSTRUÇÃO DE UMA RAZÃO MORAL
3.1
-
RAZÃO
COMUNICATIVA
E
RESPONSABILIDADE
SOLIDÁRIA
Adela Cortina24 esclarece que existe atualmente um grande esforço por uma
renovação da razão prática. Depois de ter sido silenciada, em nome da racionalidade
científica, erigida em critério absoluto, ela emerge novamente como uma necessidade
imperiosa. Uma das tentativas atuais mais promissoras de renovação da razão prática
encontra-se na forma de uma racionalidade comunicativa, em que se dá uma mudança
de paradigma, conforme esclarece Habermas, neste trecho da obra Direito e
Democracia:
“... após a implosão da figura da razão prática
pela filosofia do sujeito, não temos mais
condições de fundamentar os seus conteúdos na
teleologia da história, na constituição do homem
ou no fundo casual de tradições bem-sucedidas...
Por essa razão, eu resolvi encetar um caminho
diferente, lançando mão da teoria do agir
comunicativo: substituo a razão prática pela
comunicativa.
E tal vai muito além de uma
simples troca de etiqueta”25.
Sobre essa substituição da razão prática pela racionalidade comunicativa,
voltaremos a tratar adiante. Retornemos, pois, ao foco da questão proposta.
O predomínio moderno do cálculo e da eficiência provocou uma situação
24
CORTINA, Adela. Razón comunicativa y responsabilidade solidaria. Ética y Política en K.-O. Apel.
Salamanca: Ed. Sígueme, 1985 (coleção: Hermeneia, 25).
25
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 19.
41
global inédita. As consequências da razão técnica, movida por uma ideia de progresso,
ameaçam a humanidade como um todo: ameaça de destruição por guerras, até mesmo
nuclear, ameaça de destruição do equilíbrio ecológico, ameaça de fome que se alastra
pelo mundo. O que está em jogo nesta nova situação é que nós nos encontramos
colocados diante da tarefa de assumir a responsabilidade solidária pelas consequências
de nossas ações a nível mundial. Isso significa que é a razão prática, e não a razão
técnica, que deve responsabilizar-se por esse desafio universal lançado pela ciência e
pela técnica. E a resposta para esse desafio é uma ética universalmente válida, ou seja,
os problemas morais de nosso tempo tornaram-se cada vez mais universais, exigindo
um posicionamento da filosofia sobre as possibilidades de fundamentação de uma ética
universal.
O fio condutor dessa tarefa coube a Jürgen Habermas, que juntamente com
Karl-Otto Apel, desenvolveram uma “ética dialógica” que se apresenta como uma das
éticas contemporâneas mais profundas do ponto de vista especulativo e mais próximas
das motivações e da consciência da vida quotidiana, e que se mostra capaz de alimentar
uma “política responsável e solidária”. Para enfrentar esse desafio é preciso encontrar
uma fundamentação filosófica de uma ética da responsabilidade, isto é, capaz de dar
razão das opções e valorações morais que os homens vivem já no seu mundo vital.
Reconhecem assim o “primado substancial” das normas do mundo vivido, mas atribui
ao discurso filosófico “o primado na ordem da fundamentação”. Em concreto, através
de uma reflexão transcendental sobre as condições de possibilidade de nossas ações com
sentido, será possível descobrir um princípio moral normativo, que todos os homens
compartilham implicitamente, e desenhar, a partir dele, os traços de uma ética
responsável e solidária que dará uma resposta ao grande desafio universal, uma ética
comunicativa e transsubjetiva, única capaz de superar as discriminações dos
estrategistas do “contrato” e dar respostas solidárias às ameaças universais. Assim a
ética proposta por Habermas e Apel se situa no cruzamento de duas tradições éticas: a
ética weberiana da responsabilidade e a ética da solidariedade socialista (Karl Marx).
É evidente a necessidade e a urgência de uma ética da responsabilidade
42
solidária. Mas o grande desafio a enfrentar é o paradoxo que resulta da situação atual
que consiste, por um lado, na necessidade e, por outro, na impossibilidade de
fundamentar uma ética universalmente válida. A necessidade resulta das consequências
da razão técnica que ameaçam destruir a humanidade.
Só uma razão prática
comunicativa poderá responsabilizar-se por esse desafio universal lançado pelas
ciências. A impossibilidade provém essencialmente de três correntes filosóficas atuais
que tratam exatamente de impedir a responsabilidade da razão prática: o cientificismo
positivista, o racionalismo crítico e o solipsismo metódico (a convicção liberal de que o
indivíduo é anterior à formação da sociedade). De maneira diferente, todas três tratam
de mostrar a impossibilidade de uma fundamentação de uma ética universal.
A
conjugação
de
das
três
correntes
nos
conduz
ao
sistema
“ético”-político
complementariedade da democracia liberal, que relega as decisões morais ao âmbito da
vida privada, e assim, não só não há razão prática pública que assuma as consequências
da técnica, mas essa mesma situação é legitimada de direito.
É indubitável que a fundamentação da ética da solidariedade tem que passar
por um debate com essas correntes com o intuito de mostrar como no interior delas já
está presente o que será o núcleo da ética. Na raiz da fundamentação da ética visada
encontramos Kant como pano de fundo na tentativa de reconstruir o “fato da razão” no
fato lingüístico da argumentação que, por ser inquestionável e intranscendível, constitui
o ponto de partida da ética da solidariedade.
Assim, a pergunta kantiana pelas
condições de possibilidade do conhecimento se transforma na pergunta pelas condições
do sentido da argumentação. A exigência de universalização procederá agora não na
razão monológica, mas sim na razão dialógica.
E o ponto supremo da reflexão
transcendental será agora a unidade de interpretação intersubjetiva (e não da
consciência).
É justamente esse “nós” transcendental, do qual depende toda
racionalidade, que justifica a existência de um princípio moral que prescreve
categoricamente o reconhecimento recíproco dos interlocutores de toda argumentação
teórica ou prática. A lógica transcendental da consciência se transforma em pragmática
transcendental da linguagem. E o individualismo metódico se transforma em socialismo
43
lógico que implica uma ética socialista.
Em que consiste essa fundamentação pragmático-transcendental da ética
argumentativa? Partindo da ciência e refletindo sobre ela, será necessário reconhecer
nela, para que a sua práxis tenha sentido, a presença de outros dois tipos de
racionalidade: a hermenêutica e a ética, como condição de possibilidade de toda
pretensão científica. Pela racionalidade hermenêutica, os sujeitos não se consideram
reciprocamente como objeto, mas como sujeitos que visam um entendimento sobre
algo. Pela racionalidade ética, os sujeitos se veem obrigados a assumir um modo de ser
de reconhecimento mútuo e de compromisso com a verdade.
O passo seguinte é
descobrir que, para além da argumentação científica, existe o fato último e
intranscendível da argumentação que se desenvolve na linguagem ordinária e que
constitui o plano intransponível das linguagens e metalinguagens. Ora a argumentação
racional, pressuposta não só em toda ciência mas em toda discussão de problemas,
pressupõe a validade de normas éticas universais. Entre elas está a norma fundamental
de que todos os seres capazes de comunicação têm os mesmos direitos de intervir num
processo argumentativo e de defender com razões suas propostas. Com isso passamos
da ética da ciência para a ética da argumentação, e do socialismo lógico-científico ao
socialismo pragmático-universal, pois essa norma é universal e constitui o princípio de
uma ética solidária. O fato da argumentação nos revela que a razão é dialógica e que a
solidariedade lhe é conatural.
44
3.2
-
AS
DETERMINANTES
DA
PRAGMÁTICA
TRANSCENDENTAL
Pela importância que a pragmática transcendental assume na ética
discursiva é interessante aprofundarmos um pouco mais no exame de algumas de suas
características tratadas por Apel e pelo próprio Habermas em suas obras. Para Apel a
pragmática transcendental realiza-se por via indireta e a prova indireta se dá através da
autocontradição performativa que difere da fundamentação pressuposta na metafísica
tradicional como algo derivado de algo. A autocontradição performativa ocorre quando
tentamos argumentar, por exemplo, que a argumentação é impossível; quando fazemos
isso já estamos argumentando e, dessa forma, provando justamente o que queríamos
refutar. Esse método de prova indireta já é encontrado em Platão e Aristóteles, embora
não tenham dado um papel muito importante a ele dentro de suas filosofias.
O
argumento que nega a possibilidade do evento mostra, exatamente, a inevitabilidade da
situação de argumentação, como quando Aristóteles argumenta sobre a impossibilidade
de fundamentar o princípio de não contradição (cf. Metafísica IV 4 1006 a 5-27). Da
mesma forma, a única maneira de evitar a contradição performativa26 é reconhecer as
regras que regem o discurso argumentativo e agir de acordo com elas. Dessa forma,
aquele que aceita argumentar racionalmente ao questionar a validade do discurso ou
entra em contradição performativa ou cai em uma petição de princípio. Uma petição de
princípio ocorre quando se recorre à validade do que se pretende fundamentar na
própria demonstração para fundamentar sua validade. As premissas das quais recorre à
prova da validade dependem elas próprias da conclusão. Apel não cai em petição de
26
A contradição performativa foi introduzida na filosofia analítica para caracterizar um tipo especial de
contradição que aparece em sentenças como “Chove, mas eu não acredito.” Se esta proposição for
pronunciada por uma determinada pessoa, expressa efetivamente uma contradição: a pessoa afirma algo,
mas retira na segunda parte da proposição sua afirmação. No entanto, isto naturalmente está articulado
com o uso da palavra “eu”. Se supusermos, por exemplo, que é João da Silva que formula a frase, então
ela é contraditória, mas se formuladas dintintamente por duas pessoas não há contradição: “Chove, mas
João da Silva não acredita.” A tese propriamente dita de Apel e Habermas é que as condições da situação
ideal de fala, portanto, do modo como já eram denominados em “Teorias da verdade”, possuem a
dignidade de regras que, quando feridas dão como resultado uma contradição performativa.
45
princípio porque sua demonstração não é dedutiva, ou seja, a pressuposição não precisa
ser tomada como premissa, já que se trata de uma demonstração indireta.
O
reconhecimento das normas do discurso argumentativo pressupõe, portanto,
consequências práticas como a participação no diálogo crítico:
“... no qual cada participante do discurso, desde
o
princípio,
renunciou
ao
uso
de
métodos
estratégicos – por exemplo, retórico-manipulador
– de imposição ou imunização (ou dogmatização) de
opiniões próprias para a dimensão da razão
prática – ético-política – isto significa que
saibamos que todas as normas obrigatórias da
moral e do direito, em última análise, somente
podem ser legitimadas pela sua capacidade de
consenso entre todos os envolvidos num discurso
livre de violência.27
Tal princípio é inevitável para toda pessoa que argumenta e para toda
pessoa que pensa. Aliás, a incontornabilidade da situação de argumentação é uma das
particularidades essenciais da pragmática transcendental.
Essa condição permite a
fundamentação pragmático-transcendental da filosofia sem cair em contradição.
Assim, como aponta Manfredo A. de Oliveira, Apel constituiu com a pragmática
transcendental uma distinção entre dois tipos de fundamentação: a tradicional do
conhecimento por derivação e a fundamentação reflexiva.
“A
alternativa
apresentada
pela
pragmática
transcendental é substituir a derivação pela
reflexão
(explicitação,
tematização
do
implícito):
trata-se
de,
pela
mediação
da
27
APEL, Karl-Otto. Fundamentação última não-metafísica? In: STEIN, Ernildo e BONI, Luís A. de.
(Orgs.). Dialética e liberdade. Petropólis: Vozes, 1993, p. 319.
46
reflexão crítica sobre a estrutura e os limites
da dúvida sensata, buscar algo que, em princípio
não pode ser alcançado pela dúvida sensata e pela
argumentação crítica, porque é sua condição
necessária, que, portanto, não pode ser negado
sem que a própria dúvida se destrua a si mesma.
Trata-se,
assim,
de
explicar
os
próprios
pressupostos da argumentação, suas regras, que
alguém, que argumenta, já sempre reconheceu para
poder argumentar.”28
O argumento pelo método da prova indireta de Aristóteles e de Apel
apresenta o problema de uma refutação universalmente válida, já que é dependente de
uma situação fática de um discurso concreto. Ou seja, um cético real ou possível que
queira refutar o argumento. Dessa forma, na fundamentação reflexiva está pressuposta
uma situação pragmática, e não ideal. Pois, em uma situação ideal de fala orientada
para o consenso, já não está mais em questão a validade da situação de argumentação,
tampouco há espaço para o uso estratégico da linguagem. Assim, a universalidade da
fundamentação reflexiva deriva justamente da impossibilidade prática de refutá-la, de
uma transcendentalidade ao interior da linguagem contingente. A situação ideal de fala
surge como uma projeção dessa transcendentalidade eliminando o seu caráter fático.
Para Habermas a pragmática transcendental deve ser livrada de seus
próprios mal-entendidos transcendentalistas fundamentalistas e trasladada para uma
pragmática formal (universal) de pós-construção da base da validade da fala para uma
teoria abrangente da ação comunicativa.
De uma pragmática transcendental da linguagem passemos agora à teoria
dos atos de fala com a pragmática universal de Habermas. É necessário falar de uma
pragmática transcendental porque a linguagem se mostra como a metainstituição de
todas as instituições humanas. As suas regras são, pois, transcendentais. Enquanto tais
elas são já sempre aceitas pelos falantes ao menos implicitamente e, por isso, possuem
28
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Sobre a fundamentação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 71.
47
uma força normativa e podem exercer uma função crítica. Trata-se, pois, de explicitar,
através da reflexão transcendental, as regras e elementos e de reconstruí-los num
sistema. A esses meios transcendentais do discurso argumentativo pertence uma norma
moral fundamental que constituirá a base da ética dialógica da responsabilidade
solidária: quem argumenta, esclarece Habermas, “atestou no ato e, portanto, aceitou que
a razão é prática, isto é, responsável pelo agir humano, o qual significa que as
pretensões éticas de validade da razão, do mesmo modo que suas pretensões de verdade,
podem e devem resolver-se mediante argumentos” e quem é capaz de argumentar pelo
só fato de argumentar demonstra-se capaz de responder por suas ações de um modo
dialógico na forma de argumentação. Assim, quem argumenta compartilha com uma
comunidade o sentido dos termos que emprega, segue as regras linguísticas da
comunidade e tem que recorrer a ela para discernir o verdadeiro e o correto. Temos,
pois, que a validade de qualquer proposição é determinada pela argumentação, que
busca estabelecer consenso fundado. Quanto aos discursos teóricos, é o princípio da
indução que liga as observações às hipóteses universais.
A validação de normas
necessita de algo análogo, que Habermas vai buscar na “exigência de universalização”,
proposta por Kant. Assim, em sua teoria da ação comunicativa as normas só terão
validade quando exprimirem uma vontade universal, ou seja, tiverem o reconhecimento
de todos os implicados. É nessa perspectiva que Habermas interpreta o imperativo
categórico. Aqui se encontra a diferença entre Kant e a ética do discurso. Para Kant, a
validação é pensada monologicamente, à medida que uma reflexão puramente subjetiva
pode decidir a priori se a norma é legítima ou não. Para Habermas, o princípio de
validação depende de argumentações entre participantes de uma ação interativa. A
argumentação é tarefa comunitária e não solipsista. Portanto, a fundamentação aqui é
de ordem pragmático-linguística, isto é, as normas são justificadas num discurso público
a posteriori, conduzido de acordo com o princípio de validação normativa, dialógico,
apto a resolver as pretensões de validade da razão argumentativa. E para isso as regras
ideais de argumentação de uma comunidade ilimitada de pessoas que se reconhecem
com os mesmos direitos, constituem as condições normativas de possibilidade de toda
decisão correta. Isso significa que, em princípio, é possível um consenso sobre todas as
48
questões éticas relevantes da práxis.
Mas uma norma que prescreve resolver mediante o diálogo argumentativo
as necessidades de todos os afetados pela decisão, não é só uma norma fundamental da
ética comunicativa, mas também o princípio moral-político de uma democracia integral,
enfatiza Habermas.
Esse é o quadro no qual se desenvolve a razão comunicativa.
49
3.3 - CARACTERIZAÇÃO DA ÉTICA DISCURSIVA
O fato de a razão instrumental ter se tornado relevante, e de seu triunfo ter
como consequências o emotivismo e o niilismo, não significa tanto o fracasso, mas sim
o desvio com relação a ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Trata-se, então,
de reconstruir uma razão moral, que tem sua matriz na modernidade, a partir da ideia de
racionalidade, universalidade e exigibilidade.
discursiva,
com
suas
características
Nessa perspectiva se insere a ética
cognitivista,
universalista,
instrumental,
deontológica e de princípios. Situada no nível pós-convencional do desenvolvimento
da consciência moral, sabe-se que não lhe cabe prescrever formas concretas de vida,
ideais de felicidade, modelos comunitários de virtude, e sim proporcionar os
procedimentos que nos permitam legitimar normas e, portanto, prescrevê-las com uma
validade universal.
São, definitivamente, a pragmática universal (Habermas) ou
transcendental (Apel) e a teoria da ação comunicativa que hão de desentranhar o
mínimo de racionalidade necessário para exigir um mínimo universalmente normativo.
Porque ambas desvelam nos atos de fala as pretensões formais de validade — verdade,
correção, veracidade, inteligibilidade — que, mesmo sendo pragmaticamente
pressupostas em atos de fala imanentes a determinadas formas de vida, transcendem em
sua pretensão as formas concretas de vida, alcançando a universalidade. Quem quiser
questionar tais pretensões, com base no mundo concreto da vida, já as aceitou no
próprio momento em que as questionou.
Na condição de hermeneutas críticos,
sabemos que as pretensões de validade, que configuram pragmaticamente nossos atos
de fala, possuem uma força crítico-normativa de alcance universal, que confere à
racionalidade comunicativa seu aspecto peculiar, que se transforma paulatinamente na
chave da fundamentação racional do direito positivo e na chave da ética. Quanto ao
direito positivo, surgido evolutivamente do direito sagrado, do direito burocrático e do
direito consuetudinário, que inspiraram mais tarde o direito natural e o direito racional,
Habermas lhe atribui um momento de intocabilidade, necessário para sua legitimação,
assim como um momento de instrumentalidade, próprio das funções que lhe competem.
50
Outro tanto poderíamos dizer de uma ética discursiva que, buscando o amparo da
lógica do discurso prático, descobre as regras necessárias de reconhecimento recíproco
entre os interlocutores e, inclusive, a configuração contrafaticamente pressuposta de
uma situação ideal de fala, que desenha as condições ideais da racionalidade. Por fim,
o princípio da ética discursiva faz a validade de toda norma depender do consenso
racional entre os envolvidos por ela, um consenso no qual se demonstra a coincidência
entre os interesses individuais e os universais.29
29
CORTINA, Adela. Ética sem moral. Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.
164-166.
51
CAPÍTULO IV – ESTRUTURA E DESENVOLVIMENTO DA ÉTICA
DISCURSIVA
4.1 - A FUNDAMENTAÇÃO DA ÉTICA DISCURSIVA DE
HABERMAS
Vejamos a seguir, os principais traços da ética discursiva de Habermas e
suas origens.
Na sua obra Consciência moral e agir comunicativo (1983), Habermas
incluiu o ensaio “Notas programáticas para a fundamentação de uma Ética do
Discurso” (p. 61/141), no qual procura sintetizar os principais traços da ética
discursiva, delimitando sua teoria em face das contribuições de Apel, Tugendhat,
Wellmer, Rawls30, Hare e outros.
Em sua essência, a ética discursiva é uma tentativa de reconstrução da ética
kantiana em que a consciência moral do sujeito isolado e reflexivo desloca-se para a
comunidade linguístico-dialogal de sujeitos. Dessa forma, a argumentação, em uma
situação dialógica ideal na busca de um consenso, deve merecer o reconhecimento de
todos os implicados e, portanto, é tarefa comunitária e não solipsista.
A ética
discursiva sugere que somente podem aspirar à validade aquelas normas que tiverem o
consentimento e a aceitação de todos os integrantes do discurso prático. Para que uma
norma tenha condições de tranformar-se em norma geral, aspirando validade universal
enquanto máxima de conduta de todos os participantes do discurso prático, os
resultados e efeitos colaterais decorrentes da sua observância precisam ser antecipados,
pesados em suas consequências e aceitos por todos.
Isto ocorre através de um
procedimento argumentativo em que prevalece o melhor argumento, respeitados todos
os demais, à luz de sua maior coerência, justeza e adequação. O caráter universal de
30
RAWLS, John (1922-2002): Filósofo político do século XX. Professor em Havard. A sua teoria da
justiça constitui, em grande parte, uma reação ao utilitarismo clássico.
52
uma norma ou princípio moral qualquer só se evidencia se tal princípio ou norma não
exprimir meramente a intuição moral de uma cultura ou época específica, mas sim um
conteúdo que possa ter validade geral, fugindo a toda e qualquer forma de
etnocentrismo. Há críticos que discordam de Habermas. Afirmam que se corre o risco
de cair em um relativismo, pois cada comunidade linguística disporia da sua própria
verdade, ou seja, o que em uma cultura é considerado uma boa razão, pode ser
inaceitável para uma outra.
Apesar da ênfase dada ao caráter processual, ao procedimento dialógico,
argumentativo, a ética discursiva não é – na versão habermasiana – uma teoria
puramente formal. Ao contrário, Habermas sublinha que a ética discursiva parte da
extrema vulnerabilidade da pessoa, tendo como conteúdo a defesa da integridade e
dignidade dessa pessoa. No conteúdo, a ética discursiva permanece, pois, fiel às suas
raízes kantianas, quanto à forma, ela se reorienta pelo enfoque processual mediante o
qual esse conteúdo é buscado, reafirmado e consolidado pelo grupo. A ética discursiva
articula-se nos dois princípios que sempre constituíram o corpo da questão da
moralidade: a justiça e a solidariedade. A justiça se obtém buscando através dos
processos argumentativos, conduzidos pelos integrantes do discurso prático a norma
que defenda a integridade e invulnerabilidade da pessoa humana. Esse objetivo ou
valor, buscado processualmente, só se efetiva no grupo social, que através da
solidariedade recíproca assegura o bem estar de todos. A dignidade da pessoa só pode
ser realizada no grupo que concretizar o respeito mútuo e o bem estar de cada um,
assim como a autonomia do sujeito depende da realização da liberdade e da
solidariedade de todos.
Não é mais o sujeito moral kantiano que, seguindo seu dever, define
monologicamente o que possa ser considerado um princípio generalizável, mas sim o
grupo integrante de um discurso prático que dialogicamente elabora, à base do
argumento mais justo, correto, racional, o que possa ser considerado um princípio
universalizável. No procedimento argumentativo, todos os integrantes do discurso
participam, todas as vontades subjetivas são expressas, todas as críticas e ponderações
53
são consideradas, todas as consequências práticas são antecipadas e todos os efeitos
colaterais de uma possível ação, pesados.
O novo princípio regulador, a norma
universal que também será a máxima moral de cada um, não é um dado a priori, mas o
resultado último de um longo processo argumentativo, viabilizado pelo discurso
pratico.
A ética discursiva de Habermas pressupõe pelo menos três dados, ainda não
suficientemente explicitados: a competência comunicativa dos integrantes do grupo;
situações dialógicas ideais, livres de coerção e violência; e, finalmente, um sistema
linguístico elaborado que permita por em prática o discurso teórico e prático. Estes
pressupostos contrastam com os “dados” observados na realidade histórica. Habermas
enumera quatro: a fome no terceiro mundo, a tortura institucionalizada, o desemprego
crescente, mesmo nas economias mais avançadas do mundo ocidental, e as ameaças do
desequilíbrio ecológico que implicam na possível autodestruição da humanidade.
A solução desses problemas nem sempre se pode dar no contexto da ética
discursiva.
Habermas, por isso mesmo, havia destacado outras formas de ação,
distintas da comunicativa, como a ação instrumental, que permitiria resolver
parcialmente os problemas da fome, do desemprego e do equilíbrio ecológico, naquilo
que esses problemas têm de técnico. Quando a ação instrumental e a comunicativa não
conseguem pacificamente resolver tais problemas, Habermas admite a ação estratégica,
cuja função primordial consistiria em estabelecer as condições materiais e políticas para
que a ação comunicativa e, no contexto dela, o discurso prático possa entrar em ação.
Além de Kant, onde mais Habermas se baseia para a teorização da sua ética
do discurso? O estruturalismo genético de Piaget e Kohlberg possibilita a Habermas
fundamentar parte dos pressupostos da ética discursiva acima mencionados: a
competência comunicativa, a situação dialógica ideal e a existência de um sistema
linguístico.
Como se dá essa subsunção?
O pressuposto habermasiano, de
interlocutores competentes integrantes de um discurso prático encontra desse modo sua
54
fundamentação teórica e empírica no estruturalismo genético, deixando de ser
pressuposto e transformando-se em conhecimento assegurado pela experiência.
A
situação dialógica ideal é realizada e praticada na situação de jogo concreto e é
reconstruída mentalmente em cada nova ação ou situação de conflito.
Piaget e
Kohlberg descreveram na prática e em situações experimentais a realidade e o
funcionamento da ética discursiva, sem lhe dar esse nome. Em sua releitura, Habermas
retoma esse assunto com a terminologia que criara em trabalhos anteriores e
consolidara na obra denominada Teoria da ação comunicativa.
O radicalismo democrático de Habermas, que se exprime em sua teoria
consensual da verdade e em sua teoria moral, encontra, pois, sua fundamentação
epistemológica e experimental no estruturalismo genético de Piaget e Kohlberg.
Mas, para o último pressuposto, a verdadeira base na qual todas as
atividades societárias se assentam, e sem o qual a sociedade contemporânea perderia
sua base real, que é a linguagem, Habermas não se vale do estruturalismo genético. Ela
assume na teorização habermasiana a função que Deus tinha nas éticas religiosas e que
a sociedade tem na teoria sociológica positivista. A linguagem é o ponto de partida e
de chegada de toda a reflexão da sociedade sobre si mesma, incluindo aqui o
conhecimento do mundo dos objetos e o conhecimento do mundo das normas. Como já
dito, Habermas não busca a origem da linguagem e a sua constituição dentro das
sociedades no estruturalismo genético de Piaget e Kohlberg, mas recorre a outros
autores como Apel, Wellmer, Gadamer, Bühler, Dilthey, Wittgenstein e a novas
orientações de pesquisa: pragmática universal, hermenêutica, filosofia da linguagem,
psico e sociolinguistica, entre outros, para melhor formular sua teoria.
Ao fundamentar dois dos pressupostos da ética discursiva, a saber, a
competência linguistica e a situação dialógica, o estruturalismo genético de Piaget não
esgotou suas possibilidades como grade interpretativa para a teorização de Habermas.
Em sua Teoria da ação comunicativa o autor parte de um quarto pressuposto,
estabelecendo uma analogia entre os processos evolutivos das sociedades históricas e a
psicogênese. Isso lhe permite interpretar os processos societários como processos de
55
aprendizagem coletiva, tal como ocorre na psicogênese em que o conhecimento do
mundo pela criança caminha a patamares cada vez mais elevados e sofisticados, assim
também as sociedades históricas adquirem uma competência crescente para lidar com
seus problemas de sobrevivência e para controlar e equilibrar os conflitos e as
contradições internas. A teoria da ação comunicativa pode ser interpretada como uma
tentantiva de repensar e reordenar em termos piagetianos, o pensamento sociológico
produzido no decorrer do tempo. As teorias sociológicas clássicas e contemporâneas
representam para Habermas a gênese do conhecimento das sociedades sobre si mesmas.
Ao reorganizar esse saber, o autor identifica áreas de racionalidade comunicativa
embutida em nichos do sistema. Apesar da predominância, nas modernas sociedades
industriais, da razão instrumental, necessária para assegurar a reprodução material do
sistema, mas presente ilicitamente também nas áreas da organização política e cultural
da sociedade (mundo vivido), a razão comunicativa sobrevive hoje, institucionalmente,
na ciência organizada, nos parlamentos, tribunais, etc.
À psicogênese correspondem, pois, a sociogênese (processos evolutivos da
sociedade) e a gênese do conhecimento científico e crítico organizado (história da
ciência institucionalizada). Nestes processos o denominador comum é o aprendizado,
isto é, a capacidade crescente do sujeito, da sociedade e dos cientistas em lidar com os
problemas que enfrentam na realidade.
Este último pressuposto é fundamental para elucidar a teoria da
modernidade de Habermas.
Sem incorrer no erro de Durkheim, confundindo as
sociedades reais com o ideal de sociedade, mas evitando também o pessimismo pósmoderno à la Lyotard31, Habermas defende a sobrevivência da razão comunicativa no
contexto societário de hoje, exigindo a institucionalização do discurso teórico e prático
em todos os níveis e em todas as áreas da sociedade, ou seja, a renegociação
permanente, por parte de todos os membros da sociedade, da verdade do saber
31
LYOTARD, Jean François (1924-1998): Filósofo francês. Utiliza o conceito de “jogos de linguagem”,
originalmente desenvolvido por Wittgenstein.
56
acumulado e da validade das normas estabelecidas, assim como da veracidade de todos
os participantes do discurso.
A ética discursiva de Habermas é uma das peças-chave desse projeto de
radicalização democrática. A questão da moralidade confunde-se aqui com a questão
da democracia em sua versão original: o debate público de todos os cidadãos da pólis
na Ágora.
A moralidade, enquanto princípio que orienta a ação permite várias
abordagens, sugerindo um tratamento interdisciplinar.
Aqui nos limitaremos à
abordagem discursiva. A delimitação do tema, como demonstrado anteriormente, está
centrado no estruturalismo genético de Piaget, que fornece os elementos para se pensar
adequadamente a questão, pois se calca na razão, inclui a sociedade na reflexão,
reconstroi a gênese do julgamento e considera fundamental o discurso. Por isso, Piaget
repousa em Kant, debate-se com Durkheim, prepara o terreno para Kohlberg e antecipa
a teorização de Habermas.
A condição da possibilidade da moralidade para o estruturalismo genético é
a autonomia moral, isto é, a faculdade do sujeito de autonomizar-se das leis e normas
que orientam a ação do grupo e de agir e julgar segundo um princípio interior ideal.
Este princípio não é dado a priori, fora da experiência, mas é o resultado de um longo
processo genético. A formação da consciência moral autônoma em Piaget não é o
reflexo, no sujeito, de leis sociais, mas um padrão moral construído e reconstruído
ativamente pela criança em sua interação permanente com o grupo. A autonomia moral
é o resultado de uma psicogênese bem sucedida do sujeito.
Para alcançá-la, são
mobilizados processos internos de maturação e equilibração e processos externos de
transmissão cultural e educativa. A autonomia moral resulta da experiência vivida e
reorganizada permanentemente no interior da estrutura mental. Ao mesmo tempo que
se forjam os instrumentos de julgamento, são construídos os princípios ideais,
destilados das regras sociais que regulamentam a vida quotidiana no grupo.
57
É ainda na obra Consciência moral e agir comunicativo que Habermas
esclarece que a filosofia moral não depende apenas de confirmações indiretas da parte
de uma psicologia do desenvolvimento da consciência moral, mas está assentada em
fundamentos filosóficos básicos, que passa a ilustrar com base no exemplo de Kohlberg.
Informa Habermas que Lawrence Kohlberg se situa na tradição do pragmatismo norteamericano e tem clara consciência dos fundamentos filosóficos de sua teoria. A partir
da publicação de “A Theory of Justice”, de John Rawls32, Kohlberg utiliza-se sobretudo
dessa ética, que se liga a Kant e ao direito natural racional, na formulação de suas
concepções filosóficas, inspiradas inicialmente em Mead, sobre a “natureza do juízo
moral”:
“Essas análises remetem às características de um
‘ponto
de
vista
moral’,
sugerindo
que
o
raciocínio verdadeiramente moral envolve aspectos
tais como imparcialidade, universalizabilidade,
reversibilidade e prescriptibilidade”33
São três os principais pontos de vista a partir dos quais Kohlberg introduz as
premissas tomadas de empréstimo à filosofia: a) cognitivismo, b) universalismo e c)
formalismo. Habermas se propõe a explicar, em primeiro lugar, por que a ética do
discurso é a que melhor se presta a explicar o ‘ponto de vista moral’ sob os pontos de
vista do cognitivismo e do formalismo e, em segundo lugar, mostrar em que medida a
ética do discurso requer o mesmo conceito do aprendizado construtivo com que operam
Piaget e Kohlberg e, com isso, ela se recomenda para a descrição de estruturas
cognitivas que resultam de processo de aprendizagem e, por último, a ética do discurso
32
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
33
apud HABERMAS, Jürgen.. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução Guido A. de Almeida.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 146 – “These analyses point to the features of a ‘moral point
of view’, suggesting truly moral reasoning involves features such as impartiality, universalizability,
reversibility and prescriptivity”.
58
também pode complementar a teoria de Kohlberg na medida em que remete, de sua
parte, para uma teoria do agir comunicativo34.
A partir desta síntese, Habermas35 minudencia a base em que se assenta a
ética do discurso. Inicia esclarecendo que “os três aspectos sob os quais Kohlberg tenta
aclarar o conceito do que é ‘moral’ são levados em consideração por todas as éticas
cognitivistas, desenvolvidas na tradição kantiana. A posição defendida por Apel e por
mim – diz ele - tem, porém, a vantagem de que as suposições básicas de ordem
cognitivista, universalista e formalista se deixam levar do princípio moral fundamentado
pela “ética do discurso”.
Para esse princípio — afirma —, ofereci a seguinte
formulação:
(U) Toda norma válida tem que preencher a
condição de que as consequências e efeitos
colaterais que previsivelmente resultem de sua
observância universal, para que a satisfação dos
interesses de todo indivíduo possa ser aceita sem
coação por todos os concernidos.
(a) Cognitivismo – Visto que o princípio de universalização
possibilita enquanto regra da argumentação um consenso sobre máximas
passíveis de universalização, com a fundamentação de ‘U’ fica
demonstrado ao mesmo tempo que as questões prático-morais podem ser
decididas com base em razões.
Os juízos morais têm um conteúdo
cognitivo; eles não se limitam a dar expressão às atitudes afetivas,
preferências ou decisões contingentes de cada falante ou ator. A ética do
Discurso refuta o cepticismo ético, explicando como os juízos morais
podem ser fundamentados. Com efeito, toda teoria do desenvolvimento
34
HABERMAS, Jürgen.. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução Guido A. de Almeida. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 146-147
35
ibidem, p. 147-149.
59
da capacidade de juízo moral tem que pressupor como dada a
possibilidade de distinguir entre juízos morais corretos e errados.
(b) Universalismo – De ‘U’ resulta imediatamente que quem
quer que participe da argumentação pode, em princípio, chegar aos
mesmos juízos sobre a aceitabilidade de normas de ação.
Com a
fundamentação de ‘U’, a ética do Discurso contesta a suposição básica do
relativismo ético, segundo a qual a validez dos juízos morais só se mede
pelos padrões de racionalidade ou de valor da cultura ou forma de vida à
qual pertença em cada caso o sujeito que julga. Se os juízos morais não
pudessem erguer uma pretensão de validade universal, uma teoria do
desenvolvimento moral que pretendesse comprovar a existência de vias
de desenvolvimento universais estaria condenada de antemão ao fracasso.
(c) Formalismo – ‘U’ funciona no sentido de uma regra que
elimina, a título de conteúdos não passíveis de universalização, todas as
orientações axiológicas concretas, entrelaçadas ao todo de uma forma de
vida particular ou da história de uma vida individual e, assim, dentre as
questões valorativas do “bem viver”, só retém como argumentativamente
decisórias as questões de justiça estritamente normativas.
Com a
fundamentação de ‘U’, a ética do Discurso volta-se contra suposições
básicas das éticas materiais, que se orientam pelas questões da felicidade
e privilegiam ontologicamente um tipo determinado, em cada caso, da
vida ética. Ao destacar a esfera da validez deôntica das normas de ação,
a ética do Discurso demarca o domínio do moralmente válido em face do
domínio dos conteúdos de valor culturais. É só a partir desse ponto de
vista estritamente deontológico da correção normativa ou da justiça que
se podem filtrar, na massa de questões práticas, as que são acessíveis a
uma decisão racional. É em vista dessa decisão racional que os dilemas
morais de Khlolberg estão formulados.”
60
Essas três premissas básicas, tomadas de empréstimo à filosofia, não
esgotam, todavia, o conteúdo da ética do discurso.
Enquanto que o princípio da
universalização fornece uma regra de argumentação, a ideia fundamental da teoria
moral de Kholberg, tomada à teoria comunicacional de G. H. Mead, exprime-se no
princípio da ética do Discurso (D), segundo o qual:
“Toda norma válida encontraria o assentimento de
todos os concernidos, se eles pudessem participar
de um Discurso prático”.
Assim, a ética do Discurso não dá nenhuma orientação conteudística, mas
sim, um procedimento rico de pressupostos, que deve garantir a imparcialidade da
formação do juízo. O Discurso prático é um processo, não para a produção de normas
justificadas, mas para o exame da validade de normas consideradas hipoteticamente. É
só com esse proceduralismo que a ética do Discurso se distingue de outras éticas
cognitivistas, universalistas e formalistas, tais como a teoria da justiça de Rawls. ‘D’
serve para nos tornar conscientes de que ‘U’ exprime tão somente o conteúdo normativo
de um processo de formação discursiva da vontade e, por isso, deve ser cuidadosamente
distinguido dos conteúdos da argumentação.
Todos os conteúdos, mesmo os
concernentes a normas de ação, não importa quão fundamentais estas sejam, têm que ser
colocados na dependência dos Discursos reais. O princípio da ética do Discurso proíbe
que, em nome de uma autoridade filosófica, se privilegiem e se fixem de uma vez por
todas numa teoria moral determinados conteúdos normativos (por exemplo,
determinados princípios de justiça distributiva).
No momento em que uma teoria
normativa, como a teoria da justiça de Rawls, se estende ao domínio dos conteúdos, ela
passa a valer tão somente como uma contribuição, quiçá particularmente competente,
para um Discurso prático, mas ela não pertence à fundamentação filosófica do ‘moral
point of view’ (‘ponto de vista moral’), que caracterizam os Discursos práticos em
geral.
61
E, prossegue Habermas:
A determinação procedimental do que é moral já contém as suposições
básicas, que acabamos de examinar, do cognitivismo, do universalismo e do formalismo
e permite uma separação suficientemente precisa das estruturas cognitivas e dos
conteúdos dos juízos morais. Pois é possível depreender do processo discursivo as
operações que Kohlberg exige para juízos morais no plano pós-convencional: a
completa reversibilidade dos pontos de vista a partir dos quais os participantes
apresentam seus argumentos: a universalidade, no sentido de uma inclusão de todos os
concernidos; finalmente, a reciprocidade do reconhecimento igual das pretensões de
cada participante por todos os demais.
O reconhecimento é uma relação de reciprocidade, é ele quem permite a
aceitação mútua dos indivíduos num mesmo plano de universalidade, que os permite
apresentarem como “portadores ex aequo dos mesmos direitos e correspondentes
deveres (é o caso, por exemplo, do elenco dos direitos humanos na sua atual
enumeração), sendo ambos, como indivíduos pretensamente universais, proclamados
como fonte primeira de valor”.36
O ato de reconhecer é em essência ético, porque nos permite diferenciar
nossos semelhantes das coisas que nos rodeiam. Esse momento do reconhecimento é o
que permite a passagem da nossa subjetividade moral (ou do agir ético subjetivamente
considerado) para o momento do agir ético intersubjetivo.
É na relação de
intersubjetividade como reconhecimento que “temos a identidade na diferença do Eu,
fazendo face à identidade na diferença do outro Eu, vale dizer, temos a afirmação
recíproca do outro como Eu”.37
Esses esclarecimentos acerca das bases da ética do discurso de Jürgen
Habermas nos permitem verificar como se processa a universalização e o consenso.
Sabemos que com ‘U’ e ‘D’ a ética do discurso privilegia características de juízos
36
VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de filosofia III. Filosofia e cultura. São Paulo: Edições
Loyola, 1997, p. 149.
37
VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia filosófica II. São Paulo: Edições Loyola, 1992, p. 66.
62
morais válidos que possam servir como pontos de referência normativos da via de
desenvolvimento da capacidade de juízo moral. Além de todo este suporte assentado
em Piaget-Kohlberg, podemos afirmar que Habermas, na sua ética do discurso se
propõe a uma dupla tarefa: primeiro deve ser fundamentado como obrigatório, válido
em bases pragmáticas aquilo que ele denomina princípio da universalização (U). O que
ele denomina como princípio de universalização é muito próximo ao imperativo
categórico de Kant, a não ser no fato de que este assenta-se no a priori (solipsismo),
enquanto que aquele no a posteriori (pluralidade). Em segundo lugar, quer mostar que
também vale um princípio “D” com caráter específico de ética do discurso, de acordo
com o qual todas as questões morais de conteúdo devem ser resolvidas na base de um
consenso que deve realizar-se num discurso real dos envolvidos. Como primeiro passo
Habermas quer mostrar que “nas regras do discurso não se tratam de convenções, mas
de pressupostos inevitáveis” da argumentação como tal.
Em suma, a moralidade kantiana começa com a liberdade mas termina com
a sujeição do sujeito ao imperativo do dever, o dever de subordinação da própria
vontade à vontade da lei (universal). A moralidade (autônoma) de Piaget começa com
a sujeição inquestionada e inconsciente da criança à lei heterônoma e termina com um
grito de independência em relação às leis que não decorrem de um processo
argumentativo fundado na cooperação e no consenso de todos. Se em Kant a máxima
que orienta a ação (o princípio subjetivo) se objetiva na lei universal, em Piaget a lei
externa se subjetiviza e se transforma em um princípio ideal e subjetivo que passa a
orientar a ação moral do sujeito. Essa é a ponte para a futura teorização de Habermas.
63
4.2
–
ÉTICA
DISCURSIVA:
MEDIADORA
ENTRE
TRANSCENDENTALIDADE E HISTÓRIA
É possível acreditar que a ética discursiva possa possibilitar uma mediação
entre transcendentalidade e história, já que se apresenta como uma ética procedimental,
compatível com o pluralismo das crenças, que pode mediar condições transcendentais e
acordos fáticos, condições ideais e decisões reais. A lógica do discurso prático, no
sentido de Habermas, conduz-nos a certas regras, referidas por Alexy (Teoria da
argumentação jurídica, p. 194/195): 1) de uma lógica mínima ou exigências de
consistência, que se encontram no nível lógico-semântico; 2) pressupostos pragmáticos,
que descobrimos ao contemplar as argumentações como processos de acordo, que
consistem na busca cooperativa da verdade: aqui já aparecem regras de conteúdo ético,
que supõem relações de reconhecimento recíproco; 3) regras que configuram a
estrutura de uma situação ideal de fala, isenta da repressão e da desigualdade, na
medida em que a argumentação se nos apresenta como um processo de comunicação,
que há de satisfazer certas condições para alcançar um acordo racionalmente motivado.
Nesse âmbito, Habermas propõe as seguintes regras, em ligação com Alexy:
1. Todo sujeito capaz de falar pode participar dos discursos.
2. a) Toda pessoa pode problematizar qualquer asserção;
b) Toda pessoa pode introduzir qualquer argumento no discurso;
c) Toda pessoa pode expressar suas posições, seus desejos e suas
necessidades.
3. Não se pode impedir falante algum, mediante coação interna ou externa
ao discurso, de exercer seus direitos, expressos nas regras acima.
A partir dessas regras, entende-se que uma norma só pode ser acordada em
um discurso prático quando vale o princípio de universalização. Mas a ética discursiva
pode também recuar a um princípio — o princípio da ética discursiva: “Só podem
64
pretender validade as normas que consigam (ou que poderiam conseguir) a aprovação
de todos os envolvidos, como participantes de um discurso prático”38. No entanto, o
próprio Habermas adianta que o discurso de legitimação comporta sempre algum grau
de falibilismo, por isso é preciso estar sempre aberto a novos questionamentos e,
portanto, a ulteriores justificações.
Por outro lado, é necessário complementar o
discurso de legitimação por discursos de aplicação cuja principal função é atentar para
a relevância de circunstâncias concretas não previstas pelo procedimento discursivo de
legitimação responsável pela validação das normas.
Habermas menciona na obra
Verdade e justificação: ensaios filosóficos39 uma “dupla reserva falibilista” da teoria do
discurso: “o acordo realizado ‘em dois níveis’ nos discursos morais de fundamentação
e aplicação está até mesmo sob uma dupla reserva falibilista. Retrospectivamente,
podemos nos dar conta tanto de que nos enganamos a respeito dos pressupostos da
argumentação como de que não prevemos certas circunstâncias relevantes”.
38
apud HABERMAS, Jürgen.. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução Guido A. de Almeida.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 110-115.
39
Habermas, Jürgen. Verdade e justificação – ensaios filosóficos. Tradução Milton Camargo Mota. São
Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 292.
65
4.3 - O CARÁTER REFLEXIVO DA ÉTICA DO DISCURSO
A ética do discurso é construída de forma reflexiva. Ela não fixa como
modelo uma ética considerada correta por Habermas, mas tenta, inversamente, detectar
na interpretação subseqüente, portanto, reflexiva do que nós já sempre fazemos em
processos comunicativos de entendimento, as precondições e os requisitos de um
entendimento bem-sucedido. A ética do discurso não precisa apregoar certos valores de
conteúdo, passíveis sempre de discussão como, por exemplo, os direitos humanos,
porém, ao invés disso, ela pode descrever numa perspectiva exterior caracterizável
como objetiva, quase jurídicas, os procedimentos do entendimento entre iguais. Quando
esses procedimentos efetivamente são executados, o resultado também teria que ser
considerado justo, ao passo que se poderia discutir interminavelmente sobre justiça
quanto ao conteúdo. Habermas apoia-se aqui estritamente no modelo jurídico: quando
ocorrer um procedimento legal, no qual ambas as partes forem ouvidas e as leis
observadas, também a sentença poderá ser considerada justa. Ela não precisará mais ser
determinada a partir de uma idéia substancialista de justiça, que cada um inferiu, de
acordo com sua própria concepção de justiça, a partir de suas interpretações individuais
do que ele ou ela considera direito.
66
4.4
–
ATOS
DA
LINGUAGEM
ORIENTADOS
PARA
O
ENTENDIMENTO
Na Teoria da ação comunicativa, Habermas dedica expressivo espaço a
demonstrar que o uso linguístico orientado para o acordo é o modo originário de usar a
linguagem, e para tanto recorre à distinção introduzida por Austin40 entre atos
locucionários, ilocucionários e perlocucionários41. Depois de dialogar com diferentes
posições, ele chega à conclusão de que os efeitos perlocucionários só podem ser
alcançados com a ajuda de ações linguísticas quando estas são consideradas como
meios dentro do contexto de ações teleológicas que buscam o êxito. Constituem,
portanto, um sintoma de que as ações linguísticas se integral no contexto de ações
estratégicas. O objetivo do ato ilocucionário (o entendimento) é aqui utilizado para
alcançar objetivos não ilocucionários.
O uso da linguagem orientado pelas
consequências não é, portanto, um uso linguístico originário, e sim o resultado de
inserir ações linguísticas, que perseguem metas ilocucionárias, no contexto de ações
que buscam o êxito. Objeções posteriores forçaram Habermas a rever sua teoria do
significado e a distinguir entre dois tipos de efeitos perlocucionários: aqueles que
surgem do conteúdo semântico daquilo que é dito e os que se produzem
contingentemente, de forma independente dos contextos regulados de modo gramatical.
Nessa perspectiva, todas as perlocuções deixam de poder ser coordenadas com a classe
de ações latentemente estratégicas. Estrategicamente pretendidos seriam unicamente os
efeitos que só são produzidos quando não se declaram ou quando se produzem
mediante ações linguísticas enganosas. Nesse caso, o uso linguístico orientado para o
entendimento põe-se a serviço de interações estratégicas. Estamos em face de um uso
40
O linguista alemão Wilhelm Von Humboldt (1767-1835) distingue três funções da linguagem: a
cognitiva (representação de fatos), a expressiva (expressão e suscitação de sentimentos) e a comunicativa
(comunicação de algo, levantamento de objetos etc) — uma distinção que antecipa em parte a teoria dos
atos linguísticos de Austin — e foi talvez o primeiro a conceber a língua como um sistema de regras e,
precisamente, como um sistema capaz de produzir a partir de um número de signos um número infinito de
conceitos (apud PINZANI, Alessandro. Habermas. Porto Alegre: Artmed, 2009, p. 82).
41
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Vol. I.Madri/Espanha: Taurus, 1987, p. 370.
67
da linguagem orientado pelas consequências. As ações linguísticas podem, portanto,
ser estrategicamente utilizadas, mas o uso linguístico voltado para o acordo é o modo
de usar a linguagem, já que ela está essencialmente dirigida a provocar um acordo entre
os interlocutores. Entender-se de modo indireto — dar a entender ou deixar entender
— é, portanto, parasitário. Por isso, Habermas chega a afirmar:
“O acordo é inerente como telos à linguagem
humana.
Linguagem e acordo não se comportam
reciprocamente como meio e fim, mas só podemos
esclarecer o conceito de acordo quando definimos
o que significa utilizar proposições com sentido
comunicativo.
Os conceitos de fala e de acordo
se interpretam reciprocamente.”42.
Segundo o próprio Habermas, isso não significa que falar seja uma ação
autossuficiente, que tem seu fim em si mesma, e que por isso há de se distinguir das
ações que pretendem um fim externo a si.
Definitivamente, os interlocutores
pretendem suas próprias metas, que se coordenam por meio da linguagem.
A
linguagem é originariamente encaminhada a alcançar um fim moral – a conjunção de
interesses, a união entre a vontade particular e a universal.
42
ibidem, v. I, p. 369 – “El entendimiento es inmanente como telos al lenguaje humano. Ciertamente que
lenguaje y entendimiento no se comportan entre sí como medio y fin. Pero sólo podemos explicar el
concepto de entendimiento si somos capaces de precisar qué significa emplear acciones con intención
comunicativa. Los conceptos de hablar y entenderse se interpretan el uno al otro.”
68
4.5 – A LINGUAGEM COMO PROCESSO DE COMUNICAÇÃO
INTERSUBJETIVA
A linguagem torna-se um processo de comunicação intersubjetiva, cuja
unidade elementar não é a proposição, mas o proferimento, isto é, a proposição inserida
numa normal interação lingüística. Com isso, o foco da investigação se desloca da
racionalidade cognitivo-instrumental para a racionalidade comunicativa.
Paradigma
desta racionalidade não é a relação do sujeito isolado a algo no mundo, que pode ser
representado e manipulado, mas a relação intersubjetiva que assumem sujeitos capazes
de linguagem e de ação quando eles se entendem entre si sobre algo43. Com isso,
desloca-se também a problemática do conhecimento, própria da filosofia do sujeito,
para a problemática do entendimento mútuo em torno do qual se desenvolve o conceito
de racionalidade comunicativa.
O entendimento é aquele processo de convicção
intersubjetiva que coordena as ações dos participantes de uma interação sobre a base de
uma motivação por razões44.
Significa, pois, a comunicação que visa a uma
compreensão comum válida. A linguagem, enquanto meio de entendimento, apresenta
uma componente ilocutiva45, que cria uma relação intersubjetiva e uma componente
proposicional, objeto do entendimento. Porém todo entendimento supõe um sistema
comum de referência, no qual os participantes delimitam sobre o que é possível em
geral entender-se. Esse sistema de referência é composto por um tríplice conceito de
mundo: objetivo, social e subjetivo, que corresponde à tríplice função da linguagem de
apresentação, de interpelação e de expressão. É nesse sistema de referência que o
falante se refere em seus proferimentos a algo objetivo, normativo ou subjetivo46.
43
ibidem, v. I, p. 499.
ibidem, v. I, p. 114 e 499.
45
verbetes locutório: o conteúdo das orações enunciativas (‘p’) ou das orações enunciativas
nominalizadas (‘que p’); ilocutório: o agente realiza uma ação dizendo algo, ou seja, fixa o modo como
se emprega uma oração (‘M p’): afirmação, promessa, confissão, etc; perlocutório: o falante busca causar
um efeito sobre o ouvinte, ou seja, mediante a execução de um ato de fala causa algo no mundo – ibidem,
v. I, p. 370).
46
ibidem, v. I, p. 136-143 e vol II, p. 171.
44
69
4.6 - AS PRETENSÕES DE VALIDADE REFERENTES A ALGO NO
MUNDO OBJETIVO, SOCIAL OU SUBJETIVO
O núcleo da teoria do agir comunicativo de Habermas e da correspondente
teoria da verdade pode ser resumido da seguinte forma: usar a linguagem significa,
essencialmente, avançar pretensões de validade que devem poder ser justificadas
discursivamente. Habermas esclarece que as afirmações pertencem à classe dos atos de
fala constatativos, são elas a forma tomada por uma proposição e não podem ser nem
verdadeiras nem falsas, mas sim legítimas ou ilegítimas.
Verdadeira ou falsa é a
proposição que afirmamos, isto é, o conteúdo da afirmação. Por exemplo, cada vez que
afirmarmos que “O sol surge todos os dias”, avançamos implicitamente uma pretensão
de verdade da forma: “É verdadeiro que o sol surge todos os dias”. Esta afirmação pode
ser legítima, mas não verdadeira. O que é verdadeiro é que o sol surge todos os dias.
Portanto, a afirmação “O sol surge somente em alguns dias” é falsa, enquanto a
afirmação “É falso que o sol surge todos os dias”, é legítima. Neste encadeamento, ao
lado de uma teoria discursiva da verdade, Habermas elabora uma pragmática universal
cujo papel é expor as condições da comunicação. Nessa fase, o interesse de Habermas
volta-se inteiramente a questões de teoria da linguagem. Ao fazer isso, Habermas se
associa, em questões epistêmicas, a um realismo de cunho pragmatista. A esse realismo
pragmatista correspondem o seu cognitivismo e o seu construtivismo em questões
morais: assim como pretensões de verdade podem ser fundamentadas discursivamente,
tal fundamentação discursiva é possível também para pretensões relativas à validade de
normas. Cabe aclarar que, para Habermas, a teoria discursiva da verdade pressupõe
uma teoria da constituição da experiência, portanto, trata-se de uma verdade construída,
ou seja, o que existe é uma verossimilhança. Feita a ressalva, continuaremos a adotar
simplesmente a palavra “verdade”, como Habermas a usa, ou seja, sem adjetivação. Em
sua obra Teoria da ação comunicativa: complementos e estudos prévios, afirma: “minha
tese é que as relações pragmáticas do uso cognitivo da linguagem estabelece entre os
enunciados e a realidade dependem de uma constituição prévia dos objetos da
70
experiência”.
Neste sentido, conclui Delamar José Volpato Dutra, o problema da
verdade diz respeito à pragmática universal e o da objetividade à teoria do
conhecimento.
Na medida em que o entendimento se refere a algo no mundo objetivo,
social ou subjetivo, os participantes da interação reivindicam para seus proferimentos
quatro pretensões de validade, a saber, que o enunciado feito é verdadeiro; que a
interação é correta em relação a um contexto normativo em vigor; que a expressão
proferida é veraz, isto é, corresponde à intenção pretendida; e que o sistema simbólico
usado é compreensível. Falante e ouvinte (também este é participante da discussão)
procuram um consenso coordenador da ação, e este é avaliado criticamente pela sua
verdade, correção e veracidade, isto é, pela relação bem sucedida entre o ato de fala e os
três mundos, com os quais o agente entra em relação com seu proferimento, a saber,
com algo no mundo objetivo, como a totalidade das entidades sobre as quais são
possíveis verdadeiros enunciados; com algo no mundo social, como a totalidade das
relações intersubjetivas legitimamente reguladas; e com algo no mundo subjetivo, como
a totalidade das vivências acessíveis de modo privilegiado ao sujeito que pode proferir
verazmente para os outros47.
Seguindo Apel, Habermas introduz algumas condições que ele caracteriza
como “base de validade do discurso” e que cada um deve inevitavelmente preencher se
quiser participar de um processo de entendimento recíproco.
Trata-se de quatro
condições:
1. O falante deve escolher uma expressão compreensível, para que falante e
ouvinte possam entender-se um com o outro;
2. o falante deve ter a intenção de comunicar um conteúdo proposicional
verdadeiro, para que o ouvinte possa compartilhar o saber do falante;
3. o falante deve querer enunciar sua intenção com veracidade, para que o
ouvinte possa [...] crer no enunciado do falante;
47
ibidem, v. I, p. 143-146 e vol. II, 169-172.
71
4. finalmente, o falante deve escolher um enunciado correto em relação a
norma e valores existentes, para que o ouvinte possa aceitar seu enunciado e os dois
possam chegar a um consenso na moldura de um fundo normativo reconhecido como
válido.48
Isso deixa claro que o fim do entendimento é a criação de um acordo que
deve ser alcançado em um contexto intersubjetivo e por meio da satisfação das
condições anteriormente mencionadas.
Estas últimas remetem, portanto, às quatro
pretensões de validade introduzidas:
1. compreensibilidade;
2. verdade;
3. veracidade; e
4. justeza.
48
apud, PINZANI, Alessandro. Habermas. Porto Alegre: Artmed, 2009, p. 86.
72
4.7 – OS ATOS DE FALA E SUA CAPACIDADE DE PRODUZIR
CONSENSO
A capacidade dos atos de fala de produzir consenso ou de tornar aceitável ao
ouvinte a oferta de uma determinada relação interpessoal e, portanto, de uma
determinada coordenação da ação, reside no reconhecimento recíproco da pretensão de
validade levantada pela componente ilocutiva. Tal reconhecimento pode ser assegurado
na práxis quotidiana ao nível da normal interação linguística pelo conjunto de
convicções difusas e de esquemas cognitivos que constituem o mundo vivido partilhado
pelos agentes ou, no caso de dissenso irremovível, ao nível do discurso, onde é avaliada
e fundamentada a pretensão de validade controvertida. Habermas distingue então entre
discursos teórico, prático e explicativo, aos quais cabem a tarefa de fundamentar
respectivamente as pretensões universais de eficiência das ações instrumentais ou de
verdade dos proferimentos constatativos; de correção dos proferimentos regulativos; e
de compreensibilidade das expressões simbólicas proferidas. Ele distingue ainda entre
estética e terapêutica, referindo-se a primeira à preferibilidade dos valores culturais ou à
autenticidade de uma obra de arte, e possibilitando a segunda um processo de autoreflexão sobre a veracidade dos proferimentos expressivos49.
A racionalidade da ação comunicativa se baseia assim em atos de fala que
levantam pretensões de validade que podem ser criticadas e fundamentadas sobre a
força do melhor argumento. Na medida em que as pretensões de validade se referem
aos três conceitos de mundo, a sua criticabilidade e fundamentabilidade não se atribui só
a um saber de tipo cognitívo-instrumental, mas igualmente a um saber de tipo práticomoral e prático-estético.
Habermas chega assim a uma racionalidade diferenciada, por um lado, em
esferas irredutíveis entre si na medida em que são distintas as pretensões de validade
49
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Vol. I. Madri/Espanha: Taurus, 1987, p. 3343.
73
levantadas, as formas de argumentação e, consequentemente, os processos de
aprendizado requeridos para a justificação daquelas; mas, ao mesmo tempo, a uma
racionalidade unitária, não em sentido substancial, mas unicamente formal e processual,
enquanto “argumentos ou motivos têm ao menos isto em comum, que eles e só eles
podem desenvolver a força da motivação racional sobre os pressupostos comunicativos
de um exame cooperativo das pretensões hipotéticas de validade”50. A unidade da
racionalidade consiste, pois, em que o predicado racional só pode ser atribuído àquilo
para cuja justificação possam ser apresentados argumentos capazes de produzir
consenso entre os participantes da comunicação em virtude unicamente de sua
intrínseca plausibilidade.
Trata-se, portanto, de uma racionalidade comunicativo-consensual, que
inclui todo o potencial de racionalidade implícito nas três referências ao mundo, que
aparecem tematizadas por separado nas diversas teorias da sociedade51. Enquanto o
mecanismo da ação comunicativa funciona sobre a base do reconhecimento
intersubjetivo das pretensões de validade, as três referências ao mundo são assumidas
reflexivamente pelos mesmos agentes, na forma de pretensões de validade implícitas
nos seus proferimentos e, assim, estes “mobilizam expressamente o potencial de
racionalidade que, de acordo com as análises realizadas, encerram as três relações do
ator com o mundo, com o propósito, cooperativamente seguido, de chegarem a um
entendimento”52.
50
ibidem, v. I, p. 324 – “Y los argumentos o razones tienen al menos esto en común: que son ellos los
únicos que bajo los supuestos comunicativos de un examen cooperativo de pretensiones de validez
consideradas como hipotéticas pueden desarrollar la fuerza de motivación racional.”
51
ibidem, v. I, p. 499-500.
52
ibidem, v. I, p. 143 – “movilizan expresamente el potencial de racionalidad que, de acuerdo con los
análisis que hemos realizado hasta aquí, encierram las tres relaciones del actor com el mondo, com el
propósito, cooperativamente seguido, de llegar a entender-se.”
74
4.8 - O CONSENSO COMO VIA DE TRANSIÇÃO PARA A AÇÃO
ESSENCIALMENTE ÉTICA
Como já vimos, a razão humana é conduzida por dois fins básicos, conhecer
e agir, expressos nas formas, razão teórica e razão prática.
Esta última, que nos
interessa como guia da práxis humana acompanhada da razão, a qual em seu uso, seja
para guiar as ações no sentido em que ela aponta, seja para afastar do indicado por ela
como insensato, o ser humano torna-se ser moral e indivíduo ético. É ela a responsável
pela inserção do indivíduo na tradição ética à qual está necessariamente vinculado,
sendo que a primeira premissa aponta pela razão prática é justamente a impossibilidade
de uma vida ética construída e atualizada por um indivíduo solitário, o que nos impõe a
necessidade da comunhão expressa na tradição cultural53
Por ser imanente ao indivíduo, apontando para a necessária relação com o
outro, e decorrendo dessa relação, a objetividade (transcendente) da tradição, a estrutura
da razão prática se movimenta em três dimensões nas quais o indivíduo se manifesta
agindo eticamente, que se constituem como momentos da sua experiência ética: o
momento subjetivo, o intersubjetivo e o objetivo. Ou seja, a experiência ética do ser
humano
passa
por
três
momentos
dialeticamente
relacionados,
referidos
necessariamente um ao outro.
O momento subjetivo é experimentado pelo indivíduo consigo mesmo,
refletindo sobre seus propósitos, o que quer para si, independentemente da inserção na
relação com o outro; o momento intersubjetivo é a experiência do outro “invadindo” a
nossa individualidade, negada como absoluta num primeiro momento e afirmada em
seguida, ao se confirmar que o eu só o é diante de outro eu. Os indivíduos na sociedade
não se chocam, mas se encontram, estabelecem propósitos recíprocos, valores, ou seja,
realizam encontros pessoais. Desses encontros passamos a experimentar o momento
53
LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Escritos de filosofia V. Introdução à ética filosófica 2. São Paulo:
Edições Loyola, 2000, p. 141.
75
objetivo que é a realidade objetiva que se impõe diante do indivíduo, comum ao seu
semelhante, que no dizer de Lima Vaz é “formada por leis, princípios, regras, expressos
no ethos e que não se modificam (ou não podem ser modificados) pelo arbítrio de cada
um”.
Para Habermas, a vida ética se forma no movimento de um no outro,
dialeticamente, de modo que o indivíduo só se realiza a partir de si mesmo, com seus
próprios critérios e condições subjetivas, mas que só se desenvolvem na vivência com o
outro (que é também condição essencial para que ele próprio exista como sujeito moral).
Nesse encontro de sujeitos morais forma-se o consenso sobre o que deve ser
considerado o melhor, que transposto para o plano da objetividade situa-se a lei
jurídica, como ponto de chegada da lei moral posta em diálogo, e que encontra seu
termo não apenas como universal concreto ou singularidade da ação individual, mas
como uma nova forma de universalização sob a forma de Direito.
Ao colocarmos o consenso como ponto de chegada do reconhecimento e
ponto de partida da colocação do direito como ordem objetiva central na realização ética
da sociedade, cabe referenciar o projeto filosófico comunitarista (que trataremos
adiante) arquitetado especialmente por Jürgen Habermas. Opõe-se fundamentalmente
às concepções universalistas da filosofia clássica e moderna, por supor que a grande
falha desses sistemas de pensamento é a não inclusão da variável comunicação, ou
diálogo, produtor do consenso, em suas doutrinas éticas, o que leva à
pseudocompreensão de que tal consenso dá-se como transcendência, e não como
imanência construída.
Essa nova vertente filosófica aposta no consenso ou numa concepção de
sociedade consensual como paradigma de construção de uma nova reflexão ética: que
tem por objeto um ethos discursivo ou que procede e se desenvolve por argumentações
e contra-argumentações, na formação de convicções e expectativas éticas (consenso
comunitário sobre o que é ou não válido moralmente). Para tanto, começa por substituir
o antigo conceito de razão prática pela razão comunicativa, incluindo no conceito de
76
racionalidade o meio lingüístico. Para distingui-las, em primeiro lugar, temos que a
razão prática é normativa, vinculante da ação, comando dirigido à vontade, enquanto
que a razão comunicativa expressa a gênese ou o momento de formação do comando,
antes mesmo de submeter à vontade, encontrando as suas razões. A normatividade
pressupõe a racionalidade do imperativo, sob pena de ele não se efetivar.
“Normatividade e racionalidade cruzam-se no campo da fundamentação de
intelecções morais, obtidas num enfoque hipotético, as quais detêm uma certa força de
motivação racional, não sendo capazes, no entanto, de garantir por si mesmas a
transposição das ideias para um agir motivado”.54
As intelecções morais racionalmente motivadas pelo indivíduo devem ser
superadas num plano coletivo, no qual cada singularidade é dialetizada na outra,
formando uma nova intelecção compartilhada linguisticamente.
Tem-se que a razão prática é compreendida a partir do padrão interpretativo
da singularidade. Ainda quando se tem em mira a pluralidade, o modelo continua
sendo o sujeito individual em dimensões ampliadas. Como faculdade subjetiva, a razão
prática (individual) perpassa as interações sociais, visto que o sujeito é a verdadeira sede
de toda e qualquer conceptualização, tornando a sociedade uma mera união desses
sujeitos.
Já a razão comunicativa toma o sujeito interagindo num meio formado
linguisticamente, pois é no ato da fala que buscamos o entendimento com alguém sobre
algo no mundo.
Ao contrário da razão prática, a razão comunicativa não está limitada a
atores singulares da ação, nem como indivíduos, nem como macroindivíduos
sociopolíticos.
Ela é possibilitada pelo “medium lingüístico, através do qual as
interações se interligam e as formas de vida se estruturam”. O entendimento humano é
em si mesmo lingüístico e é nessa concepção de “linguisticidade” do intelecto que se
insere o conceito de razão comunicativa, que forma as condições que possibilitam e
54
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 21.
77
limitam ao mesmo tempo a compreensão e a ação dos indivíduos no tempo.55
Para que a interação entre os sujeitos capazes de falar e agir e de se
entenderem mutuamente sobre algo no mundo alcance o consenso, os sujeitos em
relação aceitam alguns pressupostos universais sobre os quais construirão a gama de
argumentos e contra-argumentos que formarão a comunhão de opiniões, São eles:
- o falante deve-se expressar de modo a se fazer compreender;
- sua comunicação deve buscar verdadeiramente o entendimento de algo por
alguém;
- deve expressar verdadeiramente suas reais intenções;
- deve manifestar-se de maneira correta (sintática e semanticamente) para
que torne possível o entendimento;
- não se deve simular uma discussão sobre preferências, pois que sobre elas
não há possibilidade satisfatória de crítica ou convencimento.
Resumidamente, são três as condições ideais estabelecidas pela ética da
discussão, para que um discurso possa ser validado racionalmente: que sejam
estabelecidas regras de consistência semântica necessárias para cada tipo de
argumentação; que se estabeleçam normas que organizem a conversação; e,
principalmente, que existam regras que assegurem a participação livre e igual de todos
sendo que está última representa a esperança de um consenso sem coação e
racionalmente motivado.56
55
ibidem, v. I, p. 20.
HABERMAS, Jürgen. apud GÜNTHER, Klaus. Uma concepção normativa de coerência para uma
teoria discursiva da argumentação jurídica. Cadernos de filosofia alemã. Nº 6. São Paulo: Publicação do
Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, 2000, p. 86-87.
56
78
4.9 – PREMISSAS DO TERMO “MUNDO DA VIDA” ADOTADO
POR HABERMAS
Primeiramente, cabe um esclarecimento acerca do que Habermas entende
por “mundo da vida” (Lebenswelt). O termo “mundo da vida” foi introduzido por
Edmund Husserl, na obra A crise das ciências europeias, com o objetivo de contrapô-lo
ao pensamento científico predominante desde meados do século XIX e início do século
XX, em que a metodologia das ciências da natureza era a única forma possível de
conhecimento. Assim, o “mundo da vida”, pela posição fenomenológica de Husserl,
não se trata do mundo na atitude natural, mas é o mundo histórico-cultural concreto, das
vivências cotidianas com seus usos e costumes, saberes e valores, e que se contrapõe à
universalidade almejada pelas ciências positivistas. Habermas, ao formular sua teoria
do agir comunicativo, resgata o termo “mundo da vida” husserliana, mas, de certa
forma, afasta-se dele, como se nota no seguinte excerto:
“Não vou me deter aqui no método de Husserl, nem
no contexto que cerca a introdução de seu
conceito “mundo da vida”; eu me aproprio do
conteúdo material dessas pesquisas, estribando-me
na ideia de que também o agir comunicativo está
embutido num mundo da vida, responsável pela
absorção dos riscos e pela proteção da retaguarda
de um consenso de fundo”57.
Com relação a Heidegger, sua crítica à filosofia da consciência é
considerada positivamente por Habermas, pois “a consciência transcendental deve ser
submetida às condições de faticidade histórica e da existência intramundana, sem que
haja prejuízo de sua originalidade fundadora do mundo”58. Assim, ao colocar o Dasein
57
Habermas, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. Estudos filosóficos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2002, p. 86.
58
ibidem, p. 50-51.
79
como constituinte do mundo, dissolve-se o conceito de subjetividade transcendental no
processo do ser-no-mundo. Por outro lado, Habermas censura em Heidegger o modo
como ele encara a própria constituição do mundo vivido. Segundo ele, isto acontece a
partir do ser-aí em seu operar prático para com o mundo. Em suma, para Habermas,
Heidegger depara-se com o mesmo problema enfrentado por Husserl, ou seja, como
construir, a partir da perspectiva de cada ser-aí, um ser-com, um mundo intersubjetivo.
Quanto a Wittgenstein, Habermas o critica por não ter construído uma teoria
geral dos jogos de linguagem, tarefa que, no entanto, diz ter cumprido com sua
pragmática universal. Por seu turno, Wittgenstein afirma que não há uma teoria comum
aos vários jogos, às várias formas de vida e nem é possível construir uma tal teoria.
Admite apenas semelhanças de família entre os jogos59.
Feito esse ligeiro preâmbulo, no livro Direito e democracia, Habermas volta
a afirmar que “o mundo da vida, do qual as instituições são uma parte, manifesta-se
como um complexo de tradições entrelaçadas, de ordens legítimas e de identidades
pessoais — tudo reproduzido pelo agir comunicativo.”60
59
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural,
1979, § 65-67 (Coleção: Os Pensadores).
60
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 42.
80
4.10 – A DESIDEALIZAÇÃO DO MUNDO VIVIDO
A partir de um conceito mais amplo de racionalidade, no qual a linguagem
com suas estruturas é condição de possibilidade da racionalidade comunicativa,
Habermas desenvolve o conceito complementar de mundo vivido que será
absolutamente determinante para a análise da sociedade contemporânea.
Enquanto na “teoria da competência comunicativa” Habermas mostrava os
atos de fala, as estruturas e a situação discursiva ideal da linguagem em seu estado puro,
agora, com a introdução do conceito do mundo vivido, ele de certo modo desidealiza
essa teoria. Com efeito, o mundo vivido é introduzido como correlato dos processos de
entendimento, pois os sujeitos que agem comunicativamente entendem-se sempre no
horizonte linguístico de um mundo vital partilhado por eles61. Este mundo forma o
horizonte contextual em que os sujeitos sempre se movem no seu agir.
É nesse
horizonte que os agentes ordenam os contextos situacionais que se tornam
problemáticos através do “andaime formal” armado pelo tríplice conceito de mundo —
objetivo, social e subjetivo — e suas correspondentes pretensões de validade. Em
síntese, a linguagem e a cultura são os elementos que constituem o mundo vivido
(Habermas, Teoria da ação comunicativa, II, p. 170).
Assim, além da linguagem, o mundo vivido exerce também a função de
reservatório cultural, no qual são conservados os resultados das elaborações históricas
realizadas pelos processos de ação. Neste sentido, o mundo vivido armazena o trabalho
de interpretação feito previamente pelas gerações anteriores. Esta provisão de saber
fornece a seus membros convicções de fundo admitidas e compartilhadas sem
problemas. O mundo vivido “é o contrapeso conservador contra o risco de dissenso que
surge com todo processo atual de entendimento”62.
A cultura é, pois, também
61
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Vol. I. Madri/Espanha: Taurus, 1987, p. 104 e
vol. II, p. 169-180.
62
ibidem, vol. I, p. 104 – “...es el contrapeso conservador contra el riesgo de disentimiento que comporta
todo proceso de entendimiento que esté en curso”.
81
constitutiva do mundo vital. Assim o mundo vivido é como que o lugar transcendental
em que falante e ouvinte se movem, onde eles podem levantar reciprocamente a
pretensão de que seus proferimentos se ajustam ao mundo objetivo, social e subjetivo,
onde eles criticam e confirmam essas pretensões de validade, suportam seus dissensos e
podem obter um acordo – “O mundo da vida é como tal constitutivo para o
entendimento, enquanto os conceitos formais de mundo formam um sistema de
referência para aquilo sobre o qual é possível entender-se: falante e ouvinte se entendem
a partir de seu mundo comum de vida sobre algo no mundo objetivo, social ou
subjetivo”63.
63
ibidem, v. II, p. 179 – “... el mundo de la vida le es constitutivo al entendimiento como tal, mientras que
los conceptos formales de mundo forman un sistema de referencia para aquello sobre que el
entendimiento es posible: hablante y oyente se entienden desde, y a partir de, el mundo de la vida que les
es común, sobre algo em el mundo objetivo, en el mundo social y en el mundo subjetivo.”
82
4.11 – CAMPO DE ARTICULAÇÃO DO MUNDO VIVIDO
Mas se o mundo vivido se refere à ação como o horizonte à situação, existe
também a relação inversa, a incidência da ação sobre o mundo vivido para a sua
reprodução, seja nas estruturas simbólicas, seja no seu substrato material. Em relação à
função de reservatório para a ação, o mundo vital se articula em três componentes
estruturais: cultura, sociedade e pessoa. Cultura entendida como “a provisão do saber
do qual os participantes da comunicação se abastecem com interpretações, enquanto
eles se entendem sobre algo do mundo”. Sociedade, como “ordenamentos legítimos
sobre os quais os participantes da comunicação regulam sua pertença a grupos sociais e,
assim, asseguram a solidariedade”. Personalidade, como “as competências que tornam
um sujeito capaz de linguagem e de ação, portanto, que o capacitam para participar em
processos de entendimento e para afirmar neles a própria identidade”64.
A cultura se renova através da reprodução cultural que permite a
continuidade e o crescimento do saber. A sociedade se reproduz através da integração
social, isto é, a coordenação da ação segundo regras reconhecidas intersubjetivamente, e
da produção de solidariedade dos grupos pela aquisição de capacidades generalizadas de
ação. A pessoa se reproduz na socialização, isto é, mediante o processo de formação da
identidade pessoal e da responsabilidade social. Assim, as estruturas simbólicas do
mundo vivido se reproduzem pela ação comunicativa que se estende na dimensão
semântica dos significados simbólicos pela continuidade da tradição e da coerência do
saber válido (racionalidade do saber); na dimensão do espaço social pela estabilização
da solidariedade dos grupos, e na dimensão do tempo histórico pela formação de
sujeitos capazes de responsabilidade.
Quando a cultura oferece suficiente saber válido para satisfazer a
necessidade de entendimento, o processo de reprodução cultural contribui para a
conservação das outras duas componentes com legitimações para as instituições
64
ibidem, v. II, p. 196.
83
existentes e com modelos de comportamento eficazes para a formação da
responsabilidade. Quando a sociedade mostra uma solidariedade dos grupos capaz de
satisfazer a necessidade de coordenação da ação, o processo de integração social oferece
aos indivíduos atribuições sociais reguladas legitimamente e obrigações morais no plano
da cultura.
A partir do conceito amplo de racionalidade comunicativa, conseguida não a
nível ontológico nem a nível transcendental, mas como teoria da reconstrução das
competências universais comunicativas do gênero humano, Habermas está em
condições de conceituar a sociedade ligando os dois conceitos complementares de
“mundo vivido” e “sistema”, e de elaborar uma teoria da modernidade que explique o
tipo de patologias sociais com as quais nos defrontamos de modo mais visível. O
desdobramento desta teoria aparece na sua tese central da colonização do mundo vivido.
Um dos conceitos, o mundo vivido, constitui o espaço social em que a ação
comunicativa permite a realização da razão comunicativa calcada no diálogo e na força
do melhor argumento em contextos interativos, livres de coação. O outro conceito, o de
sistema, adota a perspectiva do observador externo à sociedade. É um conceito que não
se opõe ao de mundo vivido, mas o complementa. Com o seu auxílio é possível
descrever aquelas estruturas societárias que asseguram a reprodução material e
institucional da sociedade: a economia e o Estado.
No interior do “sistema”, a
linguagem é secundária, predomina a ação instrumental ou estratégica.
84
4.12 - COLONIZAÇÃO DO MUNDO VIVIDO
Uma teoria crítica da sociedade não pode deixar-se determinar pelas
correntes atuais de investigação nas ciências sociais que supõem ingenuamente como
seus objetos, âmbitos que são resultado do processo de modernização da sociedade e
que surgiram como consequência do afastamento do mundo vivido. As três correntes
principais que Habermas analisa — o cientificismo positivista, o racionalismo crítico e
o solipsismo metódico —, orientadas pela história da sociedade, pela teoria sistêmica e
pela teoria da ação na vida quotidiana65, ou não separam suficientemente os aspectos
sistêmicos dos do mundo vivido como a primeira, e então não aparecem as patologias
da modernidade como tais ou, como no caso da segunda e da terceira, isolam e
generalizam um dos aspectos, seja o do sistema e então a teoria se torna insensível às
patologias sociais, seja o do mundo vivido e então a teoria ignora a dinâmica própria
sistêmica do desenvolvimento econômico e da formação do Estado.
A teoria da
modernidade de Habermas parte de um marco teórico mais amplo que resulta, por um
lado, da ampliação das bases da teoria da ação em direção a uma teoria da ação
comunicativa orientada para o conceito de mundo vivido da sociedade e para a
perspectiva evolutiva da diferenciação das estruturas do mundo vivido e, por outro lado,
do desenvolvimento da teoria da sociedade em direção a um conceito bipolar de
sociedade que sugere a perspectiva evolutiva de autonomização dos contextos de ação
integrados sistemicamente frente a um mundo vivido integrado socialmente66.
Tomando a sociedade a partir deste duplo conceito, Habermas pode captar tanto a lógica
dos agentes dentro do mundo vivido quanto à lógica funcionalística dos sistemas de
ação, pois ele pode distinguir a racionalização do mundo vivido, que resulta de sua
diferenciação estrutural, e a racionalização dos componentes da sociedade, que resulta
da intensificação da complexidade dos sistemas de ação. Assim, teoria sistêmica e
teoria da ação recompõem para Habermas a totalidade dialética analisada por Hegel e
65
66
ibidem, v. II, p. 544-546.
ibidem, v. II, p. 441.
85
Marx sob os conceitos de sistema e eticidade, forças produtivas e relações de produção.
Na obra Direito e democracia, Habermas ao reconhecer a complexidade e
diversidade de contextos culturais, de ordens legítimas e de identidades pessoais, que
levam a mundos da vida plurais, tal que impossibilitam o papel estabilizador de
expectativas e de comportamentos, reformula seu conceito de direito e, nesses casos,
substitui a figura do mundo da vida (Lebenswelt), como estabilizador social, pelo
sistema jurídico legitimamente construído a partir de uma política deliberativa que
observe as garantias de participação dos afetados pelas normas na sua construção, pois o
direito, numa sociedade democrática e plural, permite o dissenso, a discordância, a
problematização, e admite regular os riscos advindos — tem-se, portanto, a tensão entre
facticidade e validade.
Conclui Habermas, “no sistema jurídico, o processo da
legislação constitui, pois, o lugar propriamente dito da integração social.”67
67
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 52.
86
4.13 – O PROCESSO DE RACIONALIZAÇÃO COMO SUBSTRATO
DA LINGUAGEM
Enquanto a linguagem é portadora de uma instância de universalidade e de
racionalidade, o mundo vivido é perfeitamente maleável aos processos de
racionalização. Por isso, Habermas mostra que o desenvolvimento dessa racionalidade
se dá, em primeiro lugar, no âmbito da ação comunicativa. Esse processo configura-se
como um longo percurso marcado por etapas ligadas entre si por uma lógica interna
(que Habermas descobre com ajuda de G. H. Mead e D. Durkheim)68, através da qual a
linguagem assume cada vez mais a função de comando e libera o potencial de
racionalidade nela contido. O “telos” dessa racionalização do mundo vivido aparece
quando o consenso é conseguido unicamente através da linguagem, o qual não é apenas
meio de comunicação mas, ao mesmo tempo, sua norma imanente por causa dos
pressupostos implicados.
Para Habermas, o que nos distingue da natureza é a
linguagem. O verdadeiro substrato do processo de racionalização são as estruturas da
racionalidade implicadas e pressupostas pela linguagem.
Daí que o processo de
racionalidade do mundo vivido aparece então como um desenvolvimento através do
qual a linguagem desenvolve a sua lógica interna e chega a exercer a sua função
específica de produzir consenso sobre a base de pretensões de validade diferenciadas e
fundamentáveis racionalmente.
O uso da linguagem como meio do consenso provoca uma diferenciação das
estruturas do mundo vivido, entre sociedade e cultura, isto é, entre os sistemas de
instituições sociais e as visões do mundo; entre personalidade e sociedade no sentido de
que as relações intersubjetivas vão se independizando da regulamentação social; entre
cultura e personalidade na medida em que a tradição cultural vai sendo submetida à
crítica inovadora dos indivíduos, afirma Habermas.
Essa diferenciação estrutural é acompanhada de uma ulterior diferenciação
68
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Vol. I. Madri/Espanha: Taurus, 1987, vol. II,
87
entre forma e conteúdo. No plano cultural, destacam-se os elementos formais (como
conceitos de mundo, processos de argumentação, valores abstratos, ...) das imagens
míticas do mundo. No plano da sociedade, princípios universais são abstraídos dos
contextos particulares. No plano da personalidade, as estruturas cognitivas adquiridas
nos processos de socialização separam-se dos conteúdos culturais.
À diferenciação estrutural corresponde, finalmente, uma especificação
funcional dos processos de reprodução que assumem tarefas especializadas.
São
significativos no âmbito da tradição cultural os sistemas de ação para a ciência, direito e
arte; no âmbito da integração social as modalidades de formação discursiva da vontade;
no âmbito da socialização e profissionalização nos processos de educação. Esta última
especificação leva consigo um desdobramento reflexivo da reprodução simbólica do
mundo vivido69.
Essa racionalização do mundo vivido, posta em movimento pelo potencial
implícito de racionalidade da linguagem e que origina uma diferenciação estrutural,
possibilita cada vez mais uma integração social baseada no mecanismo de uma
comunicação orientada para o entendimento como princípio coordenador da ação, isto é,
de uma comunicação orientada pelas pretensões de validade.
p. 7 e 154.
ibidem, v. II, p. 208.
69
88
4.14 – PATOLOGIAS DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
A mesma racionalização do mundo vivido, na medida em que libera a ação
comunicativa do peso das prescrições normativas da tradição, permite a introdução de
novos mecanismos de coordenação da ação. Com efeito, a base material do mundo
vivido encontra o caminho livre para organizar-se de um modo novo. Ela desliga a ação
social dos processos de entendimento e passa a coordená-la através dos valores
instrumentais generalizados: dinheiro e poder, compreendendo Mercado e Estado, que
operam funcionalmente sobre as conseqüências dos atos e provocam uma substituição
do meio da linguagem por novos mecanismos sistêmicos de coordenação da ação. Pela
linguagem, a coordenação era assegurada pela possível satisfação argumentativa das
pretensões racionais de validade.
Pelos novos meios, a coordenação remete a
recompensas ou desvantagens de tipo empírico, dando origem ao princípio sistêmico de
integração. A racionalidade comunicativa, orientada pela linguagem, é substituída pelas
racionalidades teleológica e cognitivo-instrumental dirigidas e controladas pelos novos
meios. Assim, dinheiro e poder, compreendidos como novos meios de comunicação,
possibilitam a coordenação das ações reduzindo-as ao âmbito estratégico.
Com o surgimento das sociedades capitalistas, Mercado e Estado não só se
consolidam como caminham para uma independência do mundo vivido e para um
processo de racionalização moderna, possibilitando a passagem da sociedade feudal à
sociedade burguesa, mas que, apesar da integração inicial, deu lugar às patologias da
sociedade contemporânea. A partir dessa conexão é que Habermas pode reinterpretar as
patologias modernas como deformações provocadas pela penetração da economia e da
administração no mundo vivido.
89
4.15 – CONTRADIÇÃO ENTRE A AÇÃO ESTRATÉGICA E A
AÇÃO COMUNICATIVA
Habermas não aceita a explicação das patologias da modernidade em termos
de crítica da reificação, feita por Lukács nem de uma crítica da razão instrumental,
apresentada por Adorno e Horkheimer.
A contradição aparece então “entre a
racionalização da comunicação quotidiana, ligada às estruturas intersubjetivas do
mundo da vida, para a qual a linguagem representa o meio genuíno e insubstituível de
entendimento, e a crescente complexidade dos subsistemas de ação racional teleológica,
nos quais dinheiro e poder, como meio de controle, coordenam as ações”70.
A
contradição surge não entre dois tipos de ação comunicativa e ação estratégica, mas
entre dois princípios de integração na sociedade.
O paradoxo weberiano da
racionalização pode ser concebido agora da seguinte maneira: “a racionalização do
mundo da vida possibilita um tipo de integração sistêmica que entra em concorrência
com o princípio de integração do entendimento e que, sob determinadas condições pode
retroagir com efeitos desintegradores sobre o mundo da vida”71. Quando o princípio
sistêmico de integração na sociedade chega a desintegrar o mundo vivido, temos o que
Habermas chama a colonização do mundo vivido pelo sistema, que é o traço
característico do processo histórico de racionalização ocidental. Em que condições se
dá essa colonização do mundo vivido?
Vimos antes que um mundo vivido amplamente racionalizado é condição
inicial para o deslanchamento do processo de modernização.
Dinheiro e poder,
ancorados no mundo vivido através do direito, possibilitam a diferenciação dos aspectos
econômico e administrativo. Sobre essa diferenciação sistêmica surgiram as sociedades
70
ibidem, v. I, p. 437 – “... entre la racionalización de la comunicación cotidiana, ligada a las estructuras
intersubjetivas del mundo de la vida, para la que el lenguaje representa el medio genuino e insustituible
de entendimiento, y la creciente complejidad de los subsistemas de acción racional con arreglo a fines en
donde coordinan la acción medios de control como el dinero y el poder.”
71
ibidem, v. I, p. 437 – “... la racionalización del mundo de la vida hace posible un tipo de integración
sistémica que entra en competencia con el principio de integración que es el entendimiento y que, bajo
determinadas condiciones, puede incluso reobrar con efectos desintegradores, sobre el mundo de la vida.”
90
modernas, primeiro capitalistas e, em oposição a elas, as socialistas. A modernização
capitalista avança na medida em que o sistema econômico se independiza e se torna
princípio de organização da sociedade. No processo de modernização socialista, ao
contrário, o sistema administrativo adquire uma autonomia semelhante em face do
sistema econômico, baseado na estatização dos meios de produção e do domínio de um
único partido. Na medida em que se consolidam esses dois princípios de organização
da sociedade, surgem as relações de troca entre ambos os sistemas — capitalista e
socialista — e as correspondentes esferas privada e pública do mundo vivido.
Ora, nas sociedades assim modernizadas, as perturbações da reprodução
material do mundo vivido assumem a figura de desequilíbrios sistêmicos que agem
imediatamente provocando crises ou patologias no mundo vivido72.
Passemos a uma reflexão sobre a ética do discurso no contexto do Direito.
72
ibidem, v. II, p. 545.
91
PARTE II – O DIREITO COMO UM MEIO PARA A VALIDAÇÃO
DA ÉTICA DISCURSIVA E A VERIFICAÇÃO DE SUA FACTICIDADE
CAPÍTULO V – O DIREITO E A ÉTICA DISCURSIVA
5.1 - A ÉTICA DISCURSIVA E SUA RELAÇÃO COM OUTROS
SABERES PRÁTICOS
Como já vimos, a ética discursiva foi se configurando a partir dos anos
1970 como um dos raios do denso núcleo filosófico constituído pela pragmática formal
(transcendental ou universal), a teoria da ação comunicativa, uma nova teoria da
racionalidade, uma teoria consensual da verdade e da correção e uma teoria da
evolução social.
A partir desse núcleo teórico-prático, a ética discursiva mantém
excelentes relações com outros saberes práticos, tais como o direito, a política e a
religião, a ponto de, nos últimos tempos, ela vir trabalhando inclusive em uma filosofia
do direito, em uma teoria dos direitos humanos e inspirando a ideia de um Estado de
direito. Quanto a suas relações com a religião, elas são, na superfície, de convivência
pacífica, mas em profundidade a ética discursiva se viu acusada de constituir até
mesmo uma “religião civil”.73
A práxis linguística mostra que é impossível as pessoas subsistirem sem
uma trama de relações intersubjetivas, sem um mínimo de reconhecimento recíproco
entre os participantes em uma linguagem, que os habilite a se considerarem
mutuamente como pessoas. A justiça é, então, necessária para proteger os sujeitos
autônomos, mas igualmente indispensável é a solidariedade, porque a primeira postula
igual respeito e direitos iguais para cada sujeito autônomo, enquanto a segunda exige
empatia e preocupação com o bem-estar do próximo: os sujeitos autônomos são
73
CORTINA, Adela. Ética sem moral. Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.
92
insubstituíveis, mas também o é a atitude solidária de quem reconhece sua inserção em
uma forma de vida compartilhada. Assim, uma ética política que faz justiça à realidade
social é aquela que colabora na formação de homens autônomos e solidários,
distanciados tanto de um coletivismo homogeneizador quando de um individualismo
sem identidade.
164.
93
5.2 - A CONCEPÇÃO DISCURSIVA DO DIREITO
Habermas pretende dar conta da legitimidade do direito a partir de uma
perspectiva discursiva, o que remete ao conceito de racionalidade comunicativa. Tal
conceito é reconstruído na obra Teoria da ação comunicativa, a partir dos
desdobramentos da própria filosofia da linguagem, perpassando vertentes como a do
segundo Wittgenstein, bem como a filosofia da linguagem ordinária de Austin e
Searle74. Na base dessa adoção Habermas se valeu do linguista norte-americano Noam
Chomsky (1928- ) cuja teoria gramatical representa o fundo da pragmática universal da
ética discursiva. Chomsky, na obra Linguística cartesiana desenvolve a ideia de que “a
gramática universal” significa uma única gramática que é subjacente a toda língua
humana, enquanto Foucault, ao contrário, em As palavras e as coisas, nos lembra que
prevalece uma “gramática universal” de cada linguagem particular, não necessariamente
pertinente a qualquer outra linguagem. Por outras palavras, para Foucault, a linguagem
é um campo de batalha, o que impossibilita acordos universais.
Nesse contexto,
linguagem para Habermas é uma coisa, para Foucault outra. Feito esse esclarecimento,
vejamos como se dá a concepção discursiva do direito.
Para John Rawls, o direito deve proporcionar justiça, isto é, ser capaz de
promover uma sociedade justa e bem ordenada, mesmo sob os imperativos da
modernidade. Cidadãos racionalmente motivados acatam princípios imparcialmente
avaliados, aderem a eles, de modo que a vida sob instituições justas produz disposição
para a justiça. O problema é como chegar a esse nível, através de que instituições o
direito passa a ter função integradora. Pela proposta contextualista de Rawls, os meios
de obter justiça são a prática jurídica, o consenso político, o pluralismo de opiniões e
modos de vida.
74
apud DUTRA, Delamar José Volpato. Razão e consenso em Habermas: a teoria discursiva da verdade,
da moral, do direito e da biotecnologia. 2ª edição revista e ampliada. Florianópolis: Editora da UFSC,
2005, p. 190.
94
Nessa linha, Habermas dá ao direito a função de introduzir a ação
comunicativa, cujo solo é o mundo vivido, no sistema que se subsume em poder político
do estado e poder econômico.
A ordem legítima leva a internalizar valores que
orientam o comportamento não pela coação externa, e sim por decisões em que pesam
os valores considerados em si mesmos. Essa validade ideal, segundo Weber, recebe o
assentimento de todos, porém, para realizá-la requer-se uma autoridade reconhecida por
todos, portanto, legítima. Assim, o direito tem função administrativa, estabelece as
regras. Habermas considera que o direito, na modernidade, exerce não só essa função
reguladora, mas também uma função integradora.
O pressuposto é o de que a sociedade civil assegura os direitos a todos os
sujeitos livres e iguais. A integração social se dá pela ordem jurídica que regula o
sistema.
Essa ordem institucionaliza-se no mundo vivido.
A organização social
democrática moderna possui um sistema jurídico que protege a vida, a liberdade e a
propriedade, dá direito de participação política pela formação da vontade e da opinião.
Todavia, há grandes dificuldades para implementar essas exigências e exercê-las.
Geralmente prevalecem os interesses privados, dirigidos pelo mercado, pela burocracia,
pelo clientelismo.
Sobre isso, afirma Habermas:
“Os sistemas da economia e da administração têm a
tendência
de
fechar-se
contra
seus
mundos
circundantes
e
de
obedecer
unicamente
aos
próprios imperativos do dinheiro e do poder
administrativo.
Eles rompem o modelo de uma
comunidade de direito que se determina a si
própria, passando pela prática dos cidadãos.
A
tensão entre um alargamento da autonomia privada
e
cidadã,
de
um
lado,
e
a
normalização
foucaultiana
do
gozo
passivo
de
direitos
concedidos paternalisticamente, de outro lado,
está introduzida no status de cidadão das
95
democracias de massa do Estado social”75.
Essa situação representa uma dificuldade a mais, um outro tipo de tensão
entre facticidade e validade, quer dizer entre o que de fato ocorre e o que se espera
como ideal social. O direito se forma através de um saber cultural e é componente
indispensável da sociedade; enquanto conjunto de proposições e interpretações
normativas o direito se alimenta de um tipo de saber bem fundamentado e articulado
com princípios morais, e desse modo favorece a ação comunicativa. O mundo vivido
como rede de ações comunicativas, que se forma em correlação com a tradição cultural,
com as ordens legítimas e indivíduos socializados, dá conta de uma perspectiva não
desoladora da modernidade. Segundo a teoria habermasiana da ação comunicativa, o
direito pertence à rede do mundo vivido, notadamente à da ordem social, mas tem
relação com a cultura e a personalidade, faz parte da comunicação cotidiana,
integradora, e serve como uma “linguagem” para levar os anseios do mundo vivido,
especialmente justiça e solidariedade, para o sistema econômico e para a administração
pública.
Habermas sustenta até mesmo que “a linguagem do direito pode funcionar
como um transformador na circulação da comunicação entre sistema e mundo da vida, o
que não é o caso da comunicação moral, limitada à esfera do mundo da vida”76.
Diante das regras econômicas, o direito assume uma função integradora,
garante os direitos e a autonomia do cidadão. Com isso, estabelece-se um fluxo entre a
liberdade pessoal, subjetiva e a autonomia, isto é, entre o privado e o público. A
autonomia não é autêntica se estiver sob os pressupostos da filosofia da consciência,
como em Kant ou em Rousseau. A autonomia não pode se basear na pessoa do cidadão
privado, singular, protegido por leis, nem no povo ao qual cabe realizar a história
75
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 109-110.
76
ibidem, v. I, p. 112.
96
(Hegel), mas em pessoas formadas discursivamente, com opinião e vontade expostas no
uso da linguagem voltada para o entendimento.
A razão e a vontade, formam as convicções acerca das quais há acordo
obtido pela discussão entre todos, e nunca pela posição externa ao discurso. Este
embasa a vontade racional, principalmente a da opinião pública; é pelo discurso que
passa toda situação problemática. O direito é o meio de que se vale o discurso para, a
cada vez que surgem problemas, servir como meio para a aplicação apropriada de
normas e regulamentos.
Os direitos humanos (autonomia privada) e a soberania
(autoridade política) se articulam em forma de comunicação que legitimam leis e sua
institucionalização.
97
5.3 - O RACIOCÍNIO PRÁTICO E O DIREITO
Chäim Perelman77 78, em sua obra Ética e direito, esclarece que o raciocínio
prático se insere numa ordem que comporta valores e normas aceitas, assim como
situações de fato que, por sua duração e graças à prescrição, se transformam em
situações de direito, em precedentes que se têm de levar em conta, situações e
precedentes que impõem o ônus da prova e da justificação àqueles que quiserem
modificá-los.
Para essa área tão diferente da lógica e da teoria do conhecimento
tradicionais, existe uma disciplina, cuja análise permitiria tornar evidentes as
características do raciocínio prático, a saber: o direito79, desprezado pelos filósofos,
tanto empiristas quanto racionalistas, que não quiseram reconhecer senão um modelo de
raciocínio digno do interesse do lógico, o raciocínio teórico ou científico. Mas, se
reconhecermos a especificidade do raciocínio prático, admitiremos sem dificuldade a
insuficiência dos modelos extraídos do raciocínio teórico.
Situaremos então o
raciocínio prático na perspectiva que lhe convém, a de um pensamento intimamente
vinculado à ação, que visa à coexistência pacífica de uma pluralidade de seres livres.
Vejamos porque isso é importante para a ética discursiva de Habermas.
77
PERELMAN, Chäim (1912-1984): filósofo da área do direito e da retórica. Foi um dos mais
importantes teóricos da retórica do século XX. Sua principal obra “Tratado da argumentação (1958),
escrito em conjunto com Lucie Olbrechts-Tyteca
78
PERELMAN, Chäim. Ética e direito. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª edição.
São Paulo: Martins Fontes, 2005.
79
ibidem, p. 62.
98
5.4 - DISTINÇÃO ENTRE MORAL E DIREITO
Tradicionalmente, os estudos consagrados às relações entre o direito e a
moral insistem, dentro de um espírito kantiano, naquilo que os distinguem: o direito
rege o comportamento exterior, a moral enfatiza a intenção, o direito estabelece uma
correlação entre os direitos e as obrigações, a moral prescreve deveres que não dão
origem a direitos subjetivos, o direito estabelece obrigações sancionadas pelo poder, a
moral escapa às sanções organizadas.
Mas, onde entraria a ética?
Os princípios
fundamentais da moral, sejam eles deontológicos ou teleológicos, sejam eles formalistas
ou utilitaristas não são contestados in abstrato. Porém, tão logo se trata de aplicá-los a
circunstâncias concretas, dão azo a infinitas controvérsias.
Neste trabalho, não se
apresenta relevante a distinção entre ética e moral. Usamos-as indistintamente, ainda
que, em determinadas situações, possam soar com conotações distintas.
O acréscimo fundamentalmente jurídico do direito à vida ética é a coerção, e
aí reside sua condição de realidade ética: suprir a moral em sua carência coerciva
objetiva, não obstante a coerção subjetiva inerente à moral, seja pelo temor seja pelo
remorso.
Normalmente a consciência moral individual já se posiciona perante o
direito como se essa ordem normativa fosse um coator que lhe priva de satisfações das
mais variadas. Geralmente, os indivíduos se alienam da ordem jurídica como se ela não
fosse uma instituição social; isso ocorre, em verdade, por uma dificuldade imanente ao
ser humano de se privar ou se limitar em nome do outro ou de um dever
consensualmente estabelecido: dar adesão universal não implica na particularização da
práxis. Imperativos categóricos só são encontrados numa espontaneidade sinceramente
racional, o que temos dificuldade em buscar, como sempre admitira Kant. Quando,
entretanto, buscamos imperativos estáveis (pelo menos num determinado tempo
histórico satisfatório), racionalmente consentidos, passamos ao domínio da ordenação
social racional objetiva, que é o direito.
99
No estágio de desenvolvimento pós-convencional, típico da modernidade,
direito e moral são esferas distintas. O direito não se confunde com uma hierarquia de
normas. A liberdade moral, por sua vez, instaura-se nas condições proporcionadas pela
argumentação discursiva, que demanda simetria de interesses, justificação quanto à
aceitação ou rejeição de normas, e julgamento imparcial. Ficará pendente na ética do
discurso a questão da relação entre o princípio moral e o princípio do discurso. Em sua
obra “Direito e Democracia”, Habermas afirma que o princípio do discurso pode
fundamentar as normas de ação valendo para todos; para aplicar regras o direito
considera sua adequação.
A normatização discursiva do direito passa pelo
reconhecimento de membros iguais, livremente associados.
Esse princípio da
democracia se refere a questões legais embutidas nos discursos, que possibilitam
negociações, liberdade de pensamento, formação de opinião e vontade, todos garantidos
pelo direito; apenas em democracias essas exigências são cumpridas.
O direito pode favorecer a implementação da moral, visto que os limites
para a imputabilidade, a fraqueza de vontade, enfim, os empecilhos à moral racional de
caráter universalista, podem ser contornados pelo direito. Quanto mais organizadas
forem as sociedades modernas, maior é a demanda por códigos e regulamentação
jurídicos, através dos quais se implementam exigências morais e se aliviam as pressões
sobre a ação comunicativa.
Por isso mesmo, afirma Habermas, o direito precisa ser fundamentado numa
teoria do discurso. A ação livre de cada um orientada pelo sucesso, a desobrigação de
agir orientado pelo entendimento, é um lado da moeda. O outro lado é o da ação
coordenada por leis que coagem e limitam. O agir comunicativo, com suas pretensões
de validez criticáveis, reciprocidade, capacidade de optar, aderir a argumentos, não
impedem que alguém aja em seu próprio nome, defendendo seu exclusivo interesse. As
normas se tornam legítimas apenas através de processos democráticos. Os princípios do
discurso e a forma jurídica têm como solo as sociedades democráticas, nas quais
pessoas usam do discurso, com pleno direito a esse uso.
Sem os princípios das
100
democracias, o sistema de direitos não tem como legitimar leis e nem tem como aplicálas devidamente.
O princípio do discurso aplicado ao direito permite sua articulação, confere
estatuto jurídico ao discurso, e assegura autonomia política em sua aplicação. O direito
confere liberdade a participantes do discurso jurídico.
O direito à liberdade, à
associação e ao próprio uso do direito para sua proteção, à autonomia política requerem
certas condições de vida em termos sociais, técnicos, ecológicos. Sem elas não é
possível o exercício da cidadania, a participação na vida social e política, a
reivindicação de seus direitos. A avaliação da legitimidade passa pelo discurso, assim,
poder participar em processos de formação da opinião e da vontade, que passam pelo
filtro do assentimento de todos os envolvidos, dá condições à liberdade discursiva, ao
uso público do discurso, à simetria na participação. A lei deve assegurar essas formas
comunicativas, e os processos democráticos de consulta e de discussão, implicam em
direitos políticos iguais, através “de uma juridificação simétrica da liberdade
comunicativa de todos os membros do direito; e esta exige, por seu turno, uma formação
discursiva da opinião e da vontade que possibilita um exercício da autonomia política
através da assunção dos direitos dos cidadãos”80, enfatiza Habermas.
O direito é fundamental para que o princípio do discurso seja o princípio da
democracia, pois assegura a participação de todos. A autonomia política, por sua vez,
necessita das democracias que são o lugar por excelência da circulação dos discursos
(opinião, discussão, fóruns, informação fidedigna, imprensa livre, voto, liberdade de
associação e de crença religiosa, participação em movimentos civis).
80
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre factibilidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 164.
101
5.5 - O SURGIMENTO DA IDEIA DE LEI
Recorremos às lições de Lima Vaz para buscar as bases sobre o surgimento
da ideia de lei. Na Grécia antiga, a aparição da noção de lei como dado divino não
impunha a coesão social e a imposição necessárias à eficácia dos comandos legais, tal
como se concebe em toda a história do direito ocidental, na concepção jurídica de lei.
Aliás, hoje, quando se menciona lei, não se pensa em lei moral; pois lei aponta, em
primeiro lugar, para um comando jurídico dotado de imperatividade heterônoma e
coerção. Nos textos de Homero aparece a palavra themis, que na epopeia significa a
prescrição que fixa os direitos e os deveres de cada um sob a autoridade do chefe da
gens (...)81.
81
Lima Vaz define themis como “ordenação”, no vocabulário homérico remete à aplicação da justiça sob
a égide de Zeus:” (LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Ética e direito. Organização e Introdução: Cláudia
Toledo e Luiz Moreira. São Paulo: Landy Editora e Edições Loyola, 2003, p. 43). Gens: originariamente
grupo de seres humanos unidos por laços de sangue supostamente reais . Posteriormente, grupo, espécie,
família.
102
5.6 - O EVOLVER DO DIREITO
A partir do Renascimento o direito passa por um processo de
dessacralização, constituindo-se numa moderna versão de reconstrução racional das
regras de convivência. Na dicção de Tércio Sampaio Ferraz, “o direito aparece como
um regulador racional, supranacional, capaz de operar, apesar das divergências
nacionais e religiosas, em todas as circunstâncias. (...) Mas este novo Direito Natural, à
diferença do medieval, substitui o fundamento ético e bíblico pela noção naturalista de
“Estado de Natureza”, uma situação hipotética do homem antes da organização social e
que serve de padrão para analisar e compreender o homem civilizado”82
Em sua obra Direito e ética, Mariá Brochado, esclarece que se chega, enfim
e principalmente com Rousseau, a um direito fundado apenas na razão humana, dentro
do fermento racionalista do Iluminismo em plena exuberância.
Para Rousseau, a
expressão direito natural é imprópria, pois não se refere à natureza como physis, mas à
natureza
humana.
Essa
nova
modalidade
de
jusnaturalismo,
denominado
contratualista, terá em Rousseau sua maior representação de fundo ideológico, que visa
banir da história do direito uma ideia de lei que não seja expressão do querer
reconhecido, compartilhado, veículo da vontade geral.
E aqui temos o ápice do
desenrolar do reconhecimento de Hegel, momento em que a consciência volta para si e
resgata sua essência alienada. Converge, então, política e juridicamente, o momento
que na fenomenologia Hegel denomina o resgate da consciência por si mesma, que se
torna em si e para si após ter sido dilacerada pelo outro. Daí em diante será impossível
pensar no direito senão como produção cultural, apesar de Kant promover a última
tentativa de transcendentalização da experiência jurídica. O direito natural deixa de ter
um fundamento objetivo e exterior para adquirir novas bases alicerçadas na
subjetividade de uma concepção de razão que se torna a sua origem e a sua medida.
82
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p.
71-73.
103
5.7 – DO POSITIVISMO JURÍDICO AO PÓS-POSITIVISMO
HABERMASIANO
O positivismo apresenta inumeras variantes, resultantes de distintas
interpretações e ponderações, no entanto, todas elas baseiam-se em dois elementos de
definição: o da legalidade conforme o ordenamento ou dotado de autoridade e o da
eficácia social.
Portanto, neste trabalho, não faremos distinção entre as diversas
variantes.
Segundo Norberto Bobbio, o positivismo é entendido como “modo de
aproximação ao estudo do direito” (método, num sentido amplo), “teoria geral do
direito” e “ideologia”. Na primeira acepção, ele o caracteriza por uma oposição entre
direito ideal e direito realmente vigente (positivo), isto é, entre o direito como valor e o
direito como fato, com prevalência deste, ou seja, o jurista deve ocupar-se do direito
como fato histórico, abstraindo-se de quaisquer considerações sobre a sua legitimação
ética.”83. Enquanto teoria geral do direito, o positivismo significaria a “monopolização
do poder de produção de normas jurídicas pelo Estado”, observados os seguintes
princípios fundamentais: a) toda decisão judicial pressupõe uma regra preexistente; b)
esta regra é sempre criada pelo Estado; e c) o conjunto de regras criadas constitui uma
unidade. E como ideologia, o positivismo se reduziria a “afirmar que as leis válidas
devem ser obedecidas incondicionalmente, ou seja, independentemente do seu
conteúdo.
Nessa condição, o positivismo significaria uma “obrigação moral de
obedecer às leis válidas.”84.
A neutralidade e a autonomia absoluta da ciência jurídica, ao longo de
décadas, produzia uma espécie de esterilidade do direito, o qual perdia também sua
força social integradora. Assim, um direito garantido unicamente pela força, definido
de forma absolutamente independente de um conteúdo moral e incapaz de prover
83
84
BOBBIO, Norberto. Jusnaturalismo e positivismo jurídico. p. 44
ibidem, p. 44.
104
qualquer critério para as valorações jurídicas, incapaz de dar conta das expectativas
sociais, nem reverter o quadro de descrença por que passavam as instituições, ensejou o
aparecimento de teses pós-positivistas, que podem ser caracterizadas de duas maneiras:
uma assume uma postura cognitivista em matéria de ética e direito, outra que vai além
das teses positivistas das “fontes sociais do direito” e da separação radical entre Direito,
Moral e Política.
Para o positivismo, o Direito é visto como uma simples “convenção social”,
que passou por processos de institucionalização. Enquanto que, com o advento do
denominado “pós-positivismo”, o centro das atenções se desloca para casos ainda não
resolvidos e a busca de instrumentos adequados para resolvê-los.
Em linhas gerais, pode-se dizer que todas as teorias positivistas têm como
mote a tese da separação entre Direito e Moral. Esclarece Robert Alexy que para os
positivistas só há dois elementos definidores do Direito: a) a decisão de uma autoridade
(acerca do conteúdo de uma prescrição normativa) e b) a efetividade social de uma
norma. Contrapondo-se a isto, as teorias ditas não-positivistas, também chamadas póspositivistas, têm por objeto “definir o conceito de Direito de maneira que inclua
elementos da Moral”.
Incluir elementos morais não significa, porém, excluir do
conceito de Direito a “decisão de autoridade” e a cogitação acerca da “efetividade”.
Sabemos que a distinção entre direito e moral não é tão clara como ostentam os
positivistas. Observa-se que os pós-positivistas, criaram uma ponte entre Direito e
Moral, mas tendem a subvalorizar a autonomia relativa ao Direito além de correrem o
risco de remarcar excessivamente a pretensão da moral de ser objetiva. Os positivistas,
por sua vez, superdimensionam o caráter controvertido da Moral e acabam não dando
conta de todos os casos, pois possuem poucos critérios para a interpretação e o
desenvolvimento do Direito.
Para Habermas, o Direito não pode encontrar
legitimidade em si mesmo.
Diante desse panorama, surge a filosofia de Jürgen Habermas, póspositivista, que dá fundamento à teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy,
assentada no cognitivismo ético, que, por meio de um discurso democrático pretende
105
alcançar um patamar de fundamentação racional de juízos morais. No pensamento de
Habermas e de outros que o acompanham, normas, juízos morais e valorações em
sentido amplo podem ser apreendidos de forma racional, de modo que a distinção entre
juízos de fato e juízos de valor, correlata da separação entre “ser” e “dever-ser”, perde
substancialmente sua relevância prática. É sintomática nas reflexões jusfilosóficas a
crença em novos padrões de justificação de decisões, pois a metodologia jurídica já não
encontra mais os óbices impostos pelo não-cognitivismo positivista.
Por outras
palavras, desde o momento em que o pós-positivismo se apresenta como uma
alternativa viável para se compreender o Direito, iluminando a trilha a ser seguida pelo
jurista prático no momento em que ele se depara com juízos de valor, estão presentes as
condições para que se desenvolva uma teoria da justificação jurídica capaz de orientar o
raciocínio jurídico pra além da clausura que o positivismo estabeleceu em decorrência
da absoluta separação entre “ser” e “dever-ser”.
Tanto para Habermas como para Alexy, um enunciado normativo será
correto somente se puder ser o resultado de um procedimento comunicativo capaz de
lhe conferir um grau satisfatório de racionalidade. Nesta medida, Habermas insurge-se
contra as várias vertentes do decisionismo jurídico — consequência de certas
concepções positivistas, que creem ser impossível um controle racional de juízos de
valores —, o qual equipara a legitimidade à legalidade, admitindo qualquer conteúdo
para as normas jurídicas válidas num dado Estado. Habermas elucida que o problema
da legitimidade pode ser tratado a partir de um discurso racional de justificação, e não
deixado ao voluntarismo e ao irracionalismo subjacentes às posições positivistas.
Nesse lineamento pós-positivista, a ideia básica de todo o pensamento
jurídico de Robert Alexy é de que é possível aplicar a teoria do discurso habermasiana
aos processos de formação de enunciados jurídicos. Trata-se de uma concepção de
“racionalidade procedimental universalista”,
tipicamente “argumentativa”, não
negociadora como o das teorias contratualistas. Ainda para Alexy, a razão prática é
definida como a faculdade que, seguindo a um sistema de regras, chega-se a intelecções
práticas.
106
Especificamente o que se refere ao positivismo jurídico, Habermas
identificou suas contradições e o consequente engessamento que trazia à evolução do
direito. Preocupou-se em destacar o papel do discurso e da argumentação no processo
de realização da justiça, bem como da imprescindibilidade da comunicação
intersubjetiva entre todos os agentes sociais. A relevância dada à argumentação e à
comunicação serviu para realçar não só o papel destas técnicas para a concretização do
aspecto normativo das regras e princípios jurídicos, mas, sobretudo, para que o próprio
Direito encontrasse a sua realização por meio de construções feitas por e para os
homens, coisa que o positivismo jurídico desconsiderou, na medida em que não levou
em conta fatores inerentes à gênese do Direito, como a axiologia e a deontologia,
excluindo-os de seu estudo por considerá-los exógenos à ciência jurídica.
O positivismo jurídico ao tentar criar um sistema puramente lógico e sem
contradições se esqueceu de que não há julgamento feito com exclusão dos valores e
que, sob este prisma valorativo, o que se mostra necessário não é um raciocínio formal
e lógico-dedutivo a ser realizado pelo aplicador da lei, mas, sim, um acordo acerca da
hierarquia dos valores que serão aplicados no caso concreto a ser julgado.
Habermas introduz a comunicação como instrumento de legitimação do
Direito, em nítida oposição ao paradigma positivista. Flerta com o jusnaturalismo.
Mas o que interessa é realçar a importância do processo de comunicação (abrangendo
as teorias do discurso) no processo de legitimação do ordenamento jurídico. Ressalta o
papel fundamental que exercem todos os destinatários das normas (destinatários aqui
entendidos em sentido amplo, abrangendo, pois, tanto os juízes, legisladores,
administradores públicos e privados e cidadãos) para a construção racional e válida do
Direito. Para ele, as ordens jurídicas modernas não podem tirar sua legitimação senão
da ideia de autodeterminação. Com efeito, “é necessário que os cidadãos possam
conceber-se a qualquer momento como autores do direito ao qual estão submetidos
enquanto destinatários”85. A autodeterminação dos sujeitos que irão participar deste
85
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I, 2ª edição. Tradução
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 479.
107
processo discursivo irá determinar os limites e os fins da atuação do Direito. A teoria
do discurso se torna, portanto, elemento inerente à formação da vontade estatal. Assim
se expressa Habermas:
“A teoria do discurso não torna a efetivação de
uma política deliberativa dependente de um
conjunto de cidadãos coletivamente capazes de
agir,
mas
sim
da
institucionalização
dos
procedimentos que lhe digam respeito [...] ela se
despede de todas as figuras de pensamento que
sugiram atribuir a práxis de autodeterminação dos
cidadãos a um sujeito social totalizante, ou que
sugiram referir o domínio anônimo das leis a
sujeitos individuais concorrentes entre si86.
Para finalizar, nota-se mais recentemente em Habermas uma certa
mitigação em seu posicionamento contra o positivismo, pois passou a admitir que o
positivismo jurídico seria útil como instrumento de integração social em determinadas
circunstâncias. Revela-se um arauto do governo das leis, as mesmas que sugeriu não
estarem cumprindo a função de garantir a liberdade, pesando como definidora de
deveres, mas ao mesmo tempo sustenta que só o dogmatismo pode garantir a liberdade.
Na obra Direito e democracia absorve-se no estudo mais direto da filosofia do direito e
ali demonstra que “fato” e “norma”, ou seja, “eficácia” e “vigência” são os dois
elementos consideráveis do Direito.
86
ibidem, p. 288.
108
5.8 – INTERSECÇÃO ENTRE DIREITO E MORAL
A moral é o campo subjetivo interno (vontade, intenção, consciência), o
direito, o campo subjetivo externo (ação, relações, coexistência).
Os limites entre
ambos é de difícil determinação, pois depende principalmente do grau de cultura, do
sentimento religioso e das condições materiais do povo. Esses limites são instáveis e
seguem o progresso da consciência intelectual, moral e jurídica da humanidade. De
qualquer modo, o direito prescreve normas de vida em comum, uniformes nos fins
éticos, nascendo a coação da possibilidade natural de violação desse tipo de normas.
O direito nasce do mesmo espírito do qual nascem os deveres, porque ele,
conservando e desenvolvendo os dados éticos relacionados, deve proteger e adaptar
(para os realizar por meio da força) as condições do todo, que é a ética.
O que separa o direito da moral não é a distinção usualmente proposta entre
deveres morais e deveres jurídicos. A noção de dever, diz Fichte, que nasce da lei
moral, é contraposta na maior parte de suas notas caracterizadoras à noção de direito. A
lei moral impõe categoricamente o dever; a lei jurídica apenas permite, mas não
comanda que se exercite o próprio direito. E ocorre que, muitas vezes, a lei moral acaba
por vetar o exercício de um direito, que na convicção geral não deixa, por isso, de ser
um direito. Por ex., quando se tem o direito de cobrar uma dívida, mas por um dever
moral ela não é cobrada. Como se pode, então, encontrar o direito nessas formas
fundamentais da ética? Começando por distinguir duas significações da palavra direito:
o direito objetivo e o direito subjetivo, sendo o primeiro considerado “a determinação da
lei, pensada na sua unidade”, e o segundo, como “as determinações particulares
derivadas do primeiro, no sentido de que à pessoa são atribuídas certas e determinadas
relações jurídicas”. O direito objetivo deriva da ideia do direito, ou do pensamento do
qual devem nascer as determinações da lei; já o subjetivo necessita ser demonstrado
como derivado do primeiro.
109
O direito nasce do mesmo espírito do qual nascem os deveres, para
conservar e desenvolver as relações morais, ou seja, os bens éticos, protegendo as
condições, onde se realiza, através da força, tudo isso que é ético. Para tanto, o direito
ora reprime as ações contrárias à conservação e ao desenvolvimento da ética e ora
impõe determinadas ações necessárias. A lei, determinando os direitos e os deveres dos
homens, tende a concretizar o verdadeiro significado das relações morais e reordena as
condições externas sob as quais elas devem prosperar.
O direito objetivo vige no interesse do todo, e os direitos subjetivos vigem
no interesse das pessoas, mas sobre a base do direito comum. O todo é a coletividade
(todo social) ordenada eticamente (todo ético), e não um amontoado de ações
desordenadas que se chocam. Direitos e deveres se conectam num único tecido vivente
(universal e particular), formando a unidade. O todo ético é o modo de viver do todo
social, que tem seus órgãos manifestos como direito e moral.
As determinações do direito são universais; porque a necessidade interna
dos fins morais caminha (para) e busca a universalidade externa e exige universal
obediência.
Ao indivíduo, o direito determina os limites do seu poder, o que ele pode e o
que ele não pode, o que reforça o seu poder no que é lícito; não há os limites derivados
da ideia ética, na qual está a base de tudo e dos indivíduos; tais limites nascem onde os
indivíduos estão, numa ação recíproca entre eles e com o todo. A força no direito, ou a
coação, é o lado físico da lei, por ser a causa eficiente da qual a lei se vale na sua
atuação. Mas o conteúdo que eleva a mera força ao plano do direito é a conservação do
todo e dos seus escopos internos. Logo, o direito em seu mais íntimo conceito tem
natureza conservativa, sua força conservatriz caminha e progride juntamente com o
desenvolvimento da moralidade.
Sob o prisma do indivíduo (parte no todo), o princípio fundamental é de que
o homem não tem direito só para fluir egoisticamente dos bens propiciados pelo direito,
desinteressado do seu fim racional e do fim racional dos outros homens.
110
Tanto quanto a moral, o direito tem por finalidade a conservação social, mas
se diferencia por tutelar, conservar e, dentro de limites estreitos, acrescer bens e
interesses humanos, a partir de ações e abstenções dos indivíduos.
Mas, como a
conservação também é visada pela moral, ou por quaisquer regras aplicáveis à atividade
humana, como a religião e os costumes, o que diferencia o direito é a manifestação das
suas normas.
A força no direito não é força física, ou econômica, mas propriamente
jurídica. A essência dessa força reside no fato de que o Direito confere, por meio dela,
uma parte do poder social aos indivíduos do grupo, de modo que ele possa exercer
influência sobre a conduta dos demais. As forças individuais não autorizadas pelo
direito podem limitar de várias maneiras a ordem jurídica, mas não podem servir de
guia para o grupo social. Graças a esta força jurídica é que o Direito desempenha sua
função organizadora das lutas sociais.
Para Habermas, o direito é tido como parte da ética, mas ontologicamente
distinto da moral e é, ainda, uma espécie de formalizador do conteúdo dado pelas
morais individuais em recíproca influência na totalidade social. Sob o ponto de vista da
ética, esse movimento é da consciência moral individual no seu trânsito para o momento
intersubjetivo (possibilitado pelo reconhecimento), na construção do consenso, que
produz o momento da objetividade das instituições sociais, entre as quais está situado o
direito, pressuposto nesse diálogo social, que o legitima como expressão da vontade
popular. A concepção de direito como um resguardador de mínimo ético só procede se
se entender a ordem jurídica como a priori desprovida de eticidade que só aparece
quando o mínimo do que a moral individual pretende se torna jurídico.
Na filosofia habermasiana, o direito pode (e deve) ser relido como
objetividade em si ética, porque produto do consenso de todo o grupo social,
pressuposto para o reconhecimento dos sujeitos morais como sujeitos de direitos.
111
5.9 – A POSIÇÃO HABERMASIANA PERANTE AS CORRENTES
LIBERAIS E COMUNITARISTAS NO QUE TANGE AO DIREITO E À
JUSTIÇA SOCIAL
Sobre este tema, amplo e complexo, faremos apenas algumas considerações
acerca dos pontos que resvalam no escopo do presente trabalho.
Esta primeira década do século XXI nos mostra uma sociedade marcada
pelo pluralismo, cuja principal consequência é a convivência obrigatória entre diversas
culturas e religiões, em que cada uma delas expressa diferentes formas de se
compreender o mundo.
Nesse contexto, torna-se relevante na filosofia do Direito
comtemporâneo o desenvolvimento de uma teoria de justiça. De modo geral, há três
grandes correntes participando desse debate, em que cada uma delas apresenta visão
diferente quanto ao modo de realização dessa justiça. São elas as teorias liberais, as
comunitaristas e as crítico-deliberativas. Suas divergências situam-se, principalmente,
quanto à definição do que seja pluralismo, na relação entre direitos individuais e
soberania popular, e no papel da constituição como centro da estrutura normativa. No
entanto, independente das divergências entre as três teorias, percebe-se que, no âmbito
de cada corrente, estes pontos estão interligados, já que fazem parte do mesmo
complexo teórico.
A doutrina liberal, cujos principais representantes são John Rawls e Ronald
Dworkin, defende uma teoria da justiça eminentemente individualista, fundamentada na
filosofia kantiana, em que os direitos civis devem ser preservados e respeitados.
Acreditam na necessidade de se estabelecer princípios de justiça social que possam lidar
com o pluralismo contemporâneo, mas entendem que tais princípios devem levar em
consideração o homem universal, despido de qualquer característica cultural. Nesse
caso, o papel principal da estrutura normativa é assegurar que os direitos individuais não
sejam violados nem pela ação do Estado, nem pelo desejo de alguma maioria popular
momentânea.
112
A doutrina comunitarista, liderada por Michael Walzer, Charles Taylor e
Alasdair MacIntyre, acredita que os princípios de justiça social só podem ser definidos
em estreita relação com os valores da comunidade, o que na prática significa que, para
esta corrente, os valores culturais devem influenciar a decisão quanto o que é justo ou
injusto perante a comunidade. Ou seja, defende a ideia de que o pluralismo
contemporâneo está ligado à diversidade de identidades sociais e culturais, sendo
necessário, em função disso, que a teoria da justiça reconheça essa diversidade, por
meio de uma ação governamental voltada para este fim ou mesmo através da prioridade
da vontade comunitária em relação ao rol de direitos fundamentais, quando isso for
necessário para a preservação de algum grupo social ou cultural. Nesse sentido, para os
comunitaristas, a Constituição deve primordialmente representar um efetivo
compromisso com certos ideais compartilhados pela comunidade como um todo, deve
ser um autêntico projeto social daquela comunidade. Para essa corrente do pensamento,
o direito de autodeterminação da comunidade será sempre prioritário a qualquer
liberdade individual do cidadão. O comunitarismo está contextualizado no momento
material da ética, que se dedica à verdade prática. Os seres humanos são essencialmente
comunitários e seus momentos de reação refletem isso.
Por seu turno, a doutrina crítico-deliberativa, cujo principal representante é
Jürgen Habermas, acredita na necessidade da justiça social, mas entende que as
democracias contemporâneas, as quais se baseiam nos direitos individuais assim como
no pluralismo social, o que significa que os princípios de justiça não podem usar um
desses aspectos em detrimento do outro.
Para os partidários dessa corrente, tais
princípios de justiça serão definidos por meio de uma razão comunicativa,
intersubjetiva, cujos critérios de escolha serão definidos através do discurso. Assim,
defendem uma teoria da justiça que resulta a coesão interna entre direito e democracia,
que ocorre quando o indivíduo percebe que não é apenas destinatário, mas que também
faz parte do processo de elaboração das normas, através de uma política deliberativa
que, portanto, conecta os direitos fundamentais e a soberania popular. Resulta disso que
a estrutura normativa deve assegurar a participação de todos os cidadãos no processo
113
político. A interpretação constitucional, assim, não deve apenas assegurar garantias
individuais ou projetar valores comunitários, mas garantir que o processo de formação
dos direitos esteja ligado à política deliberativa, conectando a autonomia privada liberal
com a autonomia pública comunitarista. Para esses crítico-deliberativos, a principal
consequência do pluralismo contemporâneo é o surgimento de um mundo fragmentado,
onde os indivíduos estabelecem uma convivência obrigatória, ainda que permaneçam
completamente estranhos uns aos outros.
Entretanto, estranhos ou não, esses
indivíduos, segundo Habermas, precisam alcançar um entendimento sobre a melhor
forma de regulamentar essas relações, função de qualquer sistema jurídico.
Conclui-se que, não obstante as diferenças teóricas entre essas correntes,
todas acreditam que a democracia é a única forma possível de se viver em sociedade.
Feito este preâmbulo apenas a título de situar o leitor, passaremos a seguir a
uma análise mais detalhada da teoria habermasiana do agir comunicativo com relação
ao comunitarismo.
Em complemento ao anteriormente explicitado, o comunitarismo surge no
contexto da dominação hegemônica norte-americana no século XX, com o objetivo de
proceder, a partir da ideia de eticidade concreta, à reconstrução histórica da noção de
“tradição cultural”. Manifesta-se em contraposição ao liberalismo da filosofia política,
do racionalismo universalista, da filosofia analítica, do emotivismo ético e, por fim,
como crítica da modernidade. Seus principais representantes centram sua autuação nos
seguintes aspectos: Alasdair MacIntyre com análise a partir da reinterpretação do ethos
histórico cultural de Aristóteles e considerando o momento material das “virtudes”;
Charles Taylor, a partir da localização da eticidade de Hegel e focando nos momentos
“valores e autenticidade de cada identidade”; e Michael Walzer, a partir dos princípios
materiais inerentes às diferentes esferas institucionais para tratar da questão da justiça, e
da tolerância.87
87
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. Elementos da Filosofia Constitucional
Contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 1-2.
114
No projeto comunitarista habermasiano, ou seja, na tentativa de Habermas
de aproximar tanto quanto possível o comunitarismo à teoria do agir comunicativo,
torna-se possível introduzir um novo paradigma procedimentalista do direito. Para
tratar dessa temática recorremos a Mariá Brochado88, na obra “Direito e democracia: a
eticidade do fenômeno jurídico”. Ela nos esclarece que já em Cícero tivemos uma
versão simplificada do comunitarismo quando elege entre os vários graus de sociedade,
incluídos aqui a família, a sociedade da amizade entre os homens, e a pátria, a sociedade
do gênero humano, definida como “o comércio da razão e da palavra. Com efeito,
instruindo uns aos outros, comunicando seus pensamentos, discutindo, apresentando
juízos, os homens se aproximam, formando natural sociedade. Isso nos diferencia dos
animais. Reconhecemos a força nos cavalos e leões; mas nunca lhes atribuímos a
igualdade, a justiça, a bondade, porque eles não têm razão, nem palavra”89.
Situado o consenso como ponto de chegada do reconhecimento e também
como ponto de partida da colocação do direito como ordem objetiva central na
realização ética da sociedade, nos remete ao projeto filosófico comunitarista,
arquitetado especialmente por Habermas. O filósofo alemão opõe-se fundamentalmente
às concepções universalistas da filosofia clássica e moderna, por supor que a grande
falha desses sistemas de pensamento é a não inclusão da variável comunicação, ou o
diálogo, produtor do consenso, em suas doutrinas éticas, o que leva à
pseudocompreensão de que esse consenso dá-se como transcendência, e não como
imanência construída, enfatiza Mariá Brochado.
Essa nova vertente filosófica aposta no consenso ou numa concepção de
sociedade consensual como paradigma de construção de uma nova reflexão ética: que
tem por objeto um ethos discursivo ou que procede e se desenvolve por argumentações
e contra-argumentações, na formação de convicções e expectativas éticas (consenso
comunitário sobre o que é ou não válido moralmente). Para tanto, começa por substituir
88
BROCHADO, Mariá. Direito e democracia: a eticidade do fenômeno jurídico. São Paulo: Landy
Editora, 2006, p. 81-97.
89
CÍCERO, Marco Túlio. Dos deveres. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 46,
apud BROCHADO, Mariá. Direito e democracia: a eticidade do fenômeno jurídico. São Paulo: Landy
115
o antigo conceito de razão prática pela razão comunicativa, incluíndo no conceito de
racionalidade o medium linguístico. As intelecções morais racionalmente motivadas
pelo indivíduo devem ser superadas num plano coletivo, no qual cada singularidade é
dialetizada na outra, formando uma nova intelecção compartilhada linguisticamente. A
razão prática é compreendida a partir da singularidade, mesmo quando se tem em mira
a pluralidade. Nesse caso, o modelo continua sendo o sujeito individual em dimensões
ampliadas. Já a razão comunicativa toma o sujeito interagindo num meio formado
linguisticamente, pois é no ato da fala que buscamos o entendimento com alguém sobre
algo no mundo.
Indaga-se, então, no plano específico do direito, quais as conseqüências do
comunitarismo como nova proposta de percepção do fenômeno jurídico?
Sob o ponto de vista da práxis dos atores sociais, o ideário comunitarista
chega à conclusão essencial de que os sujeitos de uma relação considerada jurídica só
têm possibilidades de fruição sobre seus direitos se “tiverem clareza sobre interesses e
padrões justificados e chegarem a um consenso sobre aspectos relevantes sobre os
quais” se desenvolverá o caminho da autonomia política.90
Informa-nos, ainda, a autora da obra que, sob o ponto de vista da ciência do
Direito, uma teoria contemporânea do direito busca sua base ou ponto de partida não
mais na força abstrata das normas jurídicas (ou na coerção), mas num outro tipo de
força que fundamenta a sua própria institucionalização: uma “força social integradora
de processos de entendimentos não violentos, racionalmente motivadores, capazes de
salvaguardar distâncias e diferenças reconhecidas, na base da manutenção de uma
comunhão de convicções”.91 Esta, por sua vez, só será alcançada se compreendermos o
que é dito pelo outro, o que implica uma verdadeira participação e não a mera
observação, pois que é a possibilidade de se oporem críticas às pretensões de validade
suscitadas que nos permite compreender suas razões.
Editora, 2006, p. 82.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I, 2ª edição. Tradução
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 13.
91
ibidem, v. I, 2ª edição, p. 22.
90
116
Observe que, na perspectiva comunitarista, o convencimento dos
participantes do discurso é obtido por uma espécie de “coação do melhor argumento”,
não é, pois, direcionado à vontade, mas ao intelecto, submetendo-o por sua força
persuasiva, o que leva o próprio participante a se obrigar (obrigar-se livremente). Para
os comunitaristas é fundamental a espontaneidade do consenso, pois que ele não pode
se fundar no arbítrio, uma vez que, se ocorrer, os participantes do discurso certamente
não se sentirão vinculados e, consequentemente, o encontro carecerá de espontaneidade.
A legitimidade de regras se mede pela resgatabilidade discursiva de sua
pretensão de validade normativa. O que conta, em última instância, é o fato de elas
terem surgido num processo legislativo racional — ou o fato de que elas poderiam ter
sido justificadas sob ponto de vista pragmáticos, éticos e morais. No sistema jurídico, o
processo da legislação constitui, pois, o lugar propriamente dito da integração social, em
que os cidadãos devem poder participar na condição de sujeitos de direito, de cidadãos
dotados de direitos políticos de participação, que agem também orientados ao
entendimento mútuo, que se encontram numa prática intersubjetiva.
Segundo
Habermas, “é por isso que o conceito de direito moderno — que intensifica e, ao mesmo
tempo, operacionaliza a tensão entre facticidade e validade na área do comportamento
— absorve o pensamento democrático, desenvolvido por Kant e Rousseau, segundo o
qual a pretensão de legitimidade de uma ordem jurídica construída com direitos
subjetivos só pode ser resgatada através da força socialmente integradora da ‘vontade
unida e coincidente de todos’ os cidadãos livres e iguais”92
Aqui não nos interessam tanto os detalhes da reconstrução do sistema de
direitos, mas apenas alguns pontos principais que nos levam ao pensamento
habermasiano. Como primeira reflexão, vejamos o fato de que a origem comum do
sistema de direitos e do princípio da democracia é reflexo de uma mútua pressuposição
de autonomia pública e de autonomia privada, a qual é derivada da interpenetração entre
a forma legal e o princípio do discurso. Esta é a decorrência fundamental da regulação
da vida social pelo direito positivo. É este caráter originário de autonomia pública e
92
ibidem, v. I, 2ª edição, p. 53.
117
privada que nos interessa na investigação dos pressupostos do conceito procedimental
de democracia deliberativa, o qual nos remete Habermas à discussão conhecida como
debate entre “comunitaristas e liberais”. Para Habermas, no estado democrático de
direito há uma transformação de poder comunicativo em poder administrativo.
Entretanto, o poder comunicativo não pressupõe uma autocompreensão ético-política
partilhada, como no comunitarismo, mas é identificado com a realização de uma
formação racional da opinião pública e constituição democrática da vontade nos
processos legislativos.
Esta compreensão bastante específica do poder comunicativo em Habermas
se torna ainda mais evidente quando ele explicita seu modelo procedimental de
democracia participativa através da mediação entre os modelos liberal e comunitarista
de estado democrático.
No primeiro, a política é compreendida como esforço de
agregação de interesses privados conflitantes. Para o segundo, a política é vista como
processo deliberativo em vista de um acordo no que diz respeito ao bem comum, no
qual o direito é visto não como elemento protetor dos direitos individuais, mas como
expressão da vivacidade da comunidade ético-política.
Em suma, o modelo procedimental habermasiano rejeita a compreensão do
processo político como aglutinação de preferências privadas, ao mesmo tempo em que
considera a compreensão de uma cidadania unificada e ativamente motivada por uma
concepção partilhada do bem comum como um ideal não mais alcançável nas
sociedades pluralistas.
Nesse sentido, ainda que mantida a severa inclinação
deliberativa do comunitarismo, Habermas considera que essencial não é o ethos único
partilhado, mas os discursos institucionalizados para a formação da opinião política
racional. Essencial, portanto, não é a participação total, mas a garantia de que a opinião
pública seja formada discursivamente.
Há, assim, uma ampliação da política
deliberativa para além do sistema político organizado na direção de uma vasta e
complexa rede de comunicação, que Habermas chama de esfera pública.
118
5.10 – COMPLEMENTARIEDADE ENTRE DIREITO, MORAL E
POLÍTICA
Do ponto de vista da fundamentação, a moral e o direito pós-tradicionais
mostram as mesmas características estruturais, às quais foi conferida força jurídica.
Mas o direito, diferentemente da moral, livra os destinatários dos problemas que
acarreta fundamentar, aplicar e obter normas e os transferem para os órgãos estatais. O
discurso político também se relaciona com o discurso moral e o jurídico, dado que as
questões políticas fundamentais são de natureza moral e, por outro lado, o poder
político só pode ser exercido por meio de decisões juridicamente vinculantes. Mas a
política também mantém sua especificidade, que consiste em estabelecer fins coletivos
no âmbito da formação pública da vontade93.
Habermas, na obra Direito e
Democracia, defende que a moral pós-convencional, o direito positivo, e o Estado
democrático são certamente três âmbitos diferentes no espectro prático, mas que são, ao
mesmo tempo, inseparáveis, não só porque são complementares, mas também pelo fato
de se acharem inevitavelmente entrelaçados. Uma moral pós-convencional da
responsabilidade precisa de complementação jurídica, porque não pode exigir
responsavelmente o cumprimento de normas válidas se os destinatários não têm
garantia jurídica de que serão universalmente cumpridas; mas, do mesmo modo, o
direito positivo, deficitário do ponto de vista da fundamentação, precisa do concurso de
uma razão moral, que expressa em seu seio a ideia de imparcialidade instrumental. No
que diz respeito à ideia de Estado de direito, e mesmo quando a política for o âmbito
apropriado do pacto e da negociação, não é menos certo que a legitimidade política
afunde suas raízes em uma legalidade que reflete a estrutura da razão prática; mas, por
outro lado, a força legitimadora do direito também tem sua fonte no procedimento
democrático legislador. Valores como a segurança jurídica, a igualdade diante da lei,
assim como a possibilidade de submeter os princípios jurídicos a uma prova discursiva
93
CORTINA, Adela. Ética sem moral. Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.
169.
119
conferem força legitimadora a uma racionalidade formal, que não é, de modo algum,
moralmente neutra94.
Habermas nos mostra que é preciso extrair ensinamentos úteis tanto do
formalismo ético, que permite comprovar a validade das normas morais, como da
figura jurídico-política do contrato social, que propõe um procedimento cuja
racionalidade garante a correção das decisões tomadas com base nele. Essa é a oferta
que deve ser aceita por um direito positivo contemporâneo, consciente do caráter
irreversível do impulso da juridificação e que não pretenda retornar ao jusnaturalismo
ou ao materialismo ético. Efetivamente, a análise que Habermas faz do impulso da
juridificação, próprio do Estado social, leva-o a concluir que tal impulso está ligado a
uma moralização do direito e que é necessário buscar um fundamento moral do direito
que não reviva as propostas do direito natural. Em princípio, é preciso reconhecer com
Habermas que tanto as teorias da justiça que encarnam o ponto de vista moral como as
que encarnam o procedimento jurídico repousam na ideia de que a racionalidade do
procedimento há de garantir a validade dos resultados a que se chega com ele. Porém,
nem tudo é convergência. Há diferenças.
Uma primeira diferença consiste em reconhecer a superioridade do direito
sobre a moral, na medida em que tomamos como regra a racionalidade instrumental. A
circunstância segundo a qual o direito está ligado a critérios institucionais,
independentes, permite comprovar se a decisão foi tomada segundo as regras
oportunas, mesmo sem participar do procedimento; enquanto a moral exige que se
reconstrua o ponto de vista adotado e se comprove discursivamente se o procedimento
foi corretamente seguido. Uma segunda diferença está relacionada à imperfeição do
procedimento moral, já que determinadas matérias carecem de regulamentação jurídica
e não podem ser deixadas a cargo da regulamentação moral, porque o procedimento
moral demonstra insuficiências cognitivas e motivacionais e, além disso, se nos revela
impotente para apresentar exigências, se não estiver respaldado pela coação externa,
94
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Vol. I. Madri/Espanha: Taurus, 1987, p. 328 e
ss.
120
própria do direito. Outras diferenças entre moral e direito seriam, em síntese, o fato de
que exista uma analogia entre a pretensão de validade das normas morais e a pretensão
teórica de verdade, enquanto à pretensão de validade do direito positivo se acrescenta a
contingência, no momento de estabelecê-lo, e a faticidade da coação que o acompanha;
a circunstância de que o direito exime os indivíduos da tarefa de fundamentar normas –
coisa que a moral não pode fazer -, visto que elas são institucionalmente fixadas; o fato
de que nos discursos jurídicos a argumentação sobre normas tenha um limite temporal,
porquanto existe um prazo determinado para a decisão; uma limitação quanto ao
método, porque é preciso contar com normas já válidas; uma limitação prática, porque
os temas e as provas hão de ser limitados; e uma limitação social, em relação com a
participação e a divisão de papéis. A argumentação moral, ao contrário, carece desses
tipos de limitações e submete-se apenas a seu próprio controle.
A todas essas
diferenças, que assinalam as fronteiras no âmbito prático entre os procedimentos moral
e jurídico, cabe acrescentar uma outra, de que a obediência ao direito é um dever ético
indireto. Na perspectiva habermasiana, a relação existente entre moral e direito é de
complementação, não de identificação, e essa necessidade de complementação, quando
consiste na urgência de absorver, a partir do poder coativo do direito, as inseguranças
que o procedimento moral oferece. Exatamente por razões morais será necessário
apelar ao direito, que conta com a faculdade coativa. O direito não é apenas um
sistema de símbolos, mas também um sistema de ação95.
A questão que se coloca é saber até que ponto o cumprimento das normas
morais é exigível em uma moral universalista responsável? Sabemos que uma ética da
intenção de inspiração kantiana pode exigir incondicionalmente que as normas morais
sejam cumpridas, mesmo que o sujeito que deve obedecer ao preceito não tenha
garantia alguma de que os demais vão cumpri-lo; já uma ética da responsabilidade,
como é o caso da ética discursiva, considera irresponsabilidade exigir obediência a um
preceito nessas condições, já que isso poderia acarretar graves males ao sujeito moral.
Uma coisa é o conselho, outra, a exigência moral. Uma ética da responsabilidade só
95
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução
121
pode exigir moralmente o cumprimento de normas que contam com a obrigatoriedade
jurídica. Moral e direito não apenas se diferenciam, como também se complementam e
se entrelaçam mutuamente96.
Para Apel, uma ética da responsabilidade deve estar atenta às consequências
da ação e inclusive fazer uso da ação estratégica em determinadas circunstâncias em que
se torna legítima a transgressão da norma.
“Isso se aplica, por exemplo, à transgressão da
proibição de matar ou de mentir em uma situação
de legítima defesa; ou, possivelmente, também a
um pai de família que passa por necessidades e
não consegue solitariamente (no sentido de um
desempenho
moral
isolado
modelar),
em
uma
situação
social
de
corrupção
generalizada,
desistir de determinadas práticas, como suborno,
ludíbrio
de
funcionário
público,
propina
97
aliciante e coisas do gênero.”
Mas mesmo assim não fica claro quando a transgressão da norma pode ser
considerada legítima e quando não o é. Tal dificuldade está na base da crítica de
Otfried Höfre à ética do discurso. Segundo Höfre, “o princípio da ética do discurso,
devido ao seu postulado da formação de consenso isenta de dominação, estaria a priori
sem condições de providenciar uma legitimação à validade de normas jurídicas como
normas coercitivas.”98 Como sociedades complexas não podem existir sem instituições,
que sempre implicam um certo grau de dominação e alienação, Apel se viu forçado a
reformular uma vez mais a ética do discurso levando em consideração a crítica de Höfre
da necessidade de legitimação das instituições e, consequentemente, ao reconhecimento
tácito da impossibilidade de realização da comunidade ideal de comunicação.
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 141.
ibidem, v. I, p. 151-154.
97
APEL, Karl-Otto. Dissolução da ética do discurso? In: MOREIRA, Luís (org.). Com Habermas contra
Habermas – Direito, Discurso e Democracia. São Paulo: Landy Editora, 2004, p. 283.
98
ibidem, p. 233.
96
122
Habermas não seguiu esse caminho, ou por outras palavras, evita esse problema em
Direito e democracia. Ele opta em explicar a função da diferenciação distintiva entre
Direito e Moral de modo meramente sociológico-histórico, de modo isento de valor, e
da fundamentação normativo-moral99
99
ibidem, p. 233.
123
5.11 - OS FUNDAMENTOS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO E A RELAÇÃO COM A ÉTICA, A POLÍTICA E A SOBERANIA
POPULAR
O sistema jurídico, a exemplo da moral, desempenha a função de coordenar
a ação e solucionar os conflitos de ação entre os cidadãos, todavia, a moral racional pósconvencional tornou-se um saber que somente pode obrigar por meio da força frágil da
convicção, enquanto o direito dispõe da capacidade de coagir os arbítrios privados. O
sistema político, por outro lado, permite aos agentes realizar programas coletivos de
ação, pois os cidadãos que interagem não somente divergem sobre a interpretação de
valores e normas morais ou jurídicas, mas também definem metas de ação que
transcendem a capacidade dos cidadãos isolados e precisam ser implementadas por
meio de uma estrutura política que conjugue os esforços do grupo100.
O direito e a política, por conseguinte, distinguem-se, em primeiro lugar,
por suas funções próprias, porém, também por causa do modo com que ocorre, em seu
interior, a tensão entre facticidade e validade. O direito é, antes de mais nada, um
sistema normativo que lança mão da violência, na forma de coerção legalmente
institucionalizada, exclusivamente para desempenhar sua função de coordenar a ação,
mas essa coerção, em princípio, pode ser dispensada, por exemplo, quando os cidadãos
cumprem a lei por respeito ou convicção; a política, por outro lado, é um sistema
baseado no poder que dispõe da violência aprovada institucionalmente, até mesmo
quando deve garantir o exercício da dominação legal101.
O nexo interno entre direito e política pode ser descrito também
empiricamente mediante a reconstrução da origem histórica do estado de direito.
Habermas aceita a interpretação antropológica de Parsons102 sobre a evolução das
100
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 179.
101
ibidem, v. I, 2ª edição, p. 171.
102
PARSONS, Talcott Edgar Frederick (1902-1979): americano, sociólogo da Universidade de Harvard.
124
estruturas políticas e jurídicas que começam com as sociedades organizadas por
parentesco.
Parsons introduz dois modelos para explicar a solução dos conflitos
interpessoais (função própria do direito), assim como dois tipos de formação da vontade
coletiva (função própria da política), que revelam o surgimento do nexo interno entre
direito e política103.
Nas sociedades pré-estatais, as normas morais e jurídicas
constituem um amálgama com os valores religiosos da comunidade, isto permite que se
chegue a um consenso em caso de conflito de ação quando os agentes são orientados
pelo entendimento, ou pode ser invocado por sacerdotes ou outras pessoas de prestígio
com o propósito de realizar a arbitragem quando os agentes somente têm em
consideração seus próprios interesses104.
O direito e a política constituem dois polos dentro do estado de direito, o
que explica um novo sentido de tensão interna entre facticidade e validade, diferente da
tensão que aparece para os destinatários das normas jurídicas e seus autores nos
discursos jurídicos de fundamentação do sistema de direitos. Essa tensão interna entre
facticidade e validade é explicada pela teoria da ação mediante a dupla possibilidade
que tem o agente de agir segundo a razão estratégica ou a razão comunicativa e revelase em três níveis: da norma jurídica, do sistema de direitos e do estado democrático de
direito. Os destinatários experimentam a tensão interna entre facticidade e validade das
normas jurídicas porque, por um lado, escolhem segui-las de acordo com a
racionalidade estratégica, em cujo caso obedecem à lei simplesmente porque ela
constitui um fato social que pode ser imposto por coação e exige do agente empreender
uma escolha racional em que reflete sobre os custos e benefícios de cumprir a lei ou
infringi-la, ou, por outro lado, mediante a racionalidade comunicativa, que lhe permite
avaliar a validade da lei, em cuja situação sente-se obrigado a cumpri-la por respeito à
própria lei, essa duplicação da racionalidade inerente à sociedade complexa conduz
também a uma duplicação do conceito de autonomia do direito, desconhecida no âmbito
da moral, pois o destinatário da norma jurídica pode segui-la por meio de sua autonomia
103
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 173.
104
ibidem, v. I, p. 175-176.
125
privada, quer dizer, pelo uso de sua liberdade subjetiva de ação, ou por meio de sua
autonomia pública mediante a liberdade comunicativa, que demanda a busca
cooperativa do entendimento; os autores do direito também observam essa tensão
interna entre facticidade e validade, na medida em que percebem a duplicação do
conceito de autonomia do direito e podem produzir as normas jurídicas segundo a
escolha racional ou a busca recíproca do entendimento, o que gera o aparente paradoxo
de explicar o surgimento da legitimidade a partir da legalidade.
A tensão entre facticidade e validade no estado de direito, por sua vez,
revela-se por meio da cisão entre os polos poder, representado pela política e pelo
normativo, constituído pelo direito.
Habermas não tem dúvida sobre o caráter
instrumental da política que dispõe do poder para coordenar a ação, enquanto o direito
não pode desfazer-se de seu papel normativo. A política permite ao estado de direito
exercer a violência que subtraiu dos indivíduos privados, enquanto o direito oferece seu
próprio meio para constituir o estado de direito e alimenta-se constantemente das
relações de solidariedade provenientes do mundo vivido ou da fundamentação racional
das questões problematizadas por meio dos discursos105.
A introdução da tensão interna entre factibilidade e validade no nível do
estado de direito, procedente da conexão entre política e direito, permite a Habermas
modificar significativamente seu ponto de vista com respeito ao sistema jurídico e à
teoria do Estado. Na sua obra Teoria da ação comunicativa, Habermas explica o papel
do Estado na sociedade moderna com base em sua teoria da ação comunicativa, a qual
desenvolve uma concepção instrumental da política como um sistema funcional regido
pelo poder106. Seu modelo sociológico divide a sociedade complexa em dois níveis: um
primeiro nível, constituído pelo mundo vivido, em que os agentes sociais orientam-se
pela racionalidade comunicativa por meio da linguagem, usada por falantes que
reivindicam pretensões de validade ilocutoriamente presentes no ato da fala, e um
segundo nível, formado por sistemas sociais especializados em realizar funções que
105
106
ibidem, v. I, p. 171.
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, vol. II, Madri: Taurus, 1988, p. 389-393.
126
exigem dos agentes o comportamento estratégico motivado pelo êxito, entre os quais se
destacam o mercado e a política.
O mundo vivido, especializado na integração social, requer que os agentes
coordenem
suas
ações
pela
solidariedade
imersa
na
intersubjetividade
do
reconhecimento recíproco, enquanto os sistemas sociais, mercado e política, separam-se
do mundo vivido e dispõem cada qual de uma lógica própria que orienta a conduta dos
agentes. Os agentes sociais coordenam suas ações no mercado por intermédio do
dinheiro e, na política, com base no poder.
Portanto, para a teoria da ação
comunicativa, a política surge como um sistema social no qual os agentes buscam
estrategicamente exercer influência ou poder reciprocamente e que contribui juntamente
com a economia e o direito para colonizar o mundo vivido e encolher o espaço para a
racionalidade comunicativa.
Para Habermas, na sociedade complexa, a racionalidade estratégica
empregada pelos sistemas sociais, o Estado liberal e o Estado do bem-estar-social, tem
como efeito a colonização do mundo vivido, que ameaça despedaçar a capacidade de
integração social, a qual, dividida em sistemas funcionais, localiza-se na racionalidade
comunicativa, realizada por meio da linguagem e utilizada pelos falantes no mundo
vivido. A intromissão da política no mundo vivido implica, por exemplo, a redução da
cidadania, a transformação dos cidadãos em clientes das burocracias estatais e a
juridicização das relações sociais107.
Habermas coloca como consequência importante, herança da Revolução
Francesa, que necessita ainda ser resolvida, a disputa entre direitos humanos e soberania
popular. Esclarece ele que, desde o século XVII, os pensadores dividiram-se em duas
grandes concepções rivais acerca das questões políticas; de um lado, os liberais
entenderam que a própria pessoa é portadora de determinados direitos relativos à sua
liberdade subjetiva de ação e válidos independentemente da estrutura política. Estes
direitos subjetivos fundamentais, ou direitos humanos, devem ser institucionalizados,
posteriormente, por meio do estado de direito e protegidos contra as intromissões de
127
outras pessoas, bem como as do próprio estado de direito. Por conseguinte, ao menos a
parte do ordenamento jurídico concernente aos direitos fundamentais deve ser blindada
contra a vontade, muitas vezes irracional e arbitrária, da maioria, o que constitui a ideia
do império da lei. Por outro lado, os republicanos consideram que qualquer um que
legisle em nome de outro pode cometer uma injustiça contra ele, por isso somente o
povo unido, ao legislar, jamais pode cometer injustiça contra si mesmo, portanto, os
direitos devem decorrer exclusivamente da soberania popular, neles incluídos os direitos
humanos, pois o povo democraticamente reunido jamais legislaria contra os seus
direitos fundamentais. A soberania popular exige, todavia, uma virtude política por
parte dos cidadãos que precisa ser compensada mediante a coerção legal quando os
países são muito grandes ou falta uma unidade de costumes e, portanto, não se cumprem
as condições de uma cidadania ativa.
Essa disputa recorrente entre direitos humanos e soberania popular assentase no legado da filosofia da consciência, porque os liberais fundamentam os direitos
humanos no direito privado (Kant, por exemplo, obtém os direitos subjetivos com base
na autonomia do sujeito moral), enquanto os republicanos interpretam o povo como um
sujeito em grande escala. Habermas considera que somente um conceito procedimental
de soberania popular, sem os pressupostos da filosofia do sujeito, pode por fim a essa
disputa e reconhecer o caráter cooriginário dos direitos humanos e da soberania popular.
O princípio procedimental de soberania popular representa, para o estado de
direito, o mesmo papel que o princípio da democracia representa para o sistema de
direitos. Assim, o princípio da soberania popular permite a mediação entre os direitos
subjetivos fundamentais e o direito objetivo instituído pelo estado de direito, porque a
fundamentação do direito objetivo tem de pressupor a fundamentação simultânea dos
direitos subjetivos, uma vez que somente cidadãos portadores de direitos subjetivos
fundamentais podem participar em discursos de fundamentação dos princípios do estado
de direito108.
107
108
O princípio procedimental da soberania popular, consequentemente,
ibidem, v. II, p. 502-505.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução
128
supera a imagem republicana de autogestão democrática dos cidadãos reunidos em
assembleia e capazes de chegar a uma vontade comum, que é incompatível com as
condições da sociedade complexa dividida em sistemas funcionais.
Em lugar de
localizar a soberania popular no povo entendido como um macrosujeito, ele prefere
difundi-la por meio do intercâmbio entre as redes informais de comunicação da esfera
pública e as instituições formais do estado de direito, com o objetivo de produzir uma
figura política anônima ou carente de sujeito109.
A soberania popular, segundo a teoria discursiva, surge inicialmente com
base na liberdade comunicativa dos cidadãos no mundo vivido, que consiste na
capacidade para chegar ao entendimento, implícita na ação comunicativa cotidiana. Os
sujeitos dotados de liberdades subjetivas de ação podem entrar em conflito entre si,
porém, a liberdade comunicativa inerente à ação comunicativa permite que cheguem a
um acordo sobre as questões controvertidas.
Os problemas que podem surgir na ação comunicativa são de dois níveis: no
primeiro nível, pode ser problematizada a interpretação da ação com base em valores ou
normas previamente dados, enquanto, no segundo, os próprios valores ou normas de
ação são postos sob suspeita. No primeiro nível, a reflexividade da linguagem permite
que os sujeitos cheguem a um entendimento sobre a interpretação correta dentro da
própria ação comunicativa, porém, no segundo, exige que se suspenda a ação e eles
entabulem os discursos práticos de fundamentação, nos quais somente são válidos os
melhores argumentos.
Os discursos práticos podem ser pragmáticos, éticos ou morais.
Os
discursos pragmáticos avaliam programas coletivos de ação, os discursos éticos
investigam quais valores podem merecer o reconhecimento dos participantes, enquanto
os discursos morais examinam quais normas de ação são corretas na medida em que
podem ser do interesse simétrico de todos os implicados.
Existem também as
negociações sobre interesses submetidas a condições equitativas.
A liberdade
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 212-213.
ibidem, v. I, p. 212-214.
109
129
comunicativa dos sujeitos produzida na ação comunicativa ou nos discursos práticos,
bem como as negociações sob condições equitativas servem-se das redes de
comunicação da esfera privada, podem permitir a formação da opinião pública dos
cidadãos na esfera pública e chegar a ser institucionalizadas nos discursos jurídicos,
bem como nas instituições do estado de direito.
Habermas reconstroi os conceitos de poder e violência de acordo com sua
teoria da ação comunicativa por meio da figura desprovida de subjetividade de uma
sociedade civil acostumada à liberdade, cujos cidadãos podem formar a opinião e a
vontade na esfera pública fazendo uso de sua liberdade comunicativa mediante a
capacidade de chegar ao entendimento que os cidadãos dispõem no mundo vivido.
Com base nessa perspectiva intersubjetiva surgem três conceitos diferentes
de poder: poder comunicativo, poder administrativo e poder social.
O poder
comunicativo constitui-se mediante os meios discursivos dispersos de uma opinião
pública que pode chegar a um consenso sobre metas políticas em discursos pragmáticos,
valores compartilhados em discursos éticos ou normas de ação em discursos morais,
assim como sobre seus interesses em negociações equitativas. Este poder comunicativo,
que surge discursivamente nas instâncias da opinião pública, tem de penetrar nas
estruturas do estado de direito de tal modo que possa orientar as ações do poder
administrativo110.
O poder administrativo consiste na substituição da violência, que os
indivíduos possuem em estado natural, pela violência organizada do estado civil,
permite a constituição das instâncias do estado de direito, a legislação o governo e a
justiça como uma ordem legal e, por fim, estabelece faculdades e competências que
autorizam o estado de direito a tomar decisões vinculantes. Com a subordinação do
poder administrativo do estado de direito ao poder comunicativo dos cidadãos, as
instituições do estado de direito amoldam-se às condições normativas da autolegislação;
isso, porém, somente pode ocorrer porque o direito funciona como meio de
transformação do poder comunicativo em administrativo, uma vez que, do ponto de
130
vista do sistema político, o consenso que se gera discursivamente e as razões que se
aduzem a favor das leis continuam sendo interpretados, pela óptica do poder, como
resultado do conflito entre interesses divergentes111.
Por último, na esfera da opinião pública, também pode surgir o poder social,
que mede a possibilidade de um agente impor seus próprios interesses nas relações
sociais, até mesmo contra a resistência dos demais112; este poder nasce pela pressão que
exercem os grupos de interesses para influenciar a legislação, o governo e a justiça.
Habermas entende que o poder social compete com o poder comunicativo pela
influência sobre o poder administrativo, porém, apesar de que o poder social pode tanto
representar os interesses de grandes grupos econômicos, vir manipulado pela
publicidade e pelos meios de comunicação, por um lado, ou dar expressão a interesses
generalizáveis, a exemplo das questões ecológicas ou sociais fomentadas pelas
organizações não governamentais, por outro lado, tem que ser neutralizado quando se
considera a perspectiva normativa da legislação113.
Todo poder político tem de emanar do poder comunicativo que surge da
liberdade comunicativa dos cidadãos, os quais são capazes de chegar ao entendimento
no mundo vivido por meio da reflexividade inerente à ação comunicativa ou dos
discursos práticos de fundamentação de programas coletivos de ação, valores
compartilhados e normas morais, além das negociações sob condições equitativas114.
A tranformação do poder comunicativo em poder administrativo somente
pode ocorrer por causa da tensão interna entre direito e política dentro do estado de
direito. O sistema político é um sistema funcional especializado no uso instrumental do
poder administrativo, enquanto o direito permite a institucionalização do poder
comunicativo gerado pelos cidadãos.
Habermas observa, contudo, que esta tensão
interna nem sempre reflete um intercâmbio equilibrado entre direito e política. Nas
110
ibidem, v. I, p. 185-186.
ibidem, v. I, p. 189-190.
112
ibidem, v. I, p. 219.
113
ibidem, v. I, p. 219.
114
ibidem, v. I, p. 185 e 213-214.
111
131
sociedades tradicionais, o direito exercido burocraticamente pelo príncipe era
fundamentado metafisicamente na lei eterna de Deus, assim como empiricamente nos
costumes seculares, o que conferia legitimidade ao direito positivo. Com o surgimento
da modernidade, o direito natural racional substituiu a legitimidade proveniente do
direito divino pela razão natural, mas deixou claro que o direito poderia servir tanto para
a institucionalização das liberdades fundamentais do indivíduo ou da vontade soberana
dos cidadãos como para conferir legalidade ao uso instrumental do poder político115.
Para mostrar como o poder comunicativo pode transformar-se em poder
administrativo e evitar a autoprogramação do sistema político, Habermas fundamenta os
princípios do estado de direito com base no princípio da soberania popular reconstruído
intersubjetivamente de acordo com a teoria do discurso116. Habermas confia, não na
sociedade burguesa, como faz o liberalismo, mas especialmente na socidade de
cidadãos.
A idéia de sociedade civil parece uma tentativa prático-sociológica de
verificação da concepção, em princípio puramente normativo-reflexiva, da ética do
discurso.
Do ponto de vista normativo, o poder comunicativo deve ser gerado pela
totalidade dos cidadãos sobre a base do uso de suas liberdades comunicativas no mundo
vivido.
Habermas considera que é indispensável garantir um amplo espaço de
participação para os cidadãos no plano da sociedade civil no que se refere à
apresentação de temas e contribuições com a finalidade de formar a opinião e a vontade
sobre matérias capazes de constituir-se em lei por meio dos discursos práticos que
demandam a livre circulação de informações e razões117. Por outro lado, os cidadãos,
na sociedade civil, podem formar a opinião e a vontade por meio dos discursos práticos
e das negociações sob condições equitativas, porém, não podem organizar-se para
deliberar, o que torna necessário introduzir o princípio parlamentar, que possibilita
instituir corpos legislativos encarregados de tomar decisões118. Uma sociedade civil,
115
ibidem, v. I, p. 184-185.
ibidem, v. I, p. 212.
117
ibidem, v. I, p. 213.
118
ibidem, v. I, p. 214-215.
116
132
capaz de organizar-se, permite a fluidificação da soberania popular entre o espaço
informal da opinião pública e as instituições porosas do estado de direito119.
O poder legislativo é o único que dispõe de todo o espectro de razões e
formas de comunicação correspondentes desenvolvidas com base na perspectiva de
fundamentação nas normas de ação. O legislativo elabora discursivamente as questões
pragmáticas, éticas e morais além das negociações sob condições equitativas, com a
finalidade de fundamentar as respectivas normas de ação. A justiça também dispõe de
todas as classes de razão e formas de comunicação, porém com base na perspectiva dos
discursos de aplicação que permitem chegar à sentença consistente, submetida à
coerência do ordenamento jurídico.
Por fim, o executivo limita-se às questões e
discursos pragmáticos que definem os programas de ação dentro do marco da lei e opera
segundo a racionalidade estratégica na escolha de tecnologias e processos para a
realização mais eficiente de seus fins120.
De acordo com a lógica da argumentação, portanto, o legislativo, em
sintonia com a comunicação política dos cidadãos na esfera pública, encarrega-se dos
discursos de fundamentação, enquanto o poder judiciário institucionaliza os discursos
de aplicação de normas, segundo o princípio da adequação apresentado por Klaus
Günther.
A diferença entre discursos de fundamentação e discursos de aplicação
implica uma estrutura de comunicação distinta nos âmbitos do legislativo e do
judiciário.
Nos discursos legislativos de fundamentação, somente há participantes
orientados pela busca cooperativa do entendimento sobre a validade das normas de
ação, enquanto nos discursos jurídicos de aplicação, há uma diferenciação de papéis
entre os representantes das partes litigantes, que oferecem distintas perspectivas sobre
os fatos, assim como sobre sua interpretação, perante o juiz que, por outro lado, assume
a função de representante imparcial da comunidade jurídica e precisa justificar a
sentença ante um espaço público jurídico composto por membros da magistratura,
profissionais do direito e cidadãos em geral, enquanto membros da comunidade aberta
119
120
ibidem, v. I, p. 213.
ibidem, v. I, p. 239.
133
dos intérpretes da constituição. A argumentação jurídica não tem o sentido da busca
cooperativa do entendimento, uma vez que cada uma das partes tem o dever de defender
os interesses de seus clientes121.
A ética discursiva, contida na obra de Habermas, caracteriza-se por
negociações sob condições equitativas e os discursos práticos pressupõem uma série de
idealizações, específicas para cada caso. Assim, a teoria da argumentação demanda que
os participantes nos discursos práticos no plano lógico-semântico, por exemplo, não se
contradigam, não atribuam predicados diferentes para um mesmo sujeito da proposição
e não usem uma mesma expressão em sentidos diferentes; no plano procedimental, que
sejam sinceros em suas declarações e somente ponham em dúvida uma norma que
aparentemente não seja suscetível de aprovação, dando razões para isto, assim como, no
plano pragmático, que exige a participação de todo sujeito capaz de comunicar-se,
permitam a problematização de qualquer norma relevante e não impeçam
coercitivamente a expressão de ninguém.
Consequentemente,
essas
idealizações
inerentes
aos
pressupostos
comunicativos dos discursos práticos somente podem ser realizados de modo
aproximado, porque, por um lado, a argumentação tem de prosseguir até que todos os
implicados pela entrada em vigor da norma possam aceitá-la e, por outro, como não
existe um critério independente do procedimento para determinar a validade do
resultado, isso implica a possibilidade de retomar-se constantemente a avaliação das
normas em função de novas informações e razões. Portanto, os exigentes pressupostos
da argumentação racional envolvem um momento de falibilismo que é incompatível
com a necessidade de tomar decisão das instituições do estado de direito. Por isso,
Habermas observa que a institucionalização das negociações sob condições equitativas e
os discursos práticos nos procedimentos jurídicos implica a introdução de restrições
relativas a aspectos temporais, sociais e de conteúdo aos quais eles não estão
121
ibidem, v. I, p. 215-216.
134
inicialmente submetidos; sua inserção, porém, nos discursos jurídicos do estado de
direito tem que deixar intacta a lógica própria dos discursos práticos122.
A ideia procedimental de soberania popular, por um lado, implica que a
forma do mandato e a composição dos parlamentos dependam do tipo de razões e
formas de comunicação correspondentes a cada caso. As negociações sob condições
equitativas determinam que os representantes sejam escolhidos para negociar
compromissos, o que exige que todos os interesses e preferências axiológicas possam
contar com o mesmo peso.
Como nas negociações os interesses e valores estão
previamente fixados, não pode haver nenhuma diferença entre a vontade popular
empírica e a vontade popular hipotética, o que define os mandatos como imperativos123.
Os discursos éticos e morais, por outro lado, não pressupõem posições dadas
de antemão, mas um intercâmbio entre os cidadãos que constituem a opinião pública e
seus delegados nos corpos legislativos, pois os interesses e preferências de valores
podem modificar-se discursivamente através do fluxo de informações e razões124. Os
discursos éticos, por exemplo, estão orientados para a busca da autenticidade, e
permitem que os implicados possam chegar ao autoentendimento a respeito de sua
própria forma de vida, o que possibilita tanto a crítica como o fortalecimento da
identidade coletiva. Portanto, nos discursos de autoentendimento não pode haver nãoimplicados, pois todos os membros do coletivo devem poder participar do discurso.
Apesar de que motivos técnicos obrigam a que esses discursos realizem-se por meio de
representantes, eles têm de satisfazer à condição de participação de todos os membros
por igual, o que demanda serem os deputados abertos e sensíveis às informações e
razões que brotam da opinião pública dos cidadãos125.
Os discursos morais, por fim, permitem que os participantes cheguem a um
acordo sobre a validade das normas de ação que possam ser do interesse simétrico de
todos.
Assim como nos discursos éticos, a forma de escolha dos delegados deve
122
ibidem, v. I, p. 222-223.
ibidem, v. I, p. 226.
124
ibidem, v. I, p. 222-223.
125
ibidem, v. I, p. 225-227.
123
135
assegurar a inclusão de todas as perspectivas relevantes, a qual também se pode
modificar em função das informações e razões apresentadas discursivamente, que, por
isso, requerem dos representantes sensibilidade para os fluxos de comunicação que
emanam da esfera pública; ao contrário, contudo, dos discursos éticos de
autoentendimento, o conjunto dos implicados não se limita somente aos membros de
uma comunidade particular, mas a todos os seres humanos em geral, o que obriga a uma
composição de delegados capazes de distanciar-se, até mesmo, do etnocentrismo de sua
forma especial de vida126.
126
ibidem, v. I, p. 227-228.
136
PARTE III – SÍNTESE ACERCA DA VALIDADE, FACTICIDADE E
CRÍTICAS QUE SE FAZEM À ÉTICA DISCURSIVA
CAPÍTULO VI – VALIDADE E FACTICIDADE DA ÉTICA DO
DISCURSO
6.1 – PRETENSÕES DE VALIDADE127
Se fixarmos a atenção no caminho seguido para extrair a pretensão de
validade como elemento constitutivo do ato de fala, veremos que o fio condutor para
descobrir o tipo satisfatório de condições para que o ato seja adequado consistiu em
considerar os aspectos sob os quais uma emissão poderia ser criticada e ou rejeitada por
um ouvinte (entende-se por ouvinte todo aquele que participa de uma discussão e que,
obviamente, não é o falante).
Assim, quando estamos nessa situação de ouvinte
devemos confirmar as pretensões de validade do falante ou então negá-las,
justificadamente. O falante não pode negar diante do ouvinte que esteja pretendendo
validade para o que diz, a menos que faça um uso abertamente estratégico da
linguagem. É seguindo este fio condutor que se descobrem os diferentes tipos de
pretensões de validade dos atos de fala e, junto com ele, os diferentes tipos de
referências à realidade. Para Apel a verdadeira prova das pretensões de validade só
pode ser realizada no discurso, mediante a contradição performativa de quem tentar
negá-las: o falante não pode afirmar sem contradição, em um discurso, por exemplo,
que afirma algo mas que não tem qualquer pretensão de verdade para a sua afirmação.
Vejamos o exemplo de Habermas:
127
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Vol. I. Madri/Espanha: Taurus, 1987, p. 391392.
137
O professor de um seminário dirige a um dos participantes a seguinte
ordem:
— Por favor, traga-me um copo d’água.
O aluno pode recusar o pedido no que diz respeito a três aspectos de
validade.
Ou bem ele questiona a correção normativa da emissão:
— Não, você não pode me tratar como se eu fosse um criado.
Ou pode colocar em questão a veracidade subjetiva da emissão:
— Não, o que você pretende é me deixar em má situação diante de meus
companheiros de seminário.
Ou então pode questionar o cumprimento de determinados pressupostos de
existência:
— Não, o bebedouro mais próximo fica muito longe, e não poderei estar de
volta antes do fim da sessão.
No primeiro caso, questiona-se que a ação do falante seja correta dentro de
um contexto normativo dado; no segundo, questiona-se a sinceridade do falante (pois
suspeita-se que ele, na realidade, persiga com sua emissão um efeito perlocucionário);
no terceiro caso, questionam-se enunciados que o falante supõe verdadeiros. Dado que
cada ato da fala pode ser rejeitado sob cada um desses três aspectos, portanto, são três as
pretensões de validade que se associam a eles. Não obstante já tenhamos tratado delas
anteriormente, vale a pena revê-las agora por uma outra característica. As pretensões de
validade são correção, veracidade e verdade. A rigor são quatro. Às mencionadas
deve-se acrescentar a inteligibilidade. Trata-se da pretensão que temos de supor em
cada falante de que sua emissão tenha um sentido compreensível. Ela é a única das
pretensões “imanente à linguagem”, pois as outras põem a emissão do falante em
relação com ordens da realidade extralinguísticas. Voltemos às três pretensões de
validade, as quais, por sua vez, cada uma delas, coloca a emissão em determinadas
138
relações com a realidade (ou com o mundo social, ou com o mundo objetivo ou ainda
com a própria realidade interna do falante, o mundo subjetivo). Estas relações com o
mundo se estabelecem de modo reflexivo, e são elas que permitem fazer distinções entre
dever e ser; ser e parecer; e essência e manifestação. É a capacidade de fazer essas
distinções que permite o entendimento e a problematização dos consensos factualmente
estabelecidos.
139
6.2 – RETITUDE ou CORREÇÃO (Richtigkeit)
A retitude, também entendida como correção (Richtigkeit), componente da
pretensão de validade na ética discursiva de Habermas, tem fundamental importância
para o Direito, razão pela qual faremos mais alguns comentários, não obstante sua
menção em subcapítulos anteriores.
Adotaremos indistintamente, neste trabalho,
retitude ou correção.
No dia-a-dia, as pretensões de validade que se ligam a cada ato de fala são,
em geral, aceitas ingenuamente, mas também podem ser problematizadas. Quando o
que se problematiza são as pretensões de verdade ou de correção, tem-se a passagem da
ação comunicativa para o discurso. Um discurso é uma série de ações interligadas
dedicadas a testar a verdade de asserções, caso se trate de um discurso teórico, ou a
correção de afirmações normativas, se se trata de um discurso prático. Por outras
palavras, Habermas aceita apenas a verdade e a retitude como possíveis pretensões
resgatadas discursivamente. Para ele, a verdade deve ser justificada em um discurso
teórico e a retitude em um discurso prático. Nessa linha de entendimento, Alexy não
destoa de Habermas ao afirmar que no discurso teórico a pretensão de validade
problematizada é a verdade, e sua justificação se realiza aduzindo fatos como razões,
assim como no discurso prático a pretensão de validade problematizada é a correção
normativa, e sua defesa é feita mediante a invocação de normas socialmente
compartilhadas.
Um discurso racional prático é um procedimento para provar e
fundamentar enunciados normativos e valorativos por meio de argumentos128.
Para que haja o entendimento as condições resumem-se no: a) o
cumprimento das quatro pretensões de validade — verdade, retitude, veracidade e
inteligibilidade, sendo esta última condição de compreensão de qualquer ato de fala, b)
128
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da
justificação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. Revisão técnica da tradução e introdução à
edição brasileira Cláudia Toledo. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 183.
140
a resolução discursiva destas pretensões, e c) o primado da racionalidade comunicativa
sobre a estratégia.
Especificamente em relação à retitude ou correção são evocadas pretensões
de retitude no que concerne a valores e normas compartilhadas em nosso mundo social,
ou seja, garantem a interação entre os atores sociais e o mundo social. Portanto, nessas
pretensões, temos que os atos de fala são regulativos, referem-se ao mundo social e
cuja função pragmática tem natureza regulativa. Destarte, ações reguladas por normas
encarnam um saber prático-moral, que podem ser contestados sob o aspecto da
correção.
Segundo Habermas, uma pretensão de correção pode ser tematizada e
verificada de modo discursivo, da mesma forma que uma pretensão de verdade. Neste
caso, os participantes podem verificar tanto a correção de uma determinada ação com
referência a uma dada norma como igualmente a correção dessa própria norma.
Por outras palavras, para Habermas, a retitude é a pretensão que eleva a
inteligibilidade, e que admite a comunicabilidade universalizável. Um bom argumento
é aquele que idealmente será não somente compreendido, sendo ele plausível, mas
aceitável por todas as partes interessadas. É sobre este horizonte de consenso universal
que se colocará as regras formais de toda discussão pretensa à retitude. Estas regras
constituem o essencial da pragmática universal do discurso, cujo acento normativo
deve ser fortemente sublinhado, a fim de expungir qualquer argumentação estratégica
consequência de uma retitude fraudulenta. Resulta que, quando se percebe que o
consenso está fora do alcance, ou seja, irrealizável, frente a uma fundamentação
insuficiente ou interesseira por parte de alguns participantes do diálogo, deve-se valer
da argumentação jurídica com o objetivo de completar as regras gerais do discurso
normativo em um campo particular, o do direito. O discurso jurídico caracteriza-se
como uma espécie particular do gênero discursivo prático geral, no dizer de Robert
Alexy.
Com efeito, Alexy, para desenvolver sua teoria da argumentação jurídica,
que é uma teoria procedimental formado por um sistema de regras, propõe,
primeiramente, uma teoria geral do discurso prático, racional, nos moldes como foi
141
elaborada por Habermas e, nesse lineamento, desenvolve a tese de que o discurso
jurídico é um caso especial do discurso prático geral, ou seja, uma atividade linguística,
guiada por regras, com a qual se objetiva a correção de enunciados normativos. O
discurso jurídico se distingue, porém, das demais formas de discurso pelo fato de estar
submetido a uma série de condições limitadoras, como, por exemplo, sujeição à lei,
consideração de precedentes etc. Isto conduz, aparentemente, a uma dificuldade, uma
vez que as decisões jurídicas, em geral, não serão justificadas em sentidos absoluto e
universal, mas apenas dentro do marco de determinado sistema jurídico particular, o
que poderia, em princípio, desqualificar a tese do “caso especial”, defendida por Robert
Alexy.
Habermas, inicialmente, concorda com Alexy, no sentido de que a
argumentação jurídica, em todo o seu caráter institucional, deve ser conceituada como
um caso especial do discurso prático, mas, posteriormente, levantou uma série de
objeções, pois, para ele, a tese do caso especial sugere uma falsa subordinação do
direito à moral, porque ainda não está totalmente liberta de conotações do direito
natural129. Alexy repele a crítica esclarecendo que o seu fio condutor é a tensão entre
facticidade e validade ou, mais especificamente, entre o princípio da segurança jurídica
e a pretensão à correção das decisões.
Não obstante a discussão entre Habermas e Alexy sobre a possibilidade de
conceituar ou não a argumentação jurídica como um caso especial do discurso prático,
para Robert Alexy, o direito é um sistema normativo que formula uma pretensão à
correção, que consiste na totalidade das normas estabelecidas em conformidade com a
Constituição e que apresenta um mínimo de eficácia social e não são extremamente
injustas e ao qual pertencem os princípios e outros argumentos, nos quais se apoia o
procedimento de aplicação do direito para satisfazer à pretensão à correção. Esta é uma
definição jurídica do direito a partir da perspectiva do participante, ou seja, daquele
que, num sistema jurídico, participa de uma argumentação sobre o que nele é ordenado,
129
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I, 2ª edição. Tradução
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 287-291.
142
proibido, permitido e autorizado. De modo que o juiz é o participante central, enquanto
que outros, como juristas, advogados ou cidadãos interessados no sistema jurídico,
apresentam argumentos a favor ou contra determinados conteúdos do sistema jurídico,
que, em última instância tem a pretensão de influenciar o juiz na sua decisão. Já o
interesse do mero observador reside em saber como de fato se decide num sistema
jurídico e não o que é uma decisão correta.130.
No que concerne às limitações específicas ao discurso jurídico, é preciso
recordar a diversidade de lugares onde ele se desenrola. Sem dúvida, as cortes, os
tribunais, as varas e seus juízes são alguns desses locais. Paralelamente, temos a
instância legislativa, produtora das leis, assim como a instância dos juristas. Chäim
Perelman acrescenta a opinião pública e, no limite, o auditório universal à discussão do
qual são submissas as teorias dos juristas, as leis emitidas pelos corpos legislativos,
enfim as decisões emitidas pelas instâncias judiciárias. De todas estas instâncias, é a
judiciária que se submete aos constrangimentos mais fortes, suscetíveis de aprofundar
um desvio entre o discurso prático geral e o discurso judiciário.
Como se dão esses constrangimentos ao discurso jurídico? Primeiramente,
a discussão se desenrola dentro de um recinto institucional próprio (tribunais e cortes).
Nesse recinto as questões não são abertas ao debate, mas somente aquelas que se
inserem no quadro codificado do processo. Durante a instrução do próprio processo, os
papéis nem sempre são igualmente distribuídos (há convocados, intimados, supremacia
do ente público etc.). Além disso, a deliberação é submissa à legislação substantiva e
às regras processuais, ambas codificadas.
Acrescente-se ainda que à deliberação
judiciária há limitações temporais, diferentemente das deliberações legislativas.
A princípio, a discussão na instância judiciária não visa um acordo. Julgar
consiste em resolver e, portanto, em separar as partes, em instituir uma justa distância
entre elas. Enfim, a obrigação legal do juiz é a de julgar. Mas, então, como fica o
130
ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. Organização Ernesto Garzón Valdés ...[et al.].
Tradução Gercélia Batista de Oliveira Mendes e revisão da tradução Karina Jannini. São Paulo: Martins
Fontes, 2009, p. 30 e 151.
143
“caso especial” do discurso prático defendido por Alexy em relação ao discurso
normativo geral?
Alexy e os seguidores dessa teoria insistem que a pretensão à
retitude de um argumento jurídico não difere em nada daquele de todo discurso
normativo. A norma geral é implícita. Idealmente, o perdedor, o condenado, é incluído
no reconhecimento desta pretensão supostamente dividida por todas as partes presentes.
Esta pressuposição implícita se exprime dentro de certos sistemas jurídicos pela
obrigação de motivar a decisão.
Mas, mesmo se a decisão não é publicamente
motivada, ela é pelo menos justificada pelos argumentos usados. Isto porque um juiz
não pode ao mesmo tempo decidir em um caso e declarar que a sua sentença é injusta.
Seria uma evidente contradição performativa. Nenhum sentido teria se a argumentação
jurídica não tivesse como horizonte o discurso normativo geral visando a retitude.
Caso ocorresse a hipótese, a correção do discurso normativo poderia dar-se não mais
naquela instância, mas em outra superior e assim por diante até se completar, agora por
uma decisão com a participação não mais de todos os concernidos, mas restrito aos
membros qualificados de um colegiado (decisão última de um tribunal).
144
6.2.1 - PRETENSÕES DE CORREÇÃO
Neste subitem do subcapítulo, aprofundaremos um pouco mais acerca de
tese do caso especial e das pretensões de correção levantadas no Direito por Robert
Alexy e suas aproximações com Habermas. Sua teoria lança bases sólidas para uma
teoria não-positivista do direito, que é feita pela conexão necessária entre direito e
moral.
Sua posição no campo do direito se amalgama com a ética do discurso
desenvolvida por Habermas, com implicações relevantes para a filosofia do direito,
sobretudo a relação entre direito e moral, entre direito e razão prática e entre
argumentação jurídica e argumentação prática. No entanto, não nos estenderemos na
reflexão, por se tratar de questão marginal a esta dissertação.
Preliminarmente, faremos uma síntese, com o intuito de propiciar o
entendimento sobre em que consiste a chamada pretensão de correção no campo do
Direito, formulada por Robert Alexy, e que se alinha a Habermas, publicada em artigo
na Revista de Direito Administrativo, da Fundação Getúlio Vargas131. Segundo Alexy,
o direito possui uma natureza dupla: há uma dimensão real ou fática e uma dimensão
ideal ou crítica. O lado fático diz respeito à aplicação de normas e à eficácia social, o
que recai em um conceito de direito positivista, mas ao se agregar à dimensão ideal que
se assenta na correção moral, forja-se um conceito de direito não-positivista. Logo, a
tese da dupla natureza do direito implica o não-positivismo e se desdobra em um
sistema, subdividido em correção e discurso, positividade e institucionalização da
razão. Ao escopo desde trabalho, cingiremos à correção.
Para Alexy, a pretensão de correção resume-se necessariamente em
responder às seguintes perguntas: 1) que significa dizer que o direito erige uma
pretensão?, 2) que se entende pelo caráter necessário da pretensão? e 3) em que
consiste o conteúdo da pretensão?
131
ALEXY, Robert. Artigo: Principais elementos de uma teoria da dupla natureza do direito. Revista de
Direito Administrativo da Fundação Getúlio Vargas. Tradução Fernando Leal. Rio de Janeiro: Editora
Direito Rio, jan./abr. 2010, p. 9-30.
145
Erigir uma pretensão é uma ação que pode ser intentada por qualquer
sujeito apto a agir e falar, no entanto, o direito, como um sistema de normas, não pode
erguer nenhuma pretensão, significa apenas que aqueles que a levantam criam,
interpretam, aplicam e implementam, operam no e para o direito. O ato de erigir uma
pretensão de correção demanda que o ato jurídico seja correto quanto ao conteúdo e
procedimento, que assegure fundamentabilidade e que quem se colocar sob o enfoque
do sistema jurídico tenha-o como válido. O caráter necessário da pretensão assenta-se
em uma ausência de contradição, pois, caso contrário, teríamos no direito claúsulas
injustas, simplesmente porque não foram levantadas pretensões de correção, que viriam
corrigir essas injustiças. Por fim, quanto ao conteúdo da pretensão erigida, depende-se
do contexto institucional.
Para uma assembleia constituinte, por exemplo, haverá
critérios diversos de correção das que valeriam para as decisões judiciais. De qualquer
forma, a pretensão de correção do direito, em qualquer contexto, compreende sempre
uma pretensão de fundamentabilidade e de correção moral. Ou seja, é asseverado que o
direito posto é eficaz e observado, como também ele mesmo e sua interpretação são
corretos.
Segundo Alexy, a correção depende do discurso, mais precisamente da
teoria do discurso. É em torno dessa teoria procedimental da verdade ou da correção,
consistente em um sistema de regras discursivas que exteriorizam as condições do
argumentar prático racional, como tratado nos capítulos anteriores, que há uma
convergência de ideias entre Alexy e Habermas.
Feita essa rápida excursão, voltemos, pois, para a tese do caso especial de
Alexy, que muito tem a ver com as pretensões de correção apresentadas por Habermas.
A fundamentação da tese do caso especial proposta por Alexy e seu
principal elemento, a pretensão de correção, contém não só um ataque à principal tese
positivista, consistente na separação entre direito e moral, como também desenvolve
uma nova teoria do direito fundada na ideia de que este é a institucionalização da razão
prática e que, por isso não só ele deve ser concebido como um sistema de regras,
146
princípios e procedimentos, como também a argumentação prática geral deve ser
integrada na argumentação jurídica.
Para Alexy, a tese do caso especial se estrutura não só como uma
sistematização e reinterpretação da teoria do discurso prático habermasiana, mas
também como uma extensão dessa tese para o campo específico do direito132
No prefácio da obra Teoria da argumentação jurídica, Robert Alexy
elucida que, com a resolução de 14 de fevereiro de 1973 da Primeira Turma do
Tribunal Constitucional Federal da Alemanha que exigiu que as decisões dos juízes
devem se basear em “argumentos racionais”, iniciou um trabalho de investigação a fim
de responder à questão sobre o que deve ser entendido como argumentação jurídica
racional, bem como a de se e com que alcance ela é possível. Também nesse caso, não
iremos adentrar no desenvolvimento da obra, por fugir ao escopo deste trabalho, mas
procuraremos destacar a questão das pretensões de correção.
Por seu turno, na introdução à edição brasileira da obra mencionada,
Cláudia Toledo, Doutora em Filosofia do Direito e Teoria do Direito pela Universidade
Federal de Minas Gerais e pós-doutorado em Filosofia do Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina, ilustra que o discurso, se é voltado para o agir humano, é
pratico, e se busca sua orientação, é normativo. A grande dificuldade com que esse
discurso se depara para que seja racional, ultrapassando a simples opinião, não é a
existência de normas técnicas, mas, do ponto de vista procedimental, a sua construção
argumentativa de modo que se encontre o resultado correto. Assim, conclui, o discurso
prático deve obedecer a certas regras que buscam a correção dos argumentos, ou seja, é
correto o que é discursivamente racional. Há, portanto, identidade no discurso entre
racionalidade e correção.
Esta é a concepção da teoria consensual da verdade
habermasiana que Alexy adota, após algumas modificações críticas, na formulação de
seu discurso prático racional geral e do discurso jurídico.
132
ATIENZA, Manule. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução Maria Cristina
Guimarães Cupertino. 3ª edição. São Paulo: Landy, 2003, p. 160.
147
E prossegue a comentadora, a teoria da verdade, nos moldes aristotélicos, é
superada, pois não mais se considera a verdade como a correspondência entre a
asserção e a realidade, mas a algo construído discursivamente. A verdade não está
mais no mundo vivido, na natureza, mas torna-se produção cultural, ou seja, a verdade
é, em primeiro lugar, assumida, ou seja, historicamente construída, mas pode ser
negada ou superada em seguida, frente a uma nova verdade, o que lhe confere caráter
de provisoriedade.
Segundo Alexy, a diferença entre o discurso jurídico e o discurso prático
racional geral está em ser o primeiro vinculado ao direito vigente, apresentando-se por
isso como um caso especial do discurso prático racional geral. Esclarece que o direito
de que trata é o objetivo e não apenas o positivo, pois inclui, além das normas jurídicas
expressas, aquelas presentes na totalidade do ordenamento jurídico, passíveis de
objetivação pelos métodos de integração.
A comentadora Cláudia Toledo sintetiza:
“O discurso jurídico é prático por se constituir
de enunciados normativos. É racional por se
submeter à pretensão de correção discursivamente
obtida.
É especial por se subordinar a
condições
limitadoras
ausentes
no
discurso
prático racional geral, a saber —
a lei, a
dogmática e os precedentes.
Essas condições,
que
institucionalizam
o
discurso
jurídico,
reduzem
consideravelmente
seu
campo
do
discursivamente
possível
na
medida
em
que
delimitam mais precisamente de quais premissas
devem partir os participantes do discurso,
fixando ainda todas as etapas da argumentação
jurídica mediante as formas e regras dos
argumentos jurídicos”133
133
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da
justificação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. Revisão técnica da tradução e introdução à
148
O fundamento da tese do caso especial de Alexy pode ser restreado a partir
de simples perguntas que surgem quando se discute sobre o valor das sentenças e a
legitimidade do juiz em proferi-las, como, por exemplo, se as sentenças são arbitrárias,
subjetivas, ou se refletem apenas emoções do juiz ou do falante; se pode o juiz dar uma
sentença sem afirmar, ainda que implicitamente, que ela é correta; se discussões em
torno de controvérsias jurídicas tivessem algum significado se fossem consideradas
apenas uma opinião subjetiva, sem fundamentos que pudessem ser aceitos por todos.
Em todos estes exemplos, a resposta será negativa para Alexy, pois toda proposição
jurídica levanta necessariamente uma pretensão de correção. E uma proposição que se
pretende correta é aquela que pode ser justificada racionalmente através de uma
argumentação
racional,
tal
como
conceitua
Habermas:
“Correção
significa
aceitabilidade racional, apoiada em argumentos.”134
Alexy entende que o juiz não se despoja de toda carga pessoal na
fundamentação de suas decisões. Há nelas uma mescla entre a sua impressão e a
necessidade de justificação, que deve ser feita à luz do ordenamento jurídico vigente e
tida como uma tentativa de dar a resposta mais adequada ao caso. Por outras palavras,
a pretensão de correção que necessariamente todo ato de fala normativo levanta visa
criar um critério ideal de verdade prática que, embora não possa ser alcançado, deve ser
incessantemente buscado a fim de que os atos dos participantes tenham sentido. Uma
decisão judicial sempre é proferida com a convicção de que se está aplicando o direito
corretamente. Quer seja numa norma individual quer seja num sistema jurídico é
levantada pretensão de correção, ainda que com características diferentes. Sistemas
normativos que não formulam explícita ou implicitamente uma pretensão de correção
não podem ser classificados como sistemas jurídicos. Portanto, segundo Alexy, a
pretensão de correção é uma necessidade resultante da própria estrutura dos atos
jurídicos e do raciocínio jurídico.
edição brasileira Cláudia Toledo. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 23.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I, 2ª edição. Tradução
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 281.
134
149
A tese do caso especial de Robert Alexy advoga que o discurso jurídico é
um caso especial do discurso prático geral. Isso porque o discurso jurídico compartilha
de certas semelhanças com o discurso prático geral, não obstante diferencia do mesmo
em alguns aspectos. Ambos lidam com questões práticas e suas proposições erigem
uma pretensão de correção. Uma distinção fundamental é que a pretensão de correção
erigida por uma proposição jurídica é limitada, ou seja, ela deve ser considerada correta
no contexto do ordenamento jurídico vigente e suas condições limitadoras,
essencialmente a lei, a dogmática e os precedentes. Frise-se que Alexy não é claro
sobre o que ele entende por discurso jurídico. Sabemos que há diversos tipos de
discursos jurídicos, os quais diferem em extensão e aos tipos de limitações, há desde
aqueles que se desenrolam na dogmática, como os que se desenvolvem nos tribunais ou
nas salas de aulas. Ainda que se diferenciam em vários pontos, compartilham, no
entanto, em dois pontos essenciais: em todas as formas de argumentação o argumento
é, sobretudo, jurídico, e em todos eles nem todas as questões estão abertas ao debate.
Os discursos acadêmicos são mais livres, enquanto que num processo os limites são
maiores. Embora a diferenciação e o afastamento do discurso jurídico com relação ao
discurso prático geral possam apresentar variações, nunca se rompe o vínculo
estabelecido entre eles pela pretensão de correção que ambos possuem.
A pretensão de correção implícita nas proposições jurídicas é tornada
explícita pela institucionalização do dever dos juízes de justificarem suas decisões.
Nesse sentido, pronuncia-se Alexy: “No discurso jurídico, assim como no discurso
prático geral, não é admissível afirmar algo e depois se negar a fundamentá-lo, sem
indicar razões para isso.
Os enunciados jurídicos formulam, portanto, como os
enunciados normativos gerais, uma pretensão de correção.”135. Um juiz deverá em sua
fundamentação demonstrar que sua sentença não se baseia em convicções pessoais,
mas racionalmente justificada no contexto da ordem vigente.
135
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da
justificação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. Revisão técnica da tradução e introdução à
edição brasileira Cláudia Toledo. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 212.
150
Embora os críticos da tese de que questões jurídicas não seriam práticas,
pois são tratadas como teóricas pelos agentes do discurso jurídico, além de serem
predeterminadas fortemente pelos precedentes e pela lei, o fato é que sempre que uma
norma jurídica é desafiada, entra-se num discurso prático.
As restrições não
conseguem por si só destituir questões jurídicas de seu caráter prático. Não obstante a
parte busque seu interesse em um processo, isso não elimina o caráter objetivo da
pretensão de correção. A subjetividade das partes não tem o condão para eliminar a
pretensão de correção.
Os argumentos utilizados pelos contendores contribuem
efetivamente para que o juiz emita um juízo imparcial, sem que isso reduza os
participantes a meras fontes de informação. Pois, se o juiz quer decidir corretamente
deve ouvir todos os argumentos, e se a correção da sua decisão está sujeita a controle,
deverá justificar seu juízo ante os participantes, o sistema jurídico e ao público em
geral.
Em suma, a pretensão de correção levantada pelas decisões judiciais
contém dois aspectos: um se refere ao fato de a decisão ser corretamente justificada,
quando se parte do direito vigente e o outro está relacionado com o fato de o direito
válido ser racional ou justo. Considera-se justa uma decisão quando está de acordo
com o direito, sabendo-se que este tem um caráter autoritário e um ideal. Assim, uma
decisão será considerada justa se cumprir estes dois requisitos, ou seja, a pretensão de
correção é preenchida quando a decisão proferida de acordo com o direito estiver em
harmonia com a lei (aspecto autoritário) e em concordância com a moral (aspecto
ideal).
Habermas com a sua ética do discurso, posteriormente implementada no
campo do direito, notadamente em relação aos direitos fundamentais do homem e
direitos humanos, e Robert Alexy com suas teses no campo do direito, especialmente
difundidas nas obras Conceito e validade do direito e Teoria da argumentação jurídica,
muito se integram e pouco divergem, trazem uma grande contribuição para o direito e
para a democracia, particulamente para a aspirada democracia participativa.
151
6.3 - FACTICIDADE E VALIDADE
Os verbetes facticidade e validade, recorrentes em grande parte da obra de
Habermas, têm seu ápice na obra Direito e Democracia136, na qual são intensa e
extensamente tratados e, não obstante a linguagem densa e abstrata, sua leitura aguça a
curiosidade e a perseverança pela abrangência e atualidade das questões tratadas.
Como vimos, Habermas aponta que diferentes tipos de racionalidade
reinvindicam diferentes pretensões de validade. São os atos de fala constatativos que
expõem sobre estados de coisas e se referem ao mundo objetivo e tem como critério de
validade a verdade. O caso do agir estratégico ou do uso performativo da linguagem,
em que se pretende influir sobre um oponente, o critério de validade é a eficácia e é
determinada pela relação entre meios e fins. A ação regulada por normas nos contatos
interpessoais do convívio social em que o critério de validade é o de retitude ou de
correção frente a normas éticas. Quanto ao tipo em que há expressão de sentimentos e
emoções subjetivas a exigência de validade refere-se à veracidade, ou seja, à
sinceridade subjetiva. Cada ato de fala dá ensejo, portanto, a mais de um critério de
validade. Isto é, se o indivíduo está falando a verdade, se é sincero, se está agindo
estrategicamente ou se está agindo com retitude ou não. Cada tipo de racionalidade
exige diferentes critérios de validade. Se uma norma tem aplicação efetiva, ou seja, tem
aplicação fática, significa que a pretensão de validade com que se apresenta é
renconhecida por todos os afetados. Este reconhecimento intersubjetivo funda a validez
social (vigência) da norma.137
Bárbara Freitag138 nos esclarece que, nos vários capítulos do livro,
Habermas esmiuça, sob múltiplas óticas, a tensão existente entre facticidade e validade,
136
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª edição. Tradução
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
137
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, vol. I, Madri: Taurus, 1988, p. 122-128 e
142-146.
138
FREITAG, Bárbara. Dialogando com Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005, p.
191 ss. – (Biblioteca Colégio do Brasil: 10).
152
entre realidade e normatividade, entre práticas sociais historicamente criadas e leis
jurídicas politicamente implementadas, entre mundo vivido e sistema, tal que permite a
compreensão da sociedade moderna, dessacralizada e racionalizada. Esclarece ainda
que Habermas situa a tensão entre “facticidade” e “validade”, que os americanos
simplificaram para “fatos” e “normas”, no contexto da linguagem e da ação
comunicativa. Os dois conceitos coexistem, enquanto movimentação no mundo vivido,
ou seja, enquanto as relações sociais e comunicativas que caracterizam nossa vivência
cotidiana não forem problematizadas. As diferentes implicações somente vêm à tona
quando os atores põem em questão “as pretensões de validade” implícitas em qualquer
ato da fala, quais sejam: a veracidade (autenticidade) do locutor, a verdade construída
das afirmações feitas e a correção das normas até agora seguidas. Quando um destes
questionamentos
“perturba”
a
ação
comunicativa,
suspendendo
as
relações
comunicativas “habituais”, até então aceitas sem questionamentos, inaugura-se uma
nova forma comunicativa, que Habermas chama de “discurso”. Pelas vias discursivas,
isto é, “à base de um diálogo empenhado na argumentação racional, convincente, à
busca de entendimento e isenta de qualquer forma de violência interna ou externa, a
comunicação pode ser restabelecida no quotidiano, desde que as pretensões de validade,
postas em questão, tenham sido reafirmadas e revalidadas discursivamente. Noutras
palavras: (1) os locutores convencem seus parceiros da veracidade de sua fala, fazendoa coincidir com suas ações; (2) os argumentos verdadeiros passam a prevalecer, quando
eles fundamentam, de forma convincente as proposições feitas; e (3) as normas são
revalidadas, quando elas são compreendidas, respeitadas e aceitas por todos os
integrantes de uma situação dialógica como sendo justas e boas.”139
Habermas esclarece que a tensão entre fatos sociais e sua validade
normativa se desenvolve no campo do direito e do poder, incluindo-se suas formas de
institucionalização na sociedade e no Estado de direito.
139
ibidem, p. 191.
153
Retomando os esclarecimentos de Bárbara Freitag140, sua análise conclui
que a complicada dialética entre “facticidade” e “validade” subverteu a relação
“legitimidade” e “legalidade”, claramente distinguida por Weber, no sentido de que a
“legitimidade” de uma ordem podia alimentar-se de várias fontes (como p. ex., a
efetividade, a tradição, o direito, ...), fornecendo o fundamento indispensável para a
“legalidade”, e esta, por sua vez, dependia da lei escrita e prescrita, bem como de
instituições competentes para implementá-las. Em Weber, há uma sequência natural e
lógica entre os antecedentes (legitimidade) e os consequentes (legalidade). Habermas,
por seu turno, dá um giro de cento e oitenta graus e argumenta que a ordem institucional
legal (legalidade) cria, em sociedades modernas, a legitimidade da ordem, desde que
atendidos certos critérios democráticos e princípios discursivos. Para que essa ordem
tenha “validade” social e seja efetivamente “legítima”, é preciso haver uma legislação
em vigor, a administração pública para aplicá-la e as formas de controle (judiciário),
tudo pelas vias argumentativas, que caracterizam os “discursos” teóricos, éticos e
práticos.
Há, em realidade, mais que uma simples inversão na relação entre
“legitimidade” e “legalidade”, pois Habermas substitui esses conceitos por conceitos
mais complexos de “facticidade” e “validade”, de modo que a tensão entre eles tornamse mais complicados.
A facticidade de uma ordem social pode significar
simultaneamente que ela seja “legítima” no sentido weberiano, por se tratar de uma
ordem em que houve adesão “afetiva” da comunidade, mas também, pode significar
“legalidade” por ter sido estabelecida baseando-se num sistema jurídico vigente num
governo democraticamente eleito. Weber não teria argumentos para derrubar a ordem.
Habermas, no entanto, tem. Para ele, a ordem social pode até mesmo ser “factual” (e,
portanto, legal e legítima), porém jamais seria válida, no sentido em que entende por
“validade”, ou seja, somente pode ser válida uma ordem social, cujas normas e leis
foram elaboradas democraticamente, envolvendo todos os atingidos e interessados.
Para assegurar a “validade” de uma ordem social os critérios discursivos (anteriormente
colocados) precisam ser atendidos.
140
Tem-se que a “facticidade” refere-se a uma
ibidem, p. 192-193.
154
realidade social, oriunda simultaneamente de duas fontes: (a) de processos históricos e
sociais “espontâneos”, cuja normatividade pode ser atribuída ao sentimento
comunitarista e à tradição; e (b) de práticas normativas, deduzidas da legislação vigente.
Essa facticidade somente teria “validade ética e jurídica”, se as normas e leis que a
regem tivessem sido elaboradas discursivamente.
Para Habermas, as sociedades democráticas vigentes que têm facticidade,
não obstante os progressos alcançados, ainda não atendem a todos os critérios
democráticos, princípios discursivos e racionais, exigidos para constituir uma ordem
normativa, que se alimenta, contudo, de elementos históricos e empíricos, na medida em
que, por um lado, origina-se do “mundo vivido” do qual deduz seus princípios e, por
outro, nele interfere, remodelando-o à base de seus elementos normativos, jurídicos.
Graças a uma institucionalização crescente dos direitos humanos, Habermas
no capítulo IX da obra Direito e Democracia141, na seção que cuida da dialética entre
igualdade de fato e de direito, introduz a questão feminina e afirma que a igualdade e a
justiça entre homens e mulheres nos campos da educação, da profissionalização, no
mercado de trabalho, no exercício da sexualidade, etc., estão longe de serem realidades
factuais, mas, sem dúvida, leis igualitárias para homens e mulheres têm permitido que a
realidade factual da discriminação venha se transformando numa realidade factual da
equiparação em todos os campos sociais. Isso vem sendo implementado, graças à
existência de leis justas e igualitárias, discursivamente construídas, que produzem, dessa
forma, uma facticidade nova que corrige as distorções históricas e sociológicas entre os
gêneros humanos. O mesmo é válido para todo o tipo de minoria, tais como os negros,
os índios, os gays, bem como outros grupos sociais que sofrem discriminações em
relação a outros grupos.
No mundo atual, em que as formas de legitimação anteriores (religiosa,
afetiva, tradicional, heróica, etc) já não têm efetividade, impõe-se o direito discursivo
como única forma aceitável de “gerar” a facticidade e a validade de uma norma.
141
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. 2ª edição.
Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 160 ss.
155
Com relação à teoria dos atos de fala, aponta Habermas, a partir dos estudos
de J. Austin e J. R. Searle, que diferentes tipos de racionalidade reivindicam diferentes
pretensões de validade. O primeiro tipo são os atos de fala constatativos que expoem
sobre estados de coisas e se referem ao mundo objetivo e tem como critério de validade
a verdade. De outra parte, no caso do agir estratégico ou do uso performativo da
linguagem, em que se pretende influir sobre um oponente, o critério de validade é a
eficácia e é determinado em termos de mais ou menos eficaz na relação entre meios e
fins. Já na ação regulada por normas nas relações interpessoais do convívio social o
critério de validade é o de retitude ou de correção frente às normas éticas. Por fim, no
campo da expressão de sentimentos e emoções subjetivas a exigência de validade
refere-se à veracidade ou sinceridade subjetiva142. Um único ato de fala pode ser objeto
de análise de mais de um critério de validade, por exemplo, se o sujeito está falando a
verdade, se está sendo sincero ou se está agindo de maneira estratégica ou ainda se está
agindo com retitude ou não.
Portanto, diferentes tipos de racionalidade exigem
diferentes critérios de validade de acordo com o ato de fala a que se refere.
Quanto à hermenêutica e as pretensões de validade, constatamos no discurso
de louvor a Gadamer que Habermas proferiu em 1979, seu evidente interesse por ela:
como se nota no seguinte excerto: “Como a fenomenologia e a análise da linguagem, a
hermenêutica traz para o primeiro plano condições cotidianas da vida e promove o
esclarecimento sobre estruturas profundas do mundo da vida”.
intersubjetividade
linguística,
comunicativamente socializados.
que
vincula
previamente
Ela acentua a
os
indivíduos
Assim para ele, a tarefa da hermenêutica não é
somente a interpretação de conteúdos dados, mas também a crítica desses conteúdos,
quando eles forem o resultado de processos comunicativos distorcidos. A categoria
central da hermenêutica, a da compreensão, é, então, reinterpretada por Habermas: cada
ato de compreensão representa, ao mesmo tempo, uma tomada de posição em relação à
pretensão de validade. O conceito de compreensão, tão importante para Habermas,
contém um elemento potencialmente crítico, uma vez que nos permite questionar o
142
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, vol. I, Madri: Taurus, 1988, p. 122-146.
156
conteúdo comunicado por um falante ou transmitido pela tradição e verificar sua
validade. Cada ação comunicativa se funda em um ato hermenêutico de compreensão
que pode sempre levar a um questionamento das suas pretensões de validade e,
eventualmente, a um discurso no qual tais pretensões devem ser fundamentadas.
Habermas ao propor a diferenciação entre princípio da moral e princípio da
democracia, em que aquele opera no nível da constituição interna de um determinado
jogo argumentativo e este no nível da institucionalização externa, sobressai novamente
a relação de alívio recíproco entre facticidade e validade, presente em todo a obra
“Direito e Democracia”. A moral da razão sozinha é muito frágil, depende de muita
boa vontade e muito bom caráter. Ela se baseia só em conhecimento, não em crença,
tradição e costume. Por isso, necessita da institucionalização no sistema jurídico. O que
significa, por sua vez, “um alívio para o indivíduo, que não precisa carregar o peso
cognitivo da formação do juízo moral próprio”. Caso se tivesse que confiar somente na
moral, nunca se poderia estar seguro, sobretudo a certeza de que a contraparte, o outro,
também agiria dessa forma. Essa incerteza motivacional é “absorvida pela facticidade
da imposição do direito”. “O direito coercitivo sobrepõe de tal modo as expectativas
normativas com ameaças de sanção, que os destinatários podem limitar-se a
considerações orientadas pelas conseqüências.
Com essas distinções trabalhadas em suas obras, Habermas lapida o
caminho rumo a uma democracia deliberativa.
157
CAPÍTULO VII – CRÍTICAS QUE SE FAZEM À ÉTICA
DISCURSIVA
7.1 - CRÍTICAS À ÉTICA DO DISCURSO DE HABERMAS
Desde que proposta, a ética discursiva tem recebido múltiplas críticas.
Críticas essas que apontam em duas direções: ou elas põem em dúvida sua validade
como teoria filosófica, ou lamentam suas limitações. No primeiro caso, as críticas
dizem respeito às objeções às diferentes dimensões do núcleo filosófico que a constitui.
Claro que, segundo a própria confissão de Habermas, nossa ética se apresenta como
uma ética modesta, que deve pagar esse preço por manter os traços de uma filosofia
moral kantiana: formalismo, cognitivismo, universalismo e deontologismo. Também
seria possível replicar que a ética discursiva fez uso, em certas ocasiões, do conceito de
pessoa boa, como se observa na sua obra “Para a reconstrução do materialismo
histórico” e Apel, inclusive, insiste que a moral precisa de uma boa vontade. De
qualquer forma, o que verdadeiramente importa é a disponibilidade para o diálogo.
Uma série de questões marca a consciência contemporânea de tal forma que
parece contrapor-se ao projeto da ética do discurso, que, nesse quadro, surge como
incapaz de dar conta da riqueza dessa problemática nova emergente. Assim, p. ex., a
perspectiva de um discurso universalista parece contrapor-se fundamentalmente ao
sentido renovado da importância das aspirações de todo o mundo dos desejos e das
tendências; numa palavra, da esfera da efetividade e da problemática do
desenvolvimento pleno do ser humano a partir do pequeno mundo de sua cotidianidade,
caracterizada não só por seus sentimentos e emoções, mas pela enorme riqueza de seus
costumes, comunitariamente gestados, o que constitui a enorme diversidade cultural e
social dos povos. O anseio pela liberdade implica, portanto, o mascaramento como
repressivo, de qualquer discurso universalizante.
158
Habermas pensa que o discurso deve ser realizado com aqueles que são
atingidos pela decisão moral, quando justamente é o inverso que está em questão. Pois
aqueles que são atingidos pela decisão moral são invencivelmente partidários, enquanto
nós devemos estar interessados num esclarecimento imparcial. Vejamos dois exemplos
apresentados por Ernst Tugendhat143: Suponhamos que entre um casal existe um dever
de fidelidade recíproca e um deles apesar disso se tornou infiel ao outro. Surge então
para aquele que praticou a infidelidade o dilema moral, se por respeito deve dizê-lo ao
outro ou se para poupá-lo deve silenciar sobre o fato. Irá ele agora num “discurso real”
discutir com o outro qual o caminho a seguir? Vê-se que neste caso num discurso real é
até impossível, porque, com a decisão de incluir o outro na reflexão moral, o dilema já
está decidido a favor de uma das duas alternativas.
Para o segundo exemplo pode servir uma situação imaginária que muitas
vezes é utilizada para criticar o utilitarismo. Numa clínica encontram-se cinco pacientes
e todos eles necessitam com urgência do transplante de um órgão para poder sobreviver,
e um paciente, fazendo check up, possui todos os órgãos exigidos; o médico está
impossibilitado de conseguir os órgãos de outro lugar. Será que se deve discutir com os
seis interessados a questão se o paciente sadio deve ser sacrificado em favor dos outros
cinco? Aqui se mostra como é problemática a decisão moral com a participação dos
afetados.
Cada um dos seis quer continuar vivendo e se cada um partir de seus
interesses dar-se-á uma decisão de maioria que é evidentemente imoral.
Agora é
naturalmente possível que os cinco que necessitam dos transplantes também pensem de
modo tão moral que renunciem à decisão imoral da maioria. Mas, a este resultado
também se poderia chegar de modo muito mais indiscutível sozinho, ou, se ainda
estivesse em dúvida, ele teria preferido convocar outros que não estivessem afetados
para se aconselhar.
Várias objeções são colocadas no sentido de que a fraqueza fundamental do
projeto de Habermas é a falta de concordância entre ideal e realidade, entre as intenções
e sua execução. Esta incongruência permeia tanto o mais geral como os mais concretos
143
TUGENDHAT, Ernst (1930 -
) : Filósofo alemão. Trabalhou com Habermas na Escola de Frankfurt.
159
fenômenos da modernidade e está enraizada em uma concepção de poder insuficientes.
Os críticos dessa corrente afirmam que este é o fundamental dilema político no
pensamento de Habermas: ele descreve a utopia da racionalidade comunicativa, tem boa
vontade, mas não diz como chegar lá. Menos radicais que Tugendhat, mas ainda em
contraste com Habermas, encontramos declarações de Nietzsche, Foucault, Derrida,
dentre outros, de que a comunicação em todos os tempos já foi penetrada pelo poder: “o
poder está sempre presente, afirma Foucault. É, portanto, sem sentido, de acordo com
estes pensadores, trabalhar com um conceito de comunicação no qual o poder está
ausente.
Para os estudiosos do poder, a comunicação é mais tipicamente
caracterizada pela retórica não-racional e manutenção de interesses do que pela
liberdade de dominação e busca de consenso. Na retórica, a validade é estabelecida
através do modo de conversação, por exemplo, eloquência, controle oculto, a
racionalidade, o carisma, usando as relações de dependência entre os participantes. A
questão básica a ser levantada é se é possível distinguir significativamente a
racionalidade e o poder um do outro na comunicação e se a racionalidade pode ser vista
isoladamente do poder, como o faz Habermas. Devemos, pois, ser cautelosos, dizem os
críticos, ao usar a teoria da racionalidade comunicativa e agir em relação à sociedade
civil. Habermas peca por parecer esquecer seu próprio axioma de que as questões
filosóficas devem ser objeto de verificação empírica.
Outra crítica relevante em relação à etica do discurso, diz respeito ao
enunciado de Maquiavel em “Os Discursos”, no parágrafo em que recapitula que ao
aplicar a constituição e legislar para uma riqueza comum deve-se tomar por certo que
todos os homens são maus e que eles sempre dão vazão à maldade que está em suas
mentes quando se oferece a oportunidade. Se ele estiver certo, a base para organizar a
sociedade proposta por Habermas, sem a presença de controles e contrapesos para
controlar a maldade de que fala Maquiavel, certamente nos deixaria numa situação
extremamente difícil.
160
Outra abstração de Habermas é o que ele chama de “melhor argumento”.
Parece-nos um conceito empiricamente vazio. O que isso significa e o que pressupõe?
Mesmo os analistas mais simpáticos à teoria comunicativa de Habermas
criticam-no por seu formalismo, idealismo e insensibilidade ao contexto. Sugestões
sobre os pontos fracos detectados lhe estão sendo apresentadas.
Obviamente, não
podemos olvidar que Habermas em trabalhos recentes tem procurado lidar com o poder
e, ao mesmo tempo, desenvolveu uma profunda análise da sociedade civil. Apesar
disso, a sua abordagem permanece fortemente normativa e processual, com pouca
atenção para as pré-condições do discurso real, aos valores éticos substantivos e para o
problema de como a racionalidade comunicativa pode conseguir um ponto de apoio na
sociedade, ante as poderosas forças não comunicativas. Há de se dizer também da
pouca atenção aos particulares problemas relacionados com a identidade e as divisões
culturais, bem como as formas não-discursivas de salvaguardar a razão que estão sendo
desenvolvidos por assim chamados grupos minoritários e os novos movimentos sociais.
Se nosso objetivo é avançar em direção ao ideal de Habermas — libertação
da dominação, mais democracia, uma sociedade civil forte — então nossa tarefa é
compreender não só a racionalidade comunicativa, mas também, e sobretudo, as
realidades e relacões do poder, e aqui, necessariamente, temos que recorrer ao trabalho
de Michel Foucault, que tratou dessa temática.
Tanto Foucault como Habermas são pensadores políticos. O pensamento de
Habermas é bem desenvolvido no que diz respeito aos ideais políticos, mas fraco em
termos de compreensão do processo político real.
O pensamento de Foucault, ao
contrário, é fraco com referência aos ideais generalizados. Ambos concordam que na
política é preciso “ladear com a razão”. Com relação à importância de Kant, Foucault
está de acordo com Habermas: disse em uma entrevista que “se alguém abandona a obra
de Kant, corre-se o risco de cair na irracionalidade”. A principal queixa de Habermas
sobre Foucault, encontrada na obra “O Discurso filosófico da modernidade”, é o que ele
vê como relativismo ao criticá-lo por não dar conta das bases normativas para seu
pensamento, ou seja, se por relativista queremos dizer “sem normas” ou “vale tudo”.
161
Mas a obra de Habermas também é relativista, pois não foi capaz de, até agora,
demonstrar que o fundamento racional e universal de sua ética do discurso é possível,
ele apenas postulou tais fundamentos. No entanto, não podemos culpá-los, se até o
presente, nenhum filósofo racionalista foi capaz de fazer jus ao comando de Platão, no
sentido de que para evitar o relativismo nosso pensamento deve ser racional e
universalmente fundamentado. Foucault, na obra “O que é iluminismo?”, rejeita o
relativismo e o fundamentalismo e os substitui pela ética situacional, ou seja, pelo
contexto, assim como na “História da sexualidade”, toma posição clara por uma “ética
da preocupação consigo”, no sentido da auto-realização do indivíduo na beleza de seu
estilo de vida, pretendendo, assim contrapor-se decididamente a qualquer ética que
levante a pretensão de conter princípios dotados de validade universal, ou seja, de uma
ética radicada numa lei universal que se impõe, uniformemente, a todo homem racional.
A ética racionalista se lhe manifesta catastrófica, porque destruidora da verdadeira autorealização do homem.
Em suma, Habermas e Foucault evidenciam uma essencial tensão na
modernidade. Tensão entre o consenso e o conflito. Como ponto de partida em Kant,
Habermas é o filósofo da eticidade baseada no consenso. Foucault, seguindo Nietzsche,
é o filósofo da história real, falada em termos do conflito e da força.
Já o filósofo da pós-modernidade, J. F. Lyotard, defende a dissolução de
qualquer pretensão à universalização na ciência, na moral e no direito. Por essa razão a
ética do discurso lhe parece simplesmente ameaçadora do exercício totalitário do poder.
162
7.2 – CONSIDERAÇÕES DE HABERMAS EM RELAÇÃO ÀS
OBJEÇÕES FEITAS À ÉTICA DO DISCURSO
A Ética da discussão e a Questão da verdade144, obra composta de
conferências que Jürgen Habermas proferiu em fevereiro de 2001, na Paris IV
(Sorbonne), trata da questão da verdade em que ele responde a algumas das objeções
que se levantaram contra a sua ética da discussão.
Segundo Habermas, o ideal de emancipação característico do projeto da
modernidade e do Iluminismo ainda não se realizou; as promessas de liberdade e
igualdade feitas desde então ainda não se cumpriram. Para que possam cumprir-se o
filósofo e sociólogo alemão propõe que comecemos por lançar sobre novos
fundamentos toda a nossa compreensão da razão, do ser humano, e da sociedade; pede,
antes de mais nada, que deixemos de lado o paradigma da consciência e entendamos
que a racionalidade não depende diretamente do sujeito, mas da intersubjetividade; que
atrelemos, assim, o pensamento a uma lógica da descentralização em relação ao ego. A
sua ética da discussão, elaborada juntamente com Karl-Otto Apel, apresenta-se a nós
como uma das grandes teorias filosóficas de nossos tempos. Numa época em que todos
se questionam sobre as bases possíveis da normatividade, essa ética da discussão
pretende não somente esclarecer quais são as condições da intercompreensão como
também, pela demarcação dos pressupostos pragmáticos da linguagem, identificar os
termos de uma fundamentação intersubjetiva e racional das normas. Nesta obra ele
fornece uma visão geral da concepção da verdade teórica e prática apropriada à ética da
discussão.
Ao ser questionado se é possível abolir toda referência ao paradigma
kantiano da subjetividade, mesmo no contexto de uma filosofia da comunicação baseada
no viés linguistico, tomando por base a distinção dos dois modelos proposto, qual seja,
144
Habermas, Jürgen. A Ética da discussão e a Questão da verdade. Organização e introdução de Patrick
Savidan. Tradução Marcelo Brandão Cipolla. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2007. (Coleção
Tópicos).
163
um modelo monológico, que atribui a John Rawls, e um modelo dialógico que, em sua
opinião, somente uma ética da discussão tem condições de sustentar, Habermas
esclarece que “a interpretação intersubjetiva do imperativo categórico apresenta apenas
uma explicação do seu significado fundamental, e não uma interpretação que dá a esse
significado uma nova direção”145. A transição da reflexão monológica para a diálogo
explica uma característica do procedimento de universalização que permaneceu
implícita até o surgimento de uma nova consciência histórica, na virada do século XVIII
para o XIX. Entende ele que, quando tomamos consciência de que a história e a cultura
são as fontes de uma imensa variedade de formas simbólicas, bem como da
especificidade das identidades individuais e coletivas, percebemos também, que o
mundo se revela e é interpretado de modo diferente segundo as perspectivas dos
diversos indivíduos e grupos. Essa espécie de pluralismo interpretativo afeta a visão de
mundo e a autocompreensão, bem como a percepção dos valores e dos interesses de
pessoas cuja história individual tem suas raízes em determinadas tradições e formas de
vida e é por elas moldada. Essa multiplicidade de perspectivas interpretativas explica
por que o sentido do princípio de universalização não se esgota numa reflexão
monológica segundo a qual determinadas máximas seriam aceitáveis como leis
universais do meu ponto de vista.
Somente como participantes de um diálogo
abrangente e voltado para o consenso é que somos chamados a exercer a virtude
cognitiva da empatia em relação às nossas diferenças recíprocas na percepção de uma
mesma situação.
Devemos então procurar saber como cada um dos demais
participantes procuraria, a partir de seu próprio ponto de vista, proceder à
universalização de todos os interesses envolvidos. “O discurso prático pode, assim, ser
compreendido como uma nova forma específica de aplicação do imperativo
categórico.”146 Aqueles que participam de um tal discurso não podem chegar a um
acordo que atenda aos interesses de todos, a menos que todos façam o exercício de
‘adotar os pontos de vista uns dos outros’, exercício que leva ao que Piaget chama de
uma progressiva ‘descentralização’ da compreensão egocêntrica e etnocêntrica que cada
145
146
ibidem, p. 8.
ibidem, p 10.
164
qual tem de si mesmo e do mundo. Para ilustrar essa estratégia, veja que a noção de
“autonomia” em Kant é essencialmente diferente da noção de liberdade subjetiva que
nos vem da tradição empirista. No caso da liberdade subjetiva, a vontade é determinada
por máximas de prudência, pelas preferências ou motivos racionais, digamos, que uma
pessoa tem. Nesse caso, o ato de liberdade surge como parte da consciência de um
único sujeito.
No caso da autonomia, porém, a vontade se deixa determinar por
máximas aprovadas pelo teste da universalização.
A vontade de uma pessoa é
determinada por motivos que deveriam igualmente ser levados em conta por todas as
outras pessoas (na medida em que são vistas como membros da comunidade moral).
Essa interpenetração do livre arbítrio e da razão prática nos permite conceber a
comunidade moral como uma comunidade abrangente que faz as suas próprias leis, uma
comunidade formada de indivíduos livres e iguais que se sentem obrigados a tratar uns
aos outros como fins em si mesmos.
As várias críticas que se levantaram e se levantam contra a ética da
discussão quase sempre partem de contextos diversos o que, ainda que proferidas por
luminares, não atingem o cerne da proposta habermasiana, não obstante, permita a
Habermas, que se encontra em plena atividade, quando o questionamento apresenta
fundamento válido, a fazer ajustes marginais, a fim de que possa cada vez mais
apresentar-se praticável e factível a sua proposta.
165
CONCLUSÃO
Habermas, com base no estruturalismo genético de Piaget e Kohlberg,
defende uma “ética cognitiva”, chamada “ética do discurso”, isto é, uma ética que se
atém ao “potencial de verdade das questões práticas” e com isso, ele se coloca na
tradição de Immanuel Kant e da filosofia moral atual ao lado de teóricos como John
Rawls, Ernst Tugendhat e Karl-Otto Apel, dentre outros.
A ética do discurso não tem pretensões de prometer uma vida feliz para o
sujeito social, ao contrário: o objeto da ética discursiva é a validade da norma,
construída pelo “todo coletivo” por meio do consenso que as partes individuais
decidiram construir. O consenso surge quando são aceitas as quatro pretensões de
validade e que concernem “à compreensibilidade da expressão lingüística, à verdade do
seu elemento proposicional, à legitimidade do seu elemento performativo e à veracidade
da intenção expressa pelo falante”. O consenso fundamentado do qual fala Habermas é
aquele que pode ser alcançado sempre e em todo lugar, quando entramos em um
discurso.
A respeito disso, Olinto Pegoraro afirma: “na ética discursiva, não existe
uma preocupação de ordem existencial de cada pessoa e de cada situação concreta,
visando orientar o sujeito para uma vida boa e feliz; pelo contrário, a ética deontológica
discute as condições nas quais uma norma pode ser aceita como válida; então, o
problema ético se desloca da questão do bem para a questão do justo, da felicidade
pessoal para a validade prescritiva da norma”. Percebe-se que a ética discursiva tem por
objetivo a construção de uma sociedade mais democrática, tendo em vista que aquilo
que foi aprovado com a aquiescência da maioria deve ser validado como escolha mais
justa e pragmática. Como peculiaridade, nota-se que a ética discursiva é procedimental,
isto é, quando todos que estão envolvidos no debate se prestam a cumprir o que foi
acordado por meio de uma norma, tem-se aí a universalização concreta e pragmática do
processo instalado para se chegar ao consenso.
166
A ética do discurso enseja sempre que a autenticidade discursiva tenha
apenas uma finalidade, qual seja, a busca pela verdade, em realidade, uma verdade
construída.
Por isso, no projeto ético habermasiano, não há espaço para mentiras
políticas e nem coisas afins. Para Habermas, todo discurso deve ter a pretensão de dizer
sempre a verdade, lembrando que esta depende de uma constituição prévia dos objetos
da experiência. “Falar é ipso facto levantar uma pretensão de validade; qualquer pessoa
que realiza um ato de fala é obrigada a exprimir pretensões universais à validade e de se
supor que é possível honrá-las”, diz Habermas. Falar é, portanto, procurar entender-se
um ao outro, é algo imanente à linguagem. Além de ser compreendido, o ato de fala
precisa também ser aceito. Esse reconhecimento intersubjetivo é responsável também
pelo acordo, sem o qual as obrigações decorrentes para o desenrolar da ação não se
criam.
Há, para Habermas, um ponto de contato entre linguagem e ética que é
insuperável e insubstituível.
O acordo e o entendimento produzidos pela ação comunicativa, não podem
ser obtidos por coação, não têm pretensão de poder. Este é, no entanto, a crítica
fundamental de Foucault em relação à ética discursiva: é sem sentido trabalhar com um
conceito de comunicação no qual o poder está ausente. Dar e ter razão decorre da ação
comunicativa, suscetível de crítica e revisão quanto a qualquer uma de suas pretensões
de validez: a da verdade, pois um enunciado verdadeiro pressupõe um estado de coisa
que o ouvinte pode reconhecer e compartilhar com o falante; a de retidão normativa
demanda correção com relação ao contexto normativo, que enseja relações baseadas na
legitimidade de normas aceitas e praticadas; a de veracidade de sentimentos, opiniões,
desejos do falante, essenciais para que o ouvinte confie na oferta do ato de fala.
Em resumo, a ação comunicativa implica pretensões de validez conectadas
com razões. Desse modo, um ato de fala tem efeito coordenador com relação à ação.
Com essa pragmática formal, Habermas reconstrói os tipos de competência
que permitem entendimento linguístico pela ação comunitária, isto é, a coordenação
efetiva e consensual dos planos de ação inseridos no mundo vivido. O conceito de
mundo vivido é complementar ao conceito de ação comunitária, de modo que sua teoria
167
de ação formula-se no âmbito de uma teoria da sociedade.
Habermas discorda da análise pessimista de que é impossível fundar a moral
devido ao fracasso do projeto iluminista, fracasso este evidenciado pela redução da
razão à racionalidade instrumental. Habermas adere a Kant e à tradição kantiana (Rawls
e Apel), para os quais a razão prática é suscetível de validação em termos de verdade
construída, e não de mera valoração emocional ou fruto de simples decisões
particulares. Adota como pressuposto o cognitivismo, quer dizer, todo juízo moral
aponta para as razões que levam alguém a agir de tal ou tal modo.
A ética filosófica leva em conta uma teoria especial de argumentação. Só há
acordo argumentativo se ele puder ser fundamentado por pretensões universais.
Relativismo e ceticismo não têm vez na ética do discurso, se não houver a participação
de todos, bem entendido, todos os envolvidos, com capacidade plena para argumentar,
não há legitimidade nas resoluções e nas pretensões à normatividade.
A questão moral diz respeito não ao agir instrumental, nem visa efeitos
desejáveis, úteis, mas diz respeito à rede de relações humanas com seus sentimentos
morais. Nesse sentido, a prática comunicativa é um meio para modificar, criticar,
justificar, as atitudes das pessoas. Para haver juízos morais justificáveis é preciso poder
questionar a validade moral das normas, sua correção normativa pode e deve ser alvo de
questionamentos. A pretensão de validez normativa implica em poder investigar as
razões para apoiar ou não o acordo entre partes. Por isso, decidir e aplicar normas não
cabe a um indivíduo isolado.
A modernidade se caracteriza como uma época em que é preciso legitimar
normas a fim de que sejam acatadas. Nos discursos práticos a argumentação toma por
base o imperativo de impessoalidade ou universalidade das normas, de estilo kantiano.
Sem assentimento por parte de todos não há validez normativa. Mas, ao contrário do
imperativo categórico de Kant calcado na forma incondicional das proposições
deônticas universais, Habermas considera que o predicado acerca da correção precisa
ser aplicado a cada caso, antes de formular um juízo.
168
Argumentar é dar e contestar razões, mas isso não significa produção
automática de normas fundamentadas eticamente. Isso se deve ao fato de que as normas
de direito e da moral se constituem através de discursos práticos, de forma que cada
época fará valer o que considera como moral, recorrendo a regras com conteúdo
normativo.
Essas regras têm caráter pragmático-transcendental, isto é, demandam
discursos práticos nos quais é imprescindível a regra de universalização (U).
Os conteúdos morais variam conforme as diversas culturas, mas há formas
universais do juízo moral, além de estruturas que possibilitam o aprendizado moral, de
acordo com estágios de desenvolvimento da personalidade.
Assim, a diversidade
cultural e o aprendizado moral de cada pessoa, caracterizam a ética do discurso como,
ao mesmo tempo, levando em conta peculiaridades do conteúdo ético/moral, e um
aprendizado que dá condições para a imparcialidade, a universalidade, a reversibilidade.
Há um aprendizado moral e o mérito da norma deve ser reconhecido pública e
intersubjetivamente.
A argumentação moral requer esforço, reflexão capaz de restaurar o
consenso que foi perturbado, capaz de resolver conflitos e expressar a vontade e as
convicções comuns. A natureza da ética do discurso reside no exame da pretensão de
que a norma sirva adequadamente a todos, que as interpretações decorrentes de uma
tradição, sejam compartilhadas e possam ser revistas à luz de novas situações. A busca
de uma universalidade significa a possibilidade de compreender o tema ou a situação
em foco, apreender com as argumentações, saber discernir, estar apto a justificar através
de boas razões.
Nas sociedades pós-tradicionais, portanto na modernidade, os
pressupostos pragmáticos da argumentação é que conduzem a justificação de modo
reflexivo.
Com relação ao Direito, Habermas pensa que “a substituição da integração
social pela sistêmica toma a forma de processos de juridificação”. Com esse termo ele
indica o processo pelo qual o Direito se estende sobre âmbitos sociais cada vez mais
novos, que até o momento eram regulados de maneira informal, e penetra neles sempre
mais profundamente. Habermas reconstrói, servindo-se de exemplos do direito familiar
169
ou escolar, a passagem do Estado burguês ao Estado social, distinguindo quatro estágios
de juridificação: Estado burguês, Estado de direito, Estado democrático de direito e
Estado social e democrático de direito147.
147
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Vol. II. Madri/Espanha: Taurus, 1987, p. 519
ss.
170
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174
ÍNDICE DE AUTORES MENCIONADOS NO TEXTO
Adauto Novaes – 19
Adela Cortina – 41
Alasdair MacIntyre - 113, 114
Alexy – 18, 64, 105, 106, 140, 141, 142, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151
Aristóteles – 29, 45, 47, 114
Bárbara Freitag – 28, 152, 154
Bentham – 28
Bobbio - 104
Bühler – 55
Chäim Perelman – 98, 143
Charles Taylor – 113, 114
Cícero - 115
Cláudia Toledo – 147, 148
Delamar José Volpato Dutra - 71
Derrida – 160
Dilthey - 55
Durkheim – 28, 56, 57, 87
Dworkin - 112
Ernst Tugendhat – 52, 159, 160, 166
Fichte - 109
Foucault – 94, 160, 161, 162, 167
175
Franklin Leopoldo e Silva – 19, 20, 21, 22, 23
Gadamer – 55, 156
G. H. Mead – 58, 61, 87
Habermas – 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 24, 27, 28, 30, 31, 33, 34, 35, 36, 37,
39, 40, 41, 42, 45, 47, 48, 49, 50, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 62, 63, 64, 65, 66, 67,
68, 70, 71, 73, 76, 79, 80, 81, 84, 85, 86, 87, 89, 90, 94, 95, 96, 98, 100, 101, 105, 106,
107, 108, 111, 113, 114, 115, 117, 118, 119, 120, 123, 124, 126, 127, 128, 130, 131,
132, 134, 137, 140, 141, 142, 145, 146, 149, 151, 152, 153, 154, 155, 156, 157, 158,
159, 160, 161, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169
Hannah Arendt – 20, 21
Hare – 52
Hans Kelsen - 31
Hegel – 38, 85, 97, 103, 114
Heidegger – 79, 80
Horkheimer – 38, 90
Husserl – 79, 80
Ivo Assad Ibri – 25
J. Austin – 67, 94, 156
J. F. Lyotard – 56, 162
John Rawls – 52, 58, 61, 94, 112, 164, 166, 168
J. R. Searle – 94, 156
Josué Cândido da Silva – 25
Lima Vaz – 76, 102
Luhmann – 28
176
Lukács - 90
Kant – 13, 14, 16, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 43, 48, 54, 57, 58, 63, 96, 99, 103, 117, 128,
161, 162, 165, 166, 168
Karl Marx – 22, 28, 35, 42, 86
Karl-Otto Apel – 28, 32, 33, 35, 42, 45, 46, 47, 50, 52, 55, 59, 71, 122, 137, 158, 163,
166, 168
Klaus Günther - 133
Kohlberg – 28, 54, 55, 57, 58, 59, 62, 63, 166
Maquiavel - 160
Manfredo A. de Oliveira – 33, 46
Mariá Brochado – 103, 115
Max Weber – 28, 35, 36, 37, 39, 95, 154
Michael Walzer - 113, 114
Nietzsche – 160, 162
Noam Chomsky - 94
Olinto Pegoraro – 166
Otfried Höfre - 122
Parsons – 28, 124, 125
Piaget – 28, 54, 55, 57, 58, 63, 164, 166
Platão – 45, 162
Rousseau – 28, 96, 103, 117
Tércio Sampaio Ferraz - 103
T. W. Adorno – 38, 90
177
Wellmer – 28, 52, 55
Wittgenstein – 55, 80, 94
Xavier Herrero - 38
178
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