Sandra Nui Asano* Resenha: RAGO, Lusia Margareth. “Sexualidade e identidade na historiografia brasileira”, In: MARTINS, Ismênia e outros (orgs.), História e cidadania, São Paulo: Humanitas, 1998, V. 1, p. 185-202. No texto analisado, Margareth Rago problematiza de que forma a historiografia brasileira, entre as décadas de 20 e 40 do século passado, criou seus discursos acerca dos elementos formadores/conformadores da identidade nacional, direcionando-os numa busca por explicações históricas para nosso (sub)desenvolvimento econômico e social. Ao analisar clássicos da nossa historiografia, como Raízes do Brasil (Sérgio B. de Holanda), Casa-grande e Senzala (Gilberto Freire), Retratos do Brasil (Paulo Prado) e Evolução Política do Brasil (Caio Prado Júnior), Rago observou a existência de um eixo comum nas falas desses autores, no que tange a um dos elementos considerados o cerne na formação de nossa identidade: a sexualidade. Falas cuja matriz discursiva encontra-se na constituição do sexo como base explicativa dos indivíduos, como objeto de ‘verdade’, pois, no “fundo do sexo, está a verdade”(Foucault APUD Swain, 2000: 49). Em Casa-grande e Senzala (1933) e Retratos do Brasil (1928), as referências à sexualidade como traço mais característico do povo brasileiro são explícitas. Para Freyre, a miscigenação ocorrida no Brasil, mesclando as três raças, seria responsável pela ‘democracia racial’ da nossa sociedade e o meio pelo qual poderíamos alcançar um maior desenvolvimento como nação. Mas tal miscigenação só teria sido possível devido à uma já existente predisposição ao sexo das nossas ‘raças formadoras’, uma vez que essa resultaria na supressão de obstáculos às “uniões entre os diferentes” (Rago, 1998: 192). Dessa forma, afirmava que a formação do povo brasileiro teria se iniciado num ambiente de quase ‘intoxicação sexual’ (Freire, 1933: 60). Já para Paulo Prado, que também percebia a sexualidade como aspecto central de nossa formação, essa seria uma característica negativa, idéia que se esboça ainda no subtítulo de sua obra, Ensaio sobre a tristeza brasileira, onde a tristeza seria fruto da exarcebação dos instintos sexuais dos portugueses, dos/as índios/as e dos/as negros/as e responsável pelo nosso atraso econômico, político e social. * Sandra Nui Asano é mestranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Brasília, inscrita na linha de pesquisa ‘História: Discurso, Imaginário e Cotidiano’. Nas outras obras analisadas – Raízes do Brasil (1936) e Evolução Política do Brasil (1933) – a autora percebe um tratamento mais discreto e velado da dimensão sexual, ainda que essa também seja considerada a base para a formação do Brasil (Rago, 1998: 198). Sérgio B. de Holanda via a confluência de todas as características do povo brasileiro na figura do ‘homem cordial’, comandado pelos impulsos e não pelo racionalismo e cuja existência seria o grande obstáculo para nos tornarmos uma grande nação moderna. Como o ‘mulato’, de Freyre, o ‘homem cordial’ seria o resultado da mistura entre portugueses, negros/as e índios/as, daí a associação direta entre sexualidade e identidade brasileira. Caio Prado, com uma leitura marxista, inovadora para a época, acaba por incorporar os pressupostos freyrianos no que tange à constituição do povo brasileiro. Como seria da mestiçagem que resultaria o nascimento do brasileiro, Prado percebe a sexualidade portuguesa como a dominadora, pautando a própria existência das sexualidades ‘dominadas’, ou seja, a dos/as negros/as e a dos/as indígenas. A grande crítica de Rago recai na apropriação/reapropriação dos discursos utilizados pelos autores, pois os mesmos não teriam questionado/problematizado seus determinismos. O discurso médico do século XIX, por exemplo, que é apropriado sem nenhuma leitura crítica é, segundo a autora, um discurso vincado por um viés sexista e moralista, instituidor/reafirmador das hierarquias entre as raças e os gêneros (Rago, 1998: 190). Outra crítica refere-se ao fato de que outras falas circulantes no período analisado pelos autores não foram consideradas, como as dos operários e as de mulheres como Pagú, que, por reafirmarem o discurso dominante, foram silenciadas pela historiografia. Para José Carlos Barreiro, os clássicos da nossa historiografia não são comumente objeto de análises críticas, por serem considerados inatacáveis e/ou intocáveis, tendência que se mostra perniciosa, pois, para esse, a leitura crítica de clássicos da historiografia brasileira “significa, antes de tudo, vencer a sua ‘intocabilidade’ para poder submetê-los a um diálogo frutífero à luz da renovação permanente dos conhecimentos históricos adquiridos” (Barreiro, 1995: p. 59). Rago, ao empreender uma análise crítica dos clássicos que, segundo Antônio Cândido, foram responsáveis pela formação intelectual da maioria dos jovens no período em que foram publicados (Holanda, 1995: 15), permite-nos experimentar novas abordagens, novos olhares sobre a formação do povo brasileiro, possibilitando-nos também perceber quando e onde esses clássicos são incorporados ipsi literis, com pouca ou nenhuma leitura crítica. Esse é o caso de um fenômeno editorial recente, Eduardo Bueno, que reproduz discursos dominantes sem problematizá-los, como quando se refere à libido exarcebada das índias, que se jogavam nos braços dos portugueses, por considerarem um ‘privilégio’ terem contato sexual com cristãos. Perigoso e inconsequente, pois, ainda que não seja historiador, suas publicações atingiram grande sucesso de vendas e, consequentemente, seus discursos ecoaram entre os diversos segmentos sociais do Brasil, reforçando a naturalização de uma imagem consagrada pelo discurso historiográfico tradicional. Vale destacar que uma leitura mais crítica de qualquer obra não se reveste de um caráter policialesco e/ou persecutório, mas a desmistifica, à medida que percebemos e respeitamos o fato de que as grandes obras foram feitas por indivíduos que beberam das águas de seu tempo, que percepcionaram sua realidade através dos arcabouços culturais circulantes no período em que viveram. Bibliografia utilizada: BARREIRO, José Carlos. “E. P. Thompson e a historiografia brasileira”, In: Revista Projeto História: Dossiê E. P. Thompson, São Paulo: PUC, n. 12, out. 95. CÂNDIDO, Antônio. “O significado de Raízes do Brasil”, In: HOLANDA, Sérgio B. de. Raízes do Brasil, 26a ed., São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 9-25. RAGO, Lusia Margareth. “Sexualidade e identidade na historiografia brasileira”, In: MARTINS, Ismênia e outros (orgs.). História e cidadania, São Paulo: Humanitas, 1998, V. 1, p. 185-202. SWAIN, Tânia N. “A invenção do corpo feminino ou ‘A hora e a vez do nomadismo identitário?’”, In: SWAIN, Tânia (org.). Feminismos: Teorias e Perspectivas. Textos de História: Revista do Programa de Pós-graduação em História da UnB, Brasília: UnB, 2000, vol. 8, n. 1/2.