a filosofia como modo de vida na grécia antiga

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Revista(Aproximação(—(Primeiro(semestre(de(2015(—(Nº(9(
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A FILOSOFIA COMO MODO DE VIDA NA GRÉCIA ANTIGA,
SEGUNDO PIERRE HADOT
Elis de Aguiar Bondim Ribeiro de Oliveira
Graduanda em filosofia na UFRJ
Resumo: Esse trabalho visa divulgar, apresentar e introduzir o leitor à concepção de
filosofia como modo de vida na Grécia Antiga, de acordo com Pierre Hadot, autor base
desse trabalho. O artigo introduz brevemente também Sócrates e a sua filosofia,
conhecida até onde é possível através principalmente dos escritos de Platão, e algumas
escolas do período Helenístico – a saber, a Academia, o estoicismo e o epicurismo –,
com o objetivo de apresentá-los como exemplos de seguidores da filosofia como modo
de vida.
Palavras-chave: Filosofia como modo de vida. Pierre Hadot.
Abstract: This work aims to divulge and present the conception of philosophy as a way
of life in Ancient Greece, just like Pierre Hadot says. The article discourses about
Socrates and his thought briefly, known, mainly, by Plato writings, and some thoughts
from Hellenistic period, like the Academy, the Stoicism and the Epicureanism, with the
objective of to present Socrates and such schools like examples of followers of
philosophy as a way of life.
Keywords: Philosophy as a way of life. Pierre Hadot.
Introdução
Como diz Pierre Hadot, é muito difícil definir o que é filosofia. Toda a história da
filosofia mostra a diversidade de modos de se filosofar – ou seja, de filosofias propostas.
Com isso quer-se referir aqui não apenas às diferentes doutrinas filosóficas – que são
diferentes modos de se explicar o mundo, cada uma com a sua genialidade e com seus
problemas – mas também, e principalmente, às diferentes estruturas e comportamentos
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filosóficos. Isso se relaciona com a concepção da própria filosofia que cada autor ou
escola tem e propõe.
Nesse trabalho discorre-se sobre uma concepção específica de filosofia: a de
filosofia como modo de vida na Grécia Antiga, ou seja, como algo que se relaciona
intrinsecamente com a vida que se leva, com as escolhas práticas que se faz e, no caso,
numa época determinada. Para tanto, Pierre Hadot é a base desse trabalho, e também os
exemplos da figura de Sócrates e de algumas escolas helênicas1. Ressalta-se que o
trabalho não se estenderá sobre Sócrates e tais escolas helênicas, apresentando-os
brevemente a título de exemplificações, visto que eles não são exatamente o objeto do
trabalho, mas sim a filosofia como modo de vida. Discorrer brevemente sobre eles é
relevante porque são ótimos exemplos do que se pretende dizer com ‘filosofia como
modo de vida’.
De acordo com isso, o presente trabalho se divide em três partes, sendo a
primeira a que introduz a filosofia como modo de vida de acordo com Pierre Hadot; a
segunda a que apresenta Sócrates, sua filosofia e sua vida; e a terceira a que apresenta
algumas escolas do período helenístico, a saber, a Academia de Platão, a dos epicuristas
e a dos estoicos2. Por fim, considerações finais fecham esse trabalho, que visa divulgar,
apresentar e introduzir esta concepção de filosofia.
1. A filosofia como modo de vida na Grécia Antiga
A concepção de filosofia como modo de vida não deixa de lado o seu aspecto
teórico – as possíveis teorias explicativas do mundo ou de aspectos do mundo e da vida
– mas sim abarca, além destas e prioritariamente, um modo de viver e de encarar a vida.
Segundo Pierre Hadot, essa é a concepção antiga de filosofia, da onde provém o próprio
termo philosophia, que significa “amor pela sabedoria” – uma filosofia que é
primeiramente uma escolha de vida, um modo de se comportar e de se conduzir e apenas
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1
Como se pode verificar através da leitura do próprio Hadot, essa concepção de filosofia é grega antiga, o
que não significa que não haja autores posteriores que proponham algo similar. Pierre Hadot propõe
em “O que é a filosofia antiga?” que Michael Foucault e a sua tese do cuidado de si são similares ao
que se encontra na filosofia grega antiga. Não se discorrerá sobre Foucault aqui por ser a filosofia
grega antiga como modo de vida o enfoque do trabalho.
2
A apresentação destas três escolas se deve a uma delimitação do tema; como o objetivo é apresentá-las
como exemplos de escolas que compreendem a filosofia como modo de vida, e não exatamente
discorrer sobre as escolas do período helenístico, selecionou-se as escolas sobre as quais o próprio
Pierre Hadot, autor base do presente trabalho, mais discorre.
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segundamente uma reflexão teórica, sendo esta uma tentativa de representação teórica e
racional acerca de tal escolha de vida, justificando-a e explicando-a.
Em primeiro lugar, ao menos desde Sócrates3, a opção por um modo de vida
não se situa no fim do processo da atividade filosófica, como uma espécie de
apêndice acessório, mas, bem ao contrário, na origem, em uma complexa
interação entre a reação crítica e outras atitudes existenciais, a visão global de
certa maneira de viver e de ver o mundo, e a própria decisão voluntária; e essa
opção determina até certo ponto a doutrina e o modo de ensino dessa doutrina.
O discurso filosófico tem sua origem, portanto, em uma escolha de vida e em
uma opção existencial, e não o contrário. (...) Essa opção existencial implica,
por seu turno, certa visão de mundo, e será tarefa do discurso filosófico
revelar e justificar racionalmente tanto essa opção existencial como essa
representação do mundo. (HADOT, 2014: 17 e 18)
Assim, aqui não há oposição entre modo de vida e discurso (oral ou escrito), como
se o primeiro dissesse respeito apenas à vida prática e o segundo apenas à teoria. Como
assinala o autor, o discurso pode produzir um efeito sobre o ouvinte ou o leitor, o que é
de caráter prático, assim como o modo de vida pode ser teorético, ou seja,
contemplativo. Há uma relação mútua entre discurso e vida: o discurso participa e influi
na vida e a vida define o discurso.
A própria palavra sophia – saber ou sabedoria – traz à tona, em seu sentido
original, um aspecto prático, pois ela abarca tanto a noção de saber muitas coisas,
conhecer e/ou ver muitas coisas, quanto a de saber se conduzir bem na vida. De modo
que “o verdadeiro saber é, finalmente, um saber-fazer, e o verdadeiro saber-fazer é um
saber-fazer o bem” (HADOT, 2014: 39). Observar isso é importante à medida que a
origem da palavra philosophia está nas palavras philos (amor) e sophia. Filosofia é,
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3
Muito se discute sobre até que ponto pode-se chamar de filósofos os pensadores anteriores a Sócrates,
visto que o termo só foi definido por Platão, no século IV a.C.. O termo parece ter sido empregado
pela primeira vez por Heródoto, no século V, em sua obra Histórias, mas ainda não tinha o sentido
filosófico que o termo recebeu com Platão e que permaneceu. Isso é relevante à medida que esses
pensadores anteriores talvez não compreendessem a sua atividade de “filosofar” - ou próxima ao que é
o filosofar – como modo de vida, do modo como Sócrates o compreendeu e aqueles a ele posteriores.
Por isso considera-se aqui Sócrates como o primeiro grande exemplo de filósofo no sentido de
filosofia como modo de vida, que é o tema desse trabalho.
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como já se disse, amor à sabedoria; essa sabedoria – sophia – abarca tanto a teoria, o
conhecer ou ver muitas coisas, quanto a prática, o saber-fazer.
Esses dois aspectos do termo philosophia se refletem também na origem dos
termos philósophos (filósofo) e sophistés (sofista) que, em dado momento, passam a se
diferenciar por ser o sofista aquele que ensina o que é útil à vida política, como métodos
de persuasão, retórica, aritmética, geometria e cultura geral, mediante pagamento; e o
filósofo aquele que ensina a quem quiser, sem cobrar pagamento e até recusando-o, com
o objetivo de que o seu ouvinte pense por si mesmo em vez de aprender certos
conteúdos e métodos simplesmente, e isso não com enfoque para a vida política, mas
sim para todo o seu modo de se conduzir na vida, em todos os seus âmbitos. Esse
modelo de filósofo é bastante claro em Sócrates,4 sobre quem se discorrerá adiante.
É nesse contexto que Hadot define o que ele chama de exercícios espirituais, por
ele compreendidos como sendo as práticas destinadas a modificar e transformar àquele
que as pratica. Os exercícios espirituais podem ser práticas físicas, como o regime
alimentar ou o hábito de exercícios físicos; discursivas, como o exercício do diálogo; ou
intuitivas, como a contemplação. Todas essas práticas fazem parte da filosofia grega
antiga como modo de vida. Assim, ressalta-se que
na expressão “exercício espiritual”, o acento deve recair sobre o primeiro
termo. Trata-se efetivamente de exercício, no sentido mesmo físico, biológico
e corporal do termo. Vem daí o significado terapêutico da filosofia tal como é
concebida, por exemplo, pelo estoicismo e pelo epicurismo (ALMEIDA,
2011: 108), (sobre o que se fala na terceira parte do trabalho).
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4
É relevante lembrar que não há escritos de Sócrates, de modo que as poucas fontes que se têm acerca
dele são indiretas (a saber, consideram-se como fontes primárias acerca de Sócrates apenas Platão,
Xenofonte, Aristófanes e Aristóteles; os dois últimos em menor medida por ser o primeiro um
comediógrafo que, portanto, não tinha nenhum compromisso com os fatos exatos e o segundo por ter
nascido depois da morte de Sócrates, com certeza não tendo tido contato direto com ele). Assim, o que
se entende por Sócrates quando se fala dele aqui é a figura que ficou conhecida e que é possível
conhecer através das fontes que se têm e, portanto, sem compromisso com o Sócrates histórico,
justamente porque este não é cognoscível. Recomenda-se o artigo O problema Socrático, de William J.
Prior, presente no livro Platão, de Hugh Benson e colaboradores para o leitor que tiver interesse no
tema.
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Os exercícios espirituais, como se verá abaixo, mostram-se sendo principalmente,
por exemplo, a lógica aplicada no dia-a-dia, o diálogo, o exercício de imaginação, de
meditação, de atenção e vigilância, dentre outros. Por exemplo, a lógica assume um
papel muito maior do que o silogístico, sendo aplicada ao dia-a-dia para que se
percebam as conexões necessárias entre os acontecimentos; dependendo da escola,
percebe-se com isso que a racionalidade humana se espelha na racionalidade da
natureza. A meditação pode ter diferentes objetivos também, dependendo da escola, mas
está presente em todas as escolas helênicas; pode ter como objetivo que o indivíduo
medite sobre a doutrina da escola, de modo a memorizá-la e sempre fortificá-la, ou que
o indivíduo reflita sobre o que fez e o que deveria ter feito, sobre suas faltas e seus
avanços, para que se mantenha consciente de si, para que busque ter consciência de si e
do que deve modificar.
O exercício de imaginação pode ter como objetivo que o indivíduo consiga
“olhar as coisas do alto”, sob uma perspectiva não mais humana e sim da natureza, “de
cima”, de modo a compreender o quanto as coisas humanas são pequenas. Os exercícios
de atenção e vigilância, assim como a meditação, geralmente visam à consciência de si.
O diálogo se mostra sendo o exercício de se abrir mão de suas opiniões individuais para
se chegar a um logos comum e, portanto, universal; nem sempre se chega a uma
conclusão, mas a alma se exercita no diálogo a estar sempre buscando o bem, a virtude.
Abaixo se discorrerá sobre Sócrates e sobre algumas escolas, de modo a se compreender
a escolha de vida e a filosofia em cada um desses casos, o que se relaciona com o que
Hadot chama de exercícios espirituais.
2. Sócrates: o grande exemplo
Sócrates, de acordo com que é possível conhecer da figura fundamental dos
diálogos platônicos,5 é o grande exemplo de filósofo que viveu na prática tudo que a sua
filosofia apresentava. Essa, aliás, não foi apresentada por meio de sentenças e
proposições, mas justamente através de sua práxis e de seu método, o diálogo. Através
do diálogo, Sócrates examinava muito mais a quem falava do que o conteúdo do seu
dizer. Tudo o que o diálogo envolve vê-se refletido na filosofia socrática – como se verá,
uma filosofia de vida.
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5
Conferir nota anterior.
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Como se disse, através da dialética socrática - que é o método do diálogo, de
perguntas e respostas – Sócrates analisa não simplesmente a doutrina do interlocutor e
sua opinião, mas também e principalmente a sua pessoa, o seu caráter. Ou seja, se essa
pessoa vive de acordo com o que diz, com o que acredita, com o que defende. Porém, no
decorrer dos diálogos, os interlocutores costumam se mostrar inconsistentes com o que
defendem ou mostram ainda inconsistências entre os seus próprios dizeres. Sócrates visa
com isso conscientizar o interlocutor de que esse nada sabe, fazendo-o se desfazer de
suas supostas certezas através da inserção da dúvida.
Assim, Sócrates interroga as doxas (opiniões) do interlocutor de tal maneira que, à
medida que o interlocutor vai falando e sendo conduzido pelos dizeres de Sócrates, vêm
à tona contradições internas às próprias doxas deste. Isso vai fazendo com que o
interlocutor vá se conscientizando da sua ignorância sobre o tema discutido, ele que
antes supunha conhecer algo. Assim, o próprio interlocutor, ao apresentar contradições
em suas falas e não conseguir manter e argumentar em prol de sua doxa, refuta-se. Essa
refutação de uma tese do interlocutor através da inconsistência desta com outras crenças
dele próprio costuma gerar vergonha e raiva nele próprio – isso é o chamado elenchus
socrático.6 Vale observar que
(...) Sócrates, apesar de disseminar aporia por todos os lados, é um homem
constantemente inserido na vida social. (...) o indivíduo não precisa estar forado-mundo para transformar-se interiormente, muito pelo contrário, o cuidado
de si perde a sua eficácia social quando se dá em casos isolados. Não adianta
apenas um indivíduo tornar-se melhor, pois participar da vida social é uma
aspiração para que as coisas mudem, e a melhor maneira de resistir ao que
está errado é estando próximo do erro. (PEREIRA, s/d: 9)
Isso leva à famosa maiêutica, que é o nome dado à prática socrática de não ensinar
nada, apenas conduzir o interlocutor a se questionar e, assim, a pensar por si mesmo e
acerca de si mesmo: repensar, perceber as contradições de seu discurso, as discordâncias
entre seu discurso e seus atos. Todo esse método do diálogo e do elenchus, ressalta-se,
relaciona-se totalmente com as teses socráticas acerca do conhecimento/sabedoria e da
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6
Para o leitor que tiver interesse recomenda-se o artigo O Elenchus socrático, de Charles M. Young,
presente no livro Platão, de Hugh Benson.
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virtude. Para ele, a verdadeira sabedoria é excelência, é virtude. Ser virtuoso é saber
fazer bem, é ter conhecimento acerca do agir bem, de onde advém o pensamento
socrático de que só se erra ou se faz o mal por ignorância, por se achar ser o bem algo
que não o é. Nesse contexto, Sócrates alega que a suposta sabedoria humana tem muito
pouco valor, fornecendo com isso a concepção de que sabedoria verdadeira apenas os
deuses têm, e os homens nada sabem dessa sabedoria que apenas os deuses têm.
É esse sentido de sabedoria/conhecimento que se deve ter em mente quando
Sócrates alega que nada sabe – a ironia socrática7; ele é o “mais sábio dos homens”,
como teria dito o oráculo de Delfos, justamente por ter consciência do pouco valor que
tem aquilo que o homem pode conhecer e de que a verdadeira sabedoria é divina,
inacessível
aos
homens.
8
É
tendo
em
mente
também
esse
sentido
de
sabedoria/conhecimento que se deve compreender a crítica socrática aos sofistas e à
compreensão desses de que sabedoria/conhecimento pode ser ensinada(o), como se fosse
um conteúdo que pode ser dado e aprendido. É justamente por essa concepção de
sabedoria também que Sócrates é quem interroga, e não quem responde a questões –
como se disse, a sabedoria é inacessível ao homem e não pode ser ensinada; tudo que se
pode fazer é viver buscando-a, portanto, buscando a virtude.
O que Sócrates realmente analisa, portanto, é se o seu interlocutor realmente é
virtuoso como diz ser, ou seja, se tem a sabedoria/conhecimento que diz ter. Quer dizer,
como o interlocutor alega ter conhecimento – ou seja, virtude – Sócrates analisa o
interlocutor para que este “perceba” as inconsistências daquilo que ele pensa ser
sabedoria, de modo a tomar consciência de si e de sua ignorância e, assim, continuar em
busca da sabedoria, portanto, da virtude. O que está em questão é mais aquele que fala
do que aquilo que ele fala.
A prática do diálogo já é totalmente um reflexo da filosofia socrática, como se
viu. O próprio Sócrates não escreveu teorias filosóficas e o que se afirma sobre a sua
filosofia, portanto, é com base em suas fontes, que relatam justamente a sua práxis e o
seu método de filosofar, que é o diálogo. Mas observações sobre suas ações podem ser
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7
Para o leitor que tiver interesse recomenda-se o artigo A ignorância socrática, de Gareth B. Matthews,
presente no livro Platão, de Hugh Benson.
8
Conferir Apologia de Sócrates, Platão. É cabível a observação de que Xenofonte também escreveu uma
Apologia de Sócrates, texto que se tem preservado.
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feitas esclarecendo mais ainda a concordância que há entre a vida e a filosofia de
Sócrates, uma determinando a outra.
Por exemplo, Sócrates, acerca da sabedoria, através das fontes que se tem, parece
compreendê-la como não podendo ser ensinada, não se resumindo a proposições e
assertivas sobre temas, o que o faz criticar os sofistas; e ele de fato não ensina
conteúdos, não profere sentenças, nem recebe nada por seus diálogos. É descrito por
todas as suas fontes como alguém que vive com o mínimo possível em sentido material
e que vive nas ruas e no mercado conversando com todos que com ele quiserem
conversar .Nem mesmo no seu julgamento Sócrates deixou de seguir a sua doutrina
filosófica: não apelou a discursos piegas implorando que não o condenassem, mantevese comprometido em sua busca pela virtude e pela sabedoria. E como, inclusive, só com
a morte poderia talvez alcançar a verdadeira sabedoria, não a temeu, não havendo
motivos para interpretá-la como algo ruim. Nem quando teve opção de fugir, não o fez,
sempre em busca da virtude.9 Como se vê, não é á toa que Sócrates influenciou tantos
quanto influenciou: ele viveu a sua filosofia como ninguém.
Sócrates inspirou, ao mesmo tempo, Antístenes – o fundador da escola cínica,
que preconizava a tensão e a austeridade e deveria influenciar profundamente
o estoicismo – e Aristipo – fundador da escola de Cirene, para quem a arte de
viver consistia em tirar o melhor partido possível das situações que se
apresentavam concretamente, que não desdenhava o repouso e o prazer e
deveria, também, exercer influência considerável sobre o epicurismo –; mas
ele inspirou igualmente Euclides – fundador da escola de Megara, célebre por
sua dialética. (...) Em todo caso, um ponto parece comum a todas essas
escolas: com elas aparece o conceito, a ideia de filosofia, concebida, nós o
veremos, como um discurso vinculado a um modo de vida e como um modo
de vida vinculado a um discurso. (HADOT, 2014: 49).
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Para o leitor que queira se informar melhor, indica-se os diálogos platônicos Apologia de Sócrates para
conferir o discurso de defesa de Sócrates e a sua narração sobre o que teria sido dito pelo Oráculo de
Delfos e a sua investigação sobre; o Críton para conferir sobre a possibilidade de fuga e recusa por
parte de Sócrates; e o Fédon para conferir sobre por quê Sócrates não temia a morte. Ressalta-se, mais
uma vez, que o Sócrates sobre quem se fala nesse trabalho é a figura a qual se tem acesso, e não o
Sócrates histórico.
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As escolas citadas acima exemplificam a influência de Sócrates e os aspectos da
vida de Sócrates mostram a sua clara relação com a sua filosofia. Abaixo se discorre
sobre algumas outras escolas do período helenístico, que exemplificam claramente a
concepção grego antiga de filosofia como modo de vida.
3. As escolas do período Helenístico
O período Helenístico vai desde Alexandre Magno, o Macedônio, até o início do
período da dominação romana, ou seja, desde por volta do século IV a.C. ao fim do
século I a.C. Alexandre, durante o seu governo, estendeu em muito os domínios gregos,
dominando lugares como Egito e até partes da Índia. Com essa extensão territorial,
inicia-se uma grande troca tanto comercial quanto cultural. Nesse contexto, houve
muitas diferentes escolas e correntes filosóficas:
No começo do período helenístico, assiste-se a uma extraordinária
proliferação de escolas, na esteira do movimento sofístico e da experiência
socrática. Todavia, a partir do século III a.C., uma espécie de seleção se
efetua. Em Atenas, subsistem apenas as escolas cujos fundadores se
preocuparam em dar instituições bem organizadas: a escola de Platão, a de
Aristóteles e Teofrasto, a de Epicuro, a de Zenão e Crisipo. Ao lado dessas
quatro escolas, existem também dois movimentos que são, sobretudo,
tradições espirituais: o ceticismo e o cinismo. (HADOT, 2012: 18)
Em relação a todas essas escolas é preciso ter em mente que “Nenhuma
obrigação universitária orienta o futuro filósofo para esta ou aquela escola, mas é em
função do modo de vida que nela se pratica que o futuro filósofo passa a assistir a aulas
na instituição escolar (skholê) de sua escolha” (HADOT, 2014: 148). Assim, primeiro o
indivíduo escolhe o seu modo de vida e só depois estuda as doutrinas da escola cujo
modo de vida tiver sido escolhido. Aliás, em todas elas havia o costume de se viver
próximos uns dos outros e de se realizar juntos refeições. Portanto, havia hábitos
comuns e convivência. A filosofia não se faz isoladamente, mas em convívio. Em todas
as escolas são os seus métodos e exercícios espirituais que educam o caráter e
personalidade daqueles que delas participam; com isso,
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(...) em todas as escolas serão praticados exercícios destinados a assegurar o
progresso espiritual na direção do estado ideal da sabedoria, exercícios da
razão que serão para a alma análogos ao treinamento de um atleta ou às
práticas de um tratamento médico. De maneira geral, eles consistem,
sobretudo, no controle de si e na meditação. (HADOT, 2012: 23 e 24)
Portanto, é muito mais a concepção que cada escola tem de como viver e como
alcançar a virtude/sabedoria e a prática dessa concepção que as define, e não possíveis
doutrinas e teses. Estas têm o objetivo de explicar e fundamentar o modo de vida – como
se disse acima, primeiro se escolhe o modo de vida e depois se estuda as teses que a
explicam e justificam. Esses métodos e exercícios espirituais têm, portanto, um objetivo
prático: o de transformar aquele que participa da escola, transformar o seu modo de ser e
de viver, conduzindo-o à sabedoria.
Todas as escolas helenísticas parecem, com efeito, defini-la [a sabedoria]
quase nos mesmos termos e, antes de tudo, como um estado de perfeita
tranqüilidade da alma. Nessa perspectiva, a filosofia aparece como uma
terapêutica dos cuidados, das angústias e da miséria humana (...). Quer
reivindiquem ou não a herança socrática, todas as filosofias helenísticas
admitem, com Sócrates, que os homens estão submersos na miséria, na
angústia e no mal, porquanto estão na ignorância: o mal não está nas coisas,
mas nos juízos de valor que os homens atribuem a elas. Trata-se dos homens
cuidarem de mudar seus juízos de valor: todas essas filosofias se querem
terapêuticas. (HADOT, 2014: 154 e 155)
As escolas compreendem a filosofia como modo de vida e, por isto mesmo, seus
integrantes vivem filosoficamente. “Cada escola elaborará então sua representação
racional desse estado de perfeição que deveria ser o do sábio e se dedicará a traçar-lhe o
retrato” (HADOT, 2012: 21). Para todas elas, assim, viver filosoficamente será viver
segundo a concepção que se tiver de sabedoria.
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3.1. A Academia de Platão
Platão nasceu por volta de 427 a.C., em Atenas, e morreu em 347 a.C. Parece ter
fundado a Academia quando tinha cerca de 40 anos. Escreveu diálogos e não textos
diretos expositivos de suas doutrinas. Nesses diálogos Sócrates aparece como
personagem principal. Platão parece reunir características socráticas, como o método do
diálogo, a preocupação com a vida, com o bem e a virtude, e outras do pitagorismo,
como o uso da matemática como método de racionalização. Ele institucionaliza a
concepção de educação de Sócrates na Academia (esse nome se deve ao fato de que as
atividades da escola de Platão se realizavam nos limites do ginásio chamado Academia,
tendo por isto ficado assim conhecida).
A Academia era uma escola aberta a quem dela quisesse participar, havendo
registro, inclusive, de pelo menos duas mulheres que participaram de suas atividades – a
saber, Axioteia e Lasteneia (HADOT, 2014: 96). É um local de livre discussão e
pensamento, em que todos convivem como iguais, pois todos estão ali pelo mesmo
motivo: em busca da virtude e a investigando. Nesse contexto, o diálogo aparece como
principal exercício espiritual: “A dialética platônica não é um exercício puramente
lógico. Ela é, antes de tudo, um exercício espiritual que exige dos interlocutores uma
ascese, uma transformação deles mesmos.” (HADOT, 2014: 99).
O objetivo do diálogo não é simplesmente dois indivíduos discutirem uma tese
disputando uma possível solução para ela, mas sim a sua própria atividade, que permite
que ambos sejam racionais e consigam chegar juntos a um discurso, a um logos comum.
Como diz muito bem Hadot, o objetivo do diálogo é formar e não informar (HADOT,
2014: 113), ou seja, formar um caráter da alma, educar. É por isso que, assim como para
Sócrates, o exercício mesmo do diálogo é mais importante do que os seus resultados de
conteúdo, o que se demonstra, inclusive, pela liberdade de pensamento que havia na
Academia – ou seja, apesar de Platão ter as suas teses filosóficas, ele não é um
dogmático.
Essa ética do diálogo explica a liberdade de pensamento que, pode-se
vislumbrar, reinava na Academia. Espeusipo, Xenócrates, Eudoxo ou
Aristóteles professavam teorias que não estavam totalmente de acordo com as
de Platão, notadamente sobre o tema da doutrina das Ideias, e mesmo da
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definição do bem, pois sabemos que Eudoxo pensava que o bem supremo
fosse o prazer. (HADOT, 2014: 101)
Essa liberdade de pensamento levanta a questão acerca do que unia estes filósofos
então, já que suas doutrinas diferiam bastante. A resposta dessa questão parece ser
justamente a escolha do modo de vida: escolher viver filosoficamente praticando o
diálogo e visando à transformação a qual ele poderia conduzir, mais do que a alguma
doutrina (Ibdem). Outra característica da filosofia e da vida de Platão que é reflexo da
sua filosofia ser um modo de vida é a de que, com a Teoria das Ideias/Formas, Platão
defende o distanciamento do corpo e das coisas do corpo. Essa característica consiste em
priorizar a virtude e não o prazer físico, “em renunciar aos prazeres dos sentidos, em
também observar um regime alimentar” (HADOT, 2014: 104), em ser cada vez mais
senhor de si.10 A relação da filosofia e vida de Platão com Eros – o amor, o desejo do
que é belo – é outro aspecto relevante. O homem deseja/ama o que é belo e, no caso de
Platão, esse amor pelo que é belo se eleva do amor pelo que é belo fisicamente ao que é
belo intelectualmente.11 Assim, a busca pela virtude e a sua investigação é também
busca e investigação do belo, que é amado.
Assim, a escola de Platão, a sua filosofia verdadeira, é muito mais uma escolha
de vida do que as suas teses.12 A essência da sua filosofia é essa escolha de viver
filosoficamente, em busca da virtude, que é o objeto amado, de desejo, o que há de mais
belo, por isso mesmo buscado. O diálogo é um exercício espiritual porque transforma
aquele que o pratica, o educa, o forma, independentemente das conclusões a que se
chegar, caso se chegue a alguma. O que mais importa é esse modo de viver e não as
doutrinas, o que se vê pela própria diversidade de teses dos próprios participantes da
Academia.
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10
Essa é uma característica da filosofia e da vida de Platão, não necessariamente, como já se viu, da
filosofia e da vida de todos os membros da Academia.
11
Conferir os diálogos platônicos O Banquete e Fedro.
12
Não se deve ler erroneamente essa assertiva e pensar que se está aqui a diminuir o valor das teses
platônicas. Apenas o foco aqui é pensar o quanto a filosofia de Platão – assim como dos demais casos
apresentados – se relaciona com o seu modo de viver, tendo as suas teses muito valor, mas não sendo
aqui desenvolvidas por não serem objeto do trabalho.
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3.2. O Epicurismo
Epicuro nasceu por volta de 341 ou 342 a.C. e viveu até 270 ou 271 a.C., não se
sabe com certeza. Por volta de 306 a.C. ele fundou uma escola em Atenas, conhecida
como o Jardim de Epicuro, onde os seus seguidores podiam viver juntos e em comunhão
com a natureza.
Epicuro, diferentemente de Platão, não defendia um distanciamento do corpo, não
defendia que se deve suportar todas as necessidades físicas, como a fome, a sede e o
frio, vivendo com o mínimo possível. Pelo contrário, ele defendia que as necessidades
do corpo devem ser supridas e não reprimidas, que o sofrimento do corpo deve ser
eliminado. Com isso o prazer se torna possível. Mas a concepção de prazer aqui é
bastante específica: não é o mero prazer dos sentidos e do corpo. Este prazer do corpo só
existe à medida que lhe falta algo, assim, o suprimento do que falta causa prazer – um
falso prazer. É por isso que Epicuro defende que não se deixe o corpo sofrer, suprindo
sempre as suas necessidades, pois só assim se pode ter acesso ao verdadeiro prazer, que
é o puro prazer de existir. Nesse contexto,
(...) o papel da filosofia consistirá em saber procurar o prazer de maneira
racional, isto é, em procurar o único prazer verdadeiro, o puro prazer de
existir, pois toda a infelicidade, toda a pena dos homens provém de que eles
ignoram o verdadeiro prazer. Procurando o prazer, são incapazes de atingi-lo,
pois não conseguem se satisfazer com o que têm, ou porque procuram o que
está fora de seu alcance, ou porque arruínam o prazer pensando o tempo
inteiro que hão de perdê-lo. (...) A missão de Epicuro será, antes de tudo,
terapêutica: será necessário curar a doença da alma e ensinar o homem a viver
o prazer. (HADOT, 2014:171)
Assim, Epicuro distingue os prazeres falsos e temporários e o prazer verdadeiro e
estável, sendo os primeiros os prazeres que se tem com o desejo de poder, com a cobiça,
com o comer muito, por exemplo, pois esses são prazeres intermináveis, sem fim. O
verdadeiro prazer é o da existência. É à medida que se tem esse prazer da existência,
com a própria existência, que se tem prazer também em, por exemplo, contemplar e
estudar a natureza – ou seja, a physis. É à medida que esse estudo permite que se
conheça e se contemple a existência tanto dos seres sublunares como dos seres vivos,
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mesmo quando aparentemente sem beleza e importância, que este conhecimento é
importante para Epicuro. Essas investigações são importantes para se compreender as
causas das coisas e, assim, deixar-se de temer a morte e os deuses. Essa física13 – estudo
da physis – conduz, assim, à paz da alma, sendo relevante para o epicurismo apenas
nessa medida.
Portanto, como se vê, enquanto para Sócrates a sabedoria era inacessível ao
homem e para Platão a sabedoria, a virtude, era acessível ao homem apenas em poucos
momentos, sendo necessário para isso que se passasse a vida sempre a se afastar das
coisas do corpo e a se exercitar racionalmente através do diálogo e da matemática para
que um dia – provavelmente quando da morte do corpo – se pudesse ter acesso ao
mundo das Ideias e, assim, à verdadeira sabedoria,14 de acordo com a sua concepção,
aqui a sabedoria parece ser possível, sendo essa tranquilidade da alma, esse prazer em
existir. Assim como para Sócrates e para Platão, há exercícios espirituais que se deve
praticar visando à sabedoria.
No epicurismo o principal desses exercícios parece ser a ascese dos desejos, que é
aprender a se contentar com o que se tem, com o que supre as necessidades, não
desejando o que é supérfluo nem o que é difícil. Ou seja, “contentar-se com comidas
simples, roupas simples, renunciar às riquezas, às honras, aos cargos públicos, viver
retirado” (HADOT, 2014: 182). Viver retirado não significa viver sozinho, mas sim
viver retirado da cidade corrompida por todos esses falsos prazeres. A amizade e o
convívio, como na Academia de Platão, são importantes aqui: “Mestres e discípulos
devem ajudar-se mutuamente para alcançar a cura de suas almas.” (FESTUGIÉRE apud
HADOT, 2014: 183), através do exame de consciência, da confissão e da correção
fraterna. O mestre não deve ter receio em repreender e corrigir e o discípulo não deve ter
receio em reconhecer suas faltas e confessá-las.
Vale dizer que, segundo Hadot, a dialética não tinha nenhuma função na escola
epicurista. O seu método era dedutivo, ou seja, deduziam consequências de princípios.
Outro importante exercício espiritual que aparece nessa escola é a memorização e leitura
dos resumos da doutrina de Epicuro. A memorização e leitura podem ser consideradas
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O termo ‘física’ se refere ao estudo da physis (natureza), não se devendo confundi-lo com a ciência
Física como se tem hoje. Esse termo é empregado pelo próprio Pierre Hadot, por isso é mantido aqui.
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Conferir o diálogo platônico Fédon.
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exercícios espirituais porque, como já se disse, o indivíduo epicurista primeiro escolhe
esse modo de vida e depois sim é que aprende a sua doutrina, aos poucos – ou seja, esses
exercícios de memorização e leitura visam transformar o indivíduo de acordo com o
modo de viver que ele já escolheu para si. Assim, essas práticas, junto com a meditação
também, são exercícios espirituais, pois visam à modificação do indivíduo. São elas que
dão base às doutrinas epicuristas, sendo o epicurismo, por isso mesmo, muito mais do
que uma filosofia teórica, uma filosofia como modo de vida.
3.3. O Estoicismo
O estoicismo é a escola de Zenão de Cítion,15 fundada no final do século IV a.C.,
cujo principal discípulo é Crisipo, mestre dos demais seguidores da escola. A escolha do
que deve conduzir a vida na escola estoica é a mesma de Sócrates: a exigência e busca
pelo bem, pela virtude, que transcende o indivíduo. Os estoicos, porém, diferem-se do
platonismo porque, para eles, o bem é acessível a todos.
Para o estoicismo os limites do bem e do mal são os limites do que depende do
indivíduo para se realizar, de maneira que o bem e o mal se restringem ao âmbito moral,
o único no qual o individuo tem liberdade. Eles acreditam no destino, que determina as
coisas serem como são e graças ao qual não se tem liberdade acerca de coisas como ser
rico ou pobre, ter boa saúde ou não, ser belo ou feio, ter sorte na vida ou não. Essas
coisas dependem de fatores externos ao indivíduo, de modo que não se tem liberdade de
escolha sobre elas e, por isso mesmo, não são nem boas nem más. Assim, a única coisa
sobre o que se tem controle é a vontade de fazer o bem, a única coisa sobre o que se
pode decidir é fazer o bem e, nesse contexto, o grande valor estoico é a coerência
consigo mesmo. Segundo Hadot, Zenão definia a escolha de vida estoica da seguinte
maneira: “Viver de maneira coerente, isto é, segundo uma regra de vida una e
harmoniosa, pois aqueles que vivem na incoerência são infelizes” (HADOT, 2014: 189).
A física,16 a lógica e a ética são as três partes do discurso filosófico do estoicismo.
A física, aqui, como no epicurismo, tem finalidade ética, justamente por mostrar que há
coisas – quase todas – que não dependem do indivíduo, sobre as quais não se tem
controle, cujas causas são externas ao indivíduo. E também por mostrar que todas essas
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Deve-se tomar cuidado para não se confundir Zenão de Cítion com Zenão de Eléia, discípulo de
Parmênides.
16
Conferir nota 14.
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coisas têm uma coerência interna, assim como o homem deve ter. Com isso, a
racionalidade da natureza é a base da racionalidade humana: viver de acordo com a
razão é viver de acordo com a natureza, com a physis. Mas se é deste modo pode-se
ainda questionar como a escolha é possível de alguma maneira, ao que se diz:
É que a forma da razão própria ao homem não é a razão substancial,
formadora, imediatamente imanente às coisas, que é a Razão universal, mas
uma razão discursiva que, nos juízos, nos discursos que enuncia sobre a
realidade, tem o poder de dar um sentido aos acontecimentos que o destino
lhe impõe e às ações que ela produz. É nesse universo de sentido que se
situam tanto as paixões humanas como a moralidade. (HADOT, 2014: 193)
Como se vê, aqui, mais uma vez, o que perturba a alma não são as coisas elas
mesmas, os acontecimentos eles mesmos, mas sim os juízos que se faz deles, os sentidos
que se dão a eles. Os estoicos diferem representações compreensivas objetivas de
representações discursivas e subjetivas. As primeiras independem da vontade humana e
se caracterizam por serem sinais do objeto que marcam a sensação do indivíduo; as
segundas são as que dependem da vontade humana e se caracterizam por descreverem a
sensação e o indivíduo pode assentir ou não com essa descrição – são nessas e apenas
nessas que se insere o âmbito da escolha, da liberdade e, portanto, do erro.
Nesse contexto, por exemplo, uma tempestade de trovões e raios não é nem boa
nem má: o indivíduo é que dá a ela o sentido de ser má e, com isso, atemoriza-se e
desespera-se. O estoico, diferentemente, não dá nenhum sentido à tempestade, visto que
não é algo que depende dele, mas apenas a aceita. Similarmente, o mesmo pode ser dito
em relação à saúde ou doença, pobreza ou riqueza, sorte ou azar, prazer ou dor – não são
nem bons nem maus. É o juízo que se faz dessas coisas – o qual um estoico não fará,
pois para ele só há bem e mal morais – que faz com que essas coisas perturbem a alma.
Essas coisas que independem do indivíduo devem ser indiferentes ao homem, segundo o
estoicismo.
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A perspectiva aqui não é a dos homens, mas a da natureza. A única coisa que não é
indiferente é a intenção moral. Se só o que não é indiferente é a ação moral, questionase, como o estoico se orienta na vida? A resposta para isso é a sua teoria dos “deveres”
ou das “ações apropriadas”, que permite ao indivíduo encontrar onde exercitar o bem,
sendo guiado por um código de conduta prática. Hadot explica muito bem isso:
Para fundar essa teoria dos “deveres”, os estoicos retornaram à sua intuição
fundamental, a do acordo instintivo e original do ser vivo consigo mesmo, que
exprime a vontade profunda da natureza. Os seres vivos têm uma propensão
original a conservar-se e a repelir o que ameaça sua integridade. Com a
aparição da razão no homem, um instinto natural tornar-se-á coisa refletida e
raciocinada: o amor pela vida, por exemplo, o amor pelas crianças, o amor
pelos concidadãos, fundado no instinto de sociabilidade. Casar-se, ter uma
atividade política, servir à pátria, todas essas ações serão apropriadas à
natureza humana e terão valor. O que caracteriza a “ação apropriada” é que
em parte ela depende de nós, pois supõe uma intenção moral, e em parte não
depende, pois seu êxito depende não só de nossa vontade, mas dos outros
homens ou das circunstâncias, dos acontecimentos, do destino enfim. Essa
teoria dos deveres ou ações apropriadas permite ao filósofo orientar-se na
incerteza da vida cotidiana, ao propor escolhas razoáveis, que nossa razão
pode aprovar sem jamais ter a certeza de fazer o bem. O que conta, com
efeito, não é o resultado, sempre incerto, não é a eficácia, mas a intenção de
fazer bem. O estoico age sempre “sob reserva”, ao dizer a si mesmo: “Eu
quero fazer isto se o destino o permitir”. Se o destino não o permite, buscará o
êxito de outra maneira ou aceitará o destino, “querendo o que acontece”.
(HADOT, 2014: 197 e 198)
Como se vê, os estoicos encontraram uma maneira bastante razoável de explicar e
justificar o seu modo de vida. Eles agem a serviço da comunidade humana, sendo o
próprio bem também o bem dos outros, diferentemente dos epicuristas que se retiram
totalmente das coisas da vida cotidiana comum. Por fim, como se pôde observar acima,
os estoicos propõem um modo de vida coerente com a sua teoria filosófica, sendo uma
fundamentada na outra.
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Considerações finais
A filosofia na Grécia Antiga, como se pode ver, era muito mais do que o discurso
filosófico, sendo antes um modo de vida. Assim, é muito mais prática do que teórica.
Cada escola tem a sua escolha de vida, a sua doutrina, e o seu discurso filosófico visa
explicar, justificar e estimular essa escolha e doutrina, sendo posterior a ela. De qualquer
modo, pode-se dizer, apesar das diferenças entre as escolas a respeito disso, que ambos –
prática filosófica e discurso filosófico - constituem a filosofia e ambos fundamentam um
ao outro. Como diz Hadot...
Os estoicos distinguiam a filosofia, isto é, a prática vivida das virtudes – que
era para eles a lógica, a física e a ética –, do “discurso segundo a filosofia”,
isto é, o ensino teórico da filosofia, dividido em teoria da física, teoria da
lógica e teoria da ética. Essa distinção, que tem um sentido muito preciso no
sistema estoico, pode ser utilizada de maneira mais geral para descrever o
fenômeno da “filosofia” na Antiguidade. Reconhecemos, ao longo de nosso
estudo, de um lado, a existência de uma vida filosófica, mais precisamente de
um modo de vida que se pode caracterizar como filosófico e se opõe
radicalmente ao modo de vida dos não filósofos e, de outro, a existência de
um discurso filosófico que justifica, motiva e influencia essa escolha de vida.
(HADOT, 2014: 249).
O discurso filosófico não é suficiente para expressar a vida filosófica, o que não
significa que sejam separáveis um do outro. O discurso filosófico e a vida filosófica,
afinal, só são assim chamados – ‘filosófico’ e ‘filosófica’ – por se relacionarem com a
filosofia. Como diz Hadot, de modo muito interessante, não se deve confundir a filosofia
com a filologia, o amor pela palavra (philologia) (HADOT, 2014: 252). Em geral as
escolas buscam uma ascese do Espírito, uma elevação, cada uma ao seu modo;
compreendem que esse é o modo do espírito alcançar a sabedoria. Correndo o risco de
citar demais Hadot, finaliza o presente trabalho mais uma citação sua, por se considerar
ótima à explicação do que se quer:
Quase todas as escolas propõem exercícios de ascese (a palavra grega askésis
significa precisamente “exercício”) e de domínio de si: há a ascese platônica,
que consiste em renunciar aos prazeres dos sentidos e em praticar um regime
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alimentar,
em
certas
circunstâncias
chegando,
sob
influência
do
neopitagorismo, até a abstinência da carne de animais, ascese destinada a
enfraquecer o corpo pelos jejuns e pelas vigílias, para melhor viver a vida do
espírito; (...) há a dos epicuristas, que limitam seus desejos para chegar ao
prazer puro; há a dos estoicos, retificando seus juízos sobre os objetos e
reconhecendo que não se deve prender-se às coisas indiferentes. (...) Ele [o
espírito] se eleva, com isso, de um ponto de vista injusto e parcial a uma
perspectiva universal, seja ela da natureza ou do espírito. (HADOT, 2014: 273
e 274)
Por fim, a filosofia como modo de vida visa uma elevação do espírito, pois só
assim ele pode, talvez, chegar à sabedoria. Todas parecem concordar acerca disso,
distinguindo-se apenas em relação aos modos como realizar isso, como se viu acima.
Bibliografia
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