INTRODUÇÃO O gênero Giardia inclui parasitos do intestino delgado de mamíferos, aves, répteis e anfíbios, tendo sido, possivelmente, o primeiro protozoário intestinal humano a ser conhecido. Giardia e giardíase têm sido muito estudadas e, apesar dos esforços, várias questões fundamentais ainda continuam sem respostas. A própria taxonomia ainda é controversa, e a determinação das espécies de Giardia têm sido feita considerando-se o hospedeiro de origem e características morfológicas. As denominações Giardia lamblia, Giardia duodenalis e Giardia intestinalis, têm sido empregadas com sinonímia, particularmente para isolados de origem humana. A espécie G. lamblia tem sido muito estudada em cultivo axêmico e é reconhecida, atualmente, como um dos principais parasitos humanos, principalmente, nos países em desenvolvimento. Nessas áreas, a giardíase é uma das causas mais comuns de diarréia em crianças, que em conseqüência da infecção, muitas vezes, apresentam problemas de á nutrição e retardo no desenvolvimento. MORFOLOGIA Giardia apresenta duas formas evolutivas: o trofozoíto e o cisto. O trofozoíto tem formato de pêra, com simetria bilateral e mede 20µm de comprimento por 10µm de largura. A face dorsal é lisa e convexa, enquanto a face ventral é côncova, apresentando uma estrutura semelhante a uma ventosa, que é conhecida por várias denominações: disco ventral, adesivo ou suctorial. Esta estrutura tem sido considerada uma importante estrutura para a adesão do parasito à mucosa. Abaixo do disco, ainda na parte ventral, é observada a presença de uma ou duas formações paralelas, em forma de vírgula, conhecidas como corpos medianos. No interior do trofozoíto, e localizados na sua parte frontal, são encontrados dois núcleos. O trofozoíto possui ainda quatro pares de flagelos que se originam de blefaroplastos ou corpos basais situados nos pólos anteriores dos dois núcleos: um par de flagelos anteriores, um par de flagelos ventrais, um par de flagelos posteriores e um par de flagelos caudais. O cisto é oval ou elipsóide, medindo cerca de 12µm de comprimento por 8µm de largura. O cisto, quando corado, pode mostrar uma delicada membrana destacada do citoplasma. No seu interior encontram-se dois ou quatro núcleos, um número variável de fibrilas (axonemas de flagelos) e os corpos escuros com forma de meia-lua e situados no pólo oposto aos núcleos. Estes últimos, geralmente, são confundidos pelos autores com os corpos medianos. Várias organelas estão presentes no trofozoíto da Giardia. São elas microtúbulos e proteínas contráteis, vacúolos, retículo endoplasmático, ribossomas, aparelho de Golgi e vacúolos de glicogênio. Não se observa, entretanto, mitocôndria. No cisto, todas as estruturas descritas são vistas, embora de forma desorganizada. CICLO BIOLÓGICO G. lamblia é um parasito monoxeno de ciclo biológico direto. A via normal de infecção do homem é a ingestão de cistos. Em voluntários humanos, verificou-se que um pequeno número de cistos (10 a 100) é suficiente para produzir a infecção. Após a ingestão do cisto, o desencistamento é iniciado no meio ácido do estômago e completado no duodeno e jejuno, onde ocorre a colonização do intestino delgado pelos trofozoítos. Os trofozoítos se multiplicam por divisão binária longitudinal. O ciclo se completa pelo encistamento do parasito e sua eliminação para o meio exterior. Tal processo pode se iniciar no baixo íleo, mas o ceco é considerado o principal sítio de encistamento. Provavelmente, o encistamento é estimulado pelo pH intestinal, o estímulo de sais biliares e o destacamento do trofozoíto da mucosa. Acredita-se que tal destacamento da mucosa seja estimulado pela resposta imune local, o que culminaria com o encistamento do trofozoíto. Ao redor do trofozoíto é secretada pelo parasita uma membrana cística resistente, que tem quitina na sua composição. Dentro do cisto ocorre a nucleotomia, podendo ele apresentar-se então com quatro núcleos. Os cistos são resistentes e, em condições favoráveis de temperatura e umidade, podem sobreviver, pelo menos, dois meses no meio ambiente. Quando o trânsito intestinal está acelerado, é possível encontrar trofozoítos nas fezes. TRANSMISSÃO A via oral de infecção do homem é a ingestão de cistos maduros, que podem ser transmitidos por um dos seguintes mecanismos: ingestão de águas superficiais sem tratamento ou deficientemente tratadas (apenas cloro); alimentos contaminados (verduras cruas e frutas mal lavadas); esses alimentos também podem ser contaminados por cistos veiculados por moscas e baratas; de pessoa a pessoa, por meio de mãos contaminadas, em locais de de aglomeração humana (creches, orfanatos); através de contatos homossexuais e por contato com animais domésticos infectados com Giardia de morfologia semelhante à humana. IMUNIDADE Apesar de uma imunidade protetora ainda não ter sido demonstrada de forma conclusiva nas infecções humanas por Giardia, o desenvolvimento de resposta imune tem sido sugerido a partir de evidências, como: a natureza autolimitante da infecção; a detecção de anticorpos específicos antiGiardia nos soros dos indivíduos infectados; a participação de monócitos citotóxicos na modulação da resposta imune; a maior suscetibilidade de indivíduos imunocomprometidos à infecção; a menor suscetibilidade dos indivíduos de áreas endêmicas à infecção, quando comparados com os visitantes. Anticorpos IgG, IgM e IgA anti-Giardia têm sido detectados no soro de indivíduos com giardíase, em diferentes regiões do mundo. Estudos têm relacionado a participação de IgA secretória na imunidade local a nível de mucosa intestinal. Evidências sugerem que este anticorpo diminua a capacidade de adesão dos trofozoítos à superfície das células do epitélio intestinal. O aumento da freqüência de giardíase em indivíduos com alterações na imunidade humoral, particularmente nas deficiências de IgA e IgG, sugere que estas imunoglobulinas participem da eliminação de Giardia. Algumas observações em experimentos com modelos animais sugerem a participação de mecanismos T-dependentes. Além disso, tem-se observado a capacidade de monócitos, macrófagos e granulócitos em participar da destruição de trofozoítos, em reações de citotoxidade anticorpodependente. SINTOMATOLOGIA A giardíase apresenta um aspectro clínico diverso, que varia desde indivíduos assintomáticos até pacientes sintomáticos que podem apresentar um quadro de diarréia aguda e autolimitante, ou um quadro de diarréia persistente, com evidência de máabsorção e perda de peso, que muitas vezes não responde ao tratamento específico, mesmo em indivíduos imunocompetentes. Aparentemente, essa variabilidade é multifatorial, e tem sido atribuída a fatores associados ao parasito (cepa, número de cistos ingerido) e ao hospedeiro (resposta imune, estado nutricional, pH do suco gástrico, associação com a microbiota intestinal). A maioria das infecções é assintomática e ocorre tanto em adultos quanto em crianças, que muitas vezes pode eliminar cistos nas fezes por um período de até seis meses (portadores assintomáticos). Na forma aguda da doença, a ingestão de um elevado número de cistos é capaz de provocar diarréia do tipo aquosa, explosiva, de odor fétido, acompanhada de gases com distensão e dores abdominais. Muco e sangue aparecem raramente nas fezes. Essa forma aguda dura poucos dias e apesar da infecção ser autolimitante na maioria dos indivíduos sadios, 30 a 50% podem desenvolver diarréia crônica acompanhada de esteatorréia, perda de peso e problemas de má-absorção. As principais complicações da giardíase crônica estão associadas à má absorção de gordura e nutrientes, como vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K), vitamina B12, ferro, xilos e lactose. Tais deficiências, em crianças, podem ter efeitos graves. PATOGENIA Não se sabe exatamente os mecanismos pelos quais a Giardia causa diarréia e má absorção intestinal. Quando se examinam biópsias intestinais de indivíduos infectados, observa-se que podem ocorrer mudanças na arquitetura da mucosa. Ela pode se apresntar normal ou com atrofia parcial ou total das vilosidades. Mesmo que a mucosa se apresente morfologicamente normal, tem-se detectado lesões nas microvilosidades das células intestinais. Observase que os trofozoítos de Giardia aderidos ao epitélio intestinal podem romper ou distorcer as microvilosidades do lado que o disco adesivo entra em contato com a membrana da célula. Além disso, o parasita contém várias proteases capazes de romper a integridade da membrana. Entretanto, a explicação maos plausível para a alteração morfológica e funcional do epitélio intestinal é dada pelos processos inflamatórios aí desencadeados pelo parasito, devido à reação imune do hospedeiro. Tal processo inflamatório leva a um aumento da motilidade do intestino, o de células imaturas levando a problemas de má absorção e, conseqüêntemente, à diarréia. Outros fatores também parecem estar associadosbao aparecimento da diarréia e má absorção em alguns indivíduos, como, por exemplo, o atapetamento da mucosa por um grande que poderia explicar o aumento da renovação dos enterócitos. As vilosidades ficam assim repletas número de trofozoítos impedindo a absorção de alimentos e a produção de prostaglandinas pelos mastócitos, que agem diretamente sobre a motilidade intestinal, provocando o aparecimento da diarréia. DIAGNÓSTICO Clínico: Baseia-se na observações dos sintomas característicos da doença. Em crianças de oito meses a 10-12 anos, a sintomatologia mas indicativa de giardíase é diarréia com esteatorréia, irritabilidade, insônia, náuseas e vômitos, perda de apetite (acompanhada ou não de emagrecimento) e dor abdominal. Laboratorial Parasitológico: Para confirmar as suspeitas clínicas, deve-se fazer o exame de fezes nos pacientes para a identificação de cistos ou trofozoítos nas fezes. Os cistos são encontrados nas fezes da maioria dos indivíduos com giardíase, enquanto o encontro dos trofozoítos é menos freqüênte, e está, geralmente, associado às infecções sintomáticas. Em fezes formadas, há o predomínio de cistos, que podem ser detectados em preparações à fresco pelo método direto, corados com Hematoxilina Férrica. Em fezes diarréicas, há o predomínio de trofozoitos, e o recomendado é colher o material no laboratório e examiná-lo imediatamente, ou diluir as fezes em conservador, uma vez que os trofozoitos sobrevivem durante pouco tempo no meio externo (15 a 20 min). O exame pode ser feito pelo método direto e, caso seja necessário, podem ser feitos esfregaços corados pelo método da Hematoxilina Férrica. Imunológico: os métodos mais empregados são a imunofluorescência e o método ELISA. A detecção de antígenos nas fezes (copro-antígenos) empregando a técnica ELISA tem demonstrado resultados satisfatórios. EPIDEMIOLOGIA A giardíase é encontrada no mundo todo, principalmente entre crianças de oito meses a 10-12 anos. Altas prevalências são encontradas em regiões tropicais e subtropicais e entre pessoas de baixo nível econômico. No nosso país a prevalência é de 4% a 30%. Alguns aspectos atuais devem ser considerados na epidemiologia dessa parasitose: Esta infecção é frequentemente adquirida pela ingestão de cisto na água proveniente de rede pública, com defeitos no sistema de tratamento; Giardia tem sido reconhecido como um dos agentes etiológicos da "diarréia dos viajantes" que viajam para zonas endêmicas; as crianças defecando no chão (dentro e fora das habitações), aí brincando e levando a mão a boca se infectam com facilidade; a giardíase é uma infecção frequentemente encontrada em ambientes coletivos: enfermarias, creches, internatos etc., onde o contato direto de pessoa a pessoa é freqüente e medidas de higiene difíceis de serem implementados; babás e manipuladores de alimentos crus (saladas, maioneses etc.) podem ser fonte de infecção. PROFILAXIA São recomendadas medidas de higiene pessoal (lavar as mãos), destino correto das fezes (fossas, rede de esgoto), proteção dos alimentos e tratamento da água. Embora existam evidências de que os cistos resistem à cloração da água, eles são destruídos em água fervente. Como os animais domésticos, principalmente cão e gato, são infectados por Giardia morfologicarnente semelhante a do homem e levando-se em consideração evidências de que possa ocorrer transmissão direta entre esses hospedeiros (ainda não definitivamente comprovada), seria recomendável verificar o parasitismo por Giardia nesses animais e tratá-los. Alem disso, é importante o tratamento precoce do doente, procurando-se também diagnosticar a fonte de infecção (crianças sem sintomatologia, babás, manipuladores de alimentos, etc.) e tratá-la. TRATAMENTO Até recentemente, o tratamento da giardíase era feito com sucesso empregando-se a furazolidona (Giarlam); entretanto, em vista da resistência ao medicamento, novos produtos têm sido indicados. Entre esses, temos: metronidazol (Flagil), tinidazol (Fasigyn), omidazol (Tiberal) e secnidazol (Secnidazol). Recentemente, alguns anti-helmínticos, do grupo dos benzimidazóis (mebendazol e albendazol), têm sido empregados no tratamento da giardíase. Quando o parasito apresenta resistência à terapêutica, isto é, quando após o uso de determinado medicamento há remissão parcial dos sintomas e apenas redução do número de cistos, recomenda-se dar um intervalo de cinco a dez dias para eliminação do primeiro medicamento e completar a terapêutica com outro princípio ativo.