COMER LIXO: “HABITUS” OU SOBREVIVENCIA? Alimentação e Estilo de Vida dos catadores de resíduos na capital do Brasil. 1.Processo de produção de conhecimento: Resultado de investigação concluída GT n.08 Desigualdade, vulnerabilidad y exclusión social ZANETI,IzabeI. Professora da Universidade Federal Ciências da Saúde de Porto Alegre, Doutora em Desenvolvimento Sustentável-UnB, Brasileira e-mail –[email protected]. WEIHS, Marla Leci. Professora da Universidade do Estado de Mato Grosso UNEMAT,Campus de Alta Floresta – MT .Doutoranda em Desenvolvimento Sustentável-Universidade de Brasília- Brasileira [email protected] ZANETI,Tainá . Professora da Universidade Federal Ciências da Saúde de Porto Alegre Doutoranda em Desenvolvimento Rural-Universidade Federal do Rio Grande do Sul. UFRGS.Brasileira. e-mail [email protected] Katz, Esther. Professora Colaboradora – CDS-Universidade de Brasília. Doutora em Antropologia. Francesa. e-mail [email protected] CAMARGO, Márcia Rodrigues de. Professora da Universidade Federal do Tocantins. Doutoranda em Desenvolvimento Sustentável.- CDS. Universidade de Brasília. Brasileira. e-mail [email protected] Resumo O objetivo do artigo é refletir como os catadores de lixo marcam sua distinção através da alimentação, engendrando um estilo de vida em Brasília, Brasil. Pesquisa de caráter descritivo-exploratório revela sistemas simbólicos relacionados à alimentação vinda do lixo e a vida dos catadores. Os dados foram coletados através de conversas informais com onze moradores e observação da realidade. Os resultados indicam que o habitus apreendido conforme BORDIEU(1979) através da pesquisa apontam que práticas alimentares sugerem que catadores de lixo, se mantêm excluídos socialmente e mal incluídos economicamente segundo BURSZTYN(2000). A desigualdade social se traduz pela precariedade das práticas alimentares; pelo gosto de necessidade sem opção (lixo), em detrimento da escolha e pelos alimentos calóricos que fornecem a força para o trabalho. Palavras- chave: alimentação, estilo de vida, catadores de lixo. Introdução O artigo tem como tema de análise a produção de um estilo de vida por catadores de resíduos, ocupantes de uma área verde da Asa Norte, uma região nobre do Plano Piloto, cidade de Brasília, DF. A ênfase incide sobre a prática alimentar como forma distintiva que produz um habitus. A questão do presente estudo é: de que forma, na escolha e no consumo de alimentos, catadores de resíduos, marcam sua distinção? O objetivo do artigo é refletir como os catadores e catadoras de resíduos sólidos urbanos marcam sua distinção por meio da alimentação, engendrando um estilo de vida. Para tanto, a análise parte da reconstrução da realidade de famílias de catadores ocupantes de uma região nobre de Brasília. Neste contexto, olhando as práticas alimentares dos catadores, sujeitos deste estudo, o artigo apresenta uma reflexão de como os catadores de resíduos criam um habitus particular. 2 Metodologia A reflexão é resultado de uma pesquisa de caráter descritivo-exploratório, na qual sistemas simbólicos relacionados à alimentação e vida dos catadores e de suas famílias foram observados por cinco pesquisadoras de diferentes áreas do conhecimento (biologia, geografia, gastronomia e arquitetura), em momentos distintos, durante o mês de junho de 2011. Para subsidiar a percepção foram realizadas conversas informais com onze moradores, ocupantes de uma área verde localizada na Asa Norte em Brasília. Após cada visita, as pesquisadoras fizeram descrições de sua percepção da realidade local. Para assegurar o anonimato, os nomes dos catadores e catadoras foram substituídos. Referencial Teórico A reflexão apresentada expõe um diálogo entre as representações dos catadores e catadoras e as percepções das pesquisadoras. A abordagem teórica sustenta-se nas reflexões de Bourdieu (1979) sobre o habitus e estilos de vida, de Bursztyn (2000) sobre os moradores de rua de Brasília e de outros autores ao longo do artigo que embasam também os resultados da pesquisa. As representações dos catadores são construídas em contraste à alta sociedade da Asa Norte, de um lado da rua, do outro lado, no desencontro com o ambiente acadêmico de produção de conhecimento, a Universidade de Brasília, ambientes que produzem o melhor lixo. Bourdieu (1979) afirma: “o espaço exprime a necessidade e as liberdades inerentes à condição de classe, seguindo princípios de diferenciação historicamente ajustados ao sistema. É o espaço que distingue incluídos de excluídos, engendrando “o conjunto de ‘escolhas’ constitutivas dos estilos de vida” ( p.166). Ainda sob a ótica de Bourdieu (1979) é possível olhar, além do espaço, o gosto, como uma marca que distingue os estilos de vida. Para o autor: “o verdadeiro princípio das diferenças que se observam no campo do consumo, e muito além desta área, é a oposição entre os gostos de luxo (ou de liberdade) e os gostos de necessidade” (p.168). Conforme Zaneti (2003) por um lado, para o grupo (com casa, com emprego, com escola, com transporte), o gosto é livre. Por outro, no grupo ‘sem’, que sobrevive muitas vezes dos restos, do lixo dos que têm e descartam porque não serve mais, o gosto se constrói na necessidade. Assim, o gosto classifica e distingue, aproxima e afasta aqueles que experimentam os bens materiais e culturais, conforme Bourdieu (1979). Deste modo, como indivíduos que pouco ou nada dispõe de bens materiais, como também, não tiveram oportunidades para experimentar os bens culturais, os catadores da Asa Norte, definem seu estilo de vida a partir dos resíduos que coletam. Seu gosto pela necessidade engendra um estilo de vida que é definido apenas de forma negativa, pela relação de privação que mantém com os outros estilos de vida, daqueles que produzem os resíduos por eles consumidos. De acordo com Bursztyn (2000) sair para catar no lixo, cadeiras, mesas, caixas de isopor, panelas e demais utensílios para reconstruir a casa, após uma ação de retirada dos catadores pelo Governo do Distrito Federal, engendra o gosto derivado da necessidade e caracteriza a naturalização do caráter de má-inclusão a que se ajustaram. No mesmo sentido, sentar-se e comer no chão um cozido de arroz com feijão, diretamente da panela e com auxílio de uma colher, alternando entre goles de café e cachaça, numa manhã de sábado, configura, não uma escolha, mas uma necessidade. Desta maneira, o espaço em que o catador e a catadora constroem seu estilo de vida, marca a identidade social negativa que os distingue e exclui. 3 Resultados Os resultados da pesquisa indicam que o habitus apreendido aponta que as práticas alimentares sugerem que os catadores de resíduos, embora tenham trabalho, se mantêm excluídos socialmente e mal incluídos economicamente, pois eles representam o elo mais frágil da cadeia produtiva dos resíduos e da reciclagem. Os catadores distinguem-se social e culturalmente pela precariedade de suas práticas alimentares; pelo gosto de necessidade sem opção, em detrimento da escolha; pelos alimentos calóricos que fornecem a força para o trabalho; pelo reaproveitamento do que o lixo oferece, seja em relação à moradia, ao vestuário, como também à comida e pela solidariedade necessária diante da desintegração da família e da insegurança do ambiente. Importa ressaltar que os estudos sobre consumo alimentar geralmente baseiam-se em métodos informativos de descrição pormenorizada da alimentação consumida(Diez Garcia,1997). No presente estudo atemo-nos, essencialmente, às descrições qualitativas das práticas alimentares e da vida cotidiana dos catadores e das catadoras em seu ambiente. Dentre os aspectos gerais serão aqui analisados com base no habitus alimentar: 1) desintegração familiar; 2) solidariedade , 3)fome, insegurança e risco alimentar, 4) gosto de classe e gênero e, 5) heteregeneidade do grupo e identidade cultural. 1)Desintegração familiar Em decorrência da migração; da mobilidade e insalubridade do trabalho; das precárias condições de moradia, de higiene e alimentação; da instabilidade resultante das ações de “controle e remoção de invasões” praticadas pelo GDF; e pela própria condição de pobreza; a família nuclear dos catadores da “Ocupação da Colina” se desarticula. Em alguns casos o pai mora na ocupação, enquanto a mãe e os filhos residem em alguma das cidades satélites. Quando somente a mãe é catadora, os filhos estão com os avós ou irmãos. A insatisfação diante a desintegração da família é verbalizada em diferentes momentos. Em um dos diálogos, perguntamos a uma das moradoras como seria sua casa ideal, ela responde que seria aquela em que estivesse com os filhos. Num ambiente que não tem significado de “casa” nem de “rua”, segundo DaMatta(1985), os catadores perdem a familiaridade. O comer “acompanhado” que estabelece o vínculo entre as pessoas, não se consolida no ato alimentar. Assim a alimentação, originária no universo doméstico, enquanto prática envolta no convívio familiar e social, não mais estrutura o ritmo cotidiano. Conforme SaglioYatzimirsky (2006): As pessoas não comem juntas e a alimentação perde seu papel de promotora da convivência (...). A alimentação torna-se um fator de isolamento e não mais de socialização (p.125). Na “Ocupação da Colina”, o consumo dos alimentos obtidos, seja ele adquirido no mercado, recebido por doações ou reaproveitado dentre os resíduos coletados, tem duas dimensões: (i) quando é “comida comum” – arroz, feijão, macarrão, etc. – abre a possibilidade de compartilhamento com os demais moradores; (ii) se for alguma especiaria, como os legumes e frutas, por exemplo, tende a ser guardado na barraca, para ser consumido individualmente. O gosto pela necessidade, assim, influencia na comensalidade do grupo. Um dos registros das percepções retrata esta realidade: “Sua alimentação é proveniente do lixo de um “Verdurão” localizado próximo ao acampamento. Ela diz que dá preferência a saladas e por isso não compartilha a sua comida com os demais.” (Zaneti,TB, não publicado). 4 Neste contexto, os momentos de sociabilidade e de encontro das pessoas proporcionados pela alimentação, como descreveu Lévi-Strauss (1991), se perdem na desagregação da família. Assim, a degradação familiar torna-se a vetora da perda da rotina alimentar, e a comida, que agora sacia a fome solitariamente, retroalimenta esse processo, pois não nutre mais simbolicamente os elos familiares. 2) Solidariedade Como forma de integração e ajuda recíproca, a solidariedade advém da necessidade. É particularmente comum nas classes populares, dado o grau de dificuldades e os poucos recursos materiais de que dispõem para conseguir autonomia na solução de seus problemas cotidianos. Assim, como indivíduos excluídos socialmente e com a família desintegrada, os catadores e as catadoras, sentem a necessidade de criar estratégias de sobrevivência. As ações solidárias, embora não signifiquem necessariamente autonomia, surgem como o mais concreto laço social do grupo. Relativo à prática alimentar alguns episódios de comensalidade foram descritos nos diálogos com o grupo. Dois podem aqui ser mencionados: (i) Divisão do que vem do lixo e de doações: Contaram-nos que há algumas semanas haviam encontrado um pacote de carne entre os materiais que coletam. No retorno à área da ocupação, após horas de cozimento e tempero, degustaram-na conjuntamente; (ii) Preparação do alimento para todos: Uma das catadoras manifestou por vezes sua satisfação em cozinhar pacotes inteiros de feijão e arroz e dividir o almoço com o grupo. “Contou-me que gosta de fazer bastante comida e compartilhar com os vizinhos. Cozinha 5 quilos de arroz e um pacote de feijão e almoçam todos juntos.” (Weihs, ML., não publicado). “... no centro do acampamento havia uma concentração de barracas com um fogaréu ao centro. Pôde-se observar que havia panelas de grande porte. Quando perguntados sobre seus hábitos alimentares, os catadores responderam que não tomam café-da-manhã, porém tem um almoço e jantar fartos de arroz, feijão, carne e outros alimentos doados, como macarrão, além da sopa oferecida por uma instituição religiosa próxima ao local. Além disso, os catadores contaram que algumas vezes, reúnem um montante de dinheiro e pedem pizza.” (Zaneti,TB., não publicado). Teixeira (2010), estudando o mesmo grupo de catadores, apontou que as relações estabelecidas dentro do grupo oferecem as condições básicas para que possam desenvolver o seu trabalho, se estabelecer e sobreviver. É a partir dessas relações que os catadores “se auxiliam no dia-a-dia colaborando com a segurança do grupo, alimentação e lazer” (p.98). Uma breve descrição do cenário encontrado em uma das visitas à “Ocupação da Colina” revela a relação de reciprocidade, na preparação de “todos” os alimentos que são compartilhados com o grupo. “... uma grelha suja, preta está sobre um monte de pedras e é aqui que todos os alimentos doados, catados do lixo são preparados, aqueles que aquecem do frio (sopas e feijão com restos de carne, sebos e muita gordura) e a alma (cafés, chás que também servem como remédio, feitos de folhas).” (De Camargo, MCR., não publicado). Assim, a prática alimentar denota uma das mais importantes atividades coletivas que promovem a relação harmônica entre os moradores. As instalações usadas para a preparação dos alimentos detonam claramente esta coletividade. Usam-se “cozinhas” coletivas compostas por fogões à lenha montados sobre tijolos e cobertos com chapas de metal. 5 3) Fome, Insegurança e Risco alimentar A fome não tem apenas uma dimensão biológica. É muito mais que isso, ocupa um lugar na dimensão sociocultural. Freitas (2002), em um estudo com moradores de um bairro popular de Salvador sobre a fenomenologia da fome, cita que para os sujeitos de seu estudo, “sentir fome não quer dizer apenas a sensação de vazio do estômago, mas significa, antes a fraqueza do espírito” (p.56). Confirmando esta questão, basta mencionar que quando alguém quer destacar o momento mais difícil de sua vida, ele faz referência à expressão: “cheguei a passar fome!”. Diante da fome, moral e ética, esvaziam-se. Perde-se a vergonha. Assim, coletar restos de alimentos em meio a resíduos domésticos e comerciais torna-se uma prática corriqueira. É o que Josué de Castro (2001), em um trabalho que designou “monografia geográfica da fome” menciona ao citar que: “Fustigados pela imperiosa necessidade de se alimentar, os instintos primários exaltam-se, e o homem, como qualquer animal esfomeado, apresenta uma conduta mental que pode parecer a mais desconcertante” (p.226). No entanto, os comportamentos associados à fome pouco foram verbalizados pelos catadores da “Ocupação da Colina”. Conforme Freitas (2002): “O termo não aparece nos discursos dos personagens. Como um tabu linguístico, a fome manifesta-se então velada e passa a ser substituída por símbolos”(p.64). Assim, mesmo diante da percepção de que nem sempre o catador pode contar com o alimento “à mesa”, não há informações suficientes para discutir sua representação da fome. Neste sentido, somente a insegurança e o risco alimentar se tornam questões passíveis de reflexão, neste momento. Segundo Gracia-Arnaiz (2005), segurança alimentar refere-se à população que dispõe de recursos alimentares suficientes para garantir sua sobrevivência e reprodução. E “o risco ou a ausência de segurança inclui uma série de perigos, relativamente negativos e quantificáveis e não ligados à falta ou à escassez de alimentos, mas à sua inocuidade sanitária” (p.152). Segurança na alimentação pressupõe, por conseguinte, a garantia de alimentos livres dos riscos. Uma breve descrição do cenário encontrado em um sábado pela manhã, contribui com a análise. “Seu João me apresentou ao Seu Manoel, à Dona Regina e mais um senhor. Ambos estavam bebendo cachaça. No barraco, desorganizado, sujo, mal cheiroso, estava sentados no chão. Maria fumava um cigarro Derby e seguidamente alternava entre um gole de café e um de cachaça. Ao seu lado, uma panela com uma mistura de arroz com feijão, rodeada por algumas moscas, continha uma colher e as marcas de aquele tinha sido o café da manhã.” (Weihs, ML., não publicado). O armazenamento dos alimentos, prejudicado pela falta de uma geladeira e móveis fechados, coloca os ingredientes em risco de contaminação e deterioração. Esses são riscos com os quais os catadores e as catadoras convivem diariamente, conforme expressões já descritas e também notadas na figura 3. A imagem permite inferir o grau de insalubridade que os alimentos estão expostos na “Ocupação da Colina”, desvelando, portanto, o risco alimentar a que o grupo está submetido. 4) Gosto de Classe e Gênero Comer é um ato biológico, sociológico, econômico e cultural. Isso se deve ao fato de que as contextualizações influenciam intensamente na maneira como se prepara e como se consome o alimento e, também, o acesso aos tipos de alimento. Para Bourdieu (1979), a busca por alimentos raros e distintos, mais leves e sofisticados, marca o gosto de luxo ou de liberdade, pertencente aos grupos de 6 maior capital intelectual e econômico. Já a preferência por alimentos mais pesados, que dêem sensação de sustância, define o gosto de necessidade, relativo às camadas mais baixas da sociedade. Desta maneira,segundo Romanelli (2006): “a categoria comida estabelece fronteiras entre a identidade de pobres, dos ricos e dos muito pobres” (p.336). Neste sentido, DaMatta (1987) aponta duas dimensões da prática alimentar: “eu como para viver” e “eu vivo para comer”. O primeiro caso, leva em conta os aspectos universais da alimentação (sustentar o corpo, obter energias e proteínas), características das populações mais pobres. O segundo, por conseguinte, reflete os aspectos morais e simbólicos do ato de comer e da escolha da comida que, embora esteja presente em todas as classes sociais, se torna mais evidente nos grupos de maior capital intelectual e econômico. Dentre os pobres, a lógica da insuficiência e da “barriga cheia” persiste nas práticas alimentares. Segundo Canesqui (1988) “... uma dieta monótona, restrita ao arroz e a feijão, à ‘comida’ propriamente dita e a algumas ‘misturas’ (ovos, batata, macarrão e verduras) e raramente carne. Trata-se da ‘comida que pobre come todos os dias”(213). Arroz, feijão, carne são classificados como “comida”, representam alimentos “fortes”, que sustentam. Estes, por sua vez, se contrapõem às verduras, legumes, frutas que servem para “tapear”, não enchem barriga. Os catadores e as catadoras, sujeitos deste estudo, dizem secundarizar o consumo de verduras e legumes. “Disse-me que comem principalmente arroz e feijão, de vez em quando frutas e verduras e mais esporadicamente carnes (...). Legumes e frutas são recolhidos em uma Frutaria. Os alimentos não são catados do chão, são separados por funcionários do local que os entregam com os papelões.” (Weihs, ML, não publicado). Contudo, entre as mulheres, por vezes, foi possível visualizar a presença de vegetais usados na alimentação. “Havia uma fruteira com cebolas, tomates e alho. Uma prateira com arroz, macarrão, açúcar e biscoito. E, no chão, havia uma tábua de madeira com um pimentão.” (Zaneti,TB., não publicado). Em relação ao gênero e a alimentação, Bourdieu (1979) também faz a distinção. O autor menciona que os “ingredientes crus são destinados, sobretudo, às mulheres, como a salada. (...) A carne, alimento nutritivo por excelência, forte e fornecedora de força, vigor, sangue, saúde, é prato dos homens” (p.180). 5) Heterogeneidade do grupo e Identidade Cultural A heterogeneidade na escolha dos alimentos, o ambiente onde eles são preparados, os atores que o preparam, o tipo de cocção, como ele vai ser servido e, finalmente, como ele será apresentado e consumido, distingue-se de acordo com a identidade cultural de cada grupo. Estas tendências podem ser determinadas pelos fluxos humanos de migrações e imigrações, as influências econômicas e a oferta e a disponibilidade de alimentos Diez-Garcia (1997). Mesmo quando a característica social e cultural do espaço vai sendo construída através das migrações. Não há desaparecimento total das tradições culinárias. Saglio-Yatzimirsky (2006) em estudo realizado em duas favelas de São Paulo, sobre a alimentação dos favelados, verificou que nas famílias nordestinas o arroz com feijão não é tão comum. Caldo de feijão e cuscuz de fubá foram citados como alimentos preferidos. Do mesmo modo, as catadoras da “Ocupação da Colina”, também citam o cuscuz como um dos alimentos favoritos. 7 Segundo Maciel (2005), a identidade cultural não pode ser vista como uma constante imutável, já dada, mas como algo que se transforma e que pode assumir múltiplos sentidos. Quando perguntados se consumiam algum fruto das árvores que havia no local, todos entrevistados responderam que comem apenas o pequi puro, com arroz ou frango. Nota-se que, apesar da maioria dos catadores não serem goianos ou mineiros, que possuem a tradição de comer esse fruto, ele se mostrou muito apressado e já incorporado nos hábitos desses catadores” (Zaneti,TB, não publicado). Neste sentido, é possível inferir que nas práticas alimentares dos catadores aqui investigados, a dinâmica de construção da identidade cultural responde: (i) às tradições culinárias herdadas de sua terra natal; (ii) a desestruturação da comida agravada na cultura urbana moderna, principalmente influenciada pela mídia; (iii) as políticas assistenciais e demais formas de doações de alimentos; (iv) a convivência com os demais; (v) a escassez do alimento; (vi) a baixa capacidade econômica; e, sobretudo (vii) a exclusão social. Enfim, as reflexões apontam a necessidade deste grupo de catadores e catadoras se apropriar criticamente da sua realidade. E a alimentação pode ser um elemento importante nesta reflexão. Pois como categoria através da qual os pobres pensam sua relação com os “ricos” que não enfrentam necessidades alimentares e com os muito pobres, que passam fome- Romanelli(2006), pode ser um elemento na tomada de consciência de sua diferença, conforme Contreras-Hernández e Gracia-Arnáiz, (2005). Somente através desta tomada de consciência, os indivíduos são impulsionados a assumir o papel de sujeitos da transformação do seu mundo, segundo Freire (1977). Conclusão O habitus alimentar, quando define as disposições, representações e práticas sociais do grupo da “Ocupação da Colina” revela seu estilo de vida. As representações dos catadores e as catadoras e a percepção das pesquisadoras envolvidas, exprimem que, embora tenham trabalho, socialmente os catadores se mantêm excluídos. A distinção do grupo é representada social e culturalmente pela precariedade de suas práticas alimentares; pelo gosto de necessidade sem opção, em detrimento da escolha; pelos alimentos calóricos que fornecem a força para o trabalho; pelo reaproveitamento do que o lixo oferece, seja em relação à moradia, ao vestuário, como também à comida; pela solidariedade necessária diante da desintegração da família e da insegurança do ambiente. Por fim, afirma-se que a identidade deste grupo é construída a partir de sua herança e memória cultural, originárias da família e de sua “terra”, às quais se agregam as características negativas da convivência com o lixo, da exclusão da sociedade e da naturalização da injustiça social. Sugere-se que a produção da autonomia, por meio do acesso a política públicas inclusivas é a alternativa para que a coleta e a reciclagem de resíduos sejam atividades includentes. 8 BIBLIOGRAFIA BOURDIEU, P.(1979) A distinção: crítica social do julgamento. São. 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