DIREITOS ANTIDUMPING (CRÍTICA DE SUA NATUREZA JURÍDICA) Marcelo Jatobá Lôbo Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Foi Professor-Assistente do curso de especialização em Direito Tributário da PUC/SP e Professor da Escola Superior da Magistratura do Estado de Sergipe.Advogado da União. Ex-Procurador do Estado de Sergipe. RESUMO: Este trabalho é uma síntese da nossa dissertação de mestrado sobre o tema, publicada pela Quartier Latin com o título “Direitos Antidumping”. O artigo examinará a natureza jurídica desses direitos. Trata-se de tema bastante polêmico. Ficamos vivamente impressionados com a controvérsia que lavra na doutrina, refletida nos trabalhos publicados por juristas nacionais e estrangeiros. No desenvolvimento dos nossos estudos, identificamos que a imposição dos direitos implica o estabelecimento de duas relações jurídicas distintas, quais sejam: i) uma relação jurídica de direito subjetivo (Estado-importador), e ii) uma relação jurídica de direito potestativo (Estadoexportador).Por desconsiderar a existência desses dois vínculos jurídicos, a doutrina tem priorizado, ora a relação Estado/importador, ora o liame Estado/exportador, manifestando posições necessariamente fragmentárias. Apoiados na distinção em perspectiva, consideramos as categorias jurídicas que têm sido aventadas pelos que se dedicam ao estudo do tema: a) tributo, b) sanção, c) modalidade não-tributária de intervenção no domínio econômico, e d) um instituto sui generis. Passando por cada uma dessas categorias, concluímos que os direitos antidumping consistem em medidas sancionatórias, impostas para reprimir a prática de dois atos ilícitos: o dumping condenável propriamente dito (ato do exportador) e a importação em condições de dumping condenável (ato do importador). Procuramos demonstrar que os argumentos contrários a essa tese não se atêm às notas definidoras do conceito lógico-jurídico de sanção, apegando-se a elementos contingentes que dependem da experiência de cada sistema positivo. Para tanto, foi necessário mergulhar no universo temático dos conceitos jurídicos, enfocando especialmente a dicotomia conceitos jurídico-positivos/conceitos lógico-jurídicos. O desenvolvimento do trabalho permitiu-nos estabelecer uma interlocução com a Filosofia e a Teoria Geral do Direito, com o Direito Internacional, com o Direito Tributário e com o Direito Econômico Internacional. PALAVRAS-CHAVE: Dumping. Direitos Antidumping. Natureza Jurídica. GATT. OMC. SUMÁRIO. 1 Introdução; 2 Sobre o dumping e os direitos antidumping; 2.1 A normativa aplicável; 2.2 Dumping: o conceito e as espécies previstas no artigo VI do GATT; 2.3 Os direitos antidumping; 2.3.1 Alguns aspectos do procedimento de aplicação; 2.3.2 Duas relações jurídicas; 3 As concepções doutrinárias acerca da natureza jurídicas dos direitos antidumping ; 3.1 A finalidade das categorizações no Direito e a necessária distinção entre natureza e regime jurídico; 3.2 A caracterização dos direitos antidumping como tributos; 3.2.1 A exaustividade do subsistema constitucional tributário brasileiro; 3.2.2 O conceito de tributo e a discricionariedade na imposição dos direitos antidumping; 3.2.3 Os motivos pelos quais os direitos antidumping não constituem tributos; 3.2.4 Os direitos antidumping como imposto de importação; 3.2.5 Os direitos antidumping como contribuição de intervenção no domínio econômico; 3.2.5.1 Destinação ao custeio de uma intervenção estatal na ordem econômica; 3.2.5.2 Ausência de lei complementar; 3.2.6 Os direitos antidumping como taxas de 1 polícia; 3.2.7 Um tributo da competência residual da União; 3.3 Os direitos antidumping como modalidades não-tributárias de intervenção no domínio econômico; 3.4 Um instituto sui generis; 4 Os direitos; antidumping como medidas sancionatórias; 4.1 Considerações iniciais 4.2 As características definitórias de um conceito; 4.3 Conceitos jurídico-positivos e lógico-jurídicos; 4.4 As características definitórias dos conceitos lógico-jurídicos; 4.5 Os argumentos contrários à natureza sancionatória dos direitos antidumping; 4.6 O conceito lógicojurídico de sanção; 4.7 O dumping condenável e o código binário lícito/ilícito; 4.8 Dumping e antidumping na estrutural lógica da regra de direito. 1 INTRODUÇÃO A política de liberalização comercial, inaugurada pelo Governo brasileiro no início da década de noventa do século passado, ampliou as relações de comércio exterior, oportunizando a imposição de medidas de resguardo à economia nacional, especialmente dos direitos antidumping. Cresce, aqui e alhures, o recurso a esses direitos, algumas vezes motivado por interesses que lhes desvirtuam o sentido, convertendo-os em instrumentos de discriminação inconciliáveis com os artigos I e III, do Acordo Geral Sobre Tarifas e Comércio. Em palavras introdutórias, pode-se afirmar que o dumping decorre de uma política de diferenciação de preços entre mercados nacionais distintos. O exportador vende a U$10 no seu país de origem e exporta a U$ 8 para o Estado importador. A diferença entre os valores corresponde precisamente à margem de dumping praticada. Quando a indústria nacional do Estado importador sofre ou se vê na iminência de sofrer prejuízo mercê da distinção de preços, agrega-se ao valor do produto exportado uma quantia igual ou inferior àquela margem de dumping, sempre com o objetivo de afastar o dano ou a ameaça de dano a um setor produtivo nacional. Referida importância recebe o nome de direitos antidumping. Por envolver uma série de interesses e preocupações, os direitos antidumping situam-se, ao lado das outras medidas de defesa comercial (direitos compensatórios e salvaguardas), no centro das discussões contemporâneas sobre o comércio exterior. Não é por acaso que se traduzem num dos pontos de maior complexidade com que se deparam os plenipotenciários da Rodada Doha de negociações da OMC. Mas o que seriam, afinal, esses direitos? Em que categoria jurídica conhecida poder-se-ia enquadrá-los? Aqui as divergências dão o tom. Ficamos vivamente impressionados com a controvérsia que lavra na doutrina, refletida nos trabalhos publicados por juristas nacionais e estrangeiros. Seus estudos conduzem a pelo menos quatro categorias jurídicas possíveis: a) sanção; b) tributo; c) modalidade não tributária de intervenção no domínio econômico; e d) um instituto com natureza jurídica própria. Sem a veleidade de pretender chegar a uma posição definitiva acerca dessa temática, interessa-nos estudá-la considerando alguns aspectos propedêuticos de fundamental importância. O objetivo perseguido é o de demonstrar que os direitos antidumping constituem medidas sancionatórias e que os argumentos contrários a essa tese não se atêm às notas definidoras do conceito lógico-jurídico de sanção, apegando-se a elementos contingentes que dependem da experiência de cada sistema positivo. 2 Ver-se-á que a expressão “direitos antidumping” denota algo mais complexo do que se tem sugerido. Não se trata de uma única realidade. São, pelo menos, duas relações jurídicas distintas: uma, a que envolve o exportador; outra, a que enlaça o importador do produto com dumping. Semelhante complexidade não pode deixar de ser considerada na investigação da natureza jurídica das chamadas “medidas antidumping”. Por desconsiderá-la, a doutrina tem priorizado, ora o vínculo Estado/importador (circunstância comum entre os que postulam a natureza tributária), ora a relação Estado/exportador (postura assumida pelos que sustentam a índole de uma modalidade não tributária de intervenção no econômico), manifestando posições necessariamente fragmentárias. Algumas incursões teóricas se farão sentir no desenvolvimento do trabalho. Serão pontos de apoio para a coerência do pensamento exposto, sempre com objetivo de melhor explicar o fenômeno com que estamos nos ocupando. Não pretendemos nos perder em divagações teóricas estranhas às possibilidades pragmáticas. Inspira-nos o sempre citado magistério de LOURIVAL VILANOVA que propugna a intersecção entre teoria e prática, entre ciência e experiência1. 2 SOBRE O DUMPING E OS DIREITOS ANTIDUMPING 2.1 A normativa aplicável O dumping é regulado, em âmbito internacional, pelo artigo VI do GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) e pelo acordo para a implementação daquele dispositivo, conhecido como Código Antidumping. O Código atual foi aprovado na rodada Uruguai de negociações multilaterais do GATT, concluída em 15 abril de 1994, na cidade de Marrakesh. A relação que entretém com o citado artigo VI, embora não seja de ordem hierárquica, é de complementaridade. Suas “disposições –específicas e por vezes bastante minuciosas – esclarecem, definem e regulamentam o procedimento pertinente à aplicação de medidas antidumping”2. O Brasil, que já era signatário do Acordo Geral Sobre Tarifas e Comércio e do Código Antidumping da rodada Tóquio, recepcionou em sua ordem normativa o GATT-94, referendando-o por meio do Decreto Legislativo 30/94, e promulgando-o mediante o Decreto 1355/94. Outrossim, foram editados a Lei 9019/953 e o do Decreto 1602/95, sempre com o escopo de promover a adequação da ordem jurídica nacional aos termos do GATT. As normas internacionais do GATT/OMC4, aliadas à legislação interna, disciplinam o dumping e os direitos antidumping no Brasil. 2.2 Dumping: o conceito e as espécies previstas no artigo VI do GATT Não se costuma imprimir muito rigor na elucidação do que seja dumping. As definições doutrinárias não raro imbricam-no com outras figuras jurídicas ou confundemno com uma sua espécie. Para que se tenha a exata dimensão do que ora se afirma, 1 “O jurista, no sentido mais abrangente, é o ponto de interseção da teoria e da prática, da ciência e da experiência: seu conhecimento não é desinteressado: é-o com vistas à aplicabilidade do que se denomine, regra, preceito, como quer que se denomine. Por isso, na teoria mais abstrata, há potencialmente uma manipulação com fatos” (Fundamentos do Estado de Direito, Revista de Direito Público, nº 43/44, jul./dez,1977, p. 21- 22). 2 BARRAL, welber. Dumping e comércio internacional: a regulamentação antidumping após a rodada Uruguai. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p.95. 3 Essa lei sofreu alterações recentes, promovidas pela Medida Provisória nº 2158-35/2001. 4 As negociações da rodada Uruguai resultaram na criação da OMC (Organização Mundial do Comércio), a quem foi incumbida a tarefa de administrar os resultados da aludida rodada e resolver possíveis disputas entre os membros do GATT. 3 apresentar-se-ão quatro assertivas encontradas na doutrina, declinando-se algumas observações sobre elas: I- O dumping pode resultar de práticas comerciais desenvolvidas nos limites do território nacional5. II- O exportador, ao praticar o dumping, visa a afastar a concorrência dos produtores nacionais, buscando alcançar uma situação de monopólio propícia ao estabelecimento das suas próprias condições de mercado 6. III- O dumping só se perfaz com a ocorrência de dano ou ameaça de dano à indústria nacional ou, ainda, com o retardamento da implementação de uma atividade industrial no país importador 7. IV- O dumping pode ser praticado pelos produtores-exportadores ou pelas próprias autoridades do país exportador8. A primeira afirmação atribui ao conceito uma amplitude que ele não tem. O dumping não se verifica dentro nos lindes do território nacional. Pressupõe sempre uma prática de comércio exterior. No mercado interno podem ocorrer o underselling e o preço predatório. O primeiro caracteriza-se pela venda abaixo do valor de custo do produto; o segundo, pela intenção de eliminar concorrentes por meio da venda do produto a preços impraticáveis. Ao contrário do que ocorre com essas duas figuras, o dumping sempre ultrapassa as fronteiras de um só território, exigindo a discriminação de preços entre mercados nacionais distintos9. Se a primeira assertiva amplia o conceito, a segunda restringe-o sobremodo: para a caracterização do dumping não é necessário que o exportador esteja imbuído de um intuito predatório, alimentando a pretensão de afastar a concorrência dos produtores nacionais. Não o exige, como se verá a seguir, o artigo VI do GATT. Além disso, a situação de monopólio “depende de condições de mercado raramente existentes”10. 5 É como pensa, entre outros, ELIANE MARIA OCTAVIANO MARTINS:“Há que se distinguir dois aspectos do ‘dumping’ como concorrência desleal: sob a ótica interna, como infração à ordem econômica (lei antitruste 8884/94, art.21 XVIII) e sob a ótica internacional [...]”. Mais adiante, observa: “ Relativamente ao ‘dumping’ no mercado interno, os meios legais disponíveis encontram-se portanto na Lei 8884/94, na Lei 8079/90 e no Código Penal” (“Da concorrência desleal: o ‘dumping’ predatório no contexto internacional e no mercado interno brasileiro”, Revista de direito do mercosul-de derecho del mercosur, v.2, nº 3,125-128,jun.1998, p.126-127). 6 É como o define, por exemplo, FREDERICO DO VALLE MAGALHÃES MARQUES: “ Dentro desse contexto, a prática de dumping, segundo o melhor entendimento, vem a ser o lançamento, no mercado estrangeiro, de mercadorias a preços baixos, na maioria das vezes inferiores ao próprio custo de produção, com o objetivo de eliminar a concorrência, tanto de produtores do país importador como de outros produtores estrangeiros” (O “ dumping” na Organização Mundial do Comércio e no direito brasileiro, in: CASELA, Paulo Borba e MERCADANTE,Araminta (Corrds).Guerra comercial ou integração mundial pelo comércio? : a OMC e o Brasil. São Paulo:LTR,1998, p. 299). No mesmo sentido é a definição de MARTA RODRIGUEZ FERNANDEZ: “Con estas exportaciones anormalmente baratas se trata, como finalidad última, por una parte, de eliminar la competencia de los productores nacionales y, por otra, alcanzar una situación monopolística de hecho que permitiría a tales empresas imponer a más largo plazo sus propias condiciones en el mercado” (“El procedimiento de imposición de derechos antidumping ante la comisión”, Revista de derecho financiero y hacienda pública,v.45,, nº237,686-709, jul./sept,1995, p.686). 7 Assim pensa ADILSON RODRIGUES PIRES: “É oportuno lembrar, todavia, que o dumping só se completa com a ameaça de dano considerável a um setor de produção do país-membro, ou, ainda, se a prática retardar sensivelmente a implementação de projeto de instalação de atividade industrial no país.” Em outra passagem de sua obra, observa: “ O dano ou ameaça de dano, portanto, é imanente à conceituação do dumping [...]” (Práticas abusivas no comércio internacional. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.131 e 135). É também a posição de Maria Carolina Mendonça de Barros: “Para que o dumping seja caracterizado, é necessário haver a comprovação do dano material ou ameaça de dano material à indústria doméstica já estabelecida ou o retardamento na implantação de uma indústria, bem como do nexo causal [...] (O Direito Antidumping Como Arma Protecionista. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2002, p.13). 8 Fez essa distinção HUYSSER, como observa JOSÉ ROBERTO PERNOMIAN RODRIGUES: “Merece breve comentário, por fim, a distinção de Huysser a respeito do dumping subvenção e dumping de preços. Afirma Huysser que ‘segundo o autor do dumping, distingue-se de uma parte o dumping que praticam as autoridades de países exportadores e que se chama de dumping de subvenção, e de outra aquele que é organizado e praticado pelos produtores-exportadores.’ Tal distinção é hoje superada, entendendo Jackson que dumping e subsídios são conceitos distintos tendo em vista o seu agente e a sua forma de implementação” [Destaques do próprio autor] ( Os efeitos do dumping sobre a competição, Revista de direito econômico, nº 22,29-43,jan/mar,1998, p.36). 9 Para o aprofundamento da distinção entre dumping, underselling e preço predatório, ver WELBER BARRAL, op. cit, p.157-161. WELBER BARRAL, op. cit., p.71. 10 4 A terceira afirmação confunde o dumping, como gênero, com uma sua espécie: o dumping condenável. Os efeitos que advêm da discriminação de preços entre os mercados exportador e importador é, sim, de suma importância, mas para a separação dos dois tipos de dumping previstos pelo artigo VI do GATT. Constitui, dizendo-o de outra forma, a diferença específica, isto é, o atributo que se agrega ao gênero para definir as espécies. A última assertiva não se sustenta, pois confunde o dumping com a figura do subsídio. Este último pressupõe a concessão de benefícios pelo Estado exportador aos produtores domésticos, a fim de que a exportação seja feita em condições mais vantajosas que a venda no seu mercado interno. Aquele, ao contrário, caracteriza-se pela prática individualizada dos produtores-exportadores, sem o concurso do ente estatal. A nítida separação entre as duas figuras jurídicas pode ser encontrada no Acordo Constitutivo OMC, que inclusive as disciplinou em códigos diferentes. Mas qual a referência, qual o dado empírico a partir de cuja análise pode-se chegar à noção dumping? Como já antecipamos, o conceito de dumping deve ser buscado inicialmente, pelo menos no âmbito dos países Signatários do GATT, no artigo VI do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio. Reza o referido dispositivo: As partes contratantes reconhecem que o ‘dumping’ que introduz produtos de um país no comércio de outro país, por valor abaixo do normal, deve ser condenado se causa ou ameaça causar prejuízo material a uma indústria estabelecida no território de uma parte contratante, ou se retarda, sensivelmente, o estabelecimento de uma indústria nacional”11[...]. Vê-se que o dispositivo contenta-se com a discriminação de mercados, de sorte que o preço de exportação seja inferior ao “valor normal”12 do produto similar no país exportador. Esta a conotação do gênero próximo dumping. Inseridos em seu campo denotativo estão todos os acontecimentos que atendam àquela característica definitória, não interessando a intenção do exportador nem tampouco as conseqüências da exportação. Basta a objetiva diferença entre o valor do produto importado e o preço praticado no mercado de origem daquele produto13. O dispositivo transcrito promove, todavia, uma distinção que é de suma importância para o tema que faz aqui nossos cuidados. Referimo-nos à separação entre o dumping condenável e o dumping não condenável14. O primeiro traz conseqüências prejudiciais à industria nacional. O segundo, pelo contrário, não causa dano ou ameaça de dano a qualquer setor produtivo do país importador. 11 “The contracting parties recognize that dumping, by which products of one country are introduced into the commerce of another country at less than the normal value of the products, is to be condemned if it causes or threatens material injury to an established industry in the territory of a contracting party or materially retards the establishment of a domestic industry. [...]” 12 O artigo VI do GATT considera abaixo do valor normal o preço que: “a) é inferior ao preço comparável que se pede, nas condições normais de comércio, pelo produto similar que se destina ao consumo no país exportador; ou b)na ausência desse preço nacional, é inferior: i) ao preço comparável mais alto do produto similar destinado à exportação para qualquer terceiro país, no curso normal de comércio; ou ii) ao custo de produção no país de origem mais um acréscimo razoável para as despesas de venda e o lucro. Em cada caso, levar-se-ão na devida conta as diferenças nas condições de venda, as diferenças de tributação e outras diferenças que influam na comparabilidade dos preços”. 13 Welber Barral insiste neste ponto, distinguindo o dumping de outras figuras como o preço predatório (preço impraticável, estabelecido com o intuito de eliminar a concorrência) e o underselling (preço abaixo do custo de produção). Para um maior aprofundamento, ver Dumping e comércio internacional: a regulamentação antidumping após a rodada Uruguai , p. 157-161. 14 Foi Aquiles Augusto Varanda quem, por vez primeira, chamou atenção para distinção feita pelo artigo VI do GATT entre o dumping condenável e o dumping não condenável: “A expressão ‘dumping’ condenável é utilizada no Acordo Geral para identificar uma espécie do gênero ‘dumping’. Por oposição à espécie ‘dumping’ condenável, utilizaremos a expressão não condenável para identificar a outra espécie, tendo por base a função-de-verdade ‘negação’, da Lógica das funções-de-verdade.” [Os grifos constam do original] (VARANDA, Aquiles Augusto. A disciplina do ‘dumping’ do Acordo Geral de Tarifas Aduaneiras e Comércio: tipificação de um delito num tratado internacional?. Tese de doutorado. São Paulo:Universidade de São Paulo,1987, p.13). 5 Interessa-nos mais de perto o estudo do dumping condenável. Para sua configuração faz-se necessária, como se pode inferir do citado artigo VI, a presença de três elementos: a) venda por preço inferior ao valor normal; b) ocorrência de dano à indústria nacional; e c) nexo causal existente entre o primeiro e o segundo elemento. O primeiro requisito é atributo do próprio gênero dumping; os dois últimos são apanágios da espécie dumping condenável. Promovendo a distinção em causa, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio veiculou dois comandos. Um tem sentido negativo; o outro, positivo. Este traduz-se na possibilidade de se reprimir o dumping condenável; aquele, na impossibilidade de se coibir o dumping não condenável. É, ao que nos parece, a melhor exegese para o já mencionado artigo VI do GATT/OMC. 2.3 Os Direitos antidumping 2.3.1 Alguns aspectos do procedimento de aplicação A prática do dumping condenável rende ensejo à aplicação de medidas antidumping15. Estas consistem genericamente num montante em dinheiro, igual ou inferior à margem de dumping apurada, exigido por ocasião das importações realizadas a preços de dumping, com o objetivo de afastar os efeitos danosos à indústria nacional. O procedimento conducente à aplicação dessas medidas pressupõe duas formas bastante distintas de atuação dos órgãos administrativos16. Uma delas é levada a efeito pela SECEX (Secretaria de Comércio Exterior) e consiste numa atividade de caráter eminentemente técnico e imparcial, que se dirige a investigar a ocorrência do dumping condenável. A outra, longe de ser investigativa, é predominantemente política, reivindicando um ato de decisão. É realizada pela CAMEX17 (Câmara de Comércio Exterior), órgão integrado por vários ministros de Estado. Aqui a imparcialidade cede passo à discricionariedade, sendo possível deixar de impor os direitos, ainda que caracterizado o dumping condenável, se assim o exigirem os interesses nacionais. A discricionariedade na aplicação dos direitos antidumping tem sido considerada pela doutrina uma característica relevante para definir-lhes a natureza jurídica. Sobre este último aspecto discorrer-se-á largamente em momento posterior. Por ora, fica o registro de que a opção da CAMEX pela ausência de aplicação dos direitos deve pautar-se sempre por critérios que atendam ao interesse público18. Só em situações excepcionais é possível deixar de exigi-los, a despeito da caracterização do dumping condenável19. 15 Os direitos antidumping não devem ser confundidos com os direitos compensatórios. Estes útlitmos destinam-se a combater o subsídio, e não o dumping. Aquele, o subsídio, pressupõe a concessão de benefícios pelo Estado exportador aos produtores domésticos, a fim de que a exportação seja feita em condições mais vantajosas que a venda no seu mercado interno. Já o dumping caracteriza-se pela prática individualizada dos produtores-exportadores, sem o concurso do ente estatal. A nítida separação entre essas duas figuras jurídicas pode ser encontrada no Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, que as tratou, inclusive, em códigos diferentes. 16 Cf. DEL CHIARO, José José; DA SILVA, Marcos; e FERREIRA, Selma M. Fundamentos e objetivos da legislação antidumping, Revista de direito econômico, nº25, 61-70, Jan./Jul, 1997, p.66-68. 17 Antes da Medida Provisória 2158-35/01, a aplicação dos direitos antidumping dava-se mediante decisão conjunta dos Ministros da Fazenda e da Indústria, do Comércio e do Turismo. Tratava-se, pois, de ato complexo, na medida em que exigia o concurso de vontades de dois órgãos da Administração Pública. 18 José Roberto Pernomian, em tese de doutorado recentemente defendida na Universidade de São Paulo, chega a sustentar- partindo, é certo, de um conceito mais restrito de dumping condenável- que não existe, em nosso sistema jurídico, espaço para o julgamento acerca da conveniência e oportunidade da aplicação dos direitos antidumping. Para esse autor, só haveria margem de discricionariedade na determinação do quantum desses direitos. (Cf. RODRIGUES, José Roberto Pernomian. Dumping como forma de expressão do abuso do poder econômico: caracterização e conseqüências. Tese de doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo,1999, p.217-221) 19 Não é outra a redação do artigo 64, §3º, do Decreto 1602/95: “Em circunstâncias excepcionais, mesmo havendo comprovação do dumping e de dano dele decorrente, as autoridades referidas no art. 2º poderão decidir, por razões de interesse nacional, pela suspensão 6 Outro aspecto sempre relacionado à temática da natureza jurídica respeita à chamada “retroatividade das medidas antidumping”. Em alguns casos, é possível aplicálas às importações ocorridas antes do ato que as impôs. Afirma-se que os direitos não poderiam ser tributos, justamente em razão da possibilidade de serem cobrados de forma retroativa. Em momento oportuno, ver-se-á que esta orientação incorre no equívoco de definir um instituto pelo regime jurídico a ele aplicável. 2.3.2 Duas relações jurídicas Tem-se optado por exigir os direitos antidumping do importador. Isso ocorre por razões de arrecadação. Seria temerário exigi-los do exportador, mercê dos limites impostos pelo princípio da territorialidade formal20. Não se faz possível, justamente por força desse primado, realizar atos de cobrança e execução, que se traduzem em manifestações de soberania estatal, no território do Estado de residência do exportador. Para se obter sucesso na arrecadação, seria necessário que aquele último possuísse bens no território nacional, o que nem sempre acontece. Por não se cobrar os direitos antidumping do exportador do produto favorecido por dumping, poder-se-ia imaginar que o Estado só entretém relação jurídica com o importador, de quem se exige a quantia relativa àqueles direitos. O exportador só sofreria, nesta ordem de idéias, conseqüências de natureza econômica na medida em que perderia mercado pelo encarecimento do seu produto. É o caso, então, de indagarmos: a imposição dos direitos antidumping implica a constituição de algum vínculo jurídico entre o Estado brasileiro e o exportador do produto objeto de dumping? A doutrina de uma maneira geral não aborda esse problema, o que torna mais difícil o seu enfrentamento. Isso não é motivo, contudo, para que deixemos de examiná-lo, até porque a análise dessa questão é de fundamental importância para o estudo do tema que faz os nossos cuidados neste trabalho. O primeiro aspecto a ser realçado é o de que não há a exigência de uma prestação a ser realizada pelo exportador. Dito com outras palavras: os direitos antidumping não lhe exigem nenhuma conduta positiva ou negativa. Isso afasta, de plano, possíveis cogitações acerca de um direito subjetivo do Estado em face daquele sujeito. Sim, porque direito subjetivo em sentido estrito é direito à prestação, quer positiva, quer negativa. Se não há direito subjetivo, não há dever, seu correlato lógico. Logo, é lícito concluir que o exportador – diferentemente do importador, que realiza uma prestação de caráter pecuniário - não assume o pólo passivo de um vínculo jurídico que tenha “aquela correspectividade direitos/deveres, específica das relações obrigacionais”21. Mas é de se notar que ao exportador do produto objeto de dumping é dirigida uma conseqüência jurídica, traduzida no acréscimo de valor que se agrega ao preço do seu produto durante o período em que se estender a aplicação dos direitos antidumping. A empresa exportadora submete-se a tal imposição. O bem por ela exportado estará gravado com esse plus, independentemente de quem seja o importador. Semelhante gravame não deriva – note-se bem- de razões de ordem econômica, mas decorre diretamente de uma norma jurídica. É só perguntar pela causa: o que gera o acréscimo que vai permanecer agregado ao valor do produto importado/exportado? Será uma causa econômica (causalidade econômica, inerente ao plano do ser)? Certamente que não. O da aplicação do direito ou pela não homologação de compromissos de preços....”. (sublinhamos). 20 Examinando o princípio da territorialidade em sentido formal, observou Heleno Tôrres: “ Por isso, nenhum Estado admite a prática de atos de império ou produção automática de efeitos de atos públicos de um outro Estado no seu território, como efeito do limite territorial ao jurisdiction to enforce, cuja extrapolação implica em conseqüente agressão à soberania alheia. Como afirmava Manlio Udina, ‘o Estado não pode atuar coativamente fora de suas fronteiras sem atentar contra a outra soberania’ ” (Pluritributação internacional sobre as rendas de empresas. 2. ed.São Paulo:Revista dos Tribunais, 2001, p.85). 21 VILANOVA, Lourival.Causalidade e relação no direito. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,2000. p.231. 7 referido acréscimo surge como conseqüência jurídica, isto é, como efeito atribuído por uma norma de direito (causalidade normativa, pertencente aos domínios do dever ser). A conseqüência jurídica de que se está cogitando é, em tudo e por tudo, distinta daquela outra que tem por destinatário o importador e que consiste na exigência de uma prestação. Tanto isso é verdade que o ingresso do produto objeto de dumping no mercado nacional estará sujeito ao pagamento dos direitos antidumping, não interessando quem o importe. O ônus permanecerá independentemente de quem seja o importador. Se é certo que há uma relação jurídica entrelaçando o Estado e o exportador do produto favorecido por dumping, e que tal relação não tem por objeto uma prestação (não envolve um direito subjetivo), qual seria, afinal, a natureza desse vínculo? O Estado a cujo território se destina o bem objeto de dumping condenável tem, a nosso aviso, um direito potestativo em face do exportador. Para demonstrá-lo, vamos recorrer à lição precisa de Lourival Vilanova22: Às vezes distingue-se o direito subjetivo, em sentido estrito, do denominado direito potestativo. Naquele, ao titular ativo contrapõe-se o titular passivo com dever jurídico (conduta ação/omissão). O titular passivo na relação de direito potestativo não tem dever a prestar, pois fica reduzido à posição de sujeição. Suporta os efeitos jurídicos do exercício de poderes de seu titular, que por ato unilateral, só por si, é capaz de provocar constituição, modificação ou desconstituição de relações jurídicas. Assim, por exemplo, no direito potestativo constitutivo, perfazse a relação jurídica de servidão de passagem. O titular, dono do imóvel serviente, não tem dever jurídico a cumprir, senão o dever de tolerar, o de não-impedimento diante dos efeitos constitutivos do exercício do direito potestativo. De sorte que - ponto que aqui interessa - na relação jurídica não se vê aquela correspectividade direitos/deveres, específica dos direitos obrigacionais. Como observou o mestre Vilanova, num vínculo de direito potestativo o sujeito passivo fica reduzido à condição de sujeição. Note-se que exportador do produto objeto de dumping não tem uma prestação a cumprir, mas deve sujeitar-se, não obstante, à imposição dos direitos antidumping sobre seus produtos. Cabe a ele, exportador, tolerar a imposição enquanto durarem seus efeitos. Temos, portanto, que a aplicação das medidas antidumping implica dois vínculos jurídicos distintos, a saber: i) uma relação jurídica de direito subjetivo (Estadoimportador), e ii) uma relação jurídica de direito potestativo (Estado-exportador). Ter-seá presente tal constatação no desenvolvimento deste trabalho. 3 AS CONCEPÇÕES DOUTRINÁRIAS ACERCA DA NATUREZA JURÍDICA DOS DIREITOS ANTIDUMPING 3.1 A finalidade das categorizações no Direito e a necessária distinção entre natureza e regime jurídico A inserção de uma entidade jurídica qualquer numa categoria ou classe preestabelecida exige dois procedimentos básicos. Em primeiro lugar, faz-se necessário surpreender a conotação da classe em cujo círculo denotativo pretende-se inserir a figura jurídica em questão. Na seqüência, verifica-se se essa mesma figura reúne todas as notas que compõem a conotação do conjunto em que se pretende subsumi-la, inserindose, por conseguinte, em seu campo denotativo. 22 VILANOVA, Lourival.Causalidade e relação no direito. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p.231. 8 Sem o objetivo de nos estender neste ponto, até porque a ele voltaremos oportunamente, importa registrar, em grandes linhas, a diferença entre denotação e conotação. A primeira consiste no conjunto de todas as entidades compreendidas no âmbito de abrangência de um nome geral ou palavra de classe23. Maria e Joana estão inseridas no campo denotativo da palavra “mulher”. Já a segunda, a conotação, consiste no critério de uso da mesma palavra de classe, isto é, no conjunto das características que os entes devem possuir para “caber” em seu círculo denotativo24. O critério de uso da palavra “mulher”, para ficarmos com o mesmo exemplo, pode ser traduzido em: “ser humano do sexo feminino”. “Ser humano” designa o gênero próximo; “do sexo feminino”; a espécie. Aquele, por conotar menos, denota mais do esta: toda mulher é ser humano, mas nem todo ser humano é mulher. O plus de conotação da espécie há nome “diferença específica”25. A conotação da palavra de classe define-lhe o conceito. É a sua “pedra de toque”, 26 recorrendo-se à expressão de RICARDO GUIBOURG et al .Em outros sítios do conhecimento científico, a recondução a uma classe ou conceito dá-se com propósitos exclusivamente cognoscitivos, visando a promover uma melhor organização do pensamento. Na Ciência Jurídica, o objetivo é mais amplo. Não se resume a uma perspectiva didática, teórica, mas tem outrossim “ reflexos diretos na vida do cidadão e 27 na prática do jurista e do profissional do direito” . Isso ocorre porque o enquadramento de uma dada entidade num conceito jurídico persegue a finalidade de conferir-lhe certo regime jurídico. No dizer de EROS ROBERTO GRAU: “Atribuída à coisa, estado ou situação uma determinada significação (conceito jurídico), quanto a ela aplicar-se-ão 28 umas – e não outras, ou nenhuma –determinadas normas jurídicas” . Uma advertência é necessária. Não se deve confundir natureza com regime jurídico. Este é uma decorrência lógica daquela. O conjunto de normas a ser aplicado a uma dada figura jurídica deriva da natureza que ela tiver, e não o contrário. É uma conseqüência, um posterius. Utilizá-lo para ampliar ou reduzir o campo denotativo de uma determinada 23 Distinguem-se os nomes próprios ou individuais dos nomes gerais ou palavras de classe. Aqueles respeitam a objetos específicos; estes dizem com um número potencialmente infinito de indivíduos. No primeiro caso, a escolha do nome resulta de mera preferência e dessa escolha forma-se uma classe com um único elemento; no segundo, fixam-se conceitos, vale dizer, elegem-se determinados atributos que os entes devem possuir para pertencer à classe representada pelo nome em questão, integrando-lhe o campo denotativo (Cf. Paulo de Barros Carvalho, IPI – Comentários sobre as regras gerais de interpretação da tabela NBM (TIPI/TAB), Revista dialética de direito tributário, n. 12,42-60,st.,1996, p.53). 24 As palavras de RICARDO GUIBOURG et al. podem tornar mais claro o discernimento entre denotação e conotação: “La palabra ‘ciudad’,por ejemplo, sirve para referirse indistintamente a cualquier entidad de una larga lista, que incluye a Buenos Aires, Córdoba , Neuquén, París, Barcelona, Cantón, Acapulco, Estocolmo, Florencia, Jantum y también a Sodoma, Nínive, Menfis o Tenochtitlán. El conjunto de todos los objetos o entidades que caben en la palabra ‘ciudad’ se le llama la denotación de esta palabra. Pero aquella lista no ha sido formada al azar: si llamamos ‘ciudad’ a Montreal y a Salta, pero no a la Edad Media ni a la isla de los Estados, nuestra conducta no es caprichosa sino producto de un criterio. Existen ciertas razones, más o menos uniformes, por las que incluimos un objeto en una clase o lo excluimos de ella. Estas razones forman el criterio de uso de la palabra de clase, y tal criterio es la piedra de toque del concepto: tenemos el concepto de mosca cuando estamos dispuestos a usar cierto criterio para llamar mosca (o mouche, o fly) a los objetos que lo satisfagan, y para no llamar con ese vocablo a las cosas que no se ajusten a sus requisitos. El conjunto de estos requisitos o razones, es decir, el criterio de uso de una palabra de clase (determinante y demostrativo del concepto correspondiente) se llama designación de esa palabra” (GUIBOURG, Ricardo A.; GHILIANI,Alejandro M.; GUARINONI, Ricardo.Introducción al conocimiento científico.Buenos Aires: Eudeba,1985, p. 42). 25 PAULO DE BARROS CARVALHO tratou do tema com a precisão habitual: “Os diversos grupos de uma classificação recebem o nome de espécies e de gêneros, sendo que espécies designam os grupos contidos em um grupo mais extenso, enquanto gênero é o grupo mais extenso. A presença de atributos ou caracteres que distinguem determinada espécie de todas as demais espécies de um mesmo gênero denomina-se “diferença”, ao passo que “diferença específica” é o nome que se dá ao conjunto das qualidades que se acrescentam ao gênero para a determinação da espécie, de tal modo que é lícito enunciar: a espécie é igual ao gênero mais a diferença específica (E=G+De)” (IPI – Comentários sobre as regras gerais de interpretação da tabela NBM (TIPI/TAB), Revista dialética de direito tributário, n. 12, p.54). 26 Op. cit., p.42. 27 SANTI, Eurico Marcos Diniz. As classificações no sistema tributário brasileiro. In: Justiça Tributária: direitos do fisco e garantias dos contribuintes nos atos de administração e no processo tributário (1°Congresso internacional de direito tributário). São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 126. 28 Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito.São Paulo: Revista dos Tribunais,1988, p.209. 9 categoria jurídica traduz-se numa evidente inversão de perspectivas. Por desconsiderálo, a doutrina tem sistematicamente recorrido a elementos que não se prestam a definir a natureza jurídica dos direitos antidumping. Exemplo disso vamos encontrar já no próximo tópico, que se destinará ao exame da suposta índole tributária das medidas antidumping. 3.2 A caracterização dos direitos antidumping como tributos 3.2.1. A exaustividade do subsistema29 constitucional tributário brasileiro A Constituição brasileira reservou um número considerável de seus dispositivos ao tratamento da matéria tributária. Forjou, com isso, um subsistema constitucional tributário exaustivo, cujo nível de detalhamento e perfeição não encontra paradigma em outros ordenamentos jurídicos. GERALDO ATALIBA, em seu Sistema constitucional tributário brasileiro, chamou atenção para essa singularidade do nosso sistema tributário em relação aos ordenamentos de outros países de cultura ocidental30. O autor enfatizou – e essa é tônica da sua obra – a reduzida margem de atuação cometida ao legislador ordinário no Brasil. A este último caberia explicitar apenas os comandos fixados pela Constituição, sendo-lhe inteiramente defesa qualquer iniciativa no sentido de modificar o que já foi preestabelecido pela Carta Magna. ATALIBA chegou mesmo a afirmar que o constituinte “esgotou a disciplina da matéria tributária, deixando à lei, simplesmente, a função regulamentar”31. Não é diferente o pensamento de JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES, para quem a “exaustividade do subsistema tributário brasileiro não encontra paralelo no direito comparado em geral, e, muito menos, em especial, no direito norte-americano” 32. PAULO DE BARROS CARVALHO também destaca esse traço peculiar do sistema tributário brasileiro, observando que a Constituição dispensa à “matéria tributária farta messe de preceitos, que dão pouca mobilidade ao legislador ordinário, em termos de exercitar seu gênio criativo” 33. A exaustividade do nosso sistema constitucional tributário, reconhecida e realçada pela doutrina, deve ser levada em consideração em qualquer estudo que envolva a matéria tributária no Brasil. Procuraremos não nos desviar dessa diretriz quando estivermos desenvolvendo os próximos subitens desse tópico. 3.2.2 O conceito de tributo e a discricionariedade na imposição dos direitos antidumping Para saber se as medidas antidumping ostentam natureza tributária, é necessário, antes de mais nada, firmar o conceito de tributo. A doutrina tem recorrido à definição do artigo 3º do CTN34. 29 O sistema constitucional tributário consiste numa subclasse do sistema constitucional que, por sua vez, é um subconjunto do sistema global: o ordenamento jurídico vigente. Suas unidades possuem a mesma estrutura lógica de todas as outras regras do sistema, delas destacando-se apenas quanto ao conteúdo. 30 Quando escreveu o seu clássico “Sistema constitucional tributário brasileiro”, ATALIBA não tinha como referência a atual Constituição. Mas suas conclusões a respeito da peculiaridade do direito tributário nacional são, no entanto, inteiramente aplicáveis ao sistema jurídico inaugurado pela Carta de 1988. 31 ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional tributário brasileiro.São Paulo: Saraiva, 1968, p.18. 32 Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1997, p.213. 33 Curso de direito tributário.13. ed.,São Paulo: Saraiva,2000,p.141. 34 “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.” 10 Semelhante definição não discrepa, de um modo geral (e isso é reconhecido pela generalidade dos autores), dos ditames constitucionais. Mas não é nela que se deve buscar o conceito de tributo. A disciplina da ação tributária não se inaugura, em nosso sistema jurídico, no Código Tributário Nacional, mas na própria Constituição. É para lá, portanto, que as atenções deverão estar voltadas quando se pretender chegar ao referido conceito. Vamos tomar, nesta ordem de idéias, como ponto de partida para a análise acerca da índole dos direitos antidumping, as definições de tributo de duas das mais autorizadas vozes do Direito Tributário brasileiro, construídas com fulcro na própria Constituição Federal: GERALDO ATALIBA35: Constrói-se o conceito jurídico-positivo de tributo pela observação e análise das normas jurídicas constitucionais. [...] Juridicamente define-se tributo como obrigação jurídica, ex lege, que se não constitui em sanção de ato ilícito, cujo sujeito ativo é uma pessoa pública (ou delegado por lei desta), e cujo sujeito passivo é alguém nessa situação posto pela vontade da lei, obedecidos os desígnios constitucionais (explícitos ou implícitos). ROQUE ANTÔNIO CARRAZA36: Temos, pois, que , tributo, ao lume de nosso Estatuto Magno, é a relação jurídica que se estabelece entre o Fisco e o contribuinte (pessoa colhida pelo direito positivo) , tendo por base a lei, em moeda, igualitária e decorrente de um fato lícito qualquer ( grifo do autor). Note-se que os excertos doutrinários citados deixam de mencionar o tipo de atividade administrativa empregada na exigência do gravame. Esse elemento não parece estar incluído no conceito constitucional de tributo para aqueles autores. Está inserido, porém, na definição do artigo 3º do CTN. Como ficamos? A arrecadação por meio de atividade administrativa vinculada é, ou não, um elemento definidor do conceito de tributo? A solução para esse questionamento é de fundamental importância, porquanto a principal objeção da doutrina à natureza tributária dos direitos antidumping descansa justamente na discricionariedade que caracteriza a cobrança desses direitos. Uma resposta afirmativa para aquela indagação pode ser encontrada nas lições de Rubens Gomes de Souza37. Esse autor não só defendeu a inclusão da parte final do mencionado artigo 3º, mas a elegeu como o mais importante elemento definidor do conceito de tributo. São suas as palavras: Então, o que tem de novo este art. 3º, é a sua parte final: ‘cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada’. Na realidade, em última análise, é este o elemento definidor do tributo em contraste com outras receitas públicas, entre as quais haverá as que tenham por igual modo, o caráter de compulsoriedade e de legalidade, ou seja, autorização da lei, não sendo portanto, estes dois elementos, compulsoriedade e legalidade, típicos ao tributo. O que então tipifica o tributo, nesta definição, é o tipo de atividade administrativa empregado na sua arrecadação. Vamos discordar do citado mestre neste ponto. Em primeiro lugar, porque o conceito de tributo no Brasil é constitucional e, portanto, não é o CTN que vai determinar, pelo menos em caráter definitivo, os seus elementos definidores. Mas, 35 36 37 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6 ed. São Paulo: Malheiros,2000. p.34. CARRAZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário.16. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p.337. SOUSA, Rubens Gomes de. Comentários ao código tributário nacional: parte geral.Em co-autoria com Paulo de Barros Carvalho e Geraldo Ataliba. São Paulo: Revista dos Tribunais,1985. p.31-32. 11 mesmo que a construção do conceito dependesse do recurso àquele Estatuto, não nos parece que a cobrança mediante atividade administrativa vinculada pudesse constituir um seu elemento definidor e, muito menos, ser o principal deles, como quis Rubens Gomes de Souza. E porque o afirmamos? Simplesmente porque essa forma de cobrança não é uma característica definitória do conceito de tributo, mas uma conseqüência (posterius) que advém da categorização de um dado vínculo jurídico como tributo (prius)38. É, com outras palavras, efeito daquela categorização, não a sua causa. Constata-se, primeiro, a presença de um gravame tributário para, só em seguida, cogitar-se da forma de arrecadação a ele relativa. Vale insistir: o legislador do Código Tributário Nacional não comete qualquer injuridicidade ao exigir que a cobrança dos tributos seja realizada por meio de uma atividade administrativa plenamente vinculada. Atende, pelo contrário, a princípios constitucionais muito caros, como a legalidade, a segurança jurídica etc. Mas briga com limites lógicos quando pretende incluir, entre as características definitórias do conceito de tributo, uma conseqüência que depende justamente da configuração daquele conceito. Por essas razões, não parece adequado concluir que as medidas antidumping deixam de ostentar natureza tributária em virtude da discricionariedade que lhes caracteriza a cobrança. Semelhante inferência incorre no equívoco de definir a causa pelo efeito39. O raciocínio deve ser outro: caso sejam tributos (causa), tais medidas deverão ser arrecadadas mediante atividade administrativa plenamente vinculada (efeito). Outrossim, incorrem na mesma inversão de perspectivas aqueles que pretendem afastar a natureza tributária dos direitos antidumping, sob o argumento de que esses direitos não se coadunam com o regime jurídico dos tributos, especialmente com o primado da irretroatividade40. Pode até não ser desejável submetê-los às limitações constitucionais ao poder de tributar, mas essa ponderação de natureza política não é suficiente para descaracterizá-los como tributos. Retome-se o problema da vinculação na cobrança. É lícito afirmar que a grande maioria dos tributos não são exigidos por meio de uma atividade administrativa vinculada. Basta lembrar que, nas exações sujeitas ao mal chamado “lançamento por homologação”, cabe ao próprio contribuinte constituir a norma individual e concreta que documenta o seu dever, e realizar em seguida o pagamento do valor devido41. Fá-lo 38 Conseqüência essa que, aliás, não se faz sentir necessariamente. Basta lembrar que, nos tributos sujeitos ao mal chamado “lançamento por homologação”, o contribuinte pode formalizar o crédito tributário e promover o pagamento do tributo devido, sem que haja a necessidade de qualquer cobrança por parte do Fisco. Tudo pode cingir-se, com efeito, à esfera de inciativa do próprio particular, sem que seja necessária a constituição de um ato administrativo de lançamento (Cf., entre outros, CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 2. ed. São Paulo: Saraiva,1999. p.248-252). 39 Estamos empregando as expressões “causa” e “efeito” em sentido metafórico. Os vínculos de causa e efeito só existem, em rigor, no mundo fenomênico. Vale aqui a advertência de Gregorio Robles Morchon: “ La necesidad causal expresa la conexión entre dos fenómenos que pertenecen al mundo de los acontecimientos o eventos [...] Aunque sea admisible este uso figurado del término “causa”, no lo es la creencia de que en todos los contextos significa lo mismo. ” (MORCHÓN,Gregorio Robles. Teoria del derecho: fundamentos de teoria comunicacional del derecho. Madrid: Civitas, 1998, p.245). 40 Não é possível, como regra geral, exigir direitos antidumping em relação às importações ocorridas antes do ato que os impôs. Devem eles alcançar, tão-somente, os produtos despachados para consumo após aquela imposição. Mas para essa regra há exceções. A primeira delas diz com o período em que forem aplicadas medidas provisórias (previstas no artigo 2 do GATT), desde que haja, é claro, uma determinação final de ocorrência de dano. Nesta hipótese, os valores pagos à guisa de direitos provisórios são convertidos em receita pública. A par da conversão dos direitos provisórios em definitivos, ressalva-se também a possibilidade de se exigir direitos antidumping definitivos sobre “produtos que tenham entrado para consumo até 90 dias antes da data de aplicação das medidas provisórias, sempre que as autoridades concluírem que: a) há antecedentes de dumping, ou que o importador deveria estar consciente de que o exportador pratica dumping e de que este causaria dano; e b) o dano é causado por volumosas importações a preços de dumping em período de tempo relativamente curto, o que prejudicaria seriamente o efeito corretivo dos direitos anti-dumping definitivos aplicáveis no futuro, desde que aos importadores afetados tenha sido dada a oportunidade de se manifestarem sobre a medida”40. (MARQUES, Frederico do Valle Magalhães. “O ‘Dumping’ na Organização Mundial do Comércio e no Direito Brasileiro – Decreto n.1602/95, In: CASELA, Paulo Borba e MERCADANTE, Araminta de Azevedo (coords.) Guerra comercial ou integração mundial pelo comércio?: a OMC e o Brasil,São Paulo, Ltr, 203-326, 1998, p.319. 41 Ressalta-o PAULO DE BARROS CARVALHO: “A experiência da realidade jurídica brasileira é farta em exemplos de normas jurídicas, individuais e concretas, produzidas pelo administrado no campo dos tributos. Ninguém ousaria ignorar que legislações de impostos como o IPI e o ICMS, importantes fontes de receita para a União e para os Estados federados, respectivamente, registram muitos preceitos 12 independentemente de qualquer cobrança da Administração Pública. Tudo se resolve na sua própria esfera de iniciativa, sem que seja necessária a constituição do ato administrativo de lançamento. Somente quando o sujeito passivo da exação deixa de cumprir o dever, é que tem lugar a ação do Fisco, a quem caberá promover o lançamento e impor a penalidade cabível. Portanto, nesses gravames tributários que permitem o “autolançamento”42, a atividade administrativa plenamente vinculada não se faz presente na imensa maioria das vezes.Passados cinco anos do pagamento do tributo devido, opera-se a homologação tácita, extinguindo-se o vínculo fisco/contribuinte, sem o implemento de qualquer ato administrativo direcionado à exigência do valor devido. Não há vinculação, simplesmente porque sequer existe cobrança. O pagamento é feito voluntariamente pelo próprio obrigado, e não porque a Administração assim determinou. Se a atividade vinculada de cobrança pode deixar de ocorrer, não lhe é apropriada a condição de elemento definidor do conceito de tributo. Ainda que pudesse consistir numa nota daquele conceito- o que já vimos não ser possível – jamais poderia compor o conjunto das suas características definitórias. Não fosse assim, e quedaria desrespeitado o princípio lógico “dici de omni dici de nullo” , segundo o qual o que se diz de todos corresponde a que o inverso pode ser dito de nenhum (todo homem é mortal = nenhum homem é imortal)43. Se digo que todos os tributos são cobrados mediante atividade administrativa plenamente vinculada, tenho necessariamente que concluir que nenhum tributo deixa de ser exigido dessa forma. Basta que um só caso desminta a conclusão, para que a tese esgrimida não se sustente. Portanto, se a forma de cobrança fosse uma característica definidora do conceito de tributo (o que não é), seria um traço contingente ou acidental, que se faria sentir apenas em algumas oportunidades, mas já não uma característica definitória, necessariamente presente em todas as exações. Tem-se mais um motivo para que a discricionariedade não seja um óbice à categorização dos direitos antidumping como tributos. 3.2.3 Os motivos pelos quais os direitos antidumping não constituem tributos Até o presente momento, apresentamos argumentos que não afastam a índole tributária dos direitos antidumping. Incumbe-nos agora declinar os motivos pelos quais não lhes atribuímos tal natureza. Foi adotada a premissa de que duas relações jurídicas distintas decorrem da imposição dos direitos antidumping. A primeira delas é de direito potestativo e envolve o Estado e o exportador responsável pela prática danosa à indústria nacional. A segunda é de direito subjetivo e enlaça o Estado e o importador do produto objeto de dumping. Deve-se afastar sem mais a natureza tributária daquele primeiro vínculo, de vez que o conceito de tributo pressupõe a existência de uma prestação pecuniária a ser realizada pelo contribuinte. Como o exportador apenas tolera a imposição das medidas antidumping (nada prestando), não poderia entreter com o ente estatal uma relação jurídico-tributária. É interessante notar que o segmento doutrinário que associa os direitos antidumping ao conceito de tributo termina priorizando a relação Estado/importador, deixando de ter presente o liame envolvendo o exportador do produto com dumping. Opera-se justamente o oposto do que se passa com os partidários da tese que postula a disciplinadores da atividade do sujeito passivo na construção dessas regras. Cabem-lhe individualizar o evento tributário, constituindo-o como fato jurídico, e estruturar, denotativamente, todos os elementos integrantes da relação jurídica do tributo. Em outras palavras, a lei dá competência ao contribuinte para constituir o fato jurídico e a obrigação tributária que dele decorre, pelo fenômeno da causalidade jurídica (Lourival Vilanova)” (Curso de direito tributário, p.427). 42 43 Assim o designa PAULO DE BARROS CARVALHO, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p.224. Cf. NEWTON FREIRE-MAIA, A ciência por dentro, p.39. 13 índole de uma modalidade não-tributária de intervenção no domínio econômico, como será visto oportunamente. Desconsiderando-se a relação de direito potestativo, pode-se passar ao vínculo de direito subjetivo. Teria ele natureza tributária? Por dois motivos entende-se que não, quais sejam: i) as medidas antidumping constituem sanções; e ii) tais medidas não se enquadram em quaisquer das espécies de tributos previstas no direito brasileiro44. Deixemos a fundamentação do primeiro asserto para mais adiante, centrando a atenção na segunda assertiva. Para demonstrá-la, vamos examinar as modalidades de tributos às quais tem recorrido a doutrina para justificar a natureza tributária dos direitos antidumping. 3.2.4 Os direitos antidumping como impostos de importação Como observa Welber Barral45, a categorização dos direitos antidumping como tributos, no Brasil, não se iniciou na doutrina, mas na resolução CPA1227/87, que os qualificou como “imposto de importação adicional”. Mais recentemente, todavia, foi editada a Lei 9019/95, que, segundo alguns, teria “alterado” a natureza jurídica desses direitos. Em verdade, não é com suporte em nenhum dos dois diplomas legislativos que se vai desvendar a natureza jurídica dos direitos antidumping. Para saber se estes últimos constituem, ou não, um adicional do imposto de importação, é de mister examinar a hipótese de incidência constitucional desse imposto, prevista no art. 153, I da CF. Laboram, pois, em equívoco tanto os que se deixaram impressionar com as palavras da resolução CPA 1227, quanto os que atribuem à Lei 9019/95 o mérito de haver corrigido a impropriedade daquele ato administrativo, “modificando”46 a natureza jurídica dos direitos antidumping. Mas qual seria, então, a materialidade que o texto constitucional reservou ao imposto de importação? Esse gravame, incluído no âmbito de competência da União Federal, recai, a teor do que prescreve o já citado art. 153, I, sobre a importação de produto estrangeiro. Entende-se por importado o produto que entra no território nacional para uso comercial ou industrial e consumo, não aquele que se encontra em trânsito, isto é, destinado a outro país47. À primeira vista, parece haver uma coincidência entre os acontecimentos que desencadeiam a obrigação tributária e o dever de pagar os direitos antidumping, já que ambos pressupõem o ingresso do produto no território nacional. Isso levou alguns autores a concluir pela identidade entre os fatos jurídicos que implicam aqueles dois laços jurídicos de conteúdo econômico. Não é bem assim, contudo. Se fossem idênticos os fatos, o dever de pagar os direitos antidumping surgiria com a mera importação. Mas não é isso o que ocorre. Só é 44 Com isso, adotamos, como característica definitória do conceito de tributo, a necessidade de que a instituição do gravame decorra do exercício das competências tributárias estabelecidas pela Constituição. Com efeito, não nos parece possível afirmar a natureza tributária de uma imposição que não possa ser reconduzida a quaisquer das faixas de competência que o texto constitucional cometeu aos entes políticos. Por atribuirmos essa nota definitória ao conceito jurídico-positivo de tributo, é que se tornar oportuno verificar se os direitos antidumping poderiam inserir-se em alguma das modalidades tributárias previstas no Estatuto Fundamental. 45 Op. cit., p.58. 46 47 Adilson Rodrigues Pires observa, neste sentido, que: “Em 30 de março de 1995, a Lei nº9019, em que se converteu a Medida Provisória nº 926, do mesmo ano, corrigiu a impropriedade apontada, ao modificar a natureza jurídica dos direitos antidumping, retirando-lhe o caráter tributário, ao contrário do que prescrevia a legislação anterior, consubstanciada na Resolução CPA nº 1227/87.” (PIRES, Adilson Rodrigues. Práticas abusivas no comércio internacional. Rio de Janeiro:Forense,2001, p.150). Não é diferente a perspectiva de José Roberto Pernomian Rodrigues: “Com a alteração da natureza jurídica dos direitos antidumping operada pela Lei 9019/95 e pelo decreto que a regulamentou, embora não tenha estabelecido nitidamente qual seria a nova natureza (artigo 7º desta lei pode auxiliar nesta tarefa), afastou-se a natureza tributária.” (Op. cit., p. 185). Cf. DERZI,Misabel Abreu Machado. Nota ao livro Direito tributário brasileiro, de Aliomar Baleeiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p.215. 14 possível exigir o valor relativo a tais medidas nas hipóteses de importação em condições de dumping condenável48, cuja determinação pressupõe, como já visto, um procedimento específico. Sem esse plus (a existência do dumping condenável) não se há falar em direitos antidumping, apesar de ser devido o imposto de importação. São dois fatos jurídicos diferentes que surgem com a incidência de duas normas igualmente distintas, a saber: a) importar mercadorias estrangeiras → critérios para identificação do liame jurídico no bojo do qual surge o dever de pagar o imposto de importação; b) importar mercadorias em condições de dumping condenável → critérios para identificação da relação jurídica que tem por objeto o pagamento dos direitos antidumping49. É oportuno lembrar que o tributo é sempre identificado pelo binômio hipótese de incidência/base de cálculo50. As hipóteses de incidência do imposto de importação e dos direitos antidumping coincidem apenas quanto ao verbo do critério material (importar). Distinguem-se, entretanto, no que concerne ao complemento, pois o da primeira (produtos estrangeiros) é menos extenso que o da segunda (produtos estrangeiros em condições de dumping condenável). Apartam-se, além disso, no que atina com a base de cálculo. O imposto de importação recai sobre o valor do produto importado51, ao passo que os direitos antidumping incidem sobre um valor correspondente ou inferior à margem de dumping apurada. Tendo hipótese de incidência e base de cálculo diversas daquelas que individualizam o imposto de importação, os direitos antidumping não se revestem da qualidade de adicional daquele tributo. Para constatá-lo, basta recordar que o adicional consiste numa simples majoração do principal, identificando-se perfeitamente com ele. Atente-se para esse primor de lição de Rubens Gomes de Souza52: Tratar-se-á sempre do mesmo impôsto que lhe serve de base, do qual se cobra, com o nome de ‘adicional’ uma simples majoração. Portanto, é da essência do adicional que êle se identifique perfeitamente com o impôsto principal. A não ser assim, tratar-se-á de um imposto autônomo, cuja natureza jurídica terá de ser pesquisada, para se apurar se o govêrno que o criou tinha competência para fazê-lo. E, para essa pesquisa, o nome que o legislador lhe tenha atribuído – ‘adicional’ ou outro qualquer - será irrelevante (Código Tributário Nacional , art. 4º, n.I). Pode-se dessumir, portanto, que os direitos antidumping não devem ser confundidos com o imposto de importação. No próximo subitem, ver-se-á que esses direitos não são, de igual modo, contribuições de intervenção no domínio econômico. 48 Cf. RÍOS, Gabriela e GARCÍA,Tonatiuh.Diferencias entre impuestos aduaneros y cuotas compensatórias del comercio exterior mexicano, en el ámbito del derecho tributario.Reflexiones sobre la constitucionalidad de las últimas. Boletín mexicano de derecho comparado, ano XXXI,173-193,enero-abril,1998, p.188. 49 Nessas normas gerais e abstratas vamos encontrar, como se pode perceber, hipóteses de incidência e prescritores normativos diferentes, a partir de cujos critérios se constrói, por meio do relato em linguagem competente, fatos jurídicos (antecedentes de normas individuais e concretas) e fatos jurídicos relacionais (conseqüentes de normas individuais e concretas) igualmente distintos. (Cf. Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, passim.) 50 51 52 Cf. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário.13.ed.São Paulo:Saraiva,2000,, p.29. Que não corresponde necessariamente ao preço encetado na compra e venda de que resulta a importação. O que interessa para se determinar a base de cálculo desse imposto é, conforme preceituam o art. VII do GATT e o art. 20,II do CTN, o valor normal do produto importado, ou seja, aquele que seria estabelecido numa venda em condições de livre concorrência (at arm´s lenght). Para um estudo detido sobre o princípio am´s lenght, ver TORRES, Heleno Taveira. Direito tributário internacional: planejamento tributário e operações transnacionais.São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2001, p. 163 e segs. SOUSA, Rubens Gomes de. O imposto territorial urbano, a tributação extrafiscal e o art. 202 da Constituição de 1946. Revista dos tribunais, v. 386,36-47,1967, p.38. 15 3.2.5 Os direitos antidumping como contribuições de intervenção no domínio econômico O propósito deste subitem não é – nem poderia ser – o de analisar mais detidamente as diversas nuances que circundam o instigante tema das contribuições de intervenção no domínio econômico (daqui em diante, “CIDE”). Vamos manter a postura que já adotamos em relação ao imposto de importação, examinando apenas aspectos que poderiam apartar a CIDE dos direitos antidumping53 e também alguns pontos de aproximação entre eles. 3.2.5.1 Destinação ao custeio de uma intervenção estatal na ordem econômica Contribuições interventivas e direitos antidumping apresentam em comum o fato de instrumentalizarem intervenções na economia nacional.São vínculos jurídicos que têm por objeto prestações pecuniárias compulsórias cuja realização está vocacionada a influenciar o processo econômico . Se o tipo de intervenção levada a efeito pelos direitos antidumping amolda-se à forma de intervenção exigida para que seja criado um tributo a título de CIDE, é o que será examinado nos próximos parágrafos. O artigo 149 da CF atrelou a instituição da CIDE a uma finalidade obrigatória: a intervenção no domínio econômico. Para um significativo segmento doutrinário, essa intervenção materializar-se-ia sempre por meio de uma atividade estatal. A CIDE serviria de instrumento para essa atuação interventiva, custeando-a. Assumiria, pois, a condição de um instrumento de custeio “dos serviços e encargos da intervenção no domínio econômico”54. EDUARDO SHUERI55 é incisivo, ao vincular a CIDE a uma atuação estatal sobre a ordem econômica: Já do texto do artigo 149, extrai-se que a intervenção a que se refere o dispositivo é uma atuação do Estado, já que a contribuição é o instrumento daquela. E não se trata de uma atuação qualquer; é uma intervenção, isto é, uma atuação em campo que originariamente não comete ao Estado. RICARDO MARIZ DE OLIVEIRA56 caminha pela mesma trilha: Neste sentido, deve-se ter em mente que o termo ‘contribuição’ liga-se indissociavelmente ao conceito de custeio de alguma utilidade, o que, por conseqüência, deve ser atribuído a quem participa dessa utilidade. [...] Portanto, a União pode instituir uma contribuição de intervenção no domínio econômico, desde que além de todos os demais requisitos acima elencados, faça da sua arrecadação um efetivo instrumento de custeio da sua atividade intervencionista. 53 AGOSTINHO TOFFOLI TAVOLARO não concorda possa a CIDE ser apartada da medida antidumping em questão. São suas as palavras:“No direito constitucional brasileiro os direitos antidumping têm natureza de contribuições de intervenção no domínio econômico, prevista no art.149 da CF” (A natureza jurídica dos direitos antidumping, Cadernos de direito tributário e finanças públicas nº 18, p.249. 54 GRAU,Eros Roberto. IAA- Contribuição de intervenção no Domínio Econômico- Transformação em imposto – Inconstitucionalidade no Regime da EC 1/69 e não recepção pela Constituição de 1988 - Princípio da Legalidade e Bitributação. Revista de direito tributário nº 53,jul./set, 1999, p.154. 55 Algumas considerações sobre a contribuição de intervenção no domínio econômico no sistema constitucional brasileiro. A contribuição ao programa universidade-empresa, In: Contribuições de intervenção no domínio econômico e figuras afins São Paulo: Dialética,2001,p.368. 56 Contribuições de intervenção no domínio econômico – concessionárias, permissionárias e autorizadas de energia elétrica – “aplicação” obrigatória de recursos (Lei 9.991), in:GRECO, Marco Aurélio (coord.). Contribuição de intervenção no domínio econômico e figuras afins. São Paulo: Dialética, 2001, p.379-380. 16 A intervenção a que se refere o art. 149 da Lei Fundamental não se concretizaria, para essa doutrina, com a simples cobrança da CIDE. Seria de império que a instituição do tributo estivesse sempre vinculada à finalidade de custear uma ação interventiva do Estado na ordem econômica. Aceitando-se essa premissa, será forçoso concluir que o direito antidumping/importador não poderia ser criado a título de contribuição de intervenção no domínio econômico, já que o objetivo da instituição desse direito não é o de fornecer recursos a uma atividade de intervenção do Estado na economia. Sua exigência não está atrelada a tal finalidade. Isso implicaria, para a tese em exame, a ausência de um dos requisitos necessários à caracterização da CIDE. Mas há também quem sustente posição diametralmente oposta, isto é, a de que a CIDE somente poderia ser, ela própria, o instrumento de intervenção no processo econômico. É o parecer de GASTÃO ALVES DE TOLEDO: Com efeito, se não vemos possível a intervenção no domínio econômico, sob o manto da atual Constituição e, sim, uma simples participação nesse mesmo domínio, nos termos em que a mesma é admitida pelo art. 173 (sob todas as condicionantes ali estatuídas), não há como presumir-se a possibilidade de que tal contribuição sirva de coadjuvante a uma ação interventiva. Ela ( a contribuição) é a própria forma de intervir, isto é, intervém-se por seu intermédio”57 [destaques originais]. Não nos parece que a solução possa estar nessas duas posições extremadas. Inexiste, no texto constitucional, espaço para as interpretações restritivas por elas sugeridas. O artigo 149 da CF refere-se simplesmente à intervenção na ordem econômica, exigindo apenas que a CIDE seja um meio para alcançar esse desiderato. Como a exigência de qualquer tributo interfere, direta ou indiretamente, no econômico, nada obsta a que a União Federal utilize a própria arrecadação da CIDE para o propósito de interferir nos destinos da economia58, desde que essa interferência encontre acústica no texto constitucional, mais especificamente nos comandos relativos à ordem econômica. Reforça-o a circunstância de que a Constituição atual não mais alude ao custeio de serviços e encargos, como o fazia a Carta de 1967. Por outro lado, não tem consistência a restrição proposta por GASTÃO ALVES DE TOLEDO. Nada obsta, por exemplo, a que o Estado arrecade a CIDE para, com apoio no artigo 174 da CF, incentivar ou fiscalizar um determinado setor da economia. Na ilustração de GERALDO ATALIBA59, “ pode a lei [...] exigir aos plantadores e industrializadores de certos produtos, aos empresários de atividades de extração, contribuições em benefício de entidades legalmente encarregadas de assegurar preços, regular mercados, fomentar a produção, fiscalizar qualidade de produtos etc”. Portanto, é lícito ao Estado alcançar seus propósitos também mediante o investimento do produto da arrecadação da CIDE em despesas públicas relacionadas com as finalidades da ação interventiva. Quer nos parecer, pois, que a “ intervenção no domínio econômico” a que se refere o artigo 149 comporta as duas situações acima referidas, vale dizer, tanto admite seja a contribuição instituída para fazer frente a despesas públicas, quanto autoriza a sua utilização, dela própria, como instrumento de intervenção na ordem econômica. 57 O direito constitucional econômico e sua eficácia, p.274. 58 Assim pensam, entre outros: MARCO AURÉLIO GRECO, Contribuições: Uma figura ‘sui generis’,São Paulo: Dialética,2000, p.236.; DANIEL VITOR BELLAN, Contribuições de intervenção no domínio econômico,Revista de direito tributário nº78,15-34,mar.2002, p.23; Paulo Roberto Lyrio Pimenta, As contribuições de intervenção no domínio econômico em face da Emenda Constitucional nº 33/2001, Revista de direito tributário nº 81, 74-79,jun.,2002,p.74-75. 59 Hipótese de incidência tributária, p.180. 17 Seja como for, fica o registro de que os adeptos da tese que postula a vinculação da CIDE ao custeio de uma atividade interventiva contam com mais um argumento para não confundir o direito antidumping/ importador com um tributo criado a esse título. 3.2.5.2 A ausência de lei complementar O já citado artigo 149 da CF determinou a aplicação do artigo 146, III do mesmo Estatuto Fundamental às contribuições ali previstas. A remissão feita a este último dispositivo rende ensejo a uma acirrada controvérsia doutrinária. Alguns autores entendem que as contribuições não poderiam ser criadas antes que uma lei complementar lhes desenhasse os contornos, instituindo normas gerais sobre os aspectos a que alude o artigo 146. Outros, por outro lado, postulam a possibilidade de a lei ordinária criar esses tributos independentemente da prévia edição de lei complementar. Filiamo-nos à corrente de pensamento que circunscreve o papel das normas gerais de direito tributário à realização de duas finalidades específicas: dispor sobre limitações constitucionais ao poder de tributar e regular possíveis conflitos de competência entre as entidades tributantes. Os numerosos aspectos mencionados no inciso III do artigo 146 não suscitam conflito de competência a respeito das contribuições sociais, mercê da competência exclusiva da União para instituí-las. Por esse motivo, “descabe falar em uma pretensa ‘norma geral’ necessária e imprescindível à instituição daquelas contribuições”60. Mesmo não sendo a lei complementar o instrumento normativo necessário à instituição da CIDE, sê-lo-ia para criação dos direitos antidumping, se estes últimos pudessem ser instituídos a seu título. O asserto reclama algumas considerações. O constituinte, ao contrário do que fez em relação aos demais tributos, não predeterminou as materialidades sobre as quais poderão recair as contribuições previstas no artigo 149 da CF. Com isso, reservou ao legislador ordinário maior liberdade para escolher os acontecimentos tributáveis. Mas duas observações devem ser feitas. A primeira, não se criou uma quarta espécie de tributo. Tributos só o são os impostos (não vinculados a um agir do Estado), as taxas (diretamente vinculadas a uma atuação Estatal) e as contribuições de melhoria (indiretamente vinculadas a uma atividade do Estado). Em uma das duas primeiras classes haverão de se inserir aquelas contribuições61. A segunda, cabe ao legislador da União manter-se dentro dos limites de sua própria competência. Assim, se fizer opção por acontecimentos que configuram hipóteses de incidência de impostos (por serem fatos quaisquer, alheios a qualquer atuação estatal), haverá de recorrer às materialidades que lhe foram reservadas pelo artigo 153 da CF. Ser-lhe-á lícito ainda lançar mão da sua competência residual. Mas neste caso submeter-se-á às limitações impostas pelo artigo 154, I, entre as quais figura a exigência de lei complementar. Vale conferir, a respeito, o escólio de ROQUE ANTONIO CARRAZA62: Se tiverem hipótese de incidência de algum imposto da chamada “competência residual” da União (art. 154, I, da CF), as “contribuições de intervenção no domínio econômico” deverão ser instituídas por lei 60 TÔRRES,Heleno Taveira. Contribuições – Constitucionalidade (Mesa de debates H do XV Congresso Brasileiro de Direito Tributário), Revista de direito tributário n. 85, 155-164, [s/d], p.158-159. 61 Tais contribuições não podem, todavia, “nem mesmo em tese, revestir a natureza de contribuição de melhoria, já que, pelas finalidades que devem alcançar, não se coadunam com a regra-matriz deste tributo (valorização imobiliária causada por obra pública). Além disso, o sujeito passivo possível da contribuição de melhoria é o proprietário do imóvel que experimentou valorização em decorrência de obra pública realizada nas imediações. Ora, isto não tem nada a ver nem com seguridade social, nem com intervenção no domínio econômico, nem, muito menos, com interesses de categorias profissionais ou econômicas” (ROQUE ANTONIO CARRAZA, Curso de direito constitucional tributário,p. 495-496). 62 Op. cit., p. 503-504. 18 complementar, não poderão ter hipótese de incidência ou base de cálculo iguais às de qualquer dos impostos elencados nos arts. 153,155 e 156 da CF e precisarão observar a regra da não cumulatividade.Se tiverem hipótese de incidência de algum imposto da chamada “competência explícita” da União ( art.153 da CF) – o que também é perfeitamente possível –, deverão ser criadas por meio de lei ordinária, e, é claro, não precisarão obedecer à mesma regra da não cumulatividade (grifo do autor). Como os direitos antidumping não se encaixariam em quaisquer das materialidades previstas no citado artigo 153 da CF, para que constituíssem contribuições de intervenção no domínio econômico, teriam de ser instituídos necessariamente por lei complementar, o que não acontece. É lícito concluir, portanto, que as medidas antidumping não poderiam ter sido criadas a título de contribuição de intervenção no domínio econômico, por lhes faltar um requisito de ordem formal: a instituição por lei complementar. A ausência desse requisito compromete a existência jurídica do tributo, numa palavra, sua validade. 3.2.6. Os direitos antidumping como taxas de polícia Já se cogitou em atribuir aos direitos antidumping a natureza de taxa decorrente do exercício do poder de polícia63. A verdade, no entanto, é que tais medidas são inteiramente incompatíveis com a modalidade tributária em questão. Para demonstrá-lo, é necessário tecer algumas rápidas palavras sobre as taxas, enfocando especialmente essa particular espécie, a taxa de polícia. As taxas consistem em tributos vinculados a uma atuação do Estado imediatamente referida ao contribuinte. Seu princípio informador é o da retributividade. O contribuinte retribui, com o pagamento de um valor pecuniário, a atuação estatal a ele dirigida. A cobrança dessa exação está, pois, atrelada a uma atividade do Estado. E não é qualquer atividade. No nosso sistema tributário, só são capazes de tornar exigível tal gravame a prestação de serviço público específico e divisível (destacável em unidades de utilização), e o exercício do poder de polícia, isto é, da atividade conducente à imposição de limitações à liberdade e à propriedade dos indivíduos para a preservação do bem comum. Para distinguir uma taxa – e, de resto, qualquer tributo- não basta lançar os olhos sobre o fato previsto na hipótese de incidência: é imprescindível verificar a base de cálculo. Se esta não mensurar uma atividade estatal, a espécie tributária – se de tributo se tratar- será outra, um imposto. No que concerne especificamente à taxa de polícia, a base imponível deverá “referir-se exclusivamente às diligências que levaram à prática do ato de polícia”64. Dimensionará, para dizê-lo com outras palavras, o custo da atividade estatal. Com essas considerações, já é possível notar que os direitos antidumping não se incluem na classe relativa ao tributo de que se está cogitando. Em primeiro lugar, porque esses direitos não são cobrados para custear o exercício de um poder de polícia, mas como resposta à importação em condições de prática desleal de comércio, vale dizer, à importação em situação de dumping condenável. 63 “Neste sentido, admitindo-se que o dumping não seja um ilícito, mas haja necessidade de coibi-lo, e que a atividade administrativa com esse objetivo seja vinculada, poder-se-ia considerar o valor cobrado a título de direitos antidumping como uma taxa decorrente do exercício do poder de polícia, consistente na fiscalização pela Administração das atividades dos administrados.” (José Roberto Pernomian, O dumping como forma de expressão do abuso do poder econômico: caracterização e consequencias, p.204). 64 CARRAZA, op. cit., p.464. 19 Sobremais, é da essência dessas medidas refletirem a margem de dumping apurada, não podendo assim dimensionar o custo de nenhuma atividade estatal. O quanto a ser pago não dependerá dos atos realizados para levar a efeito o exercício de um poder de polícia, mas da diferença entre o preço de importação e o valor normal do produto. Se fossem taxas de polícia, teriam de mensurar as diligências empregadas no procedimento de investigação do dumping condenável, o que não acontece, como visto. 3.2.7 Um tributo da competência residual da União Se os direitos antidumping não se encaixam em nenhuma das modalidades tributárias afetas de forma expressa à competência da União Federal, haveriam, caso fossem tributos, de ser oriundos do exercício da competência residual dessa pessoa jurídica de direito público interno. Acontece que a competência impositiva prevista pelo artigo 154, I da CF exige – já averbamos - a utilização de um veículo normativo específico: a lei complementar. Os direitos antidumping não são veiculados por esse instrumento introdutor de normas, o que nos autoriza a concluir que tais medidas, sobre não se enquadrarem em nenhum dos tributos da “competência explícita” da União, deixam de se inserir, de igual modo, entre os impostos da competência residual dessa pessoa política. 3.3 Os direitos antidumping como modalidade não tributária de intervenção no domínio econômico Tércio Sampaio Ferraz et al. após criticarem a tipificação dos direitos antidumping como tributo e como sanção, atribuem-lhes a natureza de uma modalidade não tributária de intervenção no domínio econômico, observando que esses direitos “constituem conteúdo de normas de direito econômico internacional, que impõe ao produto exportado/importado condições de acesso ao mercado do país importador, que podem ser o pagamento dos direitos ou a assunção de obrigações por parte dos exportadores de eliminação do dumping ou do subsídio, tudo isso de modo que a comercialização seja condizente com o interesse global da economia”65. Welber Barral66, por sua vez, encampou a tese em questão, apresentando novos argumentos. Para o referido autor, a imposição dos direitos antidumping encontra embasamento constitucional no art. 174 da CF, mais especificamente na possibilidade, conferida por esse dispositivo, de o Estado exercer a função de incentivo econômico. Semelhante função corresponderia, ainda segundo Barral, ao que Eros Roberto Grau chamou de “intervenção por indução”. Vale ressaltar, neste passo, com apoio no escólio do professor Eros Grau, que existem três formas de intervenção no domínio econômico: a) participação ou absorção; b) direção; e c) indução. No primeiro caso, o Estado intervém no domínio econômico como agente econômico, assumindo total (absorção) ou parcialmente ( participação) “ o controle dos meios de produção e/ou troca em determinado setor da atividade econômica em sentido estrito...”67. Na segunda hipótese, o ente estatal atua sobre a atividade econômica, impondo comportamentos (direção), ou apenas estimulando a adoção de determinadas condutas (indução). 65 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio et. al.Direitos Anti-“dumping” e Compensatórios: Sua Natureza Jurídica e Conseqüências de tal caracterização. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, nº 96, 87-109, out.94, p.95. 66 Op. cit., p.65. 67 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 3ª ed. São Paulo: Melheiros, 1997, p.156. 20 A indução - que nos interessa mais de perto - visa a convencer os agentes econômicos a assumir certa postura, sem determiná-la. Pressupõe a utilização de mecanismos ou instrumentos que estimulam a adoção da conduta desejada. Quando se quer, por exemplo, que uma indústria se instale numa região específica, pode-se induzila a tanto mediante a concessão de benefícios fiscais. O Estado não obriga a realização do comportamento almejado, mas a estimula valendo-se de normas promocionais. A intervenção por indução, como observa Eros Grau, não se dá sempre por meio de instrumentos positivos. O ente estatal pode intervir no domínio econômico também mediante o uso de instrumentos negativos. O recurso às medidas antidumping enquadrar-se-ia, ao que parece, nesta última hipótese. Vejamos o que nos informa a respeito Welber Barral: Estas razões, bem como as anteriormente apresentadas, encaminham este trabalho a defender a última alternativa teórica apresentada na doutrina. Ou seja, que a natureza jurídica dos direitos antidumping é a de modalidade não tributária de intervenção no domínio econômico. 68 (grifo nosso). E mais adiante, observa: A função de incentivo, no contexto constitucional, deve ser compreendida, segundo a lição de Eros Roberto Grau, como ‘intervenção por indução’.Esta intervenção estatal, buscando incentivar a economia nacional, poderá adotar a forma de norma promocional ou de norma condicional. A medida em análise [os direitos antidumping] se subsume na segunda hipótese, consagrando condição para que concorrentes estrangeiros tenham acesso ao mercado nacional, a fim de gerar vantagens concorrenciais para os produtores domésticos69. Não nos parece que os direitos antidumping sejam instrumentos de intervenção por indução, como quer o autor citado. É que, como será visto mais adiante, o dumping condenável consiste numa prática ilícita, e a intervenção por indução não convive com a ilicitude. Com efeito, a norma interventiva não obriga ou proíbe qualquer comportamento. Sua inobservância não gera, pois, um ilícito. No próximo capítulo, verse-á que o dumping que causa dano à indústria nacional é proibido e que quem o pratica comete um ato ilícito, submetendo-se, por via de conseqüência, à imposição de medidas sancionatórias. Agregue-se, outrossim, que construção teórica em perspectiva, ao atribuir aos direitos antidumping a natureza de uma modalidade não tributária de intervenção no domínio econômico, acaba incorrendo numa definição pela negativa. Expliquemos este asserto. Deve-se ter presente que o Estado pode recorrer a mecanismos variados para realizar a intervenção na ordem econômica. Pode valer-se, inclusive, das diversas modalidades tributárias. A par do exemplo já mencionado - o dos benefícios fiscais -, poder-se-ia acrescentar, mais uma vez com Eros Roberto Grau, que há “ norma de intervenção por indução quando o Estado, v.g., onera por imposto elevado o exercício de determinado comportamento, tal como no caso de importação de certos bens”70. 68 Op. cit., p.63 69 Op. cit., p.65 70 A ordem econômica na Constituição de 1988, p.158. 21 Assim, quem sustenta, por exemplo, que essas medidas constituem imposto de importação não tem motivo para negar-lhes a qualidade de instrumento de intervenção no domínio econômico. A recíproca é verdadeira: não será lícito afastar, a priori, a índole tributária pelo tão-só fato de restar caracterizada uma modalidade de intervenção na atividade econômica. E o motivo é singelo: são categorias - a de tributo e a de norma interventiva- que não se excluem. A tese em causa postula, entretanto, que as medidas antidumping são instrumentos de intervenção sem natureza tributária (“modalidade não tributária de intervenção no domínio econômico”). Faz saber, com isso, que esses direitos não são tributos. Mas termina – e este ponto é crucial - não elucidando a sua natureza. Incorre, como já antecipamos, no vício lógico da definição pela negativa. Deve-se explicar “o que o termo significa e não o que ele não significa. Isso é importante porque, para a grande maioria dos termos, há uma quantidade excessiva de coisas que não significam para que qualquer definição negativa tenha a possibilidade de abrangê-la toda”71. Temos, pois, que a tese sob exame não explica, com o devido respeito, a natureza das medidas antidumping. Diz o que elas não são, mas deixa de esclarecer, afinal, o que são. Parece-nos, finalmente, que os partidários dessa posição doutrinária acabam pondo acento na relação Estado/exportador. É o contrário da doutrina que postula a natureza tributária dos direitos antidumping, sendo conveniente lembrar que esta última prioriza a relação Estado/importador. Vale repetir este trecho da lição de WELBER BARRAL: “A medida em análise [os direitos antidumping] se subsume na segunda hipótese, consagrando condição para que concorrentes estrangeiros tenham acesso ao mercado nacional, a fim de gerar vantagens concorrenciais para os produtores domésticos” [sublinhamos]. Qual a doutrina que sustenta a índole tributária, a tese em perspectiva termina, com o devido acatamento, por refletir uma visão fragmentária do problema, não se atendo à existência das duas relações jurídicas a que já se fez referência.. 3.4 Um instituto sui generis Foi Guillermo Cabanellas72 quem atribuiu inicialmente aos direitos antidumping uma natureza sui generis. Para o jurista argentino, as medidas em questão “Constituyen un mecanismo sui generis de protección que no puede ser suplido adecuadamente, en virtud de las razones que se han expuesto en esta obra (Cap.I), ni por la legislación antitrust ni por los derechos de importación usuales.” Não podemos concordar com a atribuição de uma natureza jurídica sui generis aos direitos antidumping, porque acreditamos que esses direitos podem ser reconduzidos à classe das sanções. E só se faz possível – vale ressaltar - atribuir a determinado instituto um gênero próprio, se não houver a possibilidade de inseri-lo numa categoria teórica já existente73. Por esse motivo, não nos parece adequado categorizar as medidas antidumping como um instituto jurídico sui generis. 4. OS DIREITOS ANTIDUMPING COMO MEDIDAS SANCIONATÓRIAS 4.1 Considerações iniciais É chegado o momento de firmar nossa posição sobre a natureza jurídica dos direitos antidumping. Antes, porém, seja-nos permitido fazer uma necessária digressão pelo campo dos conceitos. Não temos evidentemente o objetivo de realizar uma 71 COPI, Irving M. Introdução à lógica. 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978, p.133. 72 CABANELLAS, Guilhermo. El dumping: legislación argentina y derecho comparado. Buenos Aires: Heliasta, 1981, p.83. 73 Cf. Welber Barral, op. cit., p.63. 22 investigação minuciosa nesta vasta e complexa seara. Nossas pretensões são bem mais modestas. Interessa-nos, tão-somente, introduzir algumas considerações sobre a diferença entre características definitórias e secundárias e sobre a classificação dos conceitos em lógico-jurídicos e jurídico-positivos. Ao concluir essa rápida digressão, passaremos a dispor do instrumental teórico necessário para o enfrentamento do tema com o qual estamos nos ocupando. 4.2 As características definitórias de um conceito Jacob Bazarian74 define conceito como sendo “uma imagem subjetiva do mundo objetivo, mas uma imagem mental e não-sensível como na percepção. Enquanto a imagem sensível é concreta e particular, o conceito é abstrato e geral. O conceito reflete os aspectos essenciais, universais do objeto, abstraindo-se os aspectos secundários.” O citado autor distingue, como se pode notar, as características que determinam um conceito daquelas que são simplesmente acidentais ou secundárias. Esta é, outrossim, a perspectiva de Lourival Vilanova75, para quem o “conteúdo do conceito é justamente a identidade que o pensamento destaca na multiplicidade do objeto, é a unidade e a permanência que coexistem no objeto, ao lado da pluralidade e da variação.” Quando se afirma que X é Y, está-se asseverando que X reúne todas as características definitórias76 do conceito Y, significa dizer, atende ao critério de uso77 da palavra aqui representada por Y, inserindo-se em seu campo denotativo. Inversamente, se se nega esteja X incluído no âmbito de denotação da palavra de classe78 Y, está-se, implicitamente, afirmando que X não ostenta qualquer um daqueles atributos definidores. Em uma ou outra hipótese, a afirmação será verdadeira se estiver calcada nas caraterísticas definitórias do conceito em questão. Não o será, todavia, se quem a fizer incorrer no equívoco de pretender determinar o conceito por atributos secundários ou acidentais do objeto a que ele se refere. Estas últimas características são inteiramente irrelevantes, podendo estar, ou não, presentes no objeto ou fenômeno ao qual se atribuí o nome geral ou palavra de classe. Por isso mesmo é que se “le llamam características concomitantes o acidentales respecto de ese nombre”79. No que concerne especificamente aos conceitos jurídicos, há duas formas bastante distintas de se perscrutar suas características definitórias. Não se pode compreendê-las, entretanto, sem passar antes pela classificação dos conceitos em jurídico-positivos e lógico-jurídicos. 74 BAZARIAN, Jacob. O problema da verdade. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]., p. 115. 75 VILANOVA, Lourival. Sobre o conceito de direito. Recife: Imprensa oficial,1947, p.17. 76 Fique registrado que essas características não são definitórias por si mesmas. São-no em relação com certo nome, dependendo, pois, da nossa linguagem. Em rigor, as notas definitórias “ no son las que hacen que algo sea una cosa y no otra, sino las que, de hallarse presentes en un objeto, nos mueven a llamarlo con cierto nombre según la clasificación que hemos escogido o aceptado”. (GUIBOURG, Ricardo A.; GHILIANI, Alejandro M. e GUARINONI, Ricardo V. Introducción al conocimiento científico. Buenos Aires: Eudeba, 1985,p.47). 77 “Existen ciertas razones, más o menos uniformes, por las que incluimos un objeto en una clase o lo excluimos de ella. Estas razones forman el criterio de uso de la palabra de clase, y tal criterio es la piedra de toque del concepto: tenemos el concepto de mosca cuando estamos dispuestos a usar cierto criterio para llamar mosca (o mouche, o fly) a los objetos que lo satisfagan, y para no llamar con ese vocablo a las cosas que no se ajusten a sus requisitos. El conjunto de estos requisitos o razones, es decir, el criterio de uso de una palabra de classe ( determinante y demonstrativo del concepto correspondiente) se llama designación de esa palabra”. (Ricardo A. Guibourg et. al.,op. cit., p.42). 78 Distinguem-se os nomes próprios ou individuais dos nomes gerais ou palavras de classe. Aqueles respeitam a objetos individuais; estes se referem a um número potencialmente infinito de indivíduos. No primeiro caso, a escolha do nome resulta de mera preferência; no segundo, fixam-se conceitos, vale dizer, elegem-se determinados atributos que os entes devem possuir para pertencer àquela classe representada pelo nome em questão. 79 Ricardo A. Guibourg et al. Introducción al conocimiento científico, p.46. 23 4.3 Conceitos jurídico-positivos e lógico-jurídicos Juan Manoel Terán separa os conceitos jurídicos em duas classes: i) a dos lógicojurídicos, e ii) a dos jurídico-positivos. Os primeiros ostentam as mesmas feições onde quer que haja direito. Os segundos, diferentemente, têm seus contornos definidos por cada sistema jurídico-positivo. Como exemplos destes últimos, poder-se-iam citar os conceitos de tributo, de compra e venda, de furto etc. Já como exemplos daqueles primeiros, apresentar-se-iam os conceitos de relação jurídica, de sujeito de direito, de direito subjetivo etc. Vale conferir as palavras do próprio Terán80: En conclusión: uno es el plano de los conceptos jurídicos-positivos e otro el plano de la nociones o fundamentos lógico-jurídicas. Los conceptos jurídico-positivos tienen un ángulo equivalente al de la positividad del derecho concreto que los ha comprendido e implantado, en tanto que los fundamentos lógicos pretenden tener una validez común y universal para todo sistema jurídico y, por lo tanto, para toda conceptuación jurídica. A despeito da sua indiscutível importância, a distinção entre conceitos lógicojurídicos e jurídico-positivos nem sempre tem sido observada. Não são incomuns as lições que tratam destes últimos conceitos (os jurídico-positivos) sem ter presente o sistema normativo em que estão inseridos. Demonstra-o a ocorrência de afirmações do tipo: “a imunidade tributária alcança exclusivamente os impostos”, “a decadência jamais se interrompe”, etc. Autores da mais alta suposição já demonstraram que essas assertivas são feitas à revelia do sistema positivo 81. Por outro lado, surpreende-se, em algumas situações, o tratamento de conceitos lógico-jurídicos como se fossem jurídico-positivos, um de cujos exemplos vamos encontrar justamente na temática dos direitos antidumping. Far-se-á a demonstração desse asserto mais adiante. Por ora, cumpre insistir na distinção entre conceitos jurídicopositivos e lógico-jurídicos, enfocando o modo de construção das características definitórias de ambos. 4.4 As características definitórias dos conceitos lógico-jurídicos Para a formulação de um conceito jurídico-positivo é necessário, antes de mais nada, lançar os olhos sobre o sistema normativo em cujos limites terá ele validade. Se se pretender chegar, por exemplo, ao conceito de empresa no direito brasileiro, será necessário estudar as normas jurídicas que disciplinam esse instituto. E que normas? As normas encartadas no ordenamento jurídico brasileiro, não interessando as regras do sistema americano, espanhol etc. O jurista estará, pois, sempre jungido à experiência de um sistema normativo específico quando pretender formular um conceito jurídicopositivo. 80 81 TERÁN, Juan Manuel. Filosofia del derecho. 14ª ed. México: Porrúa,1998, p.82. As idéias do jurista mexicano são reforçadas por Geraldo Ataliba80:“ O conceito de h.i – como o de relação, sanção, preceito e pessoa- é universal, no sentido de que não decorre da observação de um sistema particular, nem se compromete com nenhum instituto jurídico localizado no tempo e no espaço (cf. Juan Manoel Terán, Filosofia del derecho, Ed. Porrúa, México, 1952,pp.79 e ss.). É aplicável assim ao direito vigente como ao revogado ou constituendo. É válido aqui, como alhures, onde haja direito, porque conceito lógico-jurídico” (Hipótese de incidência tributária, p.5960). Paulo de Barros Carvalho demonstrou o equívoco da afirmação consoante a qual a imunidade não alcança os impostos, indicando, na Constituição de 1988, os preceitos que infirmam esse suposto truísmo (Curso de direito tributário, p.128-130). O mesmo autor chamou atenção para o fato de que o Código Tributário Nacional estabelecera, no item II do art. 173, uma hipótese de interrupção do prazo de decadência, contradizendo a decantada afirmação de que o lapso decadencial não se interrompe (Ibidem, p.314-315). O autor citado demonstrou, pois, o equívoco dessas assertivas que, ao lado de outras tantas, não se baseiam na experiência do sistema jurídico brasileiro, confundindo conceitos jurídico-positivos com conceitos lógico-jurídicos. 24 O mesmo não pode ser dito em relação aos conceitos lógico-jurídicos. Por terem a pretensão de ser universais, tais conceitos não dependem de uma investigação empírica deste ou daquele sistema jurídico-positivo. São conceitos a priori e, portanto, atemporais 82 e a-espaciais. Mais uma vez, recorre-se às lições de Juan Manuel Terán : Por otra parte, los conceptos jurídico-positivos son calificados como nociones a posteriori; es decir se obtienen una vez que se tiene la experiencia del derecho positivo, de cuya comprensión se trata; en tanto que los otros conceptos, los lógico-jurídicos, son calificados como conceptos a priori; es decir, con validez constante y permanente, independiente de las variaciones del derecho positivo. Ora, se os conceitos lógico-jurídicos são independentes da experiência concreta deste ou daquele sistema normativo, não podem ter suas características definidoras aferidas com base em elementos jurídico-positivos. Seus atributos definitórios devem ser universais, é dizer, presentes ali onde houve direito. Trata-se de uma conclusão evidente, que dispensa maiores considerações. Pois bem, o conceito de sanção é lógico-jurídico. Logo, não se pode recolher seus traços definitórios em elementos contingentes, que dependam da opção política de cada sistema positivo. Essa constatação tem passado despercebida por alguns autores que se ocupam com o estudo dos direitos antidumping. Examinaremos, no próximo item, alguns argumentos que confirmam essa afirmação. Em seguida, apresentaremos o nosso entendimento sobre o conceito de sanção e, finalmente, analisaremos se os direitos antidumping podem atender ao critério de uso que adotamos para palavra de classe “sanção”. 4.5 Os argumentos contrários à natureza sancionatória dos direitos antidumping A principal objeção oposta à natureza sancionatória dos direitos antidumping repousa na discricionariedade que caracteriza a sua aplicação. É sempre este o primeiro argumento: se as medidas antidumping fossem sanções, teriam de ser necessariamente aplicadas83. A obrigatoriedade da imposição é, pois, compreendida como uma nota definidora do conceito de sanção. Os que defendem essa tese não se apercebem de que o modo de aplicar a penalidade consiste num elemento jurídico-positivo, alheio, portanto, às características definitórias do conceito lógico-jurídico de sanção. Nada obsta, com efeito, a que um dado sistema positivo determine a imposição obrigatória da penalidade para alguns fatos ilícitos e não a exija para outros. Trata-se de uma opção legislativa perfeitamente compreensível, pois o interesse na aplicação da medida sancionatória cede passo, por vezes, ao resguardo de interesses maiores. Se a forma de imposição da penalidade – discricionária ou obrigatória - é assunto afeto à política legislativa de cada sistema jurídico-positivo, não pode constituir-se evidentemente num elemento definidor de um conceito a priori, como o de sanção. 82 83 Op. cit., p. 83. Tércio Sampaio Ferraz et al. : “... ora, se o dumping ou o subsídio forem considerados atos ilícitos, o Estado terá a obrigação - não apenas a faculdade – de aplicar as penalidades correspondentes.É evidente que ao ato ilícito não pode corresponder a aplicação de uma pena facultativa...” (Op. cit., p.94). Welber Barral: “A duas, as medidas antidumping não caracterizam sanção, justamente porque só são aplicadas a juízo discricionário do Estado. Exclui-se, assim, a presença de um dos elementos essenciais do ato sancionatório, que é a obrigação do Estado em aplicá-lo...” (Op. cit., p.58). Adilson Rodrigues Pires: “Além disso, aplicação de direitos é facultativa, como prescreve o acordo, enquanto o caráter sancionatório atribuiria ao Estado a obrigatoriedade de aplicação da sanção toda vez que se manifestasse o ato ilícito.” (Op. cit., p.148). Agostinho Toffoli Tavolaro: “Refutando esta teoria, mostram eles que a mesma encontra óbice na discricionariedade da aplicação da multa, que pode deixar de ser aplicada no caso de dumping, sendo evidente que ao ato ilícito não pode corresponder uma sanção facultativa.” ( Op. cit., p.246). 25 Equivocam-se, portanto, aqueles que pretendem estabelecer uma vinculação necessária entre a ocorrência de um fato ilícito qualquer e a imposição da respectiva penalidade, como se fora algo que não dependesse de uma opção política. A demonstração ad rem do que ora se afirma pode ser colhida numa comparação com o direito penal. É nesta seara que surge a figura do perdão judicial, autorizando o juiz a deixar de aplicar, no que concerne a determinados crimes, a sanção abstratamente prevista. O recurso a esse instituto jurídico “pressupõe sempre a verificação do fato criminoso em todos os seus elementos essenciais. Perdoa-se a um culpado, não a um inocente”84. A melhor doutrina acentua o caráter discricionário do perdão judicial. Vejamos dois posicionamentos neste sentido. Eugenio Raúl Zafaroni e José Henrique Pierangeli85: “[o perdão judicial] é a faculdade que tem o juiz de avaliar político-criminalmente a aplicação de uma causa pessoal de exclusão ou de extinção da punibilidade, nos casos em que a lei prefere deixálas ao critério do juiz, de concreto.” (Esclarecemos nos colchetes – o destaque é original). Ney Moura Teles86: “ Permite a norma que o juiz, conforme as circunstâncias, deixe de aplicar a pena. É certo que deverá levar em conta condições pessoais particulares do agente, sua situação pessoal, dificuldades que atravessava, para, apesar de condená-lo, isentá-lo da pena, aplicando-lhe o perdão judicial.” Fosse a imposição obrigatória da penalidade uma característica essencial do conceito de sanção, e deveria estar presente em todas as medidas sancionatórias. Vê-se, ao contrário, que o nosso sistema jurídico consagra, para a mais eloqüente das sanções, uma forma de apreciação discricionária da conveniência e oportunidade de sua imposição. Seria lícito afirmar que as penas abstratamente previstas para crimes abrangidos pelo perdão judicial deixariam de ser sanções pelo tão-só fato de poderem ser afastadas discricionariamente pelo Estado-Juiz? Pelas razões já expostas, quer nos parecer que não. Teriam, entretanto, de responder afirmativamente a essa indagação, para manter a coerência do próprio pensamento, aqueles que não hesitaram em rechaçar a natureza sancionatória das medidas antidumping pela discricionariedade que marca a sua imposição. Restaria ausente, para esses autores, uma suposta característica essencial do conceito de sanção: a obrigatória imposição da penalidade. O equívoco dessa doutrina, realçado pelo exemplo incisivo do perdão judicial, radica, insista-se, no tratamento de um conceito lógico-jurídico, como se fora jurídicopositivo. Se a definição de sanção deve ostentar foros de universalidade, não pode depender de um elemento contingente. Deve antes calcar-se em características definitórias que se façam notar onde quer que haja direito. Essa constatação presta-se a profligar outros argumentos igualmente descompromissados com o caráter lógico-jurídico do conceito de sanção. Não se sustenta, assim, a objeção segundo a qual os direitos antidumping, para serem sanções, deveriam ser cobrados em montante “proporcional à gravidade do dano causado à economia do país”87, e não apenas circunscrito à margem de dumping apurada. Não prevalece, de igual modo, o argumento que procura afastar a índole sancionatória desses 84 85 86 87 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Comentários ao código penal. 4ªed. São Paulo: Saraiva,1998, p.339. ZAFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p.754. TELES, Ney Moura. Direito penal: parte geral - II. São Paulo: De Direito,1996 , p. 296-297. Adilson Rodrigues Pires, op. cit., p.148. 26 direitos, mercê da possibilidade de aplicá-los retroativamente. Semelhantes objeções não poderiam prosperar, pois são alheias à universalidade do conceito de sanção. Retornemos, contudo, à decantada facultatividade. Nada impediria que o sistema jurídico brasileiro exigisse – e teria de ser uma exigência constitucional - que toda e qualquer sanção fosse obrigatoriamente aplicada. Muito bem, seria possível afirmar que, nesta situação hipotética, a obrigatoriedade da imposição consistiria num elemento definidor do conceito de sanção? Se a resposta fosse positiva, o conceito em tela deixaria de ser lógico-jurídico, pois estaria dependendo da experiência de cada sistema positivo. Mas não é isso o que ocorre. Ter-se-ia, na situação aventada, apenas uma conseqüência ou efeito, a ser observado todas as vezes que restasse caracterizada a presença de uma medida sancionatória. Calham aqui as mesmas considerações que fizemos no tópico referente ao conceito de tributo. Vimos de ver que os principais argumentos contrários à natureza sancionatória das medidas antidumping não se ajustam ao conceito lógico-jurídico de sanção. Cabe-nos manifestar agora a nossa compreensão acerca desse conceito. 4.6 O conceito lógico-jurídico de sanção Hans Kelsen88 enfatizou a circunstância de que a ilicitude de um fato não é determinada por um critério transcendente ao direito positivo. Com efeito, um comportamento não é ilícito simplesmente porque o reputamos contrário aos valores, ou por sua “qualidade imanente”; é-o, segundo o referido autor, quando se encontra ligado, por determinada ordem jurídica, a uma sanção. Vale conferir suas palavras: A relação entre ilícito e conseqüência do ilícito não consiste, assim – como o pressupõe a jurisprudência tradicional-, em à acção ou omissão, pelo facto de representar um ilícito ou delito, ser ligado um ato de coacção como conseqüência do ilícito, mas em uma acção ou omissão ser um ilícito ou delito por lhe ser ligado um ato de coacção como sua conseqüência. Não é uma qualidade imanente qualquer e também não é qualquer relação com uma norma metajurídica, natural ou divina, isto é qualquer ligação com um mundo transcendente ao direito positivo, que faz com que uma determinada conduta humana tenha de valer como ilícito ou delito – mas única e exclusivamente o fato de ela ser tornada, pela ordem jurídica positiva, pressuposto de um ato de coerção, isto é, uma sanção. Kelsen procurou um critério para definição de ilícito não ético ou sociológico, mas estritamente jurídico. “Para una teoría pura del derecho de orientación iuspositivista no es admisible la suposición de que hay conductas que son ilícitas por su propria naturaleza, esto es, que su licitud pueda determinarse mediante el análisis de sus características intrísecas. Un ato sólo es ilícito cuando su prohibición resulta de las normas del derecho positivo”89. É interessante notar, todavia, que o critério a que chegou o mestre de Viena faz a noção de ilícito depender exclusivamente do conceito de sanção, na exata medida em que o pressuposto para a caracterização daquele passaria a ser a existência desta. Dever-se-ia, dizendo-o com outras palavras, centrar a atenção inicialmente na conseqüência imposta pelo sistema jurídico à realização condicional de um determinado comportamento, para, só em seguida, surpreender a licitude ou ilicitude deste último90. 88 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. Trad. João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado, 1984., p.167. 89 ZULETA, Hugo R., Ilícito. In: VALDÉS, Ernesto Garzón e LAPORTA, Francisco J. (Coords.). Enciclopedia iberoamericana de filosofía, Tomo XI: “El derecho y la justicia”, Madrid: Trotta, p. 333-342, 1996, p. 334. 90 A perspectiva de Kelsen é coerente com seus postulados. Vale lembrar que, para ele, não existem sanções porque há deveres que podem ser descumpridos, mas, ao contrário, há deveres jurídicos exclusivamente porque há sanções. Da sanção se chega ao ilícito, do ilícito se chega ao dever jurídico e do dever jurídico se chega ao direito subjetivo. O conceito de sanção é, pois, central na obra deste autor. O ilícito aparece simplesmente como o seu pressuposto. O dever jurídico surge como sendo o comportamento contrário à conduta ilícita, 27 A maioria dos autores segue o caminho oposto, compreendendo a sanção como a conseqüência que advém da prática de um ato ilícito91. Assim, tem-se por sanção a resposta de um sistema jurídico ao cometimento de um ato tido, por essa mesma ordem jurídica, como contrário a direito. Por esse prisma, a presença do ilícito passa a ser o pressuposto para a caracterização da sanção, e não o contrário. Haveria, em verdade, como observou Paulo José da Costa Júnior, uma relação entre antecedente (ilícito) e conseqüente (sanção) lógicos92. Esta última perspectiva parece mais adequada, até porque, na maioria das vezes, só se conhecerá a natureza de uma relação jurídica perscrutando-se a índole do fato que a desencadeou. Demonstrou-o Paulo de Barros Carvalho93, referindo-se à distinção entre a relação jurídica do tributo e os vínculos sancionatórios decorrentes do descumprimento de deveres tributários: Foi oportuna a lembrança, uma vez que os acontecimentos ilícitos vêm sempre atrelados a uma providência sancionatória e, fixando o caráter ilícito do evento, separa-se, com nitidez, a relação jurídica do tributo da relação jurídica atinente às penalidades exigidas pelo descumprimento de deveres tributários. Como são idênticos os vínculos, isoladamente observados, é pela associação ao fato que lhe deu origem que vamos conhecer a índole da relação. Vê-se que a sanção surge sempre como conseqüência da prática de um ilícito. Para a identificação da primeira, é, portanto, fundamental saber da caracterização do segundo. Só assim será possível estremar, com segurança, o vínculo sancionatório de outros laços jurídicos. Em primeira aproximação, pois, pode-se dizer que a sanção consiste numa providência desfavorável que se imputa à realização de um ato ilícito. Essa definição não estará completa, todavia, sem o esclarecimento acerca do critério de uso da palavra “ ilícito” (e de seus equivalentes: “delito”, “infração” etc.). Já se viu que a ilicitude não é determinada por uma característica imanente ao ato, nem decorre tampouco de uma avaliação puramente subjetiva sobre o seu conteúdo. Mas o que a caracteriza, afinal? Na definição sintética e precisa de Hugo R. Zuleta94, “los actos ilícitos son, para el positivismo jurídico, aqueles que están prohibidos por el derecho positivo.” Como observa esse autor, constituem comportamentos proibidos tanto a realização de uma conduta juridicamente proibida, quanto a omissão de uma conduta juridicamente obrigatória. É no mesmo sentido a lição de Gabriel Garcia Maynez95, para quem são ilícitas “a) la omissión de los actos ordenados, e b) la ejecución de los prohibidos”. que se deve seguir para evitar a sanção. E o direito subjetivo não passa de um mero reflexo do dever juridicamente estabelecido. 91 Segundo Gabriel García Maynez, a sanção “puede ser definida como consecuencia jurídica que el incumplimiento de un deber produce en relación com el obligado” (Introducción al estudio del derecho.51ª ed. México: Porrúa, 2000, p.295). É no mesmo sentido o escólio de Gregorio Robles Morchon. Esse autor aceita a existência de sanções positivas e negativas, observando que estas últimas consistem na “respuesta del Derecho a la transgresión de las normas deónticas o normas impositivas de deberes.” (Op. cit, p.360). Essas e outras definições invertem o itinerário sugerido por Kelsen:: ao invés de se partir da sanção para chegar ao ilícito, segue-se o caminho oposto, iniciando-se pela infração para, só em seguida, encontrar-se a penalidade dela decorrente. 92 COSTA JR. Paulo José e DENARI Zelmo. Infrações tributárias e delitos fiscais. São Paulo:Saraiva, 1995, p. 3. Os autores citados reportam-se também a uma antecedência cronológica do ilícito. Com essa última observação não podemos concordar. O que existe é uma sucessividade de ordem lógica, não cronológica, “do mesmo teor daquela que nos compele a examinar primeiro a prestação, para depois cogitarmos do descumprimento do dever, antecedente da regra sancionatória, ou a que nos manda verificar a premissa maior e a menor antes da conclusão, no raciocínio inferencial-dedutivo”. (Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, p.171). 93 Curso de direito tributário, p.26. 94 95 Ilícito, Enciclopedia iberoamericana de filosofía, Tomo XI: “El derecho y la justicia”, p.334. Introducción al estudio del dercho, p.221. 28 Portanto, para saber se os direitos antidumping constituem, ou não, medidas sancionatórias, cumpre antes analisar a licitude do dumping condenável ou, dizendo-o em termos mais específicos, verificar se essa prática é permitida ou proibida pelo sistema jurídico brasileiro. É o que se fará no próximo tópico. 4.7 O dumping condenável e o código binário lícito/ilícito O art. VI do GATT reza que deve ser condenado (“is to be condemned”)96 o dumping que gera dano ou ameaça de dano à indústria nacional ou, ainda, o retardamento da implementação de uma determinada atividade produtiva. A formulação literal do dispositivo consiste num indício nada desprezível da ilicitude dessa espécie de dumping. Assim também pensa José Roberto Pernomian Rodrigues, para quem “O fato do dumping ser ‘condenável’ – para usar de empréstimo a expressão de Aquiles Varela- o torna inequivocamente uma prática ilícita”97. Ao determinar a condenação da prática do dumping que causa prejuízo à indústria nacional, o artigo VI do GATT tem-na, pelo menos numa primeira análise, por contrária a direito. Para constatá-lo basta observar que uma das acepções do termo “condenar” corresponde justamente a: “ declarar ilegal um ato, procedimento etc. (a lei condena o peculato)”98. O termo “condenado” apresenta, de outra parte, a seguinte conotação: “considerado incorreto, reprovável ou não conforme com um uso, uma regra[...]”99. O elemento gramatical é, portanto, bastante expressivo. Não é por acaso que boa parte dos autores, assim nacionais que estrangeiros, ressaltam expressamente a proibição do dumping condenável ou, o que é o mesmo, a ilicitude desta prática100. E talvez seja também por essa razão que alguns autores contrários à natureza sancionatória dos direitos antidumping terminam por vezes incorrendo em tropeços que contradizem seu entendimento sobre a matéria101. Mas a leitura que estamos empreendendo não se deve apoiar apenas na análise da palavra “condenado” empregada pelo aludido dispositivo. É sempre recomendável acrescer a perspectiva sistemática à investigação filológica102, cotejando o sentido literal dos vocábulos com a orientação do próprio sistema. E aqui vem oportuna a separação que a doutrina e a jurisprudência da OMC fazem, baseadas em normas do próprio GATT103, entre os pressupostos das medidas de defesa comercial. Referimo-nos à 96 “The contracting parties recognize that dumping, by wich products or own country are introduced into the commerce of another country at less than the normal value of the products, is to be condemned if it causes....” 97 O dumping como forma de expressão do abuso do poder econômico:caracterização e conseqüências, p.144. 98 99 HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Verbete condenar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.790. Dicionário Houaiss da língua portuguesa.Verbete condenado, p.790. 100 Assim pensa ROGER P. ALFORD: “This prohibition is predicated on the assumption that dumping is not based on superior efficiency but is an attempt to injure or destroy competition” (Why a private right of action against dumping would violate GATT, New York University Law Review,n.3, p.697). É a perspectiva de FLAVIO FLOREAL GONZÁLES: “Recordemos que el dumping no está prohibido per se. Para imponer aranceles antidumping es necesario, además, que se demuestre la existencia de dano a una industria específica del país importador” (Dumping e subsidios en el comercio internacional.Buenos Aires: AD-HOC,2001 p. 58). É, entre nós, a posição de LUIZ OLAVO BAPTISTA: “Portanto, na abordagem da matéria a seguir, gostaríamos de destacar alguns conceitos que devem ser recordados no curso da exposição.Primeiro, o fato de que o dumping configura ilícito na esfera da legislação internacional [...]” (op. cit Duumping e anti-dumping no Brasil. In: AMARAL JUNIOR.Alberto do. (coord.), p. 31). Caminha pela mesma trilha FREDERICO DO VALLE MAGALHÃES MARQUES: “O dumping é, portanto, um ilícito jurídico-econômico [...] ” (op. cit., p.299). Esses e outros autores que vêem no dumping condenável uma prática ilícita (pressuposto), conferem aos direitos antidumping – não poderia ser de outra forma – a inequívoca natureza de sanção (conseqüência). 101 TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ et al., mesmo negando a natureza sancionatória dos direitos antidumping, afirmam: “A punição para a prática de dumping está prevista no item 2º, do art. VI do GATT: ‘com o fim de neutralizar o dumping, a parte contratante poderá cobrar um direito anti-dumping [...]”[destacamos] (op. cit.p.87). WELBER BARRAL também nega o caráter de sanção e, a despeito disso, assevera: “Mesmo porque a existência de outras formas de sanção, além das medidas antidumping, parece violar o princípio da exclusividade normativa na regulamentação do dumping.” [destacamos] ( op. cit., p.51). 102 Cf.CARLOS MAXIMILIANO, Hermenêutica e aplicação do direito. 19.ed.Rio de Janeiro: Forense,2001, p.221. 103 Cf.WELBER BARRAL, op. cit., nota de rodapé 24, p. 140. Exemplos dessas normas vamos encontrar nas que estabelecem a exigência de compensação aos Estados atingidos, e nas que fixam a proibição de seletividade (não se pode impor a medida a alguns países e não a 29 conhecida distinção entre “concorrência desleal” ou “injusta” e “concorrência leal” ou “justa”. Aqueles que negam o caráter ilícito do dumping condenável ou simplesmente não se preocuparam com esse aspecto, não deixam de qualificá-lo como uma conduta “desleal” ou “injusta”. Isso é praticamente pacífico. Trata-se, afirma a doutrina em uma só voz, da distinção basilar entre dumping e pressupostos para a imposição de medidas de salvaguarda, a partir da qual se justificam as diferenças de regime jurídico apontadas no capítulo IV.À guisa de ilustração, confiram-se estes paralelos feitos por duas das mais respeitadas vozes do direito econômico internacional: WELBER BARRAL: Aqui reside a grande distinção conceitual entre estas medidas [as de salvaguarda] e as medidas compensatórias e antidumping. Estas últimas são justificadas como sendo uma reação legalizada à concorrência “injusta” de produtores estrangeiros. Injusta porque realizada com discriminação de preços (dumping) ou com auxílio estatal (subsídios). A seu turno, as medidas de salvaguarda são oponíveis às importações “justas”, mas que provocam um desajustamento no mercado produtor nacional104 (esclarecemos em colchetes). ARAMINTA MERCADANTE: As salvaguardas constituem restrições lícitas à liberalização do comércio de mercadorias, dentro do quadro de concorrência leal, enquanto o dumping condenável é considerado concorrência desleal e permite a aplicação de um direito antidumping[...]105 (grifo nosso). Ora, a lealdade e a justiça, que são aqui utilizadas como fundamento para a distinção entre institutos jurídicos, somente poderiam ser compreendidas como licitude. Com efeito, leal/desleal ou justo/injusto são dicotomias estranhas aos domínios do jurídico. O direito só conhece o código binário lícito/ilícito. É por ele que opera, qualificando os comportamentos interpessoais. São elucidativas as palavras de MARCELO NEVES: A positivação do Direito na sociedade moderna implica o controle do código-diferença “lícito/ilícito” exclusivamente pelo sistema jurídico, que adquire dessa maneira seu fechamento operativo106 (destaque original) . Como se vê, o universo das relações jurídicas tem seu próprio código-diferença, que não se confunde com códigos de outros domínios.Essa característica, própria de um sistema autopoiético107, é também reconhecida por GUNTHER TEUBNER: outros), que existem quanto à salvaguarda, mas já não no que atina com os direitos antidumping. 104 Op. cit., p. 140. 105 Mercosul: salvaguarda, dumping e subsídios. In: BAPTISTA, Luiz Olavo; MERCADANTE, Araminta de Azevedo; CASELA, Paulo Borba. Mercosul: das negociações à implantação.São Paulo: Ltr, 1994,p.207. 106 Constitucionalização simbólica.São Paulo: Acadêmica,1994, p. 119-120. 107 Os sistema autopoiéticos possuem abertura cognitiva e autonomia operacional, isto é, comunicam-se com outros sistemas, mas assimilam essas informações de acordo com os seus códigos particulares. Reproduzem-se a si próprios, não se deixando modificar pela influência direta de outro domínio. MARCELO NEVES define-os nestes termos: “Etimologicamente, a palavra deriva do grego autós (‘por si próprio’) e poiesis (‘criação’, ‘produção’). Significa inicialmente que o respectivo sistema é construído pelos próprios componentes que ele constrói” (op. cit., p.113). Reportando-se ao fechamento operativo e à abertura cognitiva do sistema jurídico, observa o autor: “Se o fato de dispor exclusivamente do código-diferença ‘licito/ilícito’ conduz ao fechamento operacional, a escolha entre lícito e ilícito é condicionada pelo meio ambiente” (op. cit., p.120). PAULO DE BARROS CARVALHO, partindo das lições de NEVES, realça a importância da noção de fechamento operativo: “De tudo quanto se expôs, cabe ressaltar que a doutrina da autopoiesis, que chega timidamente ao meio jurídico nacional, com superar a visão dos sistemas abertos, em constante intercâmbio direto, vem trazer enorme reforço à compreensão sistemática do direito positivo, chamando a atenção para a sua autonomia operacional e mostrando que o único modo de apreender-lhe as mensagens prescritivas é interpretando-o juridicamente, isto é, a partir de suas estruturas, categorias, processos e formas. Não há como aceitar uma interpretação econômica do direito ou um interpretação histórica do direito, mecanismos espúrios que ainda contaminam nossa cultura jurídica” (Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 104). 30 Logo que a comunicação jurídica sobre a distinção básica legal/ilegal comece a diferenciar-se da comunicação social geral, aquela torna-se invitavelmente auto-referencial e é compelida a tematizar-se a si mesma no quadro de categorias intrinsecamente jurídicas108. Lealdade/deslealdade e justiça/injustiça são valores. Como tais, pertencem ao sistema da moral, sobre cujos domínios recai o código-diferença valor/desvalor. Ao serem transpostos para o direito, tais valores devem ajustar-se ao código binário lícito/ilícito. Assim é que a concorrência “desleal” ou “injusta”, referida pela doutrina, só poderia ser lida juridicamente como concorrência ilícita. Não se está postulando, vale ressaltar, uma correspondência necessária entre o “leal” ou “justo” e o “lícito”; ou entre o “desleal” ou “injusto” e o “ilícito”. Evidentemente não é isto o que estamos afirmando. Como sistemas diferentes que são, o direito e a moral possuem suas próprias linguagens, suas próprias respostas para um dado problema. Quantas vezes não se diz que algo, lícito para o direito, traduz-se numa verdadeira injustiça? Pode-se perfeitamente afirmá-lo, pois as discussões e as conclusões operam-se em planos distintos. Não fosse assim, e o direito e a moral seriam sistemas alopoiéticos, que se ajustariam à influência direta de outros domínios. Mas se uma assertiva qualquer é feita num determinado sistema de linguagem, há de ser necessariamente compreendida de acordo com esse mesmo sistema lingüístico. Logo, quando se emprega os termos “desleal” ou “injusto” no discurso jurídico, a pretexto inclusive de distinguir conceitos inerentes a tal universo de linguagem, passa a ser indispensável ajustá-los a este último discurso. Por isso é que nos parece apropriado concluir que “a deslealdade” e a “injustiça” do dumping condenável converte-se em ilicitude ao adentrar o universo jurídico. Portanto, quer pela expressa condenação do artigo VI do GATT, quer pela reconhecida e ressaltada diferença entre os pressupostos das medidas de defesa comercial, há de se reputar ilícita a prática do dumping condenável. 5 DUMPING E ANTIDUMPING NA ESTRUTURA LÓGICA DA REGRA DE DIREITO Para facilitar a exposição, vimos empregando indistintamente a expressão “dumping condenável” para designar tanto a ação do exportador, quanto o ato do importador do produto favorecido por dumping. Fizemo-lo por acreditar que os argumentos apresentados aplicam-se às duas situações. Mas é necessário insistir – e é essa a nossa conclusão - que há dois fatos ilícitos diferentes, engendrando, por força da causalidade normativa, vínculos sancionatórios igualmente díspares. Não uma só sanção, o que poderia justificar a espécie externada por Luiz Olavo Batista109. Trata-se de algo mais complexo do que tem sugerido a doutrina, ora apegada ao vínculo Estado/importador, ora ao liame Estado/exportador. Pelo nosso ângulo de visão, entrevemos dois vínculos jurídicos distintos, mas aproximados pelo caráter sancionatório. Move-nos agora o desafio de situar essas duas relações jurídicas na estrutura lógica da regra de direito. Iniciemos por dizer que toda e qualquer norma reveste a forma de um juízo. Não, porém, de qualquer juízo, mas de um juízo hipotético-condicional. Constitui-se, revestida dessa estrutura, na “unidade mínima e irredutível de manifestação 108 O direito como sistema autopoiético.Trad. José Engrácia Antunes. Lisboa:Calouste Gulbenkian,1989, p. 70. 109 Mesmo reconhecendo a natureza sancionatória dos direitos antidumping, o autor repensa por um instante a sua opção, ao constatar que a penalidade seria imposta a alguém (o importador) que não o verdadeiro responsável pela infração (o exportador). Confiram-se estes excertos: “Examinando-se a questão da nominação dos sujeitos ativo e passivo da cobrança do direito Anti-dumping, tudo parece levar ao entendimento de que o responsável pelo pagamento do direito Anti-dumping , é o praticante do dumping, isto é, o exportador estrangeiro [...]. Todavia, a dificuldade prática de se efetuar uma cobrança e a conseqüente execução em país estrangeiro levou a que, na prática, sempre esses direitos devam ser pagos pelos importadores [...] Isso pode ser levado à conta de argumento contra a posição de Varanda e outros, pois a punição pelo delito alcançaria alguém que não é o delinqüente (a não ser que se considere o importador cúmplice da prática ilícita) ” (op. cit.,. p. 56-57). 31 do deôntico”110. Afirma-o PAULO DE BARROS CARVALHO, apresentando a arquitetura lógica da norma jurídica: “Em simbolismo lógico, teríamos D[f (S’R S’’)], se interpreta assim: deve–ser que, dado o fato F, então se instale a relação jurídica R, entre os sujeitos S’ e S’’ ”111. Toda regra de direito expressa-se nesse juízo hipotético-condicional. Não há normas categóricas, ordens diretas de comportamento. Poder-se-ia cogitar de comandos dessa natureza em civilizações rudimentares, nas quais quem, por qualquer razão (pela força física, v.g.), detinha o poder de ordenar, fá-lo-ia diretamente, vocalizando ordens diretas e concretas a seus subordinados. Não as poderia haver, porém, no direito como o concebemos nos dias de hoje. Os sistemas jurídicos modernos visam a disciplinar comportamentos interpessoais, conduzindo-os na direção de certos valores. Projetam-se para o futuro e, por via de conseqüência, valem-se de normas abstratas, capazes de fornecer os critérios necessários para que os cidadãos saibam, no futuro (insista-se), que conduta devem adotar diante desta ou daquela situação . A conduta é informada pelo conseqüente; a situação, pelo antecedente normativo112. Um exemplo pode tornar mais claro o que ora se afirma. Tome-se a seguinte oração: “O importador é obrigado a pagar o valor correspondente aos direitos antidumping às autoridades aduaneiras”. Semelhante enunciado não revela um sentido deôntico completo. É bem verdade que já enuncia a conduta devida (pagar a importância em questão). Mas não informa em que circunstância será possível exigi-la. A resposta advirá de uma nova assertiva: “Sempre que se realizar uma importação em condições de dumping condenável”. Os conteúdos dos dois enunciados estão unidos por um vínculo de implicação. O implemento do segundo (conseqüente) dependerá da realização do primeiro (primeiro). Os sentidos de ambos unem-se e completam-se, formando um juízo hipotético-condicional, numa palavra, uma norma jurídica. Note-se, por outro ângulo, que se trata de uma forma de controlar o próprio poder, pois quem o detém só o pode exercitar estritamente de acordo com os pressupostos que fazem as vezes das hipóteses ou antecedentes normativos. Antes de exigir o comportamento prescrito, o detentor do poder deve verificar se o seu pressuposto (da conduta prescrita) se faz presente. Caso assim não proceda, estará incorrendo num arbítrio que se poderá inserir na hipótese de incidência de uma norma sancionadora. Acolhendo semelhante estrutura-lógica, podemos passar a descrever as normas jurídicas que veiculam os direitos antidumping importador e exportador. A primeira norma tem por hipótese de incidência a descrição da prática do dumping condenável em sentido estrito (exportação abaixo do preço do valor normal do produto, gerando prejuízo à indústria do país importador); sua proposição-tese prescreve os critérios para a identificação de um vínculo de direito potestativo em que comparece, no pólo ativo da relação, o Estado brasileiro e, na condição de sujeito passivo, o exportador do produto favorecido por dumping, a quem caberá submeter-se à imposição da medida antidumping. Já a segunda norma tem por antecedente normativo a importação de produto em condições de dumping condenável; por conseqüente, a previsão de um vínculo de direito subjetivo, com a presença do Estado no pólo ativo da relação e com o importador ocupando o lugar sintático de sujeito passivo, de quem se exige a prestação de um valor pecuniário. 110 Cf. PAULO DE BARROS CARVALHO, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, passim.. 111 Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p.18. 112 É certo que alguns autores apontam o que para eles seriam regras categóricas. Para o referencial teórico adotado neste trabalho, os exemplos que costumam ser mencionados não traduzem normas jurídicas, mas simples enunciados prescritivos, que devem se unir a outras sentenças para formar uma mensagem deôntica com sentido completo. 32