1 ORIENTAÇÕES DA ASSOCIAÇÃO MUNDIAL DE PSIQUIATRIA (WPA) SOBRE A PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DA SAÚDE MENTAL EM FILHOS DE PESSOAS COM TRANSTORNOS MENTAIS GRAVES1 Ian Brockington1, Prabha Chandra2, Howard Dubowitz3, David Jones4, Suaad Moussa5, Juliet Nakku6, Isabel Quadros Ferre7 1 Lower Brockington Farm, Bredenbury, Bromyard, Herefordshire, HR7 4TE, UK; 2 National Institute of Mental Health and Neurological Sciences, Bangalore, India; 3 Division of Child Protection and Center for Families, University of Maryland School of Medicine, Baltimore, MD 21201, USA; 4Department of Psychiatry, University of Oxford at Warneford Hospital, Oxford, OX3 7JX, UK; 5Faculty of Medicine, Cairo University, Egypt; 6Makerere University, Kampala, Uganda; 7Universidad del Valle, Bogotá, Colombia 1 Tradução do original em inglês pelo Prof. Dr. Miguel R. Jorge, Professor Associado de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo e Secretário de Seções da Associação Mundial de Psiquiatria, e pela Dra. Isabel A. Bordin, Médica Psiquiatra da Infância e da Adolescência da Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo. 2 Estas orientações detalham as necessidades das crianças e as qualidades dos cuidados parentais que atendem a estas necessidades. Transtornos mentais da mãe podem prejudicar o feto durante a gravidez através da ação de drogas, prescritas ou de abuso. Depois do nascimento, as crianças podem sofrer desvantagem social associada com doença mental grave e (dependendo do transtorno, sua gravidade e persistência) de cuidados parentais comprometidos. Podem resultar disto distúrbios psicológicos na infância e maus-tratos da criança. Estas orientações consideram formas de prevenir, minimizar e remediar estes efeitos. Nossas recomendações incluem: educação dos psiquiatras e profissionais relacionados sobre os efeitos de doença mental parental nas crianças; revisão do treinamento psiquiátrico para aumentar a percepção tanto de pacientes como de cuidadores e para incorporar avaliação e intervenção relevantes em seu tratamento e reabilitação; o uso ideal de tratamento farmacológico durante a gravidez; planejamento pré-natal quando mulheres com doença mental grave engravidam; desenvolvimento de serviços especializados para mulheres grávidas e puérperas, com avaliação de sua eficácia; padrões de boa prática para o manejo de maus-tratos da criança na presença de doença mental; a importância do trabalho em equipe multidisciplinar na ajuda a famílias com pais doentes ou crianças maltratadas; o desenvolvimento de serviços de saúde mental para crianças e adolescentes em todo o mundo. Palavras chave: cuidados parentais, doença mental grave, relação mãe-bebê, abuso de substâncias, transtornos mentais na infância, maus-tratos da criança, serviços de saúde mental para crianças e adolescentes. 3 A Convenção Sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas (1) afirmou que a criança, para um desenvolvimento completo e harmonioso de sua personalidade, deve crescer em ambiente familiar em uma atmosfera de felicidade, amor e compreensão. As nações devem tomar medidas apropriadas para proteger a criança de todas as formas de violência física ou mental, maus-tratos ou exploração, enquanto sob os cuidados dos pais ou de outras pessoas encarregadas de seus cuidados. Esta Convenção foi adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em novembro de 1989 e ratificada por 192 nações. Não é somente por causa deste pronunciamento oficial, mas também porque a aspiração da medicina é prevenir doença, que a questão da saúde mental das crianças de pais doentes mentais é importante: uma estratégia preventiva promissora é trabalhar com grupos de alto risco, tais como estas crianças vulneráveis. A maioria destas crianças nasceu e é criada em nações de baixa renda, carentes de recursos e também, em alguns casos, de conhecimentos essenciais. Há uma relação paradoxal entre riqueza e taxas de natalidade: nações na Europa, América do Norte e em outros lugares com sistemas de saúde avançados e fortes contribuições científicas, têm menos de 10 milhões de nascimentos/ano. Nós estamos preocupados não somente em melhorar as práticas clínicas nestas nações como também e especialmente encontrar soluções para aqueles países nos quais os outros 125 milhões de bebês nascem. Assim, nós procuramos recomendar serviços de ponta para aqueles que podem pagar por eles e intervenções criativas para nações menos prósperas. Cuidados parentais e as necessidades das crianças As necessidades das crianças, que os cuidados parentais devem atender, podem ser listadas como a seguir: Cuidados básicos (abrigo, nutrição, higiene, vestimenta e cuidados médicos). Segurança (proteção de perigos, incluindo de pessoas não confiáveis). Calor emocional, de forma que a criança se sinta valorizada e segura incondicionalmente. Isto envolverá reasseguramento, elogios e cuidado atencioso, afetivo e amoroso. 4 Encorajamento do aprendizado. Isto requer respostas rápidas e adequadas ao nível de linguagem e perguntas da criança, atividades lúdicas, apoio à educação e promoção de oportunidades sociais. Este encorajamento é ajudado pela compreensão do mundo da criança, seu temperamento, capacidades e dificuldades e pode requerer habilidades especiais como, por exemplo, em manejar deficiências. Orientação e fixação de limites consistentes para comportamento culturalmente aceitável, objetivando prover a criança de consideração pelos outros, disciplina e valores morais internos. Isto é alcançado por supervisão e monitoramento (protegendo a criança de modelos inadequados), além de treinamento e recompensa por bom comportamento. Ações inaceitáveis são desencorajadas de forma consistente, fornecendo um modelo para o controle da raiva e para a resolução de conflitos. Uma base familiar estável para engajamento com o mundo externo. Embora haja muita variação, as necessidades da criança evoluem em fases desde o nascimento até a adolescência, começando com o apego aos cuidadores primários no primeiro ano de vida. A partir da segurança assim fornecida, a criança gradualmente alcança autonomia crescente e começa a desenvolver um senso de si mesma, a reconhecer e controlar estados emocionais e a descobrir os limites de seu poder e identidade pessoal. Durante os anos pré-escolares, uma importante tarefa é a integração no grupo de mesma idade. Mais próximo dos 10 anos, a criança começa a estabelecer preferências pessoais, a assumir responsabilidades e a desenvolver noções de certo e errado. A adolescência é marcada pelo desenvolvimento psicossexual e por uma gradual evolução em direção à idade adulta. O termo “cuidados parentais” abrange as atividades adultas que atendem as necessidades da criança e promove o desenvolvimento desta para que se torne um adulto bem sucedido. O termo “ prover cuidado” é às vezes preferível para incluir pais adotivos e tutores, e outros - tais como avós – que têm um papel substancial no cuidado da criança. Os cuidados parentais podem ser prejudicados por muitos fatores além da doença mental, incluindo pobreza, eventos adversos e violência familiar ou rompimento de laços familiares. A vizinhança pode ser violenta e desprovida ou, em contraste, pode oferecer fortes redes de ajuda. Há influências culturais e religiosas tais 5 como atitudes em relação à privacidade e colaboração familiar, responsabilidade social, autoridade e etnia. Violência, guerra e perseguição em escala nacional criam as circunstâncias mais desfavoráveis para os cuidados com a criança. Fatores de risco durante a gravidez Tratamento e profilaxia dos transtornos mentais em mulheres grávidas A maioria das pacientes com psicoses crônicas e muitas com doença mental recorrente recebe drogas profiláticas ou terapêuticas, e muitas mulheres engravidam quando as estão tomando. Embora seja geralmente aconselhável evitar medicação na gravidez, os riscos de suspendê-la freqüentemente superam os riscos para o feto. A gravidez usualmente não é detectável antes de 30 a 40 dias de gestação; assim, bebês concebidos por mulheres que estão regularmente tomando medicamentos são expostos a riscos teratogênicos. No caso da maioria das drogas psicotrópicas, este risco é controverso e pequeno. Mas o valproato (possivelmente também a carbamazepina) pode causar defeitos no tubo neural e deficiências no aprendizado; este risco é reduzido mas não eliminado pelo ácido fólico. O tratamento eletroconvulsivo pode provocar parto prematuro, prevenível por uma droga tocolítica. Toxicidade neonatal e/ou dependência tem sido relatada em alguns bebês expostos ao lítio, antipsicóticos, antidepressivos e benzodiazepínicos. Os riscos para o bebê que está sendo amamentado têm sido exagerados (2). Abuso de substâncias Nós nos concentramos no etanol, narcóticos e cocaína, que têm sido os melhor investigados. Bebês expostos enfrentam muitos fatores adversos: seus pais freqüentemente têm transtornos mentais (tais como depressão e transtornos paranóides), freqüentemente abusam de outras drogas, sofrem de problemas sociais múltiplos e vivem na pobreza; muitos não procuram cuidados pré-natais. Os bebês podem ser afetados por má nutrição materna e infecções, tais como hepatite, HIV ou doenças venéreas. A qualidade do cuidado, tanto quanto os efeitos das drogas, são um forte preditor do desfecho clínico. 6 Todas estas três drogas estão associadas a um risco aumentado de gestação mais curta e de bebês de baixo peso. Além disto, alguns bebês expostos são pequenos para a idade gestacional, o que indica insuficiência placentária e não somente interrupção precoce da vida intra-uterina. Isto, sem considerar exposição a drogas, pode resultar em disfunção neurológica e possivelmente atrasos de linguagem e transtornos emocionais (3). Selecionando alguns pontos importantes, o etanol ingerido em quantidades excessivas pode ser teratogênico, causando um aumento geral de anormalidades congênitas. Pode haver microcefalia e lesão cerebral permanente; a síndrome alcoólica fetal é a principal causa de retardo mental. Uma complicação da dependência de narcóticos que merece atenção é a síndrome de abstinência, que não é evitada pela manutenção com metadona. Uma complicação específica do abuso de cocaína é a ruptura placentária. Os efeitos a longo prazo tanto de opiáceos quanto de cocaína têm sido bastante estudados, mas sem alcançar um consenso sobre déficits cognitivos ou problemas comportamentais, quando controlados por privação do contato social (4). Outras influências danosas durante a gravidez Alega-se que ansiedade subclínica, depressão ou estresse durante a gravidez podem ter efeitos duradouros sobre a criança. Estes incluem complicações da gravidez, prematuridade, baixo peso ao nascer ou retardo no crescimento intrauterino, sofrimento fetal ou neonatal e atraso no desenvolvimento, mas não há consenso sobre estes efeitos. Talvez a alegação mais apoiada seja a de que a ansiedade da metade do primeiro trimestre de gestação afete a saúde mental da criança na metade da infância, mas tais investigações são afetadas por muitos fatores confundidores. Somente estudos de coorte rigorosamente desenhados podem trazer evidências para estas alegações. Violência doméstica durante a gravidez carrega o risco de lesão ou morte fetal. Ela também pode afetar gravemente as atitudes maternas e a moral das mães. Muitas gestações não são planejadas, mas a maioria delas ocorre meramente fora de hora e são plenamente aceitas. Uma minoria permanece indesejada. O número destas gestações indesejadas é muito reduzido em nações que permitem interromper a gravidez; mesmo assim, algumas são levadas a termo. A gravidez indesejada é um 7 problema significativo em muitos países de baixa renda (5) e está associada a um maior risco de negação da gravidez, abuso fetal, infanticídio, depressão, transtornos na relação mãe-bebê e transtornos emocionais nas crianças. Estudos de coorte sobre gravidez indesejada e seus desfechos psicológicos constituem uma prioridade em pesquisa. Distúrbios dos cuidados parentais devidos a transtornos mentais As funções complexas dos cuidados parentais podem ser prejudicadas, em maior ou menor extensão, por todas as formas de transtornos mentais nos pais. Não é tanto o diagnóstico que confere o risco, mas a gravidade e cronicidade da psicopatologia, independentemente do diagnóstico. É importante enfatizar que as investigações sobre cuidados parentais relatam associações estatisticamente significantes em grandes amostras. Há muita variação na psicopatologia e em sua gravidade e duração. Muitos pais com graves transtornos depressivos, ansiosos ou alimentares, e mesmo aqueles que sofrem de psicose, são excelentes cuidadores. Diferentes transtornos apresentam seus efeitos através de trajetórias comuns: Preocupação parental. Qualquer preocupação, seja na forma de ruminações obsessivas ou raivosas, ou delírios atormentadores, pode prejudicar a vigilância e a prontidão para reagir frente à criança; assim, este efeito poderá ser visto nos transtornos ansiosos, obsessivos e querelantes, bem como nas psicoses e transtornos de personalidade com instabilidade emocional. Desatenção é também causada pelo envolvimento em atividades mórbidas de longa duração, tais como rituais compulsivos, compulsão alimentar ou abuso de drogas. Há transtornos que afetam a própria faculdade da atenção, tais como a depressão. Se a diminuição da atenção for freqüente e prolongada, o estabelecimento de limites será inconsistente e o ambiente em que a criança vive ficará empobrecido, sem o estímulo necessário para o crescimento intelectual. Indisponibilidade emocional. Esta varia em gravidade desde evitar a criança devido a uma fobia nela centrada ou obsessões de infanticídio até o isolamento visto na depressão grave ou psicose. 8 Raiva. Esta é proeminente na depressão, psicose aguda, mania, intoxicação e abstinência de drogas ou álcool. A irritabilidade pode ser descarregada nas crianças, que são mais acessíveis que o marido ou outros parentes. Raiva patológica é uma manifestação de graves transtornos na relação mãe-bebê. A hostilidade pode ter a criança como alvo nos transtornos delirantes. A irritabilidade explosiva é uma característica de alguns transtornos da personalidade. Comportamento perturbado. Uma criança pode ser exposta à impulsividade, oscilações extremas de humor, discursos bizarros ou comportamento baseado em delírios. Respostas emocionais anormais podem perturbar a interação. Isto é desconcertante, algumas vezes assustador. A mudança do tratamento institucional para comunitário em alguns países implica em mais crianças vivenciando comportamento psicótico quando examinadas mais de perto. Cuidados parentais são também indiretamente afetados por outros fatores: Privação. A doença mental tem uma associação geral com a adversidade social (6), a qual pode contribuir para sua causa ou resultar de doença, deficiência ou incompetência social. Por exemplo, mães com psicose crônica (com um número semelhante de gestações e partos ao de outras mulheres) mais freqüentemente têm que lidar com ser mãe solteira, discórdia conjugal, violência doméstica, pobreza e não ter moradia. Elas são vulneráveis à discriminação e exploração. Maior número delas vivencia estupro e sofre suas conseqüências, tais como aborto ou doenças sexualmente transmissíveis, tem gestações indesejadas, são isoladas socialmente e não têm ajuda na criação da criança e têm parceiros com transtornos mentais. As crianças têm maior risco genético e estão mais sujeitas a problemas de comportamento difíceis de lidar. Estes fatores associados, tomados individualmente ou em conjunto (sem considerar a psicose materna), aumentam o risco de transtornos mentais nas crianças. Separação. A relação pais-criança pode ser gravemente interrompida por hospitalização dos pais. Mesmo com o melhor tratamento, estes pais perdem contato com suas crianças e isto pode afetar o apego. A criança freqüentemente terá que ser transferida para parentes ou tutores, e assim receberá cuidados parentais múltiplos. Quando não há cuidados tutoriais fornecidos pelo estado nem 9 apoio de familiares, os cuidados parentais ficam deficitários. Além disto, estas mulheres têm medo da remoção forçada de suas crianças. Muitas, na verdade, as perdem – para maridos de quem se separaram, para outros parentes ou tutores ou por adoção – e isto é motivo de tristeza por um longo tempo (7). O medo de perder a custódia ou o acesso à criança domina a relação com os serviços de saúde mental e sociais. As mulheres podem deixar de procurar ajuda ou de revelar que são as mães por causa deste medo. Estigma. Por conta da doença parental, a criança pode ser exposta a provocações, intimidações e rejeição. Os pais também sofrem estigma, o que pode levar ao isolamento social, aumentando a adversidade do ambiente em que a criança vive. Impacto de alguns transtornos mentais específicos nos cuidados parentais Psicose Na psicose crônica, o cuidado com a criança é freqüentemente irregular e intermitente, com baixa qualidade da sensibilidade e do envolvimento (8). Na psicose recorrente e aguda (incluindo os episódios pós-parto), a relação parental é freqüentemente normal depois da remissão (9), a menos que os episódios sejam freqüentes e prolongados. Depressão Depressão é o transtorno mental mais comum, especialmente em mulheres durante o período reprodutivo. Há muita preocupação sobre seu impacto na maternidade e muitos estudos têm investigado seus efeitos na interação mãe-bebê e no desenvolvimento da criança, usando várias modalidades de pesquisa. O temperamento e comportamento dos bebês podem também afetar o humor materno, criando um ciclo vicioso. Entretanto, os efeitos adversos não são universais: algumas mães deprimidas são confortadas pela interação com suas crianças (10). Os efeitos da depressão nos cuidados parentais incluem os seguintes: 10 Pais deprimidos comunicam tristeza e pessimismo. Eles carecem de risadas e alegria e freqüentemente se mostram irritáveis. Eles também podem mostrar menos afeto, ternura e capacidade de responder às demandas da criança. Estas influências danosas têm maior impacto na primeira infância, quando o contato é íntimo e contínuo. A depressão anérgica reduz os esforços que os pais podem fazer. Poderá haver uma redução na quantidade, qualidade e variedade da interação. O pensar é ineficiente e, junto com um aspecto taciturno e preocupações mórbidas, reduz a atenção, os recursos internos e a capacidade de controle. A depressão (ou os problemas de relacionamento com os filhos decorrentes da depressão) pode estar associada a atrasos de linguagem e, através de sua ampla influência, levar a outros déficits educacionais. Poderá também haver efeitos sobre a saúde física e o desenvolvimento (11). Há relatos conflitantes do Brasil, Índia, Etiópia, Vietnã, Paquistão e Peru sobre a associação entre depressão materna e bebês de baixo peso e desnutridos. Transtornos da relação (apego) mãe-bebê O desenvolvimento da relação mãe-bebê é o processo psicológico chave no puerpério. É esta relação, que se desenvolve gradualmente durante as primeiras semanas após o nascimento, que possibilita às mães fazerem sacrifícios, manter vigilância e agüentar o trabalho de alimentar seus bebês. Há uma patologia neste processo, mesmo antes do nascimento. Em gestações rejeitadas, o feto pode ser visto como uma intrusão, o que ocasionalmente resulta em abuso fetal (12). Depois do nascimento, uma desconcertante falta de sentimentos pelo bebê (o que é comum nos estágios precoces) pode, em pequena proporção, progredir para aversão, ódio e rejeição (13). A hostilidade materna priva o bebê da necessidade fundamental de relações amorosas, prejudica gravemente as interações e leva ao abuso emocional. As demandas do bebê provocam impulsos agressivos que, na falta de autocontrole, levam ao abuso verbal e a tratamento rude. Estas crianças estão em alto risco de maus-tratos. Transtornos ansiosos 11 Os transtornos ansiosos podem afetar os cuidados parentais. A intrusão e o controle excessivo, o “catastrofismo” (conseqüências calamitosas esperadas de eventos normais) e a superproteção, algumas vezes somados à falta de calor humano e capacidade de responder às demandas da criança, podem privar as crianças de oportunidades para explorar e manipular o mundo circundante. Isto pode levar a ansiedade de separação, recusa em ir à escola e limitações sociais. Transtornos alimentares Se uma mulher grávida restringe severamente sua alimentação, o feto pode sofrer prejuízo em sua nutrição e crescimento. As atitudes de algumas mães anoréticas ou bulímicas levam a conflitos nas horas das refeições e ocasionalmente resultam em fome crônica e prejuízo no crescimento da criança (14). Distúrbio de aprendizagem Os cuidados com as crianças por parte de mulheres com distúrbios de aprendizagem estão se tornando mais importantes na medida em que estas são transferidas das instituições para a comunidade. Estas mães encontram-se freqüentemente isoladas socialmente e têm muitos outros problemas. Suas crianças podem ter um risco aumentado de abuso e negligência, mas há uma escassez de informações sobre cuidados parentais por estas pessoas. Os prejuízos para as crianças que possam resultar de transtornos mentais Distúrbios psicológicos e transtornos mentais na infância Filhos de pessoas com transtorno mental grave têm risco aumentado para distúrbios psicológicos, não somente devido a problemas nos cuidados parentais, mas também porque podem compartilhar uma predisposição genética e serem expostas a uma série de fatores ambientais associados à doença mental nos pais. Isto inclui antecedentes de complicações obstétricas, privação e falta de suporte social, conflitos conjugais e vida familiar caótica. Estas crianças são mais vulneráveis à exploração. 12 Há o efeito recíproco dos comportamentos da criança difíceis de lidar, provocando hostilidade parental. Por outro lado, fatores de proteção podem estar presentes, tais como a resiliência da criança ou a influência benéfica de um companheiro saudável ou de outro membro da família. A saúde mental e a competência social da criança estão mais relacionadas a riscos múltiplos do contexto em que esta vive e são menos influenciadas por variáveis de doenças e menos ainda por diagnóstico categorial. Acredita-se amplamente que relações pais-criança carentes de afeto e marcadas por punição física severa e especialmente por maus-tratos são fatores importantes em determinar piores desfechos cognitivos, comportamentais e emocionais. O foco em cuidados parentais oferece excelentes oportunidades para intervenção. Algumas formas precoces de distúrbios em bebês podem seguramente estar relacionadas com os cuidados parentais. Estas incluem os estados de medo encontrados em abuso grave. Estas crianças têm características comportamentais típicas: apatia a ponto de estupor, choro somente in extremis, falta de expressão e de vocalização e percepção visual excessiva (“vigilância congelada”) (15). Outra manifestação precoce é o sofrimento observado em bebês de mães deprimidas. O bebê tem um papel importante no desenvolvimento da relação com seu/sua cuidador/a, contribuindo para o diálogo através do olhar, sorriso, riso e balbucio. O bebê sofre pelo insucesso destas iniciativas. Ao final do primeiro ano, transtornos do apego podem ser identificados. Uma ligação afetiva segura pode significar uma capacidade duradoura para estabelecer relações, predizer popularidade e aceitação pelos pares, o que por sua vez promove outras formas de competência social. Uma ligação afetiva desorganizada pode estar relacionada a cuidados parentais negligentes e abusivos. Transtorno de apego reativo na infância é um transtorno clínico observado nos primeiros cinco anos de vida, marcado por anormalidades persistentes nas relações com os pares e outros. Há uma variante desinibida, com sociabilidade indiscriminada, associada com ser criado em instituição. Mais tardiamente na infância, pode haver síndromes “externalizantes” (hiperatividade e transtornos de conduta e de oposição desafiante). Afirmações de que os cuidados parentais estão implicados no transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (ADHD) são controversas, mas o risco é maior entre as crianças expostas ao abuso de drogas ou que sofrem de maus-tratos. Transtornos de conduta e 13 desobediência na primeira década de vida progridem para a delinqüência na adolescência, traços anti-sociais na fase adulta e transgressões. Embora haja muitos fatores etiológicos concorrentes (inclusive genéticos), muitas pesquisas encontraram uma associação destes transtornos com cuidados parentais (16). O estilo parental mais claramente relacionado é o autoritário: rigidez, punições físicas severas e uma atmosfera de hostilidade e crítica, levando a um círculo vicioso de mau comportamento e punição (17). O comportamento agressivo da criança é aprendido dos pais. Este se torna parte de uma trama de fatores de risco que levam a uma posterior desvantagem social, provocando reações negativas, baixo rendimento escolar, problemas nas relações sociais e em cuidados parentais futuros, transtornos do humor e abuso de substâncias, bem como crime. Pode haver também síndromes “internalizantes”, relativas à depressão e ansiedade. Uma síndrome diagnosticável de depressão pode ser reconhecida mais tardiamente na infância. Há muitas evidências de aumento de depressão, e de tentativas de suicídio na adolescência, em filhos de doentes mentais. Depressão parental tem muitas desvantagens para as crianças, o que inclui problemas na autoestima e nas relações com seus pares. Mas isto pode estar relacionado a “fatores de risco familiares” (tais como discórdia conjugal e entre pais e filhos), além de, ou ao invés de, depressão materna (18). Há uma extensa literatura sobre a influência da ansiedade parental no desenvolvimento de ansiedade mórbida em crianças. A transmissão de ansiedade através das gerações é parcialmente genética e parcialmente devida a modelos parentais e superproteção. Na adolescência, abuso de substâncias se torna prevalente em adolescentes vulneráveis e mais ainda em filhos de dependentes. Fatores genéticos podem explicar parcialmente a associação, mas estudos longitudinais têm mostrado que o cuidado parental também é importante, através de disciplina ineficaz, falta de supervisão e de monitoramento, baixos níveis de suporte, conflitos pais-criança e aprendizado ao seguir o exemplo dos pais. Maus-tratos infantis Abuso físico na infância 14 Abuso físico na infância pode estar especialmente associado com personalidades agressivas, como também com psicose (19), alcoolismo (20,21) e depressão (20-22). Negligência infantil A negligência infantil é definida como falha persistente em atender as necessidades e direitos básicos da criança, resultando em grave prejuízo da saúde ou desenvolvimento desta (23). Esta pode complicar a depressão grave, psicose (19,24) e abuso de substâncias (20,25,26). A negligência é um fenômeno heterogêneo com manifestações variadas, incluindo fracasso em prevenir sofrimento ou procura de cuidados médicos ou de saúde mental, falta de vestimentas, falta de supervisão, deixando a criança sob os cuidados de pessoas pouco confiáveis ou deliberadamente negando-lhe oportunidades educacionais ou sociais. É importante distingui-la das inevitáveis conseqüências da pobreza: crianças em famílias pobres com apenas um dos pais presente e muitos problemas sociais podem ser negligenciadas a despeito dos melhores esforços destes. Isto se aplica à nutrição: a “insuficiência de crescimento” não deve ser atribuída à negligência sem uma evidência positiva. Entretanto, exemplos extremos, tais como negligência grave generalizada, morte por inanição deliberada e a síndrome do “nanismo por privação (alimentar)”, mostra que a nutrição também pode estar envolvida na negligência. Negligência e abuso emocional Maus-tratos emocionais são uma manifestação de transtornos graves na relação pais-criança. A “negligência emocional” significa que as mães estão emocionalmente distantes e indiferentes às necessidades de conforto e de ajuda da criança. O “abuso emocional” inclui depreciação e humilhação persistentes – comentários hostis, críticos ou sarcásticos, transmitindo às crianças que elas não têm valor e não são amadas, tratando-as como bodes expiatórios, isolando-as, ignorando-as, explorando-as ou “aterrorizando-as”, tais como por ameaças de suicídio ou abandono (27). Exposição à violência doméstica pode ser incluída neste tópico. Os maus-tratos emocionais podem ser um fator de risco mais potente para posterior desajuste que outras formas de abuso (28). 15 Síndrome de Munchausen por proximidade Este termo inclui os cuidadores que induzem ou simulam doença nas crianças (29). As manifestações incluem a produção ou simulação de sintomas e a deliberada indução de doença por atos como envenenamento, asfixia ou infectando seus bebês. Morte da criança Isto é usualmente subdividido em neonaticídio (assassinato do recém-nascido) e filicídio (morte de uma criança mais velha por ação de um dos pais). No neonaticídio, usualmente não há doença mental formal mas sim uma crise emocional marcada por pânico ou raiva. Diversas formas de rebaixamento da consciência podem ocorrer durante o parto (30) e o neonaticídio nunca pode ser excluído em partos sem testemunhas. O filicídio é bastante raro, mas de grande preocupação pública. Ele está freqüentemente associado com doença mental, especialmente depressão suicida, como também com delírios envolvendo a criança, transtornos graves da relação mãe-bebê e ocasionalmente psicose aguda, alucinações de comando, delirium ou estados de transe (31). Alguns podem temer que ao mencionar esta associação com transtorno mental aumentem o estigma, mas nós acreditamos que a melhor estratégia é reconhecer o risco e tomar iniciativas para minimizá-lo. Promoção de saúde em crianças vulneráveis Prática clínica em psiquiatria de adultos Classificações diagnósticas Os responsáveis pela produção da CID-11 e do DSM-V, quando formularem seus sistemas multidimensionais, devem incluir a codificação obrigatória de fatores contextuais importantes. Um especificador proposto é o “início de doença mental relacionado com o processo de dar à luz”. Nós sugerimos que o “contexto parental” (cuidado atual de uma criança ou menor de 18 anos) deva ser outro. 16 Avaliação clínica A Convenção Sobre os Direitos das Crianças das Nações Unidas (1) declara que as nações devem prover cuidados preventivos à saúde das crianças e orientação para os pais. Práticas atuais em psiquiatria de adultos estão muito longe de alcançar este requisito. A condição, ou mesmo a existência, das crianças é freqüentemente não notada. Os psiquiatras devem estar conscientes de que muitos pacientes são pais e que suas crianças têm risco aumentado de apresentarem problemas psicológicos. Os clínicos devem adaptar a anamnese psiquiátrica padrão para incluir questões sobre cuidados parentais, casamento e vida familiar. Isto deve ser incluído nos programas básicos de treinamento para profissionais de saúde mental. Nós sugerimos perguntar, como uma forma de investigação preliminar, “Você está cuidando de uma criança?”, seguido de “Como você está se saindo como pai/mãe?” ou “Você se preocupa se vai saber cuidar bem do/da (nome da criança)?”. Para aqueles com responsabilidade de cuidar de crianças, deve haver uma avaliação breve sobre os cuidados parentais, como delineado na Tabela 1. Isto toma algum tempo, mas prepara a situação para intervenções familiares. Visitas no hospital Durante a internação, as visitas das crianças devem ser facilitadas, protegendo-as da interação com outros pacientes. O pai ou a mãe doente pode precisar de ajuda para explicar a doença para as crianças. Planejamento da alta e reabilitação Isto deve incluir a educação dos pais sobre o desenvolvimento da criança e o manejo de problemas nos cuidados com as crianças. Depois da alta, se possível em colaboração com os serviços sociais, deve ser planejado um apoio de longo prazo aos pais nos cuidados com as crianças, incluindo descanso para os pais e oportunidades de lazer para as crianças. A Convenção das Nações Unidas chama a atenção para a necessidade de planejamento familiar. Quando for do interesse da família, este aconselhamento deverá fazer parte da prática clínica rotineira. Planejamento para avaliação breve de cuidados parentais e programas corretivos são objetos para 17 pesquisa futura. A vinheta na Tabela 2 ilustra o manejo de fracasso nos cuidados parentais por um serviço indiano sobrecarregado. Planejamento pré-natal Quando uma mulher com doença mental grave engravida, a comunicação entre as equipes de saúde mental e obstétrica, e outros serviços relevantes, é essencial. Se a distância e os recursos permitirem, uma reunião multidisciplinar de planejamento prénatal deve ser marcada tão cedo quanto possível, para compartilhar informações e coordenar o manejo. A razão para a urgência é que o intervalo entre o diagnóstico da gravidez (que pode ser atrasado) e o parto (que pode ser prematuro) pode ser curto. A comunicação deve incluir o médico generalista, um representante da equipe obstétrica, membros da equipe de saúde mental e (se possível) a própria mulher grávida. É útil incluir um membro da família ampliada. Há muitos aspectos a serem considerados: tratamento farmacológico, cuidados pré-natais, sinais precoces de recaída, o manejo do puerpério e os cuidados com o bebê. É essencial que a equipe de saúde mental seja avisada quando a mãe entrar em trabalho de parto. Ela vai necessitar de apoio extra na criação da criança e pode ser necessário envolver a equipe de proteção à criança. O encaminhamento para um serviço psiquiátrico especializado em atender mulheres grávidas e no puerpério pode ser factível. Planejamento pré-conceptivo similar também pode ser recomendável quando um homem ou mulher com doença mental está considerando começar uma família. Serviços especializados Psiquiatria mãe-bebê A Convenção das Nações Unidas estipula que as nações devem garantir cuidados apropriados à saúde pré-natal e pós-natal. Serviços (perinatais) mãe-bebê, tanto como um ramo da psiquiatria infantil quanto como uma subespecialidade da psiquiatria de adultos, foram desenvolvidos em alguns países de alta renda e também na Índia e no Sri Lanka. Estes podem servir à população, manejando doenças graves e intratáveis, treinando equipes, desenvolvendo serviços e conduzindo pesquisas. Seus recursos podem incluir clínicas ambulatoriais, hospitais dia, unidades de internação, 18 serviços comunitários, consultoria obstétrica, ligações com outros serviços e agências de voluntariado e com especialistas médico-legais. O núcleo do serviço é uma equipe multidisciplinar de especialistas, que provê cuidados para a mãe mentalmente doente e sua criança – um recurso chave qualquer que seja o contexto cultural e a disponibilidade de recursos. Há necessidade de se investigar o custo-efetividade destes caros serviços considerados “estado da arte”. A avaliação e manejo das relações mãe-bebê perturbadas é uma das habilidades destas equipes. Em todas as parturientes que acabaram de dar à luz e apresentam sintomas, é essencial verificar a presença de relações perturbadas, tendo em mente a possibilidade de ocultação do problema frente à vergonha ou ao medo de envolver as agências de proteção à criança. Certas táticas de investigação devem ser usadas, tais como: “Você se sentiu desapontada em seus sentimentos pelo/a (nome da criança)?” ou “Quanto tempo demorou para que você se sentisse próxima de seu bebê?”. Se houver qualquer indicação de sentimentos negativos dirigidos à criança, estes serão explorados juntamente com as manifestações de raiva: “Qual foi a pior coisa que você teve impulso de fazer?”, “Alguma vez você perdeu o controle?”, “Quais foram as piores coisas que você fez para o seu bebê?”. Para as mães cuja aversão seja forte o suficiente para ameaçar a saúde e segurança do bebê, uma intervenção é essencial. Um tratamento especializado freqüentemente possibilita o desenvolvimento de uma relação mãe-bebê normal. Serviços para mulheres grávidas que abusam de substâncias Toda a sociedade deve entender que beber e abusar de drogas pode ter conseqüências danosas, particularmente durante a gravidez. Todos os profissionais de saúde e parteiras devem aconselhar as mulheres que estão planejando engravidar ou que já estão grávidas a se abster; estes profissionais devem ser treinados para avaliar o abuso na gravidez. No caso de alcoolismo, um dos aspectos é o reconhecimento dos efeitos do álcool no feto. No caso da dependência de narcóticos, o objetivo é reduzir a exposição do feto. Outras drogas de abuso devem ser gradualmente retiradas. A completa abstinência de opiáceos ou o uso de um antagonista como a naloxona pode precipitar uma síndrome de abstinência no feto. Para muitos, a substituição de heroína por doses moderadas de metadona ou de buprenorfina é a melhor opção, com menos retardo de crescimento intra-uterino e de complicações perinatais. 19 Grávidas dependentes requerem um manejo de caso intensivo. Depois do parto, o abuso não suspeitado pode ser detectado por marcadores no sangue, cabelo, urina, mecônio ou tecido umbilical. Os bebês devem ser mantidos no hospital por período suficiente para o manejo da intoxicação ou dos sintomas de abstinência. A intervenção precoce pode minimizar os efeitos secundários e favorecer a alfabetização e o bom comportamento da criança. Há poucos serviços multidisciplinares especializados no diagnóstico e tratamento (32); sua eficácia e disseminação mundial devem ser examinadas. Proteção à criança A Convenção das Nações Unidas estabelece que a proteção à criança deve incluir programas de apoio à criança e seus cuidadores, bem como identificar, notificar, investigar, tratar, acompanhar e prevenir maus-tratos infantis. Em todas as ações relativas a crianças, quer sejam as tomadas por autoridades administrativas ou membros de conselhos legislativos, deve predominar o que for melhor para a criança. Isto, mais do que a preservação da família, é o primeiro ponto a se considerar, sendo que o bem estar da criança deve preceder os direitos dos pais, mesmo quando sua remoção agrave a doença mental parental. As nações devem aprovar leis estabelecendo responsabilidades e procedimentos para investigação e ações de proteção, incluindo a proteção emergencial. Os profissionais de saúde mental necessitam entender a lei e os procedimentos no país onde estão trabalhando. A proteção da criança requer a aliança de muitas instituições sociais: A família ampliada. A Convenção afirma o papel fundamental da família como ambiente natural para o crescimento e bem estar das crianças. O envolvimento ativo do pai é de grande valor. Irmãos, parentes por casamento e avós são freqüentemente as fontes principais de apoio - de fato, em alguns países, o único recurso. Equipes multidisciplinares de proteção à criança são o suporte principal em nações de alta renda. 20 Em colaboração com estas equipes, ou como uma alternativa, vizinhos, escolas, agências de voluntários e organizações religiosas podem apoiar as famílias, notificando os maus-tratos e promovendo oportunidades sociais e redes informais. Moradias alternativas são o refúgio das crianças que não podem ser criadas com segurança por seus pais biológicos. Este acolhimento inclui adoção, tutores e várias formas de cuidados institucionais. Manejo de maus-tratos O diagnóstico precoce, a avaliação e o manejo de supostos maus-tratos foram resumidos em outra publicação (33). Quando os maus-tratos estão associados a transtorno mental grave, isto introduz um outro elemento de complexidade. Nós tomamos a Síndrome de Munchausen-por-proximidade como um exemplo. Neste caso, a psicopatologia parental grave cria um conflito entre os direitos da criança à proteção e o direito da família à privacidade, às relações médico-paciente normais e à confidencialidade médica. A investigação pode envolver a revisão da história médica parental (com a ajuda do médico generalista), uma visita domiciliar não agendada, vigilância disfarçada (depois de consulta aprofundada) e a exclusão dos pais dos cuidados com a criança. Quando o diagnóstico é estabelecido, o encontro com os pais é crítico: o médico deve deixar claro que ele sabe o que tem acontecido, explicar o dano à criança e assegurá-los de que irá ajudá-los e à criança. Freqüentemente a única conduta segura é remover as crianças maltratadas. A renúncia à criança por coerção é um dos mais traumáticos eventos que uma mãe pode vivenciar e ainda mais se isto resulta de uma doença mental tratável. Isto também pode ser sofrido para a criança. Moradias alternativas também têm riscos: a solidão e a tristeza das crianças em orfanatos e hospitais (“hospitalismo”) foram observadas desde há muito tempo. Morar com tutores freqüentemente consiste em grande benefício para a criança, mas algumas vezes não dá certo, levando a um agravamento de seus problemas. Muitas pesquisas foram realizadas sobre a prevenção de maus-tratos, através da educação do público e da intervenção pró-ativa em grupos de alto risco (34) (35). Pesquisas sobre a prevenção de maus-tratos na presença de fatores de risco como 21 alguns transtornos mentais graves (e especialmente o ambiente social associado a estes) não foram consideradas nestas diretrizes. Recursos disponíveis no mundo Nós procuramos informações sobre recursos para a proteção de crianças nas nações que mais contribuem para a população mundial de crianças. Nós nos beneficiamos de uma série de relatos, obtidos por um de nós, de 19 países. Nós suplementamos estas informações por cartas enviadas a colegas, perguntando sobre leis, apoio público e político, registros nacionais, notificações, equipes de proteção à criança, treinamento, serviços sociais e outras agências devotadas à proteção da criança. Nós obtivemos respostas de seis nações na África (Etiópia, Quênia, Moçambique, Nigéria, Tanzânia e Uganda), três no Sudeste da Ásia (Índia, Paquistão e Filipinas), duas no Oriente Médio (Egito e Turquia) e três na América do Sul e Central (Argentina, Brasil e México), bem como em nações de alta renda. Um padrão de quatro grandes grupos amplos emergiu: O grupo 1 inclui nações prósperas, com diferentes estilos e organizações, mas com tudo disponível – por exemplo, o Canadá, que fez contribuições significativas para a pesquisa sobre maus-tratos infantis. O grupo 2 inclui nações como a Turquia e Formosa, que podem ter começado mais tarde mas já estão fazendo progressos em direção a serviços efetivos. A Turquia, por exemplo, tem pelo menos 14 equipes de proteção à criança. O grupo 3 inclui países como a Índia e Uganda, abarrotados de crianças, ativos mas destituídos de recursos, lutando para estabelecer unidades pioneiras. O grupo 4 inclui nações, das quais o Paquistão é um exemplo, onde o problema de maus-tratos infantis está em um estágio inicial de resolução (36). Um projeto de lei sobre Proteção à Criança está ainda aguardando uma ação parlamentar. Um obstáculo é a forte cultura da privacidade familiar. Nós também perguntamos aos nossos correspondentes sobre o quê, dadas suas restrições financeiras, poderia melhorar a proteção à criança em seus países. Nós temos espaço para apenas uma seleção de suas respostas e omitimos a necessidade 22 óbvia de mais pessoal e financiamento. A primeira prioridade foi educação – “aumentar a consciência pública deste tópico tabu” (Paquistão), educar a população, professores das escolas, famílias de pacientes psiquiátricos e mesmo curandeiros indígenas. A segunda foi melhorar o treinamento profissional, especialmente de pediatras, equipes de cuidados primários, parteiras e agentes de saúde domiciliares, que freqüentemente carecem de treinamento em saúde mental. A terceira foi influenciar governos a reconhecer estas crianças como um grupo de alto risco e a tomar providências. Serviços de saúde mental para crianças e adolescentes Serviços de saúde mental para crianças e adolescentes são essenciais para a promoção da saúde mental em crianças vulneráveis. Estes fornecem tratamento para todos os transtornos previamente mencionados. Estes serviços têm um papel no ensino e treinamento, avaliação, ligação com outras agências, pesquisa e prevenção e no desenvolvimento de diretrizes. Na prática clínica, o trabalho em equipe multidisciplinar é o que existe de melhor, com foco nos pais, na criança e no contexto social e familiar em que a criança vive. Muitas formas específicas de intervenção psicoterapêutica e psicológica têm sido desenvolvidas, incluindo terapias familiares, psicoterapias da mãe e do bebê e terapia cognitiva breve apropriada à idade e nível de desenvolvimento da criança. No decorrer de nossas investigações, ficou claro que estes serviços quase não existem em muitas nações de baixa renda. Em 2005, a Organização Mundial da Saúde publicou um Atlas de recursos em saúde mental de crianças e adolescentes, baseado nas respostas de 66 países. O Atlas não dá detalhes das nações individualmente mas está claro que a maioria dos países com altas taxas de natalidade tem serviços para crianças e adolescentes com poucos recursos. Por exemplo, Uganda (onde nascem 1,5 milhões de crianças por ano) tem duas clínicas ambulatoriais em Kampala e somente um psiquiatra infantil habilitado, lidando principalmente com epilepsia e retardo mental. Em 37 nações, os cuidados são prestados por pediatras, freqüentemente sem nenhum treinamento em saúde mental. Mesmo os Estados Unidos da América não tem número suficiente de psiquiatras infantis. Uma das prioridades de pesquisa é investigar as melhores práticas de intervenções para pais mentalmente doentes e suas crianças e quais são factíveis, 23 financiáveis e culturalmente aceitáveis em nações de baixa renda. Isto pode incluir o papel das famílias ampliadas em apoiar as crianças vulneráveis e suas famílias. O caminho à frente é longo e difícil. Este deve talvez se iniciar com o treinamento de alguns especialistas trabalhando sozinhos mas disponíveis para consultoria. Eles podem se tornar líderes em educação pública e em influenciar políticos. Eles podem criar unidades de demonstração e iniciar programas de treinamento. O treinamento pode ser direcionado não somente a futuros especialistas mas também a profissionais que têm contato com crianças – por exemplo, enfermeiras, equipes paramédicas e professores – e outros indivíduos que têm a confiança da comunidade, que podem ser recrutados para atender as crianças necessitadas. Não há esperança de atender as necessidades de filhos de pessoas com doença mental grave sem um incremento mundial dos serviços de saúde mental para crianças e adolescentes. Referências 1 United Nations. Convention on the rights of the child. New York: United Nations, 1989. 2 Viguera AC, Newport AC, Ritchie J et al. Lithium in breast milk and nursing infants: clinical implications. Am J Psychiatry 2007; 164: 342-345. 3 Rice F, Jones I, Thapar A. The impact of gestational stress and prenatal growth on emotional problems in offspring: a review. Acta Psychiatr Scand 2007; 115: 171183. 4 American Psychiatric Association. Practice guidelines for the treatment of patients with substance use disorders, 2nd ed. Am J Psychiat 2007; 164 (Suppl.). 5 Germain A. The Christopher Tietze International Symposium: an overview. Int J Gynecol Obstet 189 (Suppl. 3): 1-8. 6 Mowbray CT, Oyserman D, Zemencuk JK et al. Motherhood for women with serious mental illness: pregnancy, childbirth and the postpartum period. Am J Orthopsychiatry 1995; 65: 21-38. 7 Diaz-Caneja A, Johnson S. The views and experiences of severely ill mothers: a quantitative study. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol 2004; 39: 472-482. 24 8 Goodman SH, Brumley HE. Schizophrenic and depressed mothers: relational deficits in parenting. Dev Psychol 1990; 26: 31-39. 9 Reichart CG, van der Ende J, Hillegers MHJ et al. Perceived parental rearing of bipolar offspring. Acta Psychiatr Scand 2007; 115: 21-28. 10 Pound A, Puckering C, Cox A et al. The impact of maternal depression on young children. Br J Psychother 1988; 4:240-252. 11 Stewart RC. Maternal depression and infant growth – a review of recent evidence. Matern Child Nutr 2007; 3: 94-107. 12 Condon JT. The spectrum of fetal abuse in pregnant women. J Nerv Ment Dis 1986; 174: 509-516. 13 Brockington IF, Aucamp HM, Fraser C. Severe disorders of the mother-infant relationship: definitions and frequency. Arch Women’s Ment Health 2006; 9: 243252. 14 Russell GFM, Treasure J, Eisler I. Mothers with anorexia nervosa who underfeed their children: their recognition and management. Psychol Med 1998; 28: 93-108. 15 Ounsted C, Oppenheimer R, Lindsay J. Aspects of bonding failure: the psychopathology and psychotherapeutic treatment of families of battered children. Dev Med Child Neurol 1974; 16: 447-456. 16 Rothbaum F, Weisz JR. Parental caregiving and child externalizing behaviour in nonclinical samples: a meta-analysis. Psychol Bull 1994; 116: 55-74. 17 Larsson H, Viding E, Rijsdijk FV et al. Relationships between parental negativity and childhood antisocial behaviour over time: a bidirectional effects model in a longitudinal genetically informative design. J Abnorm Child Psychol 2008; 36: 633-645. 18 Weich S, Patterson J, Shaw R et al. Family relationships in childhood and common psychiatric disorders in later life: systematic review of prospective studies. Br J Psychiat 2009; 194: 392-398. 19 Dipple H, Smith S, Andrews H et al. The experience of motherhood in women with severe and enduring mental illness. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol 2002; 37: 336-340. 20 Chaffin M, Kelleher K, Hollenberg J. Onset of physical abuse and neglect: psychiatric, substance abuse, and social risk factors from prospective community data. Child Abuse Neglect 1996: 20: 191-203. 25 21 Bland RCV, Orn H. Psychiatric disorders, spouse abuse and child abuse. Acta Psychiatr Belg 1986; 86: 444-449. 22 Windham AM, Rosenberg L, Fuddy L et al. Risk of mother-reported child abuse in the first 3 years of life. Child Abuse Neglect 2004; 28: 645-667. 23 Dubowitz H, Newton RR, Litrownik AJ et al. Examination of a conceptual model of child neglect. Child Maltreat 2005; 10: 173-189. 24 Mullick M, Miller LJ, Jacobsen T. Insight into mental illness and child maltreatment risk among mothers with major psychiatric disorders. Psychiatr Serv 2001; 52: 488-492. 25 Dube SR, Anda RF, Felitti VJ et al. Growing up with parental alcohol abuse: exposure to childhood abuse, neglect, and household dysfunction. Child Abuse Neglect 2001; 25: 1627-1640. 26 Ondersma SJ. Predictors of neglect within low-SES families: the importance of substance abuse. Am J Orthopsychiatry 2002: 72: 383-391. 27 Trickett PK, Mennen FE, Kim K et al. Emotional abuse in a sample of multiply maltreated, urban young adolescents: issues of definition and identification. Child Abuse Neglect 2009; 33: 27-35. 28 Yates TM, Wekerle C. The long-term consequences of childhood emotional maltreatment on development: maladaptation in adolescence and young adulthood. Child Abuse Neglect 2009; 33: 19-21. 29 Meadow R. Munchausen syndrome by proxy. Arch Dis Child 1982; 57: 92-98. 30 Brockington IF. Eileithyia’s mischief: the organic psychoses of pregnancy, parturition and the puerperium. Bredenbury: Eyry Press, 2006. 31 Brockington IF. Motherhood and mental health. Oxford: Oxford University Press, 1996. 32 Peadon R, Fremantle E, Bower C et al. International survey of diagnostic services for children with fetal alcohol spectrum disorders. BMC Ped 2008; 8: 12-19. 33 Jones DPH. Child maltreatment. In: Rutter M, Bishop D, Pine D et al (eds). Rutter’s child and adolescent psychiatry. Oxford: Blackwell, 2008: 421-439. 34 Reynolds AJ, Mathieson LC. Do early childhood interventions prevent child maltreatment. Child Maltreatment 2009; 14: 182-206. 35 Olds DL, Sadler L, Kitzman H. Programs for parents of infants and toddlers: recent evidence from randomized trials. J Child Psychol Psychiat 2007; 48: 355391. 26 36 Muhammed T. Child protection in Pakistan. Int J Child Health Hum Dev (in press). Mais de 1.000 trabalhos foram consultados no preparo destas orientações. Uma lista de 200 referências representativas pode ser obtida do primeiro autor através do e-mail [email protected]. 27 Tabela 1. Avaliação breve de cuidados parentais para pacientes com responsabilidade de cuidados à criança. A. Evidência de que todas as necessidades das crianças estão sendo satisfeitas. B. Se há problemas, maior investigação de: qualidade da relação violência familiar escolaridade interrompida outros problemas, tais como negligência da segurança ou da saúde, superproteção ou criança assumindo papel parental transtornos emocionais ou comportamento perturbado das crianças fontes de cuidados alternativos. C. Apoios disponíveis – o outro progenitor, a família ampliada, escola, vizinhos, agências não governamentais ou serviços de cuidados à saúde. 28 Tabela 2. Uma vinheta ilustrando avaliação e intervenções de cuidados parentais em um caso de doença mental grave na Índia. Uma viúva de 35 anos de idade morava com seu filho e filha de 7 e 9 anos de idade. Seu idoso sogro morava perto. Por 2 anos, ela raramente deixava a casa, confinava suas crianças, negligenciava a higiene delas e as alimentava com batata frita e refrigerante. Eventualmente, quando ela começava a gritar para seus perseguidores imaginários, os vizinhos ajudavam seu sogro a interná-la em um hospital. Achados da avaliação dos cuidados parentais: as crianças sofriam de deficiências vitamínicas. quando elas ficavam doentes, sua mãe falhava em consultar um médico. elas tinham perdido 6 meses de escola e não tinham amiguinhos. sua mãe era barulhenta e imprevisível. a criança mais velha assumiu o papel parental e tinha que realizar os afazeres domésticos. Recursos disponíveis: a ligação das crianças entre si e com seu avô. uma família ampliada (alienada pelo comportamento dela). vizinhos e professores da escola preocupados. O serviço de psiquiatria (de adultos) foi o ponto de entrega de todas as formas de cuidados. A despeito da falta de um serviço social geral, havia um trabalhador social ligado à equipe. Juntamente com um residente estagiário, ele assumiu o planejamento dos cuidados familiares. Ação: foi dada orientação e ajuda física ao sogro no cuidado às crianças. Ele concordou em garantir a freqüência escolar. quando a doença mental da mãe foi explicada, sua família tornou-se menos crítica e concordou em visitá-la regularmente. Os vizinhos continuaram a apoiar o avô. um professor monitorou a freqüência e bem estar das crianças. as crianças visitaram sua mãe. Ela foi instruída quanto aos cuidados parentais essenciais. na medida em que as crianças estavam em risco em função de sua carga genética, negligência, mãe sozinha e infância instável, elas foram encaminhadas para serviço de psiquiatria infantil para avaliação e intervenção.