Editorial Violência intrafamiliar e transtornos mentais Family violence and mental disorders Lúcia Abelha1, Giovanni Lovisi2 A violência se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência. Chauí (1985, p. 23-62) A violência intrafamiliar e em particular o abuso psicológico, físico e sexual em crianças e adolescentes é um assunto que vem mobilizando toda a sociedade e em especial profissionais da área de saúde pública. A prevalência da violência na família, a qual afeta as crianças é alta em vários países. Nos Estados Unidos chega a 43/1.000 habitantes, na Alemanha 15/1.000 e em Ontário 2/1.000 (Bordin et al., 2006). Nossa realidade não é diferente e essas formas de violência são intensificadas pelas desigualdades e pela pobreza (Eisenstein et al., 2010). Algumas ações veem sendo desenvolvidas; no entanto, não é fácil prevenir, identificar, tratar e evitar a impunidade do autor do abuso. Dificuldades importantes permeiam essa intervenção, como o silêncio da vítima, o silêncio da sociedade, a falta de apoio à criança e à família. Além disso, ainda não existe uma consciência plena dos profissionais a respeito da dimensão da questão, ao mesmo tempo em que constatamos também uma resistência ao envolvimento em um problema complexo e que envolve investigações éticas e judiciais. A violência intrafamiliar infiltra-se nas relações, é banalizada e passa a fazer parte da rotina das pessoas. Quando essa violência se expressa contra a criança e é praticada por familiares ou pessoas conhecidas, é estabelecida uma relação de poder desigual em que a criança está sempre em desvantagem. O abusador desperta medo e sentimentos contraditórias, pois ocupa um lugar de autoridade e tem um vínculo afetivo com a criança. O menor, vítima desse tipo de abuso, entra num estado de angústia. Quando, finalmente, consegue conversar com alguém que o escute, o que infelizmente não é raro, já se transcorreu muito tempo, e previsíveis consequências daninhas do ponto de vista emocional e de estruturação da personalidade (inclusive, em muitos casos, do ponto de vista cognitivo) já aconteceram. Em geral, o abuso termina após alguma intervenção, mas existe sempre a possibilidade da desintegração familiar ou da institucionalização, o que pode representar uma nova agressão psíquica e social contra o menor. A relação entre a vitimização persistente vivenciada por essas crianças e o desenvolvimento de transtornos mentais vem sendo objeto de diversos estudos. Entre os transtornos mentais consequentes do abuso físico e sexual estão o estresse pós-traumático, os transtornos depressivos e o abuso de drogas (Avanci et. al., 2009). O transtorno de estresse pós-traumático vem ganhando importância entre os diagnósticos dos transtornos mentais na última década. Estudos de prevalência classificam-no em quarto lugar entre os transtornos mentais. É esperado que 10,3% dos homens e 18,3% das mulheres tenham esse problema em algum momento de suas vidas (Breslau et al., 1998) . 1 2 Editora do Cadernos Saúde Coletiva. Professora Adjunta do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Professor Adjunto do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Cad. Saúde Colet., 2010, Rio de Janeiro, 18 (4): 467-8 467 Lúcia Abelha, Giovanni Lovisi A violência social é sem dúvida a grande responsável pela alta prevalência de Estresse Pós Traumático (EPT) observada hoje. As estimativas sugerem que a maioria da população experimentará pelo menos uma situação traumática no curso de suas vidas e que 25% dessas pessoas desenvolverá EPT (Breslau, 1998). Pessoas que sofrem exposição repetida a traumas, como crianças e adolescentes vítimas de abuso, podem não desenvolver uma resposta adaptativa, mas pelo contrário, desenvolver sintomas psiquiátricos e sintomas de EPT de mais longa duração do que pessoas expostas a um evento único. A depressão é hoje um dos transtornos mentais que mais contribui para a carga global de doença, estando em quarto lugar e afetando 121 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo que menos de 25% tem acesso ao tratamento. Calcula-se que em 2020 ocupará o segundo lugar, afetando pessoas de todas as idades, e de ambos os sexos (WHO, 2010). Os transtornos mentais hoje ocupam os primeiros lugares entre as doenças incapacitantes, e frequentemente esses indivíduos têm em sua história episódios de violência na infância, mostrando a importância de estudar os diferentes tipos de violência que atingem a criança e a família. Os Cadernos Saúde Coletiva iniciam, em janeiro, uma chamada por artigos na área de Saúde Mental e Violência para compor um número especial em 2011. Referências Avanci, J.; Assis, S.; Oliveira, R.; Pires, T. Quando a convivência com a violência aproxima a criança do comportamento depressivo. Ciência & Saúde Coletiva, v. 14, n. 2, p. 383-94, 2009. Chauí, M. Perspectivas antropológicas da mulher. Rio de janeiro: Zahar, 1985. p. 23-62. Bordin, I. A; Paula, C. S.; Duarte, C. S. Severe physical punishment and mental health problems in an economically disadvantaged population of children and adolescents. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 28, p. 290-296, 2006. Eisenstein, E.; Abelha, L.; Heiniger, S.; Mello, Y. B. Child and adolescent sexual abuse intervention and prevention in Brazil. In: Lovisi, G. M.; Mari, J. J.; Valencia, E. The psychological impact of living under violence and poverty in Brazil. New York: Nova Science, Inc., 2010. p. 61-69. Breslau, N.; Davis, G. C.; Andreski, P. Traumatic events and posttraumatic stress disorder in an urban population of young adults, Arch Gen Psychiatry, v. 46, p. 216-111, 1991. World Health Organization. WHO. Mental health. What is depression? Disponível em: http://www.who.int/mental_health/management/depression/ definition/en/index.html. Acessado em 10 dez. 2010. 468 Cad. Saúde Colet., 2010, Rio de Janeiro, 18 (4): 467-8