Linguagem Mitológica e Símbolo

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Linguagem Mitológica e Símbolo
Frederico Pieper Pires
Resumo
Neste artigo, procuraremos desenvolver a questão do mitológico e do
simbólico em relação à filosofia do Cogito, no período pós-crítico. Depois da crítica construída a partir de fins do século XVIII, que resta do
mitológico para o cristianismo? Nas linhas que seguem, analisaremos
duas respostas: a do teólogo alemão Bultmann e a do filósofo francês
Paul Ricoeur. Num segundo momento, partindo do segundo Heidegger,
buscaremos apontar pistas sobre o a função da linguagem mitológica na
contemporaneidade.
Abstract
In this article we try to develop the problem of mythological and the
symbolical and its relation to the philosophy of Cogito in a post-critic era.
After the critique made from the end of 18 century, what is the function
of the mythological to the Christianity? We shall analyze two proposals:
Bultmann´s and Paul Ricoeur´s proposal. In a second moment, based
on the later Heidegger, we will show some ways to the function of the
mythological in our time.
Paul Ricoeur e Rudolf Bultmann estão inseridos na tradição filosófica reflexiva e procuram dialogar com a modernidade se perguntando:
como é possível pensar filosoficamente mitológico? Em conexão com
a linguagem mitológica, o simbólico. Como veremos, Bultmann opta
pela eliminação do mito da linguagem religiosa, por meio do processo
hermenêutico de interpretação existencialista, mais conhecido como
desmitologização. Ricoeur (20 anos após a publicação de Novo Testamento e Mitologia) percebe que o Cogito está moribundo e que é possível salvá-lo articulando-o com o simbólico. Para Ricoeur, o pensar do
simbólico se dá por meio da hermenêutica criadora de sentidos. Ainda
que ambos projetos pareçam discrepantes – e, muitas vezes, Ricoeur
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nos faz pensar isto – veremos que apresentam importantes semelhanças, especialmente ao tratarem a linguagem religiosa como alegórica
(signo) e não simbólica.
Paul Tillich por diversas vezes [1] , afirma que a clara distinção
entre signo e símbolo é o grande problema dos que em seu tempo escreveram sobre mito e símbolo na linguagem religiosa. Ricoeur e Bultmann, devido a suas metodologias e à não teorização desta distinção,
tratam a linguagem religiosa como alegórica (ou como signo) e não
como linguagem simbólica, ainda que utilizem o termo “símbolo”.
Esta afirmação de Paul Tillich nos remete ao movimento romântico, quando há teorização mais sistemática da diferença entre signo
e símbolo. Até fins do século XVIII a palavra símbolo não possui o
sentido que lhe será dado no período romântico. Kant, por exemplo, em
sua Crítica da Faculdade de Julgar, liga o símbolo à maneira intuitiva
e sensitiva de apreender as coisas. A oposição entre símbolo e alegoria
foi introduzida mais enfaticamente por Goethe em Sobre os objetos das
Artes Figurativas (1790). A principal contribuição de Goethe para o
debate foi mostrar que o símbolo se dirige à percepção (e, logicamente,
à intelecção) ao passo que a alegoria (ou seja, o signo) somente vai ao
encontro da intelecção. A razão domina no caso da alegoria, o que não
acontece com o símbolo. Além disto, Goethe destaca que o sentido da
alegoria é finito, ao passo que o do símbolo é infinito.
Schelling foi o pensador que mais se empenhou, ao longo da
Filosofia da arte (1803) e posteriormente da Filosofia da mitologia (a
partir de 1842), no insistente combate à interpretação alegórica do mito.
Contra esta hermenêutica dos mitos (herança dos estóicos), Schelling
reitera que o mito fala por si mesmo e de si mesmo: não fala de outra
coisa. Para Schelling, o mito tinha vida própria, ou seja, o mito diz o
que quer dizer. Neste sentido, “os deuses são (na mitologia) seres efetivamente existentes, que não são algo e significam outro, mas significam
somente aquilo que são” [2] , ou seja, “ a exigência de uma mitologia
é exatamente, não que seus símbolos signifiquem meramente idéias,
mas que sejam significativos por si mesmos, que sejam independentes”
[3] . Curiosamente, Schelling usa a tradição cristã para exemplificar
seu ponto de vista: “Assim, Maria Madalena não significa apenas o
arrependimento, mas é o próprio arrependimento vivo. A imagem de
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Santa Cecília, a santa protetora da música, é uma imagem não alegórica,
mas simbólica, pois tem uma existência independente da significação,
sem perder a significação” [4] . Após traçadas estas diferenças e a
ênfase na leitura simbólica do mito, nos perguntamos: em Bultmann
e em Ricoeur, a linguagem religiosa é tratada como símbolo ou como
signo (alegoria)?
Rudolf Bultmann, com o seu projeto de desmitologização procurava, primeiramente, encontrar o “querigma” obstaculizado pela
linguagem mitológica. Num segundo momento, utiliza-se do existencialismo heideggeriano para significar esta mensagem ao ser humano
moderno. Por detrás da visão mitológica do Novo Testamento, há verdades existenciais que precisam ser desvendadas, trazidas à luz. Neste
sentido, a linguagem religiosa nada mais é do que a forma alegórica que
os primeiros cristãos deram à compreensão que tinham da existência
e do querigma.
No caso de Ricoeur, observamos certo desenvolvimento na sua
tentativa de inserir o simbólico no pensamento filosófico reflexivo.
Numa de suas primeiras obras que tratam diretamente do símbolo, La
symbolique du mal (1964), percebemos que não há clara distinção entre
signo e símbolo. Ao definir a tarefa da interpretação dos mitos, fica evidente que o que Ricoeur denomina símbolo, nada mais é do que signo.
Ricoeur afirma que a interpretação “é o trabalho de pensamento que
consiste em decifrar o sentido oculto no sentido aparente” [5] . Neste
sentido, a linguagem mitológica seria apenas roupagem para verdades
ocultadas. O grande mérito de Ricoeur é reconhecer a oferta de sentidos
que a linguagem mitológica possui, nunca se deixando prender numa
única possibilidade de interpretação. Outro ponto problemático em Ricoeur é a frase que tanto o encanta “o símbolo suscita o pensamento”.
Esta afirmação não leva em consideração que o símbolo também se
refere aos nossos sentidos.
Na obra Teoria da interpretação (1974), percebemos certa mudança
em Ricoeur. Ainda que neste período o símbolo não seja mais o centro
de seu pensamento, afirma “(...)Sinto-me inclinado a dizer aquilo que
nos símbolos pede para vir à linguagem, mas que nunca ingressa totalmente na linguagem, é algo de poderoso, eficaz e forte” [6] . Ricoeur
reconhece que no aspecto não-semântico dos símbolos é que está sua
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força. Paul Tillich afirma algo parecido quase 20 anos antes no segundo
volume da Teologia Sistemática ao dizer que “Não é possível completa
desmitologização quando se fala a respeito do divino” [7] .
Posteriormente, Ricoeur vai ainda mais longe. Num dos capítulos
da obra Figuring the Sacred (1995), ao traçar paralelo entre o ritual e o
lado não-semântico do símbolo, Ricoeur chama a atenção para o aspecto
estético (no sentido kantiano) do símbolo. “Aqui nós devemos levar
em consideração não apenas a amplitude do campo da hierofanias mas
também o símbolo como pertencente ao nível estético da experiência,
antes do nível verbal” [8]
Ainda que trilhem por caminhos diferentes, Bultmann e Ricoeur
chegam ao mesmo destino. Em ambos, o símbolo (na dimensão do
mito) é entendido como referente a “verdades” existenciais que podem
ser decifradas e transformadas em afirmações unívocas. Neste sentido,
Schelling é excepcional ao destacar que a mitologia em geral não seja
entendida alegoricametne, mas simbolicamente. Assim, a mitologia
exige não que seus símbolos signifiquem idéias que suscitem apenas
nosso pensamento, mas que sejam seres significantes por si próprios
e se dirijam também aos nossos sentidos. É importante ressaltar que
a alegoria não está em oposição ao simbólico, mas é incorporada por
ele. Sem dúvida, a riqueza da mitologia está no fato de também conter
a significação alegórica como possibilidade, mas não como limite. O
que difere o signo do símbolo é que este tem a capacidade de simultaneamente ser e significar. Maria Madalena não apenas significa o
arrependimento, mas é o arrependimento vivo.
É curioso notar que Bultmann e Ricoeur (em sua primeira fase)
objetivem articular o raciocínio filosófico com a questão dos mitos. A
filosofia nasceu na Grécia Antiga em virtude da distinção entre ciência
e mito. Essa filosofia herdada dos gregos e baseada na reflexão exige
univocidade. Esta forma de praticar filosofia não pode comportar o erro,
o equívoco. No entanto, o símbolo, como entendido pelos românticos
e pelo próprio Ricoeur, é caracterizado por sua oferta de sentidos, por
sua multivocidade. Assim, não seria tarefa por demais audaciosa (senão
impossível) articular ambos baseando-se na filosofia reflexiva do Cogito
sem transformar a linguagem simbólica do mito em alegoria?
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Nas questões relacionadas com o mitológico na linguagem religiosa, Paul Tillich é o teólogo contemporâneo que mais destaca a
importância do mito para a linguagem religiosa. Ele nos lembra que
“Nada menos que símbolos e mitos podem expressar nossa preocupação suprema” [9] . A linguagem mitológica, entendida em sua dimensão simbólica, é capaz de dar expressão ao sentimento da relação do
homem com o absoluto. Essa realidade manifesta-se nos sentimentos,
valorizando os sentidos. Sendo assim, Tillich defende que o projeto de
desmitologização “deve ser atacado e rejeitado se significa a remoção
dos símbolos e mitos conjuntamente... alguém pode substituir um mito
por outro, mas ninguém pode remover o mito da vida espiritual humana”
[10] , afinal o mito é a linguagem da religião.
Pesquisas recentes sobre o misticismo têm destacado a importância
do corpo e dos sentidos para o período, assim chamado, “pós-filosófico”. Martin Heidegger em O fim da filosofia e a tarefa do pensamento
aponta para o fim da filosofia. É fundamental destacarmos que quando
Heidegger fala em fim da filosofia quer “significar o fim da metafísica”
[11] , já apontado por Nietzsche em fins do XIX. No entanto, o fim da
metafísica não é o mesmo que cessação do pensamento. Este sempre
existiu. Antes da formação da filosofia na Grécia, o pensamento se
manifestava no misticismo e na estética. Jaci Maraschin [12] , seguindo
nas trilhas de Heidegger, aponta que a religiosidade do século XXI é
caracterizada por seu aspecto místico e estético. Dentro desta compreensão da religiosidade, o aspecto não-semântico do símbolo assume
lugar de destaque, mostrando os limites da filosofia do Cogito na sua
relação com o simbólico e com o sagrado.
Ludwig Wittgenstein em sua obra Philosophical Investigations
afirma que “os limites da minha linguagem denotam os limites do
meu mundo” [13] . O segundo Wittgenstein, menos místico do que
no Tratactus, não faz distinção entre o mundo acessível e o mundo
exprimível. O limite da linguagem está no indizível, o que é diferente
do experimentável. Mesmo não podendo expressar a experiência através
da linguagem, estamos condenados a dizer. Talvez, seja este aspecto
de dizer, não obstante os limites da linguagem diante do indizível, que
Fernando Pessoa tentou expressar no seu poema intitulado “O amor”.
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O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p’ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pr’a saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...
Nesta relação com o indizível, o aspecto estético, ou se preferir
não-semântico da linguagem mitológica, pode se apresentar como
possibilidade de a civilização ocidental, como Heidegger esperava,
“superar algum dia seu caráter técnico-cinetífico-industrial como única
medida da habitação do ser humano no mundo” [14] . A linguagem
mitológica, em sua dimensão simbólica, nos abre novos horizontes
impossíveis para a linguagem ténico-científica-industrial, se apresenta
como possibilidade de invasão do terreno do indizível, sem no entanto,
conquistá-lo completamente.
A linguagem técnico-científica-industrial permitiu ao ser humano o
domínio sobre a natureza, o desenvolvimento da técnica, da ciência e da
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filosofia, ou seja, do pensar racional. No entanto, esta linguagem tornouse pesada [15] . Na sociedade dominada por esta forma de linguagem,
qualquer expressão lingüística (ou artística) que não faça sentido ou
não transmita informações e conhecimentos é tida por inferior. De certa
forma, esta hierarquização está ligada com a tradição metafísica. Com o
seu ultrapassamento [16] , temos a possibilidade de emancipar valores
que esta tradição considerou baixos e ignóbeis. O próprio mito somente
tem seu valor, se encarado como fonte de informação e conhecimento
[17] . E esta misteriosa face do mito que não se deixa traduzir? Que a
todo momento nos escapa? Para a superação do que Heidegger chamou
de caráter técnico-científico-industrial, é necessário, como propõe Jaci
Maraschin “(...) dar um salto hermenêutico do espaço teológico para
o espaço estético” [18] e ver a linguagem mítico-religiosa não apenas
em sua dimensão alegórica, mas valorizar seu aspecto simbólico, nos
colocando em contato com o mundo numênico, o mundo da imaginação
e da fantasia projetada. Afinal, o símbolo tem o poder de tornar “presente o ausente, sem transformar o ausente em presente” [19] .
NOTAS
[1] TILLICH, Paul. Theology of culture. New York, Oxford University
Press, 1959.P. 54. E ainda, Systematic Theology, vol. 1, p.241: “ This
is partially the result of confusion between sign and symbol and the
partially due to the identification of reality with empirical reality, with
the entire realm of objective things and events”.
[2] SCHELLING, F. Filosofia da arte, Trad. Márcio Suzuki. São Paulo,
EDUSP, 2001. p.13.
[3] idem, ibidem. P. 105.
[4] Idem, ibidem. P.201.
[5] RICOEUR, Paul. Existencia y hermeneutica. Trad. Graziella Baravalle. Buenos Aires, Editions du Seuil, 1969. P. 17.”es el trabajo de
pensamiento que consiste en descifrar el sentido oculto en el sentido
aparente, desplegar los niveles de significación literal”.
[6] RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação. Trad. Artur Morão. Lisboa,
Edições 70, 1987.P. 75.
[7] TILLICH, Paul. Systematic Theology. 3 vols. Chicago, University
of Chicago Press, 1951-1963.Vol. II, p. 29.
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[8] RICOEUR, Paul. Figuring the sacred. Figuring the Sacred. Trad.
David Pellauer. Minneapolis, Fortress Press, 1995. P. 50. Here we must
take into account not just the amplitude of the filed of hiereophanies
but also its belonging to na aesthetic level of experience rather that a
verbal one”.
[9] TILLICH, Paul. Dynamics of faith. New York, Harper & Row, 1957.
P. 53: Nothing less than symbols and myths can express our ultimate
concern.
[10] TILLICH, Paul. Dynamics of faith. New York, Harper & Row,
1957. P. 51: … it must be attacked and rejected if it means the removal
of symbols and myths altogether... One can replace one myth by another,
but one cannot remove the myth from man’s spiritual life.
[11] HEIDEGGER, Martin. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento.
Trad. Ernild Stein. Col. Os Pensadores. São Paulo, Nova Cultural ,
1999. P.72
[12] MARASCHIN, Jaci. Em busca de nova humanidade. in Tempo e
Presença, Março/abril de 1999. p. 09
[13] WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical investigations. Oxford,
Blackwell, 2ª edição, 1997. P.111
[14] HEIDEGGER, Martin. Op. Cit. P.74.
[15] Cf. CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São
Paulo, Cia. das Letras, 1990. Cf. também KUNDERA, M. A insustentável leveza do ser, São Paulo, Cia. das letras, 1999.
[16] Cf. HEIDEGGER, Martin. “A superação da metafísica”. In Ensaios e Conferências. P.61-86. No original, Heidegger usa a palavra
alemã überwindung, que indica uma forma de superação distinta da
dialética, que utiliza o termo aufklärung. A superação da metafísica
em Heidegger não é entendida como processo de superação crítica,
rumo ao outro estágio mais “iluminado”, que seria um passo interno
à modernidade. É preciso mover-se dentro dos espaços da metafísica,
dialogar com esta tradição. Não simplesmente abandoná-la. Cf. VATTIMO, G. O fim da modernidade. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo,
Martins Fontes, 1996.
[17] Esta visão do mito está presente, por exemplo, na psicanálise. Há
a idéia de que certos mitos são arquétipos. Rollo May, A procura do
mito, São Paulo, Manole Ltda., 1991.
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[18] MARASCHIN, Jaci. “O Traço e o Poema”. In Caminhando, no.
09. São Paulo, 1º Semestre de 2002.
[19] Idem. O simbólico e o cotidiano. p. 123.
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