A geografia do pensamento filosófico

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A geografia do pensamento filosófico1
Roberto Machado
A filosofia, para Gilles Deleuze, não está num nível mais elevado do que
os outros saberes; não é uma “reflexão sobre”, no sentido de um metadiscurso,
uma metalinguagem, um discurso, um saber, que teria por objetivo formular ou
explicitar critérios de legitimidade ou de justificação dos outros discursos, dos
outros saberes, tendência moderna que começa com Kant – ao criar a distinção
entre o empírico e o transcendental – e perdura, por exemplo, na epistemologia,
no neopositivismo, na filosofia da linguagem. Para Deleuze, a filosofia é
produção, criação de pensamento, tal como são as outras formas de saber, sejam
elas científicas ou não. Daí por que, ao se colocar em relação intrínseca com
outros domínios, seu objetivo é estabelecer conexões, ressonâncias entre esses
domínios, a partir da questão central que orienta suas investigações.
Essa questão diz respeito ao que significa pensar. O objeto principal da
filosofia de Deleuze é o exercício do pensamento. Mas o pensamento não é um
privilégio da filosofia: filósofos, cientistas, artistas são pensadores. Isso não
significa, no entanto, que Deleuze assimile os diferentes domínios de saber, pois
ele assinalou claramente – sobretudo em Qu’est-ce que la philosophie? – o
fundamental da diferença constitutiva da filosofia: enquanto a ciência cria
funções e a arte cria agregados sensíveis, “compostos de sensação”, perceptos e
afetos, a filosofia cria conceitos.
Assim, há, ao menos, três aspectos na ideia de que a filosofia é criação de
conceitos. Primeiro, ela é criação, assim como a ciência, a arte, a literatura. O
elemento da filosofia não é dado, não existe implicitamente, velado, em algum
lugar, sendo explicitado, revelado, desvelado pelo filósofo. Se o pensamento
filosófico é criador é porque faz nascer alguma coisa que ainda não existia,
alguma coisa nova. E a esse respeito Deleuze está seguindo Nietzsche quando
diz que o filósofo não descobre: inventa. Segundo, a filosofia é criação
1
Estas ideias são aprofundadas em meu livro Deleuze, a arte e a filosofia, Rio Zahar, 2009.
2
específica, criação de conceitos, enquanto que as outras formas de criação –
científica, artística, literária – não são conceituais. Desse modo, se, por um lado,
os conceitos são como sons, funções, imagens, linhas, cores, quando se trata de
criação o meio, o instrumento, o elemento próprio da filosofia é o conceito.
Terceiro, essa criação de conceitos é singular, ou melhor, é criação de conceitos
singulares. O conceito é uma singularidade. Ideia, também de inspiração
nietzschiana, que já afasta Deleuze de muitos outros filósofos, e o leva a sugerir
que todos eles criaram conceitos singulares, mesmo se disseram o contrário. E a
esse resposto pode-se dizer que os conceitos são assinados, têm o nome de seu
criador: assim, Ideia remete a Platão, substância a Aristóteles, cogito a
Descartes, mônada a Leibniz, condição de possibilidade a Kant, duração a
Bergson...
*
Se fazer filosofia é criar conceitos, como são criados os conceitos da
filosofia de Deleuze? Minha hipótese é que sua filosofia é, em última análise,
um sistema de relações entre conceitos criados de duas maneiras diferentes: por
um lado, conceitos oriundos, provenientes, extraídos da própria filosofia, isto é,
de filósofos privilegiados em suas leituras – principalmente Espinosa, Nietzsche
e Bergson – e, por outro lado, conceitos suscitados, sugeridos, pela relação entre
conceitos filosóficos e elementos não conceituais provenientes de domínios
exteriores à filosofia. Assim, no procedimento filosófico de Deleuze, a literatura,
as ciências e as artes estão a serviço da própria filosofia, ou da criação de
conceitos. Se não há reflexão sobre, mas pensamento a partir, ou melhor, com, e
se a filosofia é especificamente o domínio dos conceitos, pensar a exterioridade
da filosofia é estabelecer ressonâncias, conexões, agenciamentos entre conceitos
filosóficos e elementos não conceituais dos outros saberes que, integrados ao
discurso filosófico, são transformados em conceitos.
Mas a relação com a exterioridade ou com os outros saberes, embora
constitutiva, não é o aspecto determinante desta inter-relação conceitual. Mesmo
que um conceito seja como um som ou uma imagem, e não haja superioridade
3
de um sobre os outros, do ponto de vista da elaboração da problemática
filosófica de Deleuze, ou de seu próprio exercício de pensamento, há prioridade
da filosofia sobre os outros domínios. A razão é que, sendo sua questão uma
questão filosófica – o que é pensar? – ou melhor, sendo seu objetivo principal
produzir o conceito de exercício do pensamento, o apelo aos saberes não
filosóficos funciona fundamentalmente como comprovação ou confirmação de
uma problemática definida conceitualmente pela filosofia. O nãofilosófico entra
como elemento que vem alimentar um pensamento eminentemente voltado para
a filosofia e até mesmo para os conceitos tradicionais da filosofia. Se há, nesse
caso, prioridade da filosofia é porque ela é o regime dos conceitos, e, mesmo
que os conceitos venham de fora, os conceitos suscitados pela exterioridade não
conceitual estão, no pensamento de Deleuze, subordinados aos conceitos
oriundos da tradição filosófica.
Não nego a importância do extrafilosófico para compreender seu
procedimento de criação. A antropologia, a psicanálise, a etologia, são, neste
sentido, fundamentais. O cinema, a pintura, a literatura também. Desejo
salientar, no entanto, não só que suas questões vêm prioritariamente da filosofia,
da tradição filosófica, mas também que, na trajetória de Deleuze, elas se
colocaram a partir da filosofia. A meu ver, Deleuze é fundamentalmente um
historiador da filosofia que ousou pensar filosoficamente, deixando a marca de
seu próprio pensamento em todos os seus estudos. Isso implica levar em
consideração o que é exterior ao discurso técnico ou explicitamente filosófico.
Mas significa principalmente instituir a leitura dos filósofos como parte
essencial de seu modo próprio de filosofar, ou de subordinar o conhecimento das
questões e problemas filosóficos à constituição de um pensamento: o seu.
*
A característica mais elementar da leitura deleuziana dos pensamentos
filosóficos, científicos e artísticos é o fato de ela se propor mais como uma
geografia do que propriamente como uma história, no sentido de considerar o
pensamento não através de uma dimensão histórica linear e progressiva, em que
4
o posterior é superior – como em Hegel –, nem mesmo de uma história
descontínua, que abandona a ideia de progresso – como em Foucault –, mas
privilegiando a constituição de espaços, de tipos não apenas heterogêneos, mas
sobretudo antagônicos.
Isso significa que a relação entre criação de conceitos e tradição
filosófica, como a estabelece Deleuze, consiste em erigir o modelo, ou mais
precisamente, o processo de pensamento de determinados filósofos como
condição de seu modo singular de filosofar. Assim, o privilégio de determinados
filósofos em seus estudos monográficos é a tentativa de construir um “espaço
ideal”,2 diferente do representado por Platão, Aristóteles, Descartes, Hegel, que
se organiza segundo outros princípios e pretende escapar dos pressupostos em
que normalmente se acredita estar fundada a filosofia; é o projeto de criar, a
partir de filósofos passíveis de entrar em relação, em comunicação, em
ressonância num mesmo espaço, conceitos que expressem ou tornem possível
um novo pensamento. E essa ideia de criação de outro espaço de pensamento,
que aparece nos livros monográficos, é perceptível bem mais claramente nos
livros temáticos – Différence et répétition, Logique du sens, L’anti-Oedipe,
Mille plateaux,Qu’est-ce que la philosophie?. Pois, centrados nas questões da
diferença, do sentido, do desejo, da multiplicidade, do pensamento filosófico,
esses livros estendem as ressonâncias aos saberes científicos, literários e
artísticos, sempre com o objetivo de contrapor o espaço da imagem do
pensamento, que é dogmático, ortodoxo, metafísico, moral, racional..., ao espaço
do pensamento sem imagem, que é pluralista, heterodoxo, ontológico, ético,
trágico... Assim, por exemplo, enquanto a moral julga a vida a partir de valores
transcendentes, é um sistema de juízos sobre o que se diz e o que se faz em
termos de bem e de mal considerados como valores metafísicos, a ética avalia
sentimentos, condutas e intenções referindo-os a modos de existência imanentes
que eles supõem ou implicam, leva em consideração os modos de ser das forças
vitais que definem o homem por sua potência, pelo que ele pode.
5
*
Qual é o procedimento utilizado por Deleuze para criar essa geografia do
pensamento? Ou mais precisamente, como se dá a relação entre os filósofos
privilegiados por expressarem um estilo de pensamento que permite a criação do
espaço ideal alternativo do pensamento sem imagem? Estabelecendo uma
analogia com a pintura e em alusão a um dos domínios de expressão do
movimento dadaísta, de Arp, Picabia, Duchamp, Man Ray, Max Ernst...,
Deleuze diz, no texto mais explícito sobre o assunto, que essa relação é do tipo
de uma colagem. Quer dizer, assim como Marcel Duchamp colocou uma
pequena barba e um bigode na Mona Lisa de Leonardo da Vinci, a colagem que
Deleuze faz no pensamento dos outros deve agir como um duplo, e comportar o
máximo de modificação própria ao duplo.3 E essa ideia de duplo sem
semelhança também está presente quando, estabelecendo uma analogia com o
teatro, ele diz que essa relação entre filósofos é uma espécie de teatro filosófico.
O que significa dizer que Deleuze funciona como um dramaturgo que escreve as
falas e dirige a participação de cada pensador em sua filosofia. E, para fazer
isso, ele utiliza um procedimento de colagem que faz aparecer, sob a máscara de
Sócrates, o riso do sofista, ou faz com que Duns Scot receba os bigodes de
Nietzsche, mas um Nietzsche fantasiado de Klossovski ou de Blanchot.
Aí está por que Deleuze não pode ser considerado propriamente um
historiador da filosofia. Para ele, repetir o texto não é buscar sua identidade, mas
afirmar sua diferença. A leitura dos filósofos – e não filósofos – que ele realiza
age, atua, interfere com o objetivo de produzir um duplo. E é justamente a
compreensão da amplitude e do modo de funcionamento desse procedimento
que modifica o texto, produzindo um duplo sem semelhança através de pequenas
ou grandes torções, que possibilita explicitar o diferencial próprio ao
pensamento de Deleuze, o que constitui sua singularidade.
*
2
3
Dialogue, Paris, Flammarion, 1977, p.22
Cf. Différence e répétition, Paris, PUF, 1972, p.4.
6
O que possibilita Deleuze estabelecer duas orientações básicas do
pensamento e apresentar uma delas como uma resistência, uma alternativa
radical? Ou melhor, qual é o critério que lhe permite isolar duas vertentes na
história da filosofia – e, de modo ainda mais geral, no pensamento –, considerálas antagônicas e escolher uma delas para situar seu próprio pensamento? A
resposta pode ser dada imediatamente: a filosofia de Nietzsche.
A filosofia de Nietzsche é, em sua inspiração fundamental, uma tomada
de posição a respeito da própria filosofia. No Crepúsculo dos ídolos, por
exemplo, Nietzsche assinala, de modo lapidar, as grandes etapas de sua história
– Platão, a filosofia cristã, Kant, o positivismo –, define-as como o platonismo
da filosofia e se insurge contra toda a orientação do pensamento filosófico desde
Platão.4 A filosofia de Nietzsche é, como ele mesmo a denominou, um
“platonismo invertido” (umgedrehter Platonismus). Pois é justamente essa
temática, interpretada como crítica da filosofia da representação e denominada
às vezes “subversão”, às vezes “perversão do platonismo”, que constitui o centro
a partir do qual gravitam as análises histórico-filosóficas de Deleuze e inspira
toda a elaboração de seu pensamento filosófico.
A dualidade entre dois tipos de filosofia tem, por conseguinte, Nietzsche e
Platão como polos opostos. Num extremo, Platão, com quem nasce a imagem do
filósofo como ser das ascensões, como aquele que sai da caverna, se eleva e se
purifica na medida em que se eleva em direção ao Bem e à Verdade. Platão, para
quem, segundo Deleuze, a célebre dualidade entre sensível e inteligível – que dá
início à metafísica – existe em função da distinção entre a boa cópia, a cópia
bem fundada, que é uma imagem dotada de semelhança, e a má cópia, o
simulacro, que é uma imagem sem semelhança. Se Platão é um filósofo da
representação é porque sua postura metafísica privilegia a imagem fundada pela
semelhança interna com a identidade superior da Ideia em detrimento da
imagem sem semelhança, o simulacro. No outro extremo, Nietzsche, o anti4
Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos, “Como o ‘mundo verdadeiro’ acabou convertendo-se numa
fábula”.
7
Platão, aquele que mais radicalmente duvidou dessa orientação pelo alto, em
direção da identidade do modelo, aquele em quem se nota de maneira mais
radical o exercício de um pensamento que afirma a diferença. Como? Segundo
Deleuze, por ter pensado a vontade afirmativa de potência como sendo a
diferença e o eterno retorno como o pensamento capaz de criar a vontade de
potência como afirmação, porque torna possível pensar diferencialmente a
diferença, isto é, o eterno retorno como revir, retorno da diferença.
Nietzsche é essencial para a compreensão do procedimento deleuziano de
crítica da filosofia e busca de um espaço alternativo, ou, mais precisamente, de
crítica da filosofia da representação e constituição de uma filosofia da diferença.
Há, porém, uma diferença importante no modo como Nietzsche realiza uma
genealogia e Deleuze uma geografia do pensamento. É que Nietzsche
praticamente não reconhece aliados. Ele pensa sua problemática como
radicalmente diferente da de qualquer outro pensador, e sempre procurou, em
sua trajetória filosófica, intensificar essa diferença para não ser contaminado
pelo niilismo do pensamento. A característica marcante de Nietzsche, e daí sua
situação singular na história da filosofia, é que, para ele, mais do que para
qualquer outro pensador, pensar afirmativamente acarreta necessariamente
pensar contra tudo o que foi pensado desde Platão.
Deleuze não. Deleuze é um filósofo da aliança. Partindo de Nietzsche
como critério de avaliação, o estilo filosófico deleuziano consiste em lhe
encontrar aliados em graus diferentes, estabelecendo conexões entre conceitos
de filósofos que merecem figurar no espaço de uma filosofia da diferença. A
problemática nietzschiana de inversão do platonismo – interpretada, como disse,
como crítica da filosofia da representação, e denominada "subversão" ou
“perversão do platonismo” – constitui o centro a partir do qual gravitam as
análises histórico-filosóficas de Deleuze. É ela que permite esclarecer a situação,
no texto deleuziano, de determinados filósofos e de determinados conceitos
elaborados por esses filósofos ou reelaborados, a partir deles, por Deleuze,
conceitos que apontam na direção de uma atividade filosófica diferente do estilo
8
de filosofia “majoritário” desde Platão. Isto significa que Deleuze tem o
sentimento nietzschiano de um niilismo do pensamento que domina, entre outros
setores, a filosofia. Mas, diferentemente de Nietzsche, esse sentimento não é
total, visto que seu projeto de uma geografia do pensamento busca justamente
contraexemplos ou tentativas de escapar do niilismo da história dos saberes.
Deste modo, elaborar ou reelaborar uma filosofia da diferença significa
estabelecer uma ponte, um canal, uma ligação entre Nietzsche e os que podem,
de um modo ou de outro, mais ou menos, ser aproximados de sua filosofia.
*
Assim, segundo a geografia deleuziana do pensamento, existem, por um
lado, filósofos que, de um modo geral, estão excluídos do espaço em que
Deleuze pretende situar seu pensamento. É o caso sobretudo de Platão,
Aristóteles, Descartes, Hegel, os grandes representantes da imagem tradicional
da filosofia considerada como filosofia da representação, isto é, como aquela
que reduz a diferença à identidade, pois é isso que significa representação para
Deleuze.
A crítica deleuziana da representação, no entanto, só adquire todo o seu
significado em função do projeto de elaboração de uma filosofia da diferença.
Em termos nietzschianos, eu diria que ela é como um “não” decorrente de um
“sim”, ou de uma afirmação fundamental. Isso porque a questão central da
filosofia de Deleuze, o exercício do pensamento, tem insistentemente como
resposta um pensamento que afirma a divergência e a disjunção, ou que
estabelece a relação entre termos, ou entre séries, como a de uma diferença que
reúne imediatamente o que distingue.
Nota-se isso em sua análise dos estoicos, que, para mostrar como eles
realizaram a primeira grande subversão do platonismo, privilegia dois conceitos
de sua filosofia – o corpo e o incorpóreo – e a relação entre eles. A idéia geral da
análise é a seguinte: Os estoicos viam os corpos como única realidade,
deslocando a noção de ser do inteligível para o corpóreo, e considerando a Ideia
um “extra-ser impassível”. O incorpóreo, ou a Ideia, não é uma causa
9
transcendente, mas um efeito superficial. O que é uma subversão do platonismo.
Além disso, esses níveis físico e lógico relacionam-se através da ética. Isto é,
entre uma lógica da superfície, que diz respeito ao incorpóreo, e uma física da
profundidade, que diz respeito às misturas de corpos, há uma ética que relaciona
o acontecimento puro, ideal, incorpóreo, e a profundidade dos corpos, por um
movimento ou um processo de encarnação, efetuação, incorporação. O sábio
estoico é alguém que compreende o acontecimento puro em sua verdade, e, ao
mesmo tempo, quer sua efetuação em um estado de coisas e em seu próprio
corpo.5
Nota-se isso também em sua análise de Bergson, que considera a
“intuição” bergsoniana como um método que tem dois momentos fundamentais.
O primeiro produz o que Deleuze chama “dualismo reflexivo”, e decompõe um
misto impuro, empírico, espaciotemporal em dois tipos de multiplicidade
qualitativamente diferentes: fundamentalmente a duração e o espaço. A duração
é uma multiplicidade interna, não numérica, simples, contínua, heterogênea, que
compreende todas as diferenças de natureza, todas as diferenças qualitativas, e
para quem a diferença é uma alteração com relação a si mesma. O espaço é uma
multiplicidade de exterioridade, numérica, descontínua, homogênea, que
apresenta exclusivamente diferenças de graus, diferenças quantitativas, e para
quem a diferença é apenas aumento ou diminuição. Aí está a divisão, tão
utilizada por Deleuze, entre o virtual e o atual. O outro momento do método de
intuição é genético, e diz respeito à relação desses dois termos fundamentais.
Agora, o método parte de uma unidade virtual e a divisão, ou o dualismo
genético que ele produz, é proveniente da diferençação (différenciation), ou da
atualização dessa virtualidade, segundo linhas divergentes que diferem por
natureza. Não há, portanto, semelhança entre o virtual e o atual. Ao atualizar-se,
o virtual se diferencia. A diferençação é justamente a atualização de uma
virtualidade que persiste através de suas linhas divergentes atuais. Ela explica,
5
Os textos de Deleuze sobre os estoicos encontram-se em Logique du sens, séries 2, 10, 18, 19, 20, 23,
24.
10
desenvolve por linhas divergentes o que estava envolvido. E, na filosofia
bergsoniana, é o célebre conceito de impulso vital (élan vital) que designa essa
atualização do virtual por linhas de diferençação tão importante para a
concepção deleuziana da gênese como processo de atualização.
Nota-se isso ainda em sua análise de Espinosa, que privilegia a relação
entre a substância e os modos através dos atributos, ou, mais precisamente, a
partir da teoria da univocidade dos atributos. Os atributos são formas de ser
unívocas que não mudam de natureza ou de sentido quando são afirmados da
substância e dos modos. A univocidade dos atributos não significa que a
substância e os modos tenham o mesmo ser. A substância é em si, os modos são
na substância como em outra coisa e, assim, não se dizem no mesmo sentido; no
entanto, o ser ou as formas unívocas de ser que são os atributos se dizem no
mesmo sentido do que é em si e do que é em outra coisa. Portanto, devido aos
atributos, que constituem a essência da substância e contêm a essência dos
modos, há, ao mesmo tempo, identidade de forma e diferença de essência entre a
substância e os modos.
Deleuze aprofunda essa problemática da univocidade, explicitando, a
partir daí, uma dupla gênese característica da ontologia espinosista: primeiro, a
gênese no sentido de constituição lógica da substância, que se elabora através de
uma teoria da distinção formal, ou da distinção real não numérica, e explica a
passagem das primeiras proposições da Ética, que demonstram a existência de
uma substância por atributo, às proposições que afirmam haver apenas uma
substância para todos os atributos; segundo, a gênese no sentido de produção
física dos modos, através de distinções modais intrínsecas e extrínsecas que
dizem respeito às quantidades intensivas e extensivas contidas no atributo e que
são partes da essência ou potência da substância. E, se a teoria da univocidade
do ser – pensada, na análise de Espinosa, como teoria da univocidade do atributo
e da causa – é tão importante para a elaboração da filosofia de Deleuze, é pela
possibilidade que ela oferece de afirmar uma síntese disjuntiva, ou o caráter
11
sintético, e não analítico, da disjunção, com a divergência e o descentramento
que ela acarreta.
Mas a concordância de Deleuze com esses filósofos de modo algum é
total, no sentido de que ele não vai com eles até o fim, ou considera que eles não
vão até o fim. É assim que, analisando como o incorpóreo é submetido a uma
“dupla causalidade” que, por um lado, remete aos corpos, que são suas causas, e,
por outro lado, remete a outros incorpóreos, que são sua “quase causa”, Deleuze
abruptamente se afasta dos estoicos por não terem pensado essa relação entre
incorpóreos como uma pura relação de expressão.6 É assim também que Le
bergsonisme assinala uma ambiguidade na crítica que Bergson faz da
intensidade, e Différence et répétition, radicalizando a divergência, considera a
crítica bergsoniana pouco convincente, por conceder às qualidades o que
pertence à intensidade, fazendo com que esta apareça como um misto impuro, o
que arruína a própria ideia de gênese.7 É assim, finalmente, que a concepção da
univocidade, segundo a qual o ser se diz em um mesmo sentido de tudo aquilo
de que ele se diz, exigindo, segundo Deleuze, que a substância seja afirmada dos
modos, e não o inverso, o afasta de Espinosa e o faz buscar em Nietzsche a
“subversão categórica” pela qual o ser se diz do devir ou a identidade se diz do
diferente.8 Daí por que, como já sugeri, é na análise de Nietzsche, considerado
como um pensador ontológico, que Deleuze encontra com mais radicalidade o
exercício de um pensamento que afirma a diferença.
*
Platão significa o nascimento da filosofia da representação. Nietzsche é o
ápice do anti-platonismo ou da filosofia da diferença, onde também se situam os
estoicos, Espinosa, Bergson, Foucault... Mas se, no nível molar dos sistemas
filosóficos ou da orientação geral de um pensamento, a delimitação dos dois
espaços da representação e da diferença é nítida, no nível molecular dos
elementos ou dos conceitos componentes, a comunicação entre esses espaços é
6
7
Cf.Logique du sens, Paris, Munuit, 10/18, 1969, 24ª série, p.235.
Cf. Le bergsonisme, Paris, PUF, 1968, p.93, Différence et répétition, p.308-309.
12
frequente. Isto significa que até mesmo filósofos que estão situados no espaço
da representação são objeto, por parte de Deleuze, de um “roubo” de conceitos
que desfaz a teia conceitual em que estão inseridos ou desconsidera algumas das
consequências que acarretam nas teorias filosóficas em que foram produzidos.
Livros como Différence et répétition, Logique du sens, L’anti-Oedipe, Mille
plateaux, Qu’est-ce que la philosophie? fazem isso o tempo todo. Perante esses
filósofos, a posição de Deleuze é quase sempre a de um sim... mas, bastante
característico do procedimento de colagem9.
O filósofo que mais serve a Deleuze neste sentido, e que portanto ocupa
uma posição bastante singular em seu pensamento é Kant. Por um lado, seus
livros estão cheios de virulentas críticas a Kant, que consistem em explicitar as
razões pelas quais sua filosofia situa-se no espaço da representação, isto é, está
subordinada aos postulados da recognição e do senso comum. Por outro lado, a
filosofia de Kant ocupa uma posição privilegiada entre os instrumentos
conceituais que permitem compreender a elaboração e a estruturação de seu
pensamento filosófico. E isso é possível porque vários elementos conceituais da
filosofia de Kant apontam na direção de uma filosofia da diferença.
O que Kant significa para Deleuze? Em primeiro lugar, a descoberta da
“diferença transcendental”, ou o fato de o sujeito ser constituído por duas formas
irredutíveis que fazem com que ele seja receptivo, afetado, e determinante,
espontâneo. Se Deleuze se aproxima de Kant é pela novidade kantiana de
considerar o conhecimento a partir de uma diferença de natureza, e não apenas
de grau, entre a sensibilidade, faculdade de intuições, e o entendimento,
faculdade de conceitos, ou de considerar o conhecimento como síntese do
heterogêneo. E se Deleuze privilegia em suas análises o “paradoxo do tempo”,
segundo o qual o “eu penso” só determina minha existência – “eu sou” – sob a
8
Cf. Différence et répétition, p.59.
Com relação a Leibniz, essa posição é evidente em livros como Différence et répétition, Logique du
sens, Spinoza et le probleme de l’expression, mas não mais em Le pli. Leibniz et le barroque, onde,
mudando de perspectiva, Deleuze apresenta Leibniz como um filósofo da diferença,com o qual seu
acordo seria total se não fosse o último parágrafo do livro em que, apesar de se considerar leibniziano
9
13
forma de um eu passivo no tempo, a valorização da diferença, no interior do
sujeito, entre o eu transcendental e o eu fenomenal, a partir da forma vazia do
tempo evidencia, mais uma vez, que Deleuze sempre interpreta Kant na
perspectiva da questão da diferença e de sua relação com o pensamento. Assim,
quando pensa o paradoxo kantiano do tempo, a partir da questão central de sua
filosofia, o que orienta a torção característica de sua técnica de colagem é o
interesse em conceber o tempo como diferença transcendental que introduz uma
fissura, uma rachadura no sujeito.
Mas o acordo está longe de ser total. E a principal crítica deleuziana à
filosofia de Kant diz respeito ao fato de a relação entre as faculdades ser um
acordo harmonioso, ou uma colaboração sob a forma do mesmo. Considerando
esse princípio do senso comum um dos postulados da representação, Deleuze
vai, então, seguir dois caminhos que lhe permitem extrair da questão kantiana da
relação das faculdades uma filosofia da diferença. O primeiro percorre as três
críticas kantianas para dar conta do deslocamento, com o sublime, na Crítica da
faculdade do juízo, da questão da condição de possibilidade para a questão, mais
fundamental segundo ele, da gênese. No caso do sublime, o desacordo entre a
imaginação e a razão é o princípio genético do acordo das faculdades; trata-se,
portanto, de um acordo engendrado no desacordo.
O segundo caminho privilegia os pós-kantianos Salomon Maimon e
Herman Cohen, por haverem formulado um método de gênese interna no nível
da própria Crítica da razão pura. O que Deleuze então procura com a ajuda dos
pós-kantianos é criticar as ideias de que a diferença entre conceito e intuição
seja externa ou extrínseca e de que um termo se adapte ao outro por meio do
esquema da imaginação, que criaria uma harmonia entre termos exteriores, e,
principalmente, exigir um princípio de diferença ou de determinação interna. E
isso o leva, finalmente, a se afastar não apenas de Kant, mas até mesmo dos póskantianos, ao propor uma teoria da ideia, considerada como multiplicidade
por causa da teoria da dobra, coloca reticências, apontando as mudanças que o leibnizianismo teria
sofrido.
14
diferencial que percorre todas as faculdades, e do dinamismo espaciotemporal,
ou esquema ideal, com o objetivo de mostrar que a intensidade considerada
como princípio da gênese ou do processo de atualização é a potência da
diferença, de que a noção kantiana de esquema não dá conta.
*
Essa constituição de dois espaços antagônicos do pensamento é também
exposta de um ponto de vista sistemático, isto é, independentemente da leitura
de um filósofo ou não filósofo determinado, sob a forma de uma doutrina das
faculdades, em vários livros de Deleuze, sendo o principal deles Différence et
répétition. E o que se nota, então, é uma espantosa correspondência entre as
análises monográficas e esse novo tipo de abordagem da questão da diferença e
da representação que chamo de doutrinária para salientar o quanto ela é central
no pensamento de Deleuze.
O que Deleuze critica na filosofia da representação? Seu principal
pressuposto, o postulado segundo o qual o pensamento é um exercício natural de
uma faculdade, é naturalmente bem dotado para possuir a verdade, enquanto o
erro, considerado como o negativo do pensamento, vem de fora, é produto de
mecanismos externos. E seu objetivo, nesse caso, é demonstrar que essa
concepção implica, subjetivamente, a unidade, ou a identidade do sujeito
pensante como fundamento da concordância, da harmonia entre as faculdades, e,
objetivamente, a unidade, ou a identidade do objeto como submetendo a
diversidade dada.
E o que Deleuze propõe como alternativa à representação? Um
“empirismo transcendental”10 – expressão que já é uma colagem de Hume e
Kant – que considera o pensamento como involuntário e inconsciente e se define
como uma teoria do uso paradoxal das faculdades. São três os aspectos mais
importantes dessa teoria. 1) Cada faculdade tem um objeto próprio, específico,
singular; cada faculdade só apreende o que a concerne exclusivamente,
diferencialmente, e não pode ser objeto de nenhuma outra. 2) A relação entre as
15
faculdades é do tipo de um “esforço divergente”, de um “acordo discordante”, o
que faz com que seja o encontro contingente e violento com o que força a pensar
que produz a necessidade de um ato de pensamento. 3) As ideias são uma
multiplicidade, uma coexistência virtual das relações entre elementos
diferenciais intensivos que referem o diferente ao diferente e se atualizam, se
encarnam,
se
efetuam
por
um
processo
genético
de
diferençação
(différenciation) qualitativa e quantitativa.
Nessa sistematização dos princípios da filosofia da diferença, através de
uma doutrina das faculdades, em correspondência com os estudos monográficos,
está, mais uma vez, o âmago da filosofia de Deleuze, que inclusive permaneceu
invariável no fundamental, apesar das modificações terminológicas e até mesmo
conceituais que sofreu.
*
Para concluir, gostaria de fazer três observações. A primeira diz respeito à
natureza e à extensão das análises de Deleuze. Privilegiei, na interpretação de
seu pensamento, sua leitura dos filósofos. Entre outras razões porque considero
Deleuze, antes de tudo, um historiador da filosofia que ousou pensar
filosoficamente, ou que encontrou no discurso filosófico os conceitos a partir
dos quais foi possível estruturar sua filosofia como um pensamento diferencial.
Mas esse privilégio que descortino em suas análises dos filósofos quando se
trata de explicitar o modo de funcionamento de seu pensamento não significa
ignorar seus importantes estudos sobre domínios exteriores à filosofia. A relação
entre saberes sempre foi muito intensa no procedimento filosófico de Deleuze,
não sendo, de modo algum, lateral ou circunstancial, visto que, como esclareci,
o objetivo principal de sua filosofia é investigar o que é pensar, e o pensamento
não é exclusividade da filosofia, mas uma propriedade de todo tipo de saber.
Daí por que, ao tematizar o discurso científico ou as expressões artísticas
ou literárias, ele jamais tem por objetivo fazer filosofia das ciências, das artes ou
da literatura; está sempre criando conceitos a partir do que foi pensado, com
10
Différence et Répétition, p.186, 187.
16
seus próprios elementos, em outros domínios, está sempre transformando em
conceitos o exercício não conceitual de pensamento existente nesses outros
domínios. Deste modo, ao pensar as ciências, a literatura e as artes, Deleuze está
realizando seu projeto filosófico de constituição de uma filosofia da diferença
sem que haja uma diferença essencial entre esses estudos e os estudos dos textos
tecnicamente filosóficos. Neste sentido – e para dar um único exemplo —, a
interpretação deleuziana da Recherche du temps perdu, de Proust, como uma
busca inconsciente e involuntária da verdade, é eminentemente filosófica não só
porque a considera como um sistema de pensamento, mas também porque a
contrapõe à filosofia da identidade e da representação, tornando-a um
instrumento da formulação de sua própria filosofia da diferença, pela maneira
como considera o signo, o sentido e a relação entre eles. Pois a importância que
Deleuze dá aos signos — e depois dará à intensidade — deve-se a que são eles
que forçam o pensamento a pensar em seu exercício involuntário e inconsciente,
isto é, transcendental, fazendo-o buscar o sentido, ou a essência considerada
como diferença última e absoluta. Mas essa hipótese poderia ser facilmente
confirmada com relação aos outros estudos de Deleuze sobre literatura, cinema,
pintura.
*
A segunda observação é que não penso que haja várias filosofias de
Deleuze, ou que, depois de L’anti-Oedipe, e de seu encontro com Felix Guattari,
sua filosofia tenha mudado radicalmente. É verdade que privilegiei neste artigo
seus escritos dos anos sessenta, entre outras razões porque são dessa época seus
principais estudos sobre filósofos, que, segundo minha interpretação, são mais
importantes para compreender sua própria filosofia do que seus estudos sobre
literatos e artistas, além de que também é dessa época o livro que expõe com
mais densidade o âmago de sua filosofia: Différence et répétition. Mas não me
parece que haja ruptura entre os estudos dessa época e os trabalhos posteriores
de Deleuze. Para dar alguma credibilidade a minha posição, darei dois
exemplos.
17
Um é o de seu livro sobre Foucault, o primeiro que escreveu sobre um
filósofo depois de L’anti-Oedipe e outros livros escritos com Guattari. Segundo
Deleuze, a questão central da filosofia de Foucault é “o que é o pensamento”, “o
que significa pensar”. Só que a especificidade de Foucault no âmbito dessa
questão que norteou Deleuze em todos os seus estudos está na existência de três
“eixos”, três “direções”, três “dimensões” do pensamento, que constituem uma
arqueologia do saber, uma estratégia do poder, uma genealogia da subjetivação.
Para meu objetivo basta seguir as duas primeiras direções.
O saber é constituído por dois elementos ou duas formas, uma forma de
conteúdo e uma forma de expressão: a visibilidade e o enunciado. E essa
interpretação bastante original se completa pela afirmação de que entre esses
elementos constituintes do saber há diferença de natureza ou heterogeneidade,
relação disjuntiva e primado do enunciado. Então, apesar das diferenças
evidentes que ele reconhece, Deleuze conclui por um “neokantismo” de
Foucault,11 no sentido de que o saber é constituído pelo entrelaçamento de
enunciados determinantes e visibilidades determináveis que são heterogêneos,
mas cuja heterogeneidade não impede sua mútua inserção. Já o poder é uma
relação de forças, um diagrama de forças, e a força, um poder de afetar outras
forças ou de ser afetado por elas. Além disso, as relações entre poder e saber têm
três características, que são do mesmo tipo que as existentes entre os elementos
do saber: 1) diferença de natureza, no sentido de que, enquanto o saber diz
respeito a formas, o poder é informe, intensivo; 2) pressuposição recíproca,
imanência mútua, no sentido de uma relação do tipo virtual-atual; 3) primado do
poder sobre o saber, no sentido de que a relação de forças é condição genética
ou dimensão constituinte das relações de formas.
Essas relações entre poder e saber levam Deleuze a, mais uma vez,
aproximar Foucault de Kant. Só que, nesse caso, a analogia, ou melhor, a
ressonância entre eles diz respeito ao diagramatismo de Foucault e ao
11
Foucault, Paris, Minuit, 1986, p.67.
18
esquematismo de Kant, responsáveis nas duas filosofias por uma “coadaptação”
entre formas de espontaneidade e de receptividade. Com a diferença de que, se,
para um, a imaginação é uma ponte, ou uma mediação, e, para o outro, o poder,
considerado como relações intensivas de forças, é um elemento informe de
diferençação (différenciation), a distância que os separa é grande. Daí por que,
enquanto Kant é, em última análise, situado pela geografia de Deleuze no espaço
da representação, a “ontologia” de Foucault é, antes de tudo, uma filosofia da
diferença que se expressa pela disjunção das formas do saber que tem o poder
como condição genética funcionando como diferenciador da diferença.
E para que também não se pense que a teoria das faculdades – que tem sua
formulação mais brilhante em Diferença e repetição – é um pensamento depois
abandonado, gostaria de mostrar que a relação disjuntiva entre elementos que
lhe é essencial pode ser encontrada na relação entre os elementos constituintes
do pensamento filosófico tal como é formulada em O que é a filosofia?, o
último grande livro de Deleuze, escrito com Guattari.
Essa concepção do pensamento filosófico explica-se a partir de três
elementos diferentes por natureza: o conceito, o plano de imanência e o
personagem conceitual, que correspondem, no pensamento científico, à função,
ao plano de referência e ao observador parcial e, no pensamento artístico, à
sensação, ao plano de composição e à figura estética.12
O conceito é um todo fragmentado, uma multiplicidade de componentes,
eles mesmos conceituais, heterogêneos, mas inseparáveis, intrinsecamente
relacionados, agrupados em zonas de vizinhança, ou de indiscernibilidade.
Como, por exemplo, o conceito cartesiano de eu ou de cogito — "penso, logo
sou" —, que tem três componentes: duvidar, pensar, ser. Mas Deleuze não reduz
a filosofia ao conceito, ou melhor, não considera o conceito o único elemento da
filosofia. Se ele define em seus últimos escritos sua filosofia como um
construtivismo, é no sentido de que, se os conceitos precisam ser criados, a
12
A exposição mais sintética dessas três grandes formas do pensamento está em Qu’est-ce que la
philosophie?, Paris, Minuit, 1991, p.186.
19
criação de conceitos é uma construção sobre um plano, ou filosofar, além de
criar conceitos, é também traçar um plano.
O plano de consistência, ou de imanência dos conceitos é um todo não
fragmentado, aberto, informe, ilimitado, que é o suporte onde os conceitos, que
o preenchem, se repartem, se distribuem. Os conceitos existem relativamente ao
plano sobre os quais eles se delimitam, aos problemas que eles devem
responder. O plano é a própria imagem do pensamento, a imagem que a filosofia
cria do que significa pensar. E, a esse respeito, o exemplo de Deleuze também
retoma uma ideia de Diferença e repetição: para Descartes, todo mundo sabe o
que significa pensar, todo mundo tem a capacidade de pensar, todo mundo quer
a verdade.13 Assim, mesmo se o plano é único no âmbito de uma filosofia, cada
grande filósofo traça um novo plano, mudando o que significa pensar.
Mas para haver filosofia é necessário que, além o conceito e o plano de
imanência, haja um terceiro elemento, que ocupa uma posição intermediária
entre os dois primeiros, criando uma coadaptação entre eles. É preciso um
personagem conceitual tanto para criar conceitos quanto para traçar o plano. Os
personagens conceituais são personagens intrínsecos ao pensamento, uma
categoria transcendental que é a própria condição do pensamento. Potências de
conceitos que operam sobre um plano de imanência, eles são as condições sob as
quais cada plano é preenchido por conceitos. Por exemplo, Deleuze considera
que o personagem conceitual do kantismo é o juiz, o legislador, no sentido de
que Kant faz do filósofo um juiz e da razão um tribunal onde se julga o que cabe
de direito ao pensamento. Assim, mesmo se o personagem conceitual não
aparece explicitamente, ele está presente em toda filosofia, pois é o verdadeiro
sujeito de uma filosofia, o verdadeiro agente de enunciação: o intercessor do
filósofo.
*
A terceira observação é que, ao apresentar sucintamente as grandes
articulações das leituras que Deleuze realiza dos filósofos, não estou
20
evidentemente querendo sugerir que elas pretendam reduzir os vários filósofos,
ou não filósofos, ao mesmo, no sentido de encontrar uma identidade que os
assimile. Cada interpretação deleuziana é sistemática, sempre pretendendo dar
conta, de modo global, dos princípios constitutivos de um pensamento. No
entanto, se as repetições do exercício do pensamento dos vários filósofos e não
filósofos agenciados pelo procedimento de colagem constituem um sistema, é
um sistema aberto que não totaliza, no sentido de que não é possível estabelecer
uma correspondência biunívoca entre termos de proveniência diferente.
O desfile das leituras deleuzianas dos filósofos que acabo de promover
mostra justamente que a diferença entre eles persiste, ou que cada um conserva
sua singularidade. Além disso, Deleuze não se identifica com nenhum deles
totalmente, nem mesmo com Nietzsche, sua inspiração fundamental, aquele que
atingiu o ápice de uma filosofia da diferença. Sua leitura de Nietzsche é a
criação de mais uma máscara, de um duplo sem semelhança, e, neste sentido,
não só a leitura dos outros filósofos incide sobre o seu Nietzsche, mas também a
dos comentadores, que têm grande importância nas interpretações deleuzianas.
Como é o caso de Klossowski e Blanchot.
Por outro lado, a relevância e a constância em seu pensamento de
conceitos como síntese disjuntiva, diferenciador da diferença, gênese,
intensidade... evidenciam como o objetivo principal da filosofia de Deleuze é
sempre o estabelecimento de relações diferenciais. É esse invariante nas
variações dos autores e dos conceitos estudados que é, inclusive, o diferencial de
sua filosofia. Meu objetivo foi apresentar esse invariante, essa homologia
estrutural.
13
Qu’est-ce que la philosophie?, p.43, 60.
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