arena de debate - Revista Filosofazer

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arena de debate
A importância da sofística no
desenvolvimento do pensamento
pedagógico grego e a pertinência
da crítica socrático-platônica à
transmissão de uma arete política
Fernando Dala Santa*
Considerações iniciais
Vítimas de um grande preconceito histórico, devido especialmente
às contundentes críticas de Platão, os sofistas desempenharam um relevante papel no desenvolvimento do pensamento grego, especialmente
no que se refere ao seu aspecto pedagógico. Mais do que simples mercenários do saber, os sofistas criaram as condições para que a filosofia
grega pudesse se desenvolver, embora o impulso decisivo para isso tenha
se dado de modo negativo, isto é, enquanto crítica ao que o movimento
sofista havia se tornado.
* Filósofo. Doutorando em Educação pelo PPGEdu da Universidade de Passo Fundo.
Bolsista Capes/Prosup. E-mail: <[email protected]>.
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 47, jul./dez. 2015
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A revolução empreendida pelos sofistas no âmbito político-educacional se refere especialmente à nova concepção de virtude (arete), amparada na sua pretensa transmissibilidade, em oposição à ideia de que
fosse apanágio apenas de quem possuísse sangue divino. Embora seja
traduzido para quase todas as línguas como virtude, o conceito grego de
arete aludia à finalidade a que algo se destina concretizada na forma mais
perfeita, caracterizado a sua excelência. Portanto, a arete estava ligada
à noção de cumprimento de determinado propósito ou ponto máximo
do aperfeiçoamento possível para um ser. Com efeito, ao inferir uma arete não inata e ensinável na forma de uma instrução de cunho técnico, a
sofística ampliou a possibilidade de educação, até então restrita à aristocracia, para qualquer grupo capaz de lhe oferecer retribuição pecuniária.
Na democracia ateniense, a retórica se firmava como instrumento
por excelência da vida política, razão pela qual o modelo pedagógico
sofista angariou tamanho prestígio. A possibilidade de transmissão da
arete, concebida como habilidade retórico-política, caracterizou uma das
vertentes da sofística, tendo em Protágoras e no conceito de “homem
medida” seu exemplo paradigmático. No entanto, o relativismo inerente
ao uso persuasivo da retórica sofista instituiu um processo de decadência, que culminaria com uma total dissociação entre política e moral: a
validade de um discurso estava na sua capacidade de convencimento e
não propriamente na verdade do seu conteúdo.
Nesses termos, em relação aos severos ataques que Platão empreende
contra a sofística, é necessário ressaltar que se referiam ao contexto de
crise moral, política e educacional que assolava a Atenas do século IV
a.C e ao modo como os sofistas se inseriam em tal conjuntura. Platão,
na senda do pensamento socrático, estabelece uma fundamentação ontológica e epistemológica da arete, se opondo violentamente aos princípios educacionais dos sofistas e ao seu caráter técnico. Em lugar de uma
técnica política transmitida via instrução, Platão propõe uma formação
ampla que abarcasse os âmbitos intelectual, físico e moral dos indivíduos, sendo a arete, portanto, um constructo intelectual orientado pelo
conhecimento do sumo Bem.
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Os sofistas
Aquilo a que chamamos genericamente de sofística nunca representou um movimento intelectual propriamente dito, na medida em que
abarcava pensadores com doutrinas, métodos e objetivos distintos. Assim,
por sofistas podemos nos referir ao grupo heterogêneo de pensadores
que se encontrava intelectualmente circunscrito entre as pesquisas
naturalistas dos pré-socráticos1 e o advento da filosofia platônica2. Tal
concepção se ampara no fato de que o pensamento sofista, mesmo que
expressasse genuíno desejo pelo conhecimento, era forjado a partir da
experiência e das necessidades práticas da pólis, não estando aprisionado
a conceitos como “essência”, “bem”, “finalidade” ou “vontade” (ROTHER,
2012, p. 11-12). Nesse sentido, a contribuição da sofística para a história
da filosofia grega não pode ser menosprezada em razão das aspirações
puramente retóricas de alguns dos seus membros.
Originalmente, o termo grego sophós (sábio), sendo derivado de
sophía (sabedoria), indicava simplesmente um especialista em determinada atividade, “é o homem do ofício, homem que sabe, arquiteto,
médico, político, homem que possui a fundo uma técnica e dela aufere,
legitimamente, proveito” (RIVAUD, 1962, p. 76). Por outro lado, o título
sophistés (sofista), durante longo tempo considerado sinônimo de sophós, muito provavelmente referia-se, de modo especial, aos sábios responsáveis pela educação, sendo aplicado com frequência aos poetas, já
que, na concepção grega, a instrução prática e o aconselhamento moral
constituíam as suas principais incumbências (GUTHRIE, 1990, p. 40).
Posteriormente, a partir do século V a.C., o termo passou a ser utilizado
não mais como atributo dos poetas, já que o modelo de educação pautado nas poesias épicas, pouco a pouco, perdia o seu vigor, mas daqueles que tinham uma habilidade especial para compartilhar, na forma de
uma transmissão ativa. Tal transformação no sentido próprio do epíteto
“sofista” determina a afirmação da sofística enquanto rudimento de uma
nova concepção educacional.
1 Termo que designa, na história da filosofia, os primeiros filósofos gregos anteriores à
Sócrates, também chamados de fisiólogos, ou filósofos da natureza por se ocuparem
com o conhecimento do mundo natural (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006, p. 224).
2 Em certo sentido, essa divisão reacende a polêmica acerca da possibilidade de Sócrates também ser considerado um sofista, mesmo diferindo em essência tanto no
que concerne aos objetivos quanto aos métodos característicos da sofística.
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No geral, os sofistas eram conferencistas itinerantes que ofereciam
ensino em diversos campos, atraindo grande número de ouvintes, especialmente em Atenas, onde os habitantes eram tidos como amantes
da retórica e da discussão. Os cidadãos que dispunham de recursos
entregavam a complementação da educação de seus filhos aos sofistas,
para que aprendessem a arte da oratória e tudo mais que fosse necessário para transformá-los em políticos bem-sucedidos. Dentre os sofistas
mais destacados estavam Protágoras de Abdera, Górgias de Leontinos,
Trasímaco de Calcedónia, Pródico de Ceos, Hípias de Élide, Antifonte
e Crítias de Atenas.
A contribuição da sofística para a evolução do pensamento grego
foi, sem dúvida, muito significativa. Nas palavras de Rother (2012, p. 10),
desde o seu início, o pensamento expresso nas obras dos sofistas não se
resumia a jogos retóricos ou estratégias erísticas, mas, ao contrário, se
dedicava aos principais problemas filosóficos originados com a ingente
vida política grega, compreensíveis apenas em vista do contexto da polis.
Assim, se mostraria acertado, e mesmo necessário para compreendermos
a sua situação na história do pensamento, em certos aspectos considerá-los também como filósofos. Jaeger (1989, p. 237) afirma que do ponto de
vista histórico a sofística foi um fenômeno tão importante quanto foram
Sócrates e Platão, e sem a qual tais filósofos sequer teriam existido, nos
termos em que a oposição à ideias e concepções anteriores carregava a
gênese de cada novo desenvolvimento no âmbito filosófico.
Nesse sentido, o movimento sofista empreendeu uma verdadeira
revolução no pensamento grego, mudando o foco das pesquisas e reflexões filosóficas, da natureza (physis), alvo de estudo dos filósofos pré-socráticos, para as questões antropológicas, até então inexploradas. Esse
deslocamento do eixo da filosofia se deu pelo fato de que as reflexões
acerca da natureza, as tentativas de explicar como se dava a passagem do
uno para o múltiplo, ou seja, a busca pela unidade e estabilidade subjacente a um universo notadamente instável e mutável, pareciam ter chegado ao seu limite. Ademais, o século V a.C. apresentava elementos sociais,
econômicos e políticos que favoreceram o desenvolvimento da sofística,
ao mesmo tempo em que foram favorecidos pelas novas concepções de
educação e virtude que ela propunha.
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A importância da sofística: o novo ideal de arete
Inegavelmente o conceito de arete sempre esteve vinculado à questão
educacional, embora fosse, em seus primórdios, considerada um atributo
inerente à nobreza, aludindo aos ideais guerreiros da aristocracia cavalheiresca. Entretanto, o desenvolvimento histórico dos gregos acarretou
no ideal da arete humana sensíveis modificações, obrigando a busca por
um modelo de educação que conduzisse o homem a alcançar a excelência. A crescente afirmação do poder do povo (demos) que estendia a
possibilidade de ascensão ao poder a grupos mais amplos enfraqueceu
a noção de que a virtude era um atributo exclusivamente aristocrático.
É possível afirmar que a virtude da nobreza guerreira dava lugar à
virtude do cidadão, e à busca por um modelo consciente de educação.
O ideal de homem vinculado à efetiva participação na polis tornou-se o
escopo de todo o esforço educativo do pensamento grego. Nas palavras
de Jaeger,
[...] o novo Estado não teve outro remédio senão imitar. Seguindo
os passos da antiga nobreza, que mantinha rigidamente o princípio aristocrático da raça, tratou de realizar a nova arete, encarando
como descendentes da estirpe ática todos os cidadãos livres do Estado ateniense e tornando-os membros conscientes da sociedade
estatal e obrigados a se colocarem a serviço do bem da comunidade. Era uma simples ampliação do conceito de comunidade de
sangue, com a única diferença de que a vinculação a uma estirpe substituía o antigo conceito aristocrático do Estado patriarcal.
[...] O nascimento da paidéia grega é o exemplo e o modelo deste
axioma capital de toda a educação humana. A sua finalidade era a
superação dos privilégios da antiga educação para a qual a arete só
era acessível aos que tinham sangue divino (JAEGER, 1989, p. 234).
Essa nova concepção de arete passava a compor o ideal de uma formação ampla pressuposta pela paidéia enquanto caminho educacional
que conduziria à virtude. Somente uma formação consciente do espírito seria capaz de alcançar um contingente maior de cidadãos, e não
somente a nobreza.
A problemática sofística foi gestada durante a lenta crise da aristocracia, que implicou na crise da concepção tradicional de arete. Os sofistas souberam aproveitar esse momento de indefinição, cujo ponto de
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partida histórico é o Estado grego do século V a.C., dando forma e voz
à angústia da época em que viveram. A sua principal contribuição para
o problema da educação foi, sem dúvida, a ideia de que a virtude era
passível de ser ensinada, contrariamente à concepção tradicional de que
a arete seria um atributo exclusivo da nobreza. A partir dessa nova concepção de virtude, estreitamente ligada à questão político-educacional,
o ideal de excelência física e espiritual da aristocracia guerreira passava
a ser acessível mesmo a quem não possuía ascendência divina, mediante
a instituição da ginástica no que se refere aos aspectos físicos, e através
de uma educação acurada no que tange ao espírito.
O sucesso que os sofistas alcançaram se deve, em parte, ao fato de
terem proposto novos modos de percepção, respondendo aos reais anseios e necessidades dos jovens gregos, insatisfeitos com os valores tradicionais, na medida em que modelo clássico de educação já não era capaz
de atender as necessidades de um novo tempo que se afigurava. Reale e
Antiseri (1990, p. 73) destacam que, por esse motivo, é compreensível
que a sofística tenha escolhido como seus temas predominantes a ética, a
política, a retórica, a arte, a língua, a religião e a educação. Nesses termos,
é lícito afirmar que os sofistas inauguram o período humanista da filosofia
antiga, mas que acima de tudo eram especialistas na arte da palavra.
Em certo sentido, seria possível considerar a sofística antiga como “retórica filosófica”, pois discorria sobre temas comuns à filosofia, embora,
enquanto os filósofos se enredavam em suas questões sem alcançarem
grandes progressos, confessando ainda não dominarem plenamente tais
assuntos, os sofistas apresentavam de modo eloquente conhecimentos
pretensamente seguros (FILOSTRATO, 1999, p. 62).
Em um regime democrático como era o de Atenas no século V a.C.,
a palavra tinha um destacado papel. Nos tribunais e assembleias era
através do discurso que se lograva êxito, e era justamente essa a arte
geralmente transmitida pelos sofistas: a retórica. Desse modo, o que os
unia, na forma de um ponto comum entre a amplidão e complexidade
dos seus métodos e objetivos, era antes o ideal de uma arete política. “A
eloquência tornava-se o mais essencial dos instrumentos de ação política” (RIVAUD, 1962, p. 76). O problema primordial levantado pelos sofistas se referia à possibilidade de ensino da virtude, não apenas no seu
âmbito moral, mas de toda a arete, de toda a excelência, fosse ela técnica,
intelectual, moral ou política (SCOLNICOV, 2006, p. 19).
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Ao se anunciarem como mestres da virtude, e que poderiam ensiná-la mediante pagamento, os sofistas estenderam a possibilidade de
formação a grupos mais amplos, embora ainda se tratasse de uma educação para a elite, não mais sanguínea, mas econômica. É evidente que
não se tratava da educação do povo, mas dos dirigentes; mesmo assim,
em nenhum outro lugar além de Atenas o cidadão comum tinha tantas
chances de adquirir os fundamentos de uma cultura elementar. Além
disso, a sofística tinha um caráter eminentemente prático. Enquanto
os filósofos da natureza buscavam a verdade por ela mesma, não tendo
interesse declarado em angariar discípulos; os sofistas, ao contrário, tinham a arregimentação de discípulos como algo essencial, tornando-se
profissionais do saber.
Mesmo não sendo possível estabelecer um parâmetro que permita
analisar sistematicamente a proposta educacional da sofística, podemos
afirmar que ela tinha como objetivo a formação do espírito, levada a
cabo mediante diferentes métodos e processos. Assim, os sofistas trabalhavam com duas perspectivas distintas de educação: a transmissão
de um saber que poderia ser chamado de enciclopédico e uma formação mais ampla, abarcando diversos campos. Conforme Jaeger (1989,
p. 238), ao lado da educação meramente formal do entendimento, existiu também nos sofistas uma educação no elevado sentido da palavra,
não consistindo mais somente na estruturação do entendimento e da
linguagem, mas partindo da totalidade das forças espirituais.
Protágoras e a arete como virtude política
Nascido em Abdera3 entre os anos de 491 e 481 a.C., Protágoras
foi o mais famoso e celebrado sofista. Tendo visitado Atenas por diversas ocasiões, alcançou tamanho sucesso e apreço por parte dos políticos
atenienses que Péricles lhe confiou a redação de uma legislação para a
colônia de Turi na Magna Grécia, fundada no ano de 444 a.C. Entretanto, algumas de suas opiniões escandalizaram os cidadãos atenienses, em
especial o seu agnosticismo, sustentando a impossibilidade do conhecimento da existência ou não dos deuses. Protágoras sofreu um processo por
impiedade, tendo morrido possivelmente em um naufrágio a caminho
da Sicília, enquanto fugia da condenação que lhe seria imposta.
3 Colônia grega fundada na Trácia por volta de 654 a.C.
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O princípio fundamental do pensamento protagórico pode ser resumido através do axioma “o homem é a medida de todas as coisas,
daquelas que são por aquilo que são e daquelas que não são por aquilo
que não são” (Teeteto, 152a, Crátilo 385e-386a). Esse princípio negava
a existência de critérios absolutos capazes de diferenciar ser e não-ser,
falso e verdadeiro e, de maneira mais ampla, todos os valores; o critério
seria sempre relativo, ou seja, seria sempre o homem4. Farrington (1947,
p. 80), porém, assevera que não se mostra correta a interpretação desse
conceito como uma inflexível afirmação do princípio do subjetivismo.
Protágoras era legislador. Assim, quando afirma que o homem é a medida de todas as coisas, é quase certo que se refere à contingencialidade das
instituições humanas, que deviam se adaptar às mutáveis necessidades
do ambiente sócio-histórico a que o homem se vincula.
O conceito de homem-medida é aprofundado em uma obra intitulada Antilogias5, na qual Protágoras demonstrava que cada argumento
permite um contra-argumento de igual força, que o anularia. Assim,
algo que é sentido ou interpretado por um indivíduo difere consideravelmente do que outro indivíduo sentiria ou interpretaria nas mesmas
condições. A concepção de que não existe critério absoluto leva à conclusão de que nenhum dos debatedores estaria no erro, ou seja, cada um
argumentaria de acordo com a sua própria noção de verdade, o que, de
certo modo, abriria precedente para um perigoso relativismo, embora
esse não fosse, em absoluto, o seu intuito primordial.
O objetivo traçado por Protágoras a partir do princípio das duplas
razões contraditórias era munir seus alunos das ferramentas necessárias
para serem vencedores nas contendas de ordem intelectual, ou ações nas
quais a retórica fosse exigida. Seu método se pautava na oposição das
teses plausíveis acerca de temas determinados (antilogia). Assim, Protágoras ensinava o modo pelo qual a respeito de cada objeto ou fenômeno, inclusive sobre elementos concernentes à discussão ético-política,
era possível desenvolver argumentos favoráveis e contrários. Isso traz à
tona a questão acerca da noção de que Protágoras ensinava a defender
o argumento mais fraco. Todavia, não se tratava necessariamente de
sustentar um argumento falso, ou mal fundamentado, mas de ressaltar
a possibilidade de interpretações alternativas. Conforme Reale, “não
4 Entendido não como humanidade, mas enquanto homem individual.
5 Obra principal de Protágoras da qual restaram apenas testemunhos.
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significa que ele [Protágoras] ensinasse a injustiça e a iniquidade contra
a justiça e a retidão, mas simplesmente que ensinava os modos com os
quais era possível sustentar e levar à vitória o argumento (qualquer que
fosse o seu conteúdo)” (1993, p. 203). E se a verdade só existe em relação
a algo, e não como princípio absoluto, não há nada de errado em sustentar um argumento que expresse os interesses e a verdade individual
de quem o defende.
Platão fez de Protágoras personagem em seus diálogos e mesmo
que as palavras expressas nessas obras não possam ser lidas como testemunhos literais do pensamento do sofista, é bem provável que muitas
das concepções ali descritas sejam realmente protagóricas. No diálogo
que leva o nome do sofista, Platão faz Protágoras afirmar que o seu ensinamento se pautava na prudência6, tanto em assuntos privados, quanto
nos públicos, tornando o seu discípulo apto a administrar do melhor
modo a sua própria casa ou a cidade (Protágoras, 318e). Com isso, o sofista dá a entender que a virtude seria perfeitamente ensinável, tanto que
todos os cidadãos no convívio diário com os mais jovens lhes ensinam
de maneira indireta (Protágoras, 325d-326d). Protágoras admitia que a
virtude, a excelência moral e política, transmitida de geração para geração de modo não-intelectual, estava na base de qualquer sociedade.
Portanto, a arete da qual se fazia mestre, a “prudência”, representaria,
em suma, uma habilidade política. Assim, a possibilidade de ensino da
virtude se daria em razão de não ser um objeto de aprendizagem intelectual, mas o aperfeiçoamento de uma técnica: seria possível ensinar
alguém a ser um bom político do mesmo modo que era possível ensinar
a ser um bom artesão.
Entretanto, Sócrates levanta um questionamento sobre a unidade
da virtude, e se alguém que possui uma virtude, forçosamente possuiria
todas as partes que a compõe (justiça, temperança, santidade, coragem),
ao que Protágoras responde negativamente. A tentativa de encaminhar-se para uma definição una da virtude pretende demonstrar que ela não
pode ser outra coisa senão conhecimento, expondo a proximidade entre
justiça e santidade (Protágoras, 329c-332a); e entre o bom e o prazeroso7,
6 Existem algumas traduções que substituem “prudência” por “astúcia”, como é o caso
da que faz uso Reale (1993), mais condizente com o caráter prático da concepção
sofística de virtude.
7 A concepção de prazer é aqui distinta da comumente defendida pelos sofistas.
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na medida em que buscar o prazer e evitar a dor é agir visando o próprio
bem, embora não se configure como um bem verdadeiro a ação que de
alguma forma ocasione danos aos outros. Destarte, por existirem prazeres que podem ser nocivos e algumas dores benéficas, é imperioso certo
conhecimento que permita fazer as escolhas acertadas (Protágoras, 357b).
Trabattoni (2010, p. 58) auxilia na compreensão deste trecho do diálogo, afirmando que, para Platão, toda a ação é realizada com vistas a
um bem, e isso implica um ato cognitivo dirigido à identificação de tal
bem, por conseguinte, a ação cognitiva considerada correta, por si só
evidencia a sua virtude. É precisamente pelo fato de que a concepção de
virtude esboçada por Protágoras não se referir diretamente ao bem, mas
ao que se mostra subjetivamente útil, que ela não pode ser considerada
uma virtude verdadeira.
O diálogo termina paradoxalmente com uma inversão das proposições inicialmente defendidas: Sócrates que de início negara a possibilidade do ensino da virtude considera-a então como ciência, logo,
sendo ensinável; enquanto Protágoras, que se intitulava mestre na virtude,
negava a sua unidade e a identificação com o conhecimento, repelindo a
possibilidade de transmiti-la (Protágoras, 361a-b). Todavia, o paradoxo e
a contradição são apenas aparentes, porque se a virtude fosse aquilo que
Protágoras considerava, e que ensinava a seus alunos, com toda a certeza,
não seria ciência. Ora, a virtude sendo, como pensa Sócrates, “ciência
intuitiva dos valores e do bem, é evidente que não poderia ser ensinada
por Protágoras” (KOYRÉ, 1988, p. 44). Com efeito, na intrincada concepção socrático-platônica de virtude como conhecimento, encontramos a própria questão da excelência humana na busca pela integralidade formativa presente na Paidéia. Mesmo que a virtude não permita a
sua transmissão via instrução, pois não se mostra um conteúdo pronto,
poderia ser desenvolvida pela apreensão racional da sua essência. Em
outras palavras, a virtude entendida como conhecimento pressupõe o
cultivo de uma disposição interior, é a educação do caráter enquanto
desenvolvimento pleno da personalidade humana.
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A degeneração do movimento sofista e a
crítica socrático-platônica
A exasperação de algumas concepções levou à degeneração do movimento sofista, o que veio a culminar com os eristas, que se digladiavam
em estéreis contendas através de discursos; e com os sofistas políticos
que chegaram a teorizar o imoralismo, desprezando qualquer lei ou princípio moral. O relativismo exacerbado dos sofistas acabou por revelar-se um problema. A sofística perdeu-se moralmente até se tornar uma
mera técnica de persuasão psicológica, cujo objetivo seria o êxito político
a qualquer custo, completamente alheio à verdade ou à justiça. Para Ángel (2012, p. 81) a oferta intelectual dos sofistas seria o manejo lúcido da
palavra, subordinando o discurso aos interesses de quem o proferisse. A
esse respeito, Maire afirma que a sofística, inicialmente preocupada com
a formação da juventude,
[...] vai transformar-se em Retórica, em arte de elaborar discursos eloquentes a partir de “lugar-comuns”, em técnica dos meios
capazes de convencer e persuadir, em disciplina capaz de levar a
melhor na discussão e na defrontação de teses, na controvérsia
ou “antilogia”; o que conta não é o valor intrínseco do que é dito,
mas o triunfo permitido pela maneira de dizer, a habilidade em
o defender. Assim, a preocupação com a Verdade dá lugar à cultura exclusiva do verossímil, a vontade de prosseguir a Ciência
do Ser dá lugar ao desejo de jogar com as aparências suscetíveis
de seduzir o interlocutor (MAIRE, 1966, p. 22).
O advento da sofística acabou por acelerar o processo de substituição das velhas noções da moralidade patriarcal e com isso o enfraquecimento de valores tais como a coragem, a honra e a dedicação à cidade,
presentes na moral aristocrática tradicional; pondo em seu lugar o ideal
do gozo e do poder, que, em suma, seriam os ideais da tirania. Nesse
sentido, o novo paradigma educacional inerente ao desenvolvimento
da sofística de modo algum se mostrava melhor do que o antigo, pois,
graças ao seu caráter relativista, acabou por voltar-se unicamente para
o sucesso individual no campo político, fazendo com que o espírito do
lucro tivesse mais importância do que o sentido cívico (CENCI, 2012, p.
29). Embora os sofistas não tenham sido os únicos e talvez nem mesmo
os principais responsáveis pela decadência dos valores antigos, é certo
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que forneceram o suporte intelectual às mudanças que se descortinavam.
Para Koyré (1988), a guerra do Peloponeso e todas as suas consequências
tiveram um papel nefasto na degradação das instituições gregas: “dizimada pela guerra, abalada pelas revoluções que a acompanharam e seguiram,
a Grécia estava madura para a era das tiranias” (KOYRÉ, 1988, p. 77).
Platão nutria um profundo descontentamento em relação à situação
da política grega do seu tempo, corrompida pela ascensão de governantes
que se pautavam na retórica vazia e persuasiva ensinada pelos sofistas,
e cuja administração contemplava unicamente os interesses de grupos
particulares. Na concepção platônica, a sofística seria a formadora do
orador público, espécie de simulacro do homem de estado verdadeiro, “a
falsificação do verdadeiro filósofo (KOYRÉ, 1988, p. 78).
Assim, negando as noções de verdade e justiça, os sofistas ensinariam a técnica e a moral do sucesso e da afirmação de si mesmo, sendo
capazes de arrastar multidões com argumentos baseados no não-saber.
De fato, sendo analisada pelo viés da sofística, a política não estaria
restrita à esfera da moral, mas à esfera do poder e, sendo que a palavra proporciona o poder, é natural que o melhor orador prevaleça. Por
conseguinte, a verdade e a justiça não existiriam como instâncias superiores aos homens, mas apenas como conveniências que se impõem
pelo discurso. Reale destaca que “o problema do qual parte Platão para
a construção do seu Estado ideal nasce da necessidade de responder de
maneira definitiva às críticas dissolventes que a sofística (em particular
na sua corrente degenerada de sofistas políticos [...]) levantava contra a
justiça” (1994, p. 243).
Com efeito, Platão considerava que o discurso persuasivo e relativista dos sofistas estava pondo em crise a essência da Paidéia grega, e
que a virtude não poderia ser vinculada exclusivamente a uma técnica
política. Bem sabemos que os sofistas desempenharam um papel de extrema importância para a evolução do pensamento grego. No entanto,
Platão conviveu com os resquícios do movimento sofista, quase que
completamente descaracterizado e já moralmente deficitário, de onde
podemos inferir a pertinência da crítica platônica8. Tudo o que Platão
escreveu acerca dos sofistas estava destinado a ilustrar a irresponsabi8 Platão entendia que os sofistas eram almas pequenas e sem retidão, servos de sua
época e de seus discursos (Teeteto, 172c-173b); caçadores remunerados de jovens
ricos e mercadores do saber (Sofista, 231d-e).
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lidade dos seus ensinamentos e a vulgaridade da sua autopropaganda
(FARRINGTON, 1947, p. 79).
Platão, ao desenvolver os princípios essenciais do pensamento
socrático, não tinha dúvidas de que o adestramento político, mote do
plano pedagógico sofista, deveria ser suplantado. Ao criticar a mera
transmissão de uma técnica política, não necessariamente vinculada à
verdade ou à busca pelo verdadeiro, Platão tinha a sua preocupação voltada para um modelo educacional que objetivasse a formação de indivíduos capazes de apreender a essência dos fenômenos. “Mediante a educação, a alma se eleva ao nível dos bens permanentes da ordem racional
e moral, constituindo-se, desse modo, no fundamento seguro do agir
moral e político” (GOERGEN, 2009, p. 28). Assim, se estabelece a ideia
de que a virtude é passível de ser transmitida não através da simples
instrução, mas mediante uma formação ampla e criteriosa, objetivando
a busca pela realidade inteligível, que independe de fatores acidentais e
circunstanciais, alcançável somente através da razão:
[...] o caminho dialético para o bom, o justo e o belo, que Sócrates
se esforçava por percorrer, era o caminho do verdadeiro conhecimento. Se por esta via Sócrates conseguia remontar acima do
mutável até o estável, acima da diversidade até a unidade, é porque
esta unidade e esta estabilidade eram, segundo a maneira como
Platão concebia a essência destes fenômenos, o verdadeiro Ser
(JAEGER, 1989, p. 423-424).
Com efeito, somente o conhecimento da realidade inteligível poderia
garantir o estabelecimento de princípios éticos que orientariam a organização social. O percurso que levaria ao conhecimento das verdades
essenciais não era, em absoluto, fácil de ser trilhado, pressupondo uma
educação cuja especificidade residiria na busca pelo sumo Bem. Na República, Platão estabelece que a arete se refere às qualidades intrínsecas
de cada cidadão e que orientariam a sua ação específica na Cidade, de
modo que as virtudes do indivíduo fossem análogas às virtudes do Estado. Conforme aponta argutamente Paviani, para Platão “o indivíduo e a
polis constituem-se numa única realidade relacional. O psicológico não
é separado do sociológico” (2008, p. 60).
Seria precisamente na concepção de virtude como desenvolvimento
de uma função própria, sendo uma construção intelectual e não mera
instrução técnica, que Platão estabelece as bases do seu Estado Ideal e a
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determinação da essência da justiça. Portanto, a justiça entendida como
ferramenta de dominação é algo tão absurdo no contexto da filosofia
platônica quanto uma educação que privilegiasse a transmissão de uma
técnica de persuasão e controle político. Em Platão o homem virtuoso
seria aquele que cumpria a função para a qual estivesse naturalmente
disposto, evidenciada e potencializada através de um processo formativo especialmente formulado para esse objetivo. Tal reflexão culminaria com a afirmação paradigmática de que somente a sabedoria pode
fundamentar legitimamente o poder político, razão pela qual o governo
deveria ser entregue aos filósofos (República, 473d). Para Platão a virtude obviamente não era uma técnica a ser aprendida, mas uma conduta
pautada no conhecimento do Bem, por essa razão subordinava a virtude
ao saber, “a fim de forjar um conceito de excelência que pudesse ser uma
norma de conduta e de avaliação das condutas estáveis e ao mesmo tempo
passível de ser ensinada” (BRISSON; PRADEAU, 2010, p. 75).
Considerações finais
A história do espírito grego representa uma escalada intelectual na
qual a sofística se coloca como elemento imprescindível para a evolução
do pensamento filosófico, na medida em que redireciona as pesquisas
do âmbito da natureza para os problemas antropológicos. A ressignificação do conceito de virtude, que passa a ser entendido não mais como
atributo exclusivo da nobreza, balizou um modelo pedagógico voltado
para a educação de um número maior de cidadãos. Assim, o crescente
interesse da sociedade grega por questões de ordem política tornou os
sofistas e seus préstimos educacionais extremamente populares. Tendo
atuado durante o apogeu da democracia ateniense, os sofistas souberam
explorar as potencialidades da retórica como instrumento de persuasão,
imprimindo um caráter técnico à atividade política.
A quebra de paradigma que a sofística empreendeu tornou inviável
a manutenção de modos de organização social e de modelos pedagógicos que até então permeavam a sociedade grega. Sem dúvida, as mudanças que se seguiram ao surgimento da sofística foram inicialmente
positivas, ampliando a possibilidade de acesso ao conhecimento e, con104
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sequentemente ao poder, a círculos mais amplos, entretanto, o subjetivismo exacerbado que trouxe como subproduto acabou por encetar
ingentes problemas. Se na medida em que transmitiam a arte retórica
os sofistas puderam relativizar os valores tradicionais, em contrapartida
não foram capazes de propor uma nova coleção de valores, o que levaria,
em última instância, à um perigoso relativismo moral.
Os sofistas não obtiveram êxito na tarefa educacional a qual se propuseram, ou seja, a de ensinar a arete, precisamente por a terem identificado como uma técnica, quando não simplesmente relegado a virtude a
uma condição secundária diante da preocupação primordial de sucesso
no campo político. Não obstante a sua capital importância no desenvolvimento do espírito grego, os sofistas não estavam aptos a postular uma
nova concepção de homem a partir da destituição das noções tradicionais e nem de definir em que consistia a virtude. Por conseguinte, o desconhecimento do telos humano e da verdadeira arete humana explica os
motivos pelos quais as habilidades e técnicas transmitidas pelos sofistas
foram não apenas eticamente questionáveis, mas por vezes também capazes de arruinar ao invés de educar seus discípulos.
Platão lutou contra os efeitos negativos da sofística na sociedade
grega, contrapondo-se à ideia de transmissão de uma técnica política,
entendida como virtude política. A filosofia platônica busca uma fundamentação ao mesmo tempo ontológica e epistemológica da virtude,
que se revela na acepção de que apenas o conhecimento da realidade
suprassensível pode garantir a posse da verdadeira ciência política. Por
conseguinte, a arte política na sua manifestação autêntica não poderia
se prender às aparências, nem estar sujeita às demandas contingenciais
inerentes aos modelos políticos degenerados. No entanto, o âmago dos
ataques de Platão à noção sofística de política como técnica de persuasão se refere menos ao caráter pretensamente utópico da sua filosofia do
que à concepção lúcida de que a virtude é um constructo intelectual,
pensado enquanto formação plena do cidadão.
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