PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito EFETIVAÇÃO DO DIREITO AO ENSINO FUNDAMENTAL: UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA Divan Alves Tavares Belo Horizonte 2006 Divan Alves Tavares EFETIVAÇÃO DO DIREITO AO ENSINO FUNDAMENTAL: UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA Dissertação apresentada ao Curso de PósGraduação em Direito da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito. Orientadora: Profa. Dra. Rita de Cássia Fazzi Belo Horizonte 2006 T231e Tavares, Divan Alves Efetivação do direito ao ensino fundamental: uma questão de justiça / Divan Alves Tavares. - 2006 151 f. ; il. Bibliografia: f. 145-151 Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Faculdade de Direito, 2006. “Orientação: Profa. Dra. Rita de Cássia Fazzi, Faculdade de Direito”. 1. Direito à educação. I. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. II. Título. CDD 379.26 Divan Alves Tavares Efetivação do direito ao ensino fundamental: uma questão de justiça Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Belo Horizonte, 2006. ____________________________________________________ Profa. Dra. Rita de Cássia Fazzi - Orientador (PUC-Minas) ____________________________________________________ Prof. Dr. ____________________________________________________ Prof. Dr. A Deus, que me deu a vida. Aos meus pais, pelo constante carinho e educação. À querida Carla, cuja inteligência é uma referência para mim, pelos domingos e feriados em que ficou sozinha para permitir que eu pudesse concluir esse curso. Ao Júnior, Rosilene e Luciede, por existirem. À querida Rita Fazzi, minha orientadora, pela paciência que sempre me dispensou. A todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para esta conquista, em especial meus caros amigos Gernan e Wanderson, e meu sogro, Deli Dias. “Em caso algum a educação deve ser depreciada, pois ela é o primeiro dos bens que são proporcionados aos homens.” Platão RESUMO O objetivo primordial desta dissertação é demonstrar que o direito à educação, integrante do direito à vida, essencial para a formação humana, não está se efetivando no sistema educacional brasileiro, apesar de todo o aparato normativo existente; e apresentar mecanismos que permitam o acesso do cidadão ao Judiciário a fim de concretizá-lo. Para demonstrar essa deficiência, foram utilizadas pesquisas do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP/MEC) e do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Inicialmente buscou-se definir o significado do termo educação e a distinção entre educação e instrução que, embora presente há séculos, encontra-se em plena decadência, pois, não há como pensar educação sem instrução e instrução sem educação. Apresentamos a concepção filosófica da educação, da Grécia Antiga até Kant, passando por Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, John Locke e Rousseau. Procurou-se demonstrar que a educação é um direito essencial para a sobrevivência da espécie humana e. fundamental para a consolidação do Estado Democrático de Direito. O Direito à educação e ao ensino fundamental tem natureza jurídica de direito humano fundamental, de segunda geração, uma vez que é um direito social, além de estar inserido no direito à vida. As normas constitucionais que o legitimam são dotadas de aplicabilidade imediata, conforme posição da doutrina, e ainda, estando constitucionalmente definido como um direito público subjetivo viabiliza-se a sua exigência perante os que estão obrigados a oferecê-lo. Analisada a questão da legislação infraconstitucional regulamentadora do direito constitucional ao ensino fundamental, verificou-se ser ela ampla e bastante completa, a saber: Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Estatuto da Criança e do Adolescente e o Plano Nacional Educação. Sendo eles, juntamente com a Constituição vigente, fornecedores dos mecanismos aptos a contribuir para a efetivação de tal direito. Abordam-se, por fim, os dados do INEP e SAEB que demonstram a não concretização do direito ao ensino fundamental e as formas de buscar a sua efetivação. Focando o papel das políticas públicas na formulação e implementação deste direito e a responsabilidade da administração pública, que, em caso de omissão ou insuficiência deve ser sanada através da ação do Poder Judiciário. Cabe então ao Judiciário, em última instância, posicionar de forma a determinar a formulação e implementação das políticas necessárias para este fim, quando provocado, seja pelo Ministério Público seja por qualquer cidadão que se sinta lesado no seu direito. Palavras-chave: Direito à educação, efetividade. ABSTRACT The main goal of this paper is to demonstrate that the right to education, integrant of the right to life, essential to the human formation, is not happening in the Brazilian educational system, despite the whole existing normative apparatus; and to present mechanisms that allow for the citizen's access to the Judiciary Power in order to make it real. In order to demonstrate this deficiency, Studies National Institute researches and Educational Researches were used (INEP/MEC) and the ones of the National System of Evaluation of the Basic Education (SAEB). The term education meaning was initially sought to define and the distinction between education and instruction which, although having been present for centuries, is now in full decadence, as one cannot think of education without instruction and of instruction without education. We present the philosophical conception of education, from the Old Greece up to Kant, passing by Plato, Aristotle, Saint Augustine, Saint Thomas of Aquinas, John Locke and Rousseau. We tried to demonstrate that education is an essential right for the survival of the human species and fundamental for the Consolidation of the Democratic State of Right. The Right to education, especially the right to fundamental learning, has juridical nature of fundamental human right, of second generation, once it is a social right, besides being inserted in the right to life. The constitutional rules that legitimate it are endowed of immediate applicability, according to the doctrine position, and yet, being constitutionally defined as a subjective public right, its exigency before the ones that are obliged to offer it should be met. The regulating infraconstitutional legislation matter of the right to the constitutional right to the fundamental learning being analyzed, it was verified that it is wide and very complete, namely: “Lei das Diretrizes e Bases da Educação, Estatuto da Criança e do Adolescente e o Plano Nacional Educação” (Education Guidelines and Bases law, Child and Teenager Statute and the National Education Plan). They are, together with the Constitution in effect, suppliers of the mechanisms able to contribute to the accomplishment of such a right. Finally, INEP's Data and SAEB that demonstrate the non materialization of the right to fundamental learning and the forms of seeking its accomplishment are approached. Focusing the role of the public policies in the formulation and implementation of this right and the responsibility of the public administration, which, in case of omission or inadequacy, should be healed through the Judiciary Power action. The Judiciary Power, then, as a last resource, should act in a way as to determine the formulation and implementation of the necessary policies for this purpose, when requested, be it by the Public Ministry, be it by any citizen that has felt harmed in their right. Key-words: Right to education, effectiveness. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................ 12 2 A EDUCAÇÃO ................................................................................ 16 2.1 O SIGNIFICADO DO TERMO........................................................................ 16 2.2 EDUCAÇÃO E INSTRUÇÃO - O DILEMA .................................................... 18 2.3 PARA QUE EDUCAR? .................................................................................. 21 3 AS BASES FILOSÓFICAS DO DIREITO À EDUCAÇÃO .............. 25 3.1 OS SOFISTAS E A EDUCAÇÃO................................................................... 25 3.2 A PAIDÉIA GREGA ....................................................................................... 27 3.3 A EDUCAÇÃO PLATÔNICA ......................................................................... 31 3.4 A EDUCAÇÃO ARISTOTÉLICA.................................................................... 34 3.5 A CONCEPÇÃO CRISTà DA EDUCAÇÃO .................................................. 35 3.6 JOHN LOCKE................................................................................................ 37 3.7 JEAN-JACQUES ROUSSEAU ...................................................................... 39 3.8 KANT ............................................................................................................. 41 4 A EDUCAÇÃO NA FORMAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ....................................................................................... 46 4.1 EDUCAÇÃO E CIDADANIA .......................................................................... 46 4.2 A DEMOCRACIA E A EDUCAÇÃO............................................................... 48 4.3 ESTADO DE DIREITO ................................................................................... 51 4.4 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ................................................... 54 4.5 O DIREITO À EDUCAÇÃO COMO EXIGÊNCIA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO............................................................................. 57 5 O DIREITO À EDUCAÇÃO ............................................................. 61 5.1 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO À VIDA ...................................................... 63 5.2 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO NATURAL ................................................. 65 5.3 A EDUCAÇÃO E OS DIREITOS HUMANOS ................................................ 66 5.3.1 Outras normas internacionais sobre a educação .................................. 70 5.3.1.1 Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais .. 70 5.3.1.2 Pacto de San Salvador........................................................................... 72 5.4 DIREITO À EDUCAÇÃO NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS................ 72 5.4.1 A Constituição de 1988 e o direito ao ensino fundamental ................... 76 5.4.1.1 Eficácia e aplicabilidade ........................................................................ 79 5.5 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE....................................... 82 5.6 LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL ..................... 87 5.7 PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO ........................................................... 90 5.8 DIREITOS INERENTES AO DIREITO AO ENSINO FUNDAMENTAL.......... 93 5.8.1 Direito à merenda escolar......................................................................... 94 5.8.2 Direito ao material escolar e ao transporte............................................. 95 5.8.3 Direito à qualidade do ensino .................................................................. 96 6 DA EFETIVAÇÃO DO DIREITO AO ENSINO FUNDAMENTAL .... 100 6.1 A EDUCAÇÃO BRASILEIRA ........................................................................ 103 6.1.1 Os indicadores da educação brasileira ................................................... 110 6.1.2 Analfabetismo no Brasil ........................................................................... 118 6.2 A EFETIVAÇÃO DO DIREITO AO ENSINO FUNDAMENTAL POR MEIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS ................................................................................. 125 6.3 A EFETIVAÇÃO DO DIREITO AO ENSINO FUNDAMENTAL POR VIA JUDICIAL............................................................................................................. 130 6.3.1 Meios judiciais de acesso à educação .................................................... 134 6.3.2 O papel do Ministério Público na defesa do direito ao ensino fundamental ........................................................................................................ 138 7 CONCLUSÃO.................................................................................. 142 REFERÊNCIAS .................................................................................. 145 12 1 INTRODUÇÃO A educação, pela sua importância, há muito se tornou um tema de discussão amplo, abandonando os limites daqueles profissionais ligados diretamente a ele, e atingiu, de forma necessária e oportuna, posição de destaque nas esferas sociais e políticas, ganhando espaço e gerando profundos debates na sociedade civil e nos meios de comunicação. Há algum tempo, a sociedade brasileira vem reivindicando um melhor sistema de ensino, que ofereça uma educação direcionada para a formação intelectual e profissional dos jovens deste país, mudando o quadro desalentador em que se encontra hoje o sistema educacional brasileiro. Por ser um tema pouco explorado na área do Direito, ainda incipiente enquanto ramo especifico - direito educacional -, encontramos dificuldades de fontes de pesquisa para elaborarmos o estudo. Buscamos, contudo, demonstrar que o conceito de educação vai muito além do que o ato de instruir, ou de simplesmente ensinar a ler e a escrever, mas trata-se de formar o homem na sua integralidade, preparando-o para uma vida autônoma. O certo é que não se pode pensar em educação como um simples processo colocado à disposição da sociedade. A educação é responsável pela continuidade dos valores acumulados durante a existência humana, seus erros e seus acertos. Tirar dos jovens este bem é o mesmo que condená-los ao vazio. É interromper o processo de evolução da humanidade, iniciado há milhares de anos, e que vem se acumulando, se enriquecendo e se desenvolvendo de geração em geração. A Constituição de 1988 trouxe inúmeros desafios para a sociedade brasileira, dentre eles a garantia do acesso às políticas sociais públicas, indistintamente. Esse 13 dever constitucional passa certamente pela efetivação do direito à educação, base para a compreensão de todos os outros. A Carta Magna estabelece ser a educação um direito de todos e dever do Estado e da família, dando ênfase ao ensino fundamental, elevando-o a direito público subjetivo, in verbis: Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. ........................................................................................................... Art. 208. [...] § 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. A descoberta da importância do ensino fundamental como alicerce na formação intelectual e profissional dos indivíduos, implica no reconhecimento da necessidade de uma atuação mais efetiva daqueles que receberam, constitucionalmente, o dever de zelar por este direito fundamental. Nesse sentido, entendendo a relevância dada pelo constituinte à educação, em especial ao ensino fundamental, de forma a regulamentar os ditames constitucionais, o legislador infraconstitucional elaborou a Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a Lei n. 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e o Plano Nacional da Educação - Lei 10.172/01. Para viabilizar e integrar este direito/dever, cabem ao Estado dois grandes papéis: elaborar e cumprir as leis. Do ponto de vista do legislador, supõe-se suficientes os diversos instrumentos normativos existentes; do ponto de vista da execução pesa sobre o Estado a responsabilidade por não conseguir implementar as políticas públicas necessárias para atingir os objetivos propostos pelo legislador e os mandamentos legais. As conseqüências da omissão estatal ficam evidentes ao se avaliar o analfabetismo: apesar de decrescente a curva do analfabetismo tradicional, 14 há, contudo, uma curva inversa do analfabetismo funcional, cuja origem está num sistema educacional de baixa qualidade. A educação demonstrou ser tema fascinante, complexo e por vezes angustiante. Buscou-se inicialmente uma fundamentação teórica capaz de jogar luz sobre ela, seu significado, o dilema entre educação e instrução, os motivos de se educar e as diversas concepções filosóficas a respeito do tema. Assim, a primeira parte deste trabalho conterá abordagens sobre o conceito de educação, enfocando a dificuldade de defini-la, os seus diversos significados, e demonstrando que a cada período da história, de acordo com o contexto da época, há um significado diferente. As concepções filosóficas da educação, abordada nessa primeira parte, busca resgatar a educação do ponto de vista filosófico, tendo como marco inicial a Grécia Antiga e os seus principais filósofos, passando pela concepção cristã até chegar a Kant. A segunda parte abordará a importância da educação na consolidação do Estado Democrático de Direito, relacionando o tema à cidadania e à democracia. A efetivação do Estado Democrático de Direito tem como condição precípua a implementação de um sistema educacional público, de qualidade e universal, capaz de formar cidadãos autônomos e conscientes de seus direitos e deveres perante a sociedade. Na terceira parte, o direito à educação é analisado desde a sua origem, enquanto direito natural, passando a direito do indivíduo presente em diversas cartas internacionais de direitos humanos, e, por fim, a sua consolidação nas Constituições enquanto direito fundamental. Há uma abordagem quanto ao atual panorama legislativo voltado para educação, o que se revela bastante e suficiente. Por força da objetividade, limitamo-nos a aprofundar a discussão no direito ao ensino 15 fundamental, destacando os direitos que lhe são inerentes: direito à merenda escolar, direito a material escolar, direito ao transporte escolar e direito ao ensino de qualidade. Por fim, é focalizado o panorama atual da educação brasileira, os seus indicadores e o que se pode deduzir deles. O analfabetismo e as suas faces, a distorção entre analfabetismo tradicional e funcional, resultado da educação ministrada hoje, pois não basta garantir o acesso e a permanência do aluno na escola, é necessário que o ensino seja oferecido com qualidade. São apresentados caminhos possíveis para a efetivação do direito ao ensino fundamental; as políticas públicas enquanto instrumento de diagnóstico e escolha das ações que podem ser implementadas pela Administração Pública. Outro caminho, ainda pouco explorado pela sociedade, é a intervenção judicial, no controle e fiscalização das políticas públicas, antes ou depois de sua realização, apesar de ausente a previsão constitucional que legitime, de forma inconteste, a atuação do Poder Judiciário voltada para tal finalidade é perfeitamente cabível como será demonstrado. Por fim, identificam-se instrumentos jurídicos disponíveis aos titulares desse direito para garantir sua efetivação e as ações judiciais próprias para a recompô-lo. A escassa literatura existente sobre o tema dificultou a elaboração deste trabalho, mas não diminuiu em nada o prazer de escrever sobre o direito à educação, assunto fascinante e envolvente. Abrem-se assim, quem sabe, horizontes para que a sociedade encontre o caminho para efetivar tão importante direito, e na educação consiga bases e valores para uma convivência mais justa. Este ideal será concretizado quando o aparato legal e jurídico existente for colocado a serviço deste propósito, e a sociedade assim entender verdadeiramente. 16 2 A EDUCAÇÃO 2.1 O SIGNIFICADO DO TERMO Logo no início deste trabalho já se encontra uma difícil tarefa: dar à educação um significado. A dificuldade ocorre em virtude da amplitude do tema, pois a educação ultrapassa os limites de uma área específica do conhecimento. Não há um significado, há significados. Historiadores, filósofos, educadores, juristas, sociólogos, todos têm algo a dizer a respeito da educação. O conceito de educação, por longo tempo, foi afetado pela influência do Nativismo e do Empirismo. O primeiro entende que a educação era tão-somente a exteriorização dos conhecimentos interiorizados; o segundo considera a educação como o conhecimento adquirido pela experiência. Além dessa antiga polêmica entre nativismo e empirismo, nos ensina Muniz que: o termo educação tem sido usado, ainda, com uma infinidade de significados, por toda a história, quanto aos seus objetivos e funções; ora mais amplo, designando tudo aquilo que se pode fazer para desenvolver o potencial humano; ora mais restrito, limitando-se a determinado aspecto, definindo-a como um processo de instrução, especialização, etc. (MUNIZ, 2002, p. 8). No aspecto etimológico, segundo Souza (1996), o verbo educar origina-se dos termos latinos educere e educare. O primeiro significa extrair, tirar, desenvolver, retirar as potencialidades do interior do indivíduo, ou seja, considera que o desenvolvimento do homem depende de si próprio, da sua dinâmica pessoal. O segundo termo compreende o processo de transmissão de informações, objetivando desenvolver as capacidades físicas e intelectuais do indivíduo, para que o ser 17 humano se integre social e individualmente no ambiente em que vive. A interpretação de Orlando Soares sobre educação é: A influência intencional e sistemática sobre o ser juvenil, com o propósito de formá-lo e desenvolvê-lo em sentido amplo, consiste na ação genérica de uma sociedade sobre a geração mais jovem, com o fim de conservar e transmitir a existência coletiva. Tecnicamente, educação é o processo de desenvolvimento da capacidade física, intelectual e moral da criança e do ser humano em geral, visando a sua melhor integração individual e social (SOARES, 1998, p. 658). Para Diniz (1998, p. 264) educação é “ação ou efeito de desenvolver, gradualmente, as faculdades intelectuais, espirituais, físicas e morais do ser humano [...]”. O Miniaurélio, dicionário da língua portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, dá ao termo educar o seguinte significado: 1. Ato ou efeito de educar (-se). 2. Processo de desenvolvimento da capacidade física, intelectual e moral da criança e do ser humano em geral. 3. Civilidade, polidez (FERREIRA, 2004, p. 172). Há ainda que se destacar o conceito sociológico de educação, na visão de Durkheim, sociólogo francês que viveu no fim do século XIX e início do século XX, que acreditava ser a educação capaz de transformar o homem em sua inteireza, moldá-lo de acordo com a forma que demanda o corpo social. Tinha como falso o argumento de que a educação trabalhasse o corpo e a inteligência de sujeitos soltos, desancorados de seu contexto social, acreditando ser a educação uma prática social que, por meio da inculcação de tipos de saber, reproduz tipos de sujeitos sociais. Segundo Durkheim, a educação é: A ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver na criança certo número de estados físicos, intelectuais e morais reclamados pela sociedade política no seu conjunto e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destina (DURKHEIM, 1983, p. 42). Se a educação é considerada um tema difícil de ser abordado, defini-la é mais 18 complexo ainda. Encontrar um significado perfeito, ideal, apropriado a todos os homens e a todas as sociedades, é uma tarefa hercúlea. O significado do termo é variável de acordo com a sociedade e a época. Afirma Durkheim (1955) que, na Grécia a educação levava o indivíduo a obedecer cegamente à coletividade e a se tornar parte dela. Hoje o que se busca, na maioria das sociedades, é fazer com que o homem seja sobretudo um ser autônomo. A origem dicotômica do termo educação permite entendê-lo como a transmissão do saber por parte de alguém ou de algo para outrem, de tal forma que ocorra o desenvolvimento e o afloramento das potencialidades natas do educando. A educação deve permitir que o individuo se torne um cidadão digno, capaz de alcançar seus objetivos pessoais, para isso é necessário que se transmita valores morais e éticos como justiça, verdade, solidariedade e honestidade, ingredientes que permitirá a formação do caráter, além da formação técnica e intelectual. Retornando à discussão entre conceito amplo e conceito estrito, o mais acirrado de todos é aquele que distingue educação de instrução, estabelecendo uma dicotomia entre eles, assunto que será abordado a seguir. 2.2 EDUCAÇÃO E INSTRUÇÃO - O DILEMA Os dois termos, educação e instrução, freqüentemente entendidos como sinônimos, embora guardem semelhanças, apresentam peculiaridades que os distinguem. Para Savater (1998) a diferença é: a educação tem como escopo a orientação para a formação do jovem integralmente, com base em valores morais, cívicos e éticos, preparando-o para alcançar seus objetivos pessoais e para a 19 convivência social de forma harmônica; a instrução, por sua vez, seria a capacitação do jovem para realizar tarefas básicas, técnicas, necessárias para o trabalho. Tal divisão, considerando a educação no sentido da intelectualidade, da nobreza dos conhecimentos, do preparo para a vida da reflexão e de comando na sociedade, e considerando a instrução como uma preparação para o trabalho, a execução de tarefas menos “nobres” e a subordinação, teve início na Grécia e permanece viva na sociedade, especialmente na brasileira. Pode-se atribuir a gênese dessa distinção ao período final do helenismo1, quando havia uma profunda separação na sociedade grega. Até mesmo as pessoas encarregadas de instruir os jovens gregos eram diferentes, de acordo com a pretensão da formação. Para promover a educação, confiava-se a criança ao pedagogo. Pessoa de total confiança no núcleo familiar, ele era primordial na formação dos “cidadãos”2 gregos, que iriam se dedicar à vida política na pólis. A instrução era confiada ao professor, pessoa de segundo nível. Dentro da hierarquia funcional do ensino, a sua incumbência era preparar o jovem na formação técnica, que se constituía principalmente no ensino da aritmética, voltado sobretudo para a produção, e que era normalmente exercida pelos escravos e artesãos. Hoje, em pleno século XXI, quando a sociedade é cada vez mais complexa, no campo do trabalho exigem-se pessoas que, além de capacidade técnica, tenham capacidade de interação, tomada de decisões, análises conjunturais profundas, entendimento da legislação, que consigam avaliar comportamentos humanos, enfim, 1 No fim do século IV a.C., inicia-se a decadência das cidades estados, até a perda total de sua autonomia. A cultura helênica, no entanto, se funde às civilizações que a dominam, formando o helenismo. 2 Cidadão grego era a pessoa pertencente a um seleto grupo, do qual não faziam parte as mulheres, os escravos e os estrangeiros. 20 que possuam um conhecimento além do técnico. Tudo isso torna a velha discussão, como diz Savater (1998, p. 58), “obsoleta e muito enganosa”. Segundo ele, Ninguém se atreverá a afirmar seriamente que a autonomia cívica e ética de um cidadão possa se forjar na ignorância de tudo o que é necessário para ele desempenhar profissionalmente; e o melhor preparo técnico, carente do desenvolvimento básico das capacidades morais ou de uma mínima disposição de independência política, nunca formará pessoas integras, mas simples robôs assalariados. Acontece, além do mais, que separar a educação da instrução é, além de indesejável, impossível, pois não se pode educar sem instruir e vice-versa (SAVATER, 1998, p. 58). É no mesmo sentido que Tedesco, citado por Savater, faz suas considerações: A capacidade de abstração, a criatividade, a capacidade de pensar de forma sistêmica e de compreender problemas complexos, a capacidade de se associar, de negócios, de concertos e de empreender projetos coletivos são capacidades que podem ser exercidas na vida política, na vida cultural e na atividade em geral (TEDESCO apud SAVATER, 1998, p. 62) Segundo Savater há no imaginário de grande parte da sociedade a idéia de que a formação da pessoa na sociedade moderna tem de ser cada dia mais técnica, o que é primordial para se conseguir um lugar de destaque no meio social, capacitando o cidadão para ganhar dinheiro, enquanto a educação, no sentido de formação ideológica, de caráter ético, está ultrapassada e não serve para mais nada. Esta é a lógica daqueles que defendem a formação mais tecnicista, analisa a formação do homem enquanto instrumento de capacitação para o acúmulo puro e simples de capital. Em sentido oposto, encontram-se educadores e filósofos, como Paulo Freire e Rodlen. Freire (1967) defendeu duramente uma educação que tivesse como objetivo a formação de uma consciência livre, capaz de tornar o jovem partícipe do processo de aprendizagem, pois só assim ele conseguiria ser livre de fato. Para Rodhen (1979), o processo de formação do homem não pode ser determinado e realizado para um único fim, “o ideal seria que um homem tivesse 100% de educação e 100% 21 de instrução; que fosse mestre em ciência e mestre na consciência”. O desejo da sociedade é que a escola transmita à criança a sua herança social, os valores morais e espirituais nela contidos. A demanda hoje é pela escola que forme cidadãos, homens livres, com uma educação que liberta. Isso somente será conseguido quando se formar a capacidade crítica do aluno. Aquele que instrui tem de ser o que educa; aquele que educa tem de ser o que instrui. Portanto, a dicotomia entre educação e instrução encontra-se superada, pois é impossível instruir sem educar e educar sem instruir. Como leciona Savater (1998), o que deve haver é a formação visando o pleno desenvolvimento das faculdades inerentes ao homem, buscando a plenitude física, moral e intelectual, capaz de leválo a alcançar seus objetivos, formando-o técnica e intelectualmente. O que importa de fato, muito além do nome, é o que é realmente feito; o necessário é ensinar a aprender, nos dizeres de Jaime Balmes citado por Savater (1998, p. 61), “formar fábricas e não armazéns”. 2.3 PARA QUE EDUCAR? A complexidade do tema direito à educação traz à tona inúmeros desdobramentos. É possível definir o que é educação? Para que educar? É realmente necessário educar? O que a educação agrega à vida humana? A finalidade da educação é tornar o homem verdadeiramente livre ou ela deve ser guiada no sentido de manter a coesão social? O que pensavam os filósofos da Antigüidade a respeito da educação? Qual a origem do direito à educação? No Brasil o direito à educação está efetivado? Quais os direitos a ele inerentes? Quais os 22 meios que os destinatários da educação têm para concretizá-lo? O Judiciário tem instrumentos legais para intervir na sua realização? São indagações que, algumas delas, vêm sendo feitas ao longo dos séculos, com profundos debates promovidos pelos filósofos no sentido de se chegar a algumas conclusões definitivas, e que serão tratadas no próximo capítulo. Antes, porém, faz-se mister tentar definir o “para que educar?”. Graham Greene, citado por Savater (1998, p.29), afirma que “ser humano também é um dever”, e completa Savater, “se é um dever, cabe inferir que não se trata de algo fatal ou necessário [...] deve haver, pois, quem nem sequer pretenda ser humano, que o tente mas não o consiga [...].”. O homem diferentemente, dos outros animais, consegue ir além dos seus limites biológicos impostos pela natureza; ele aprimora suas potências e adquire outras desenvolvidas a partir daquelas. Isso o torna homem. A humanidade, definitivamente, não é uma carga genética passada de geração em geração pelo vínculo biológico. Ela é adquirida com o aprendizado. Nesse sentido, John Passmore, também citado por Savater faz a seguinte observação: O fato de todos os seres humanos ensinarem é, em muitos sentidos, seu aspecto mais importante: o fato em virtude do qual, e diferentemente de outros membros do reino animal, podem transmitir as características. Se renunciassem ao ensino e se contentassem com o amor, perderiam a característica que os distingue. (PASSMORE apud SAVATER, 1998, p. 37). O homem, por natureza, é um ser inacabado que, durante toda a sua vida, adquire novos conhecimentos, às vezes os transforma e amplia, e também os transmite, se contagiando e sendo contagiado pelos outros, chegando à idade adulta ainda aberto aos saberes e com possibilidades de ensinar. É essa possibilidade constante de aprendizado, de exercício mental, de inter-relacionamento, de 23 transformação do conhecimento adquirido em novos conhecimentos, que o faz homem. Segundo Savater (1998, p. 44), “a chave da humanidade está na capacidade racional de observar, abstrair, deduzir, argumentar, concluir logicamente”. A educação tem também a capacidade de dar característica única a cada sociedade, pois nenhuma delas renuncia ao seu direito de ensinar; ao contrário, cada uma define a educação de acordo com os seus critérios, pois é através dela que a sociedade mantém vivos seus costumes, suas tradições, sua história. Assim, nem sempre o que se entende como ideal educacional em uma sociedade pode ser considerada para outra. A educação é a correia transportadora que conduz de uma geração a outra os seus costumes e os seus saberes, aperfeiçoando-os e transformando-os. Brandão afirma que “Cada sociedade carrega consigo no seu imaginário o ideal de homem e busca através da educação a transformação de sujeitos e mundos em alguma coisa melhor” (BRANDÃO, 2005, p. 74). Juan Delval citado por Savater analisa a educação no sentido de que pensar educação é também pensar o homem enquanto ser histórico, o seu papel na natureza e nas relações sociais. “Uma reflexão sobre os fins da educação é uma reflexão sobre o destino do homem, sobre o lugar que ele ocupa na natureza, sobre as relações entre os seres humanos” (DELVAL apud SAVATER, 1998, p. 62). Quando o homem é colocado diante de indagações complexas que não têm respostas imediatas, ou quando as respostas não são satisfatórias, recorre à filosofia. Não podia ser diferente neste estudo: buscou-se na filosofia da educação e do direito as bases para compreensão da educação, a sua importância para o homem e para a construção de uma sociedade democrática, averiguando a evolução do direito do homem à educação na história do pensamento filosófico. Com tal 24 propósito foram selecionados os filosófos mais expressivos e sobre eles assentadas as justificativas do direito à educação, integrante do direito à vida. Na busca de respostas, o capítulo seguinte trata das bases filosóficas da educação. 25 3 AS BASES FILOSÓFICAS DO DIREITO À EDUCAÇÃO A educação sempre fez parte das preocupações das sociedades, da mais primitiva à mais complexa. Conseqüentemente, tornou-se também objeto de reflexão dos filósofos ao longo da história. A importância dada ao tema é devida à sua relevância para o homem, à manutenção da vida, à manutenção da sociedade, à preservação do direito à liberdade e à igualdade. Enfim, tudo passa pelo processo educacional. Platão, Aristóteles, os sofistas, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Locke, Rousseau e Kant, dentre outros. dedicaram longas horas de estudo sobre a educação e a sua importância para o homem. 3.1 OS SOFISTAS E A EDUCAÇÃO Sofistas vem de sophos, palavra grega que significa sábio, ou melhor, professor de sabedoria. Segundo Aranha (1989) era o nome dado aos educadores gregos que viveram no período clássico e romperam com os filósofos da época pela sua forma de ensinar e pelo conteúdo do ensino. Isócrates, Protágoras de Abdera, Hipodamos foram os principais sofistas que revolucionaram a Grécia do século V a.C. O ensino dos sofistas era marcado pelo desprestígio da filosofia clássica, que, na época, tinha como referência Sócrates, Platão e Aristóteles, e era voltada principalmente para as questões da moral e da ética. Foi marcante sua atuação para a democracia do ensino superior na Grécia Antiga: passaram a cobrar pelos 26 ensinamentos que ministravam e fundaram escolas para todos que tivessem condições de pagar. Segundo Brandão (2005), eles profissionalizaram a função e exigiram a remuneração. No contexto da época, momento pelo qual passava a Grécia, a democracia era incipiente, os cidadãos gregos participavam das decisões da cidade por meio das assembléias, o que exigia uma boa retórica. Os sofistas então deram grande ênfase ao ensino dessa arte, preparando os cidadãos para que tivessem uma participação relevante, com grande poder de convencimento. Tudo isso causou um grande fascínio nos jovens gregos, que passaram a buscar nas escolas dos sofistas o aprendizado da persuasão por meio do discurso. Aos sofistas é atribuída, em grande parte, a mudança no sentido do ideal grego de educação, a Paidéia, que, até então, significara educação de crianças, passou a ser também a formação contínua do adulto, tornando-o capaz de pensar por si mesmo a cultura do seu tempo. Protágoras, famoso sofista, dizia que “o homem é a medida de todas as coisas, isto é, para o homem as coisas são aquilo da forma que eles vêem, o conhecimento depende das circunstâncias em que se encontra e varia de acordo com as situações” (MUNIZ, 2002, p. 15). Isócrates, um dos principais sofistas, fundou em Atenas uma escola onde se ensinava, sobretudo, a retórica, e foi o grande debatedor do sentido da educação, da sua finalidade e do seu conteúdo. Os sofistas criticavam abertamente a busca da verdade desinteressada e a ciência autêntica, de caráter objetivo e universalmente válido, que entendiam como algo ultrapassado e sem valor para a época. Tal posição, segundo Aranha (1989) lhes rendeu grande polêmica com Platão, que ironizava a educação sofista cuja finalidade era ensinar a enganar, que usava o raciocínio capcioso e de má-fé. 27 O objetivo primordial da educação, para os sofistas, era proporcionar a felicidade e o triunfo ao indivíduo (OS PENSADORES, 1999, p. 38) ??????. 3.2 A PAIDÉIA GREGA A educação grega representou um salto na sociedade ocidental, mormente no que se refere a teorias e métodos educacionais, tendo sido, mesmo após a colonização romana, difundida para todas as colônias do Império Romano, influenciando muitos países existentes na época. Todas as cidades importantes do Oriente, da África e do mundo romano em expansão se adaptaram aos seus costumes, construíram bibliotecas, ginásios, teatros, etc. Afirma Aranha (1989) que a tradição educacional grega foi tão importante e tão profunda que até hoje perdura na sociedade moderna. A Paidéia, como era chamado o ideal grego de educação, surgiu por volta do século V a.C. e constituía, no início, apenas uma forma de educar as crianças. Com o decorrer do tempo, Paidéia passa a ter um novo significado: o sentido de formação harmônica do homem para a vida na pólis. É como se a mesma palavra significasse também a “cultura, tradição, literatura, educação” (BRANDÃO, 2005, p. 38). Não há no vocabulário nenhuma palavra que signifique o que realmente os gregos entendiam por paidéia, segundo afirma Jaeger, helenista alemão, citado por Aranha (1999), até porque o seu significado foi sendo adaptado ao longo dos tempos. A obra da Paidéia é a formação do homem, a sua transformação em cidadão maduro, capaz de servir à sua cidade, tanto na guerra quanto na política. O educador Carlos Rodrigues Brandão diz que o ideal de educação do povo grego 28 consistia em: reproduzir uma ordem social idealmente concebida como perfeita e necessária, através da transmissão, de geração em geração das crenças, valores e habilidades que formavam um homem tão mais perfeito quanto mais preparado para viver na cidade a que servia (BRANDÃO, 2005, p. 44). Esse ideal de educação foi sendo construído pela sociedade grega simultaneamente com a construção da própria sociedade. Evoluíram juntos. Mais tarde, quando a Grécia já se encontrava em plena decadência política, no chamado período helenístico (final do século IV e início do século III a.C.), a Paidéia se “torna Enciclopédia, ou seja, educação geral, que consiste na ampla gama de conhecimentos exigidos para a formação do homem culto” (ARANHA, 1989, p. 41). A educação sempre foi questão de interesse do povo grego. Os questionamentos filosóficos a respeito da educação como “Para que educar? Como educar?” foram os impulsos e o alimento das reflexões filosóficas educacionais que viriam a ser desenvolvidas com muito êxito. Desde o período homérico (séculos XII a VIII a.C.), a Grécia se destacava em relação às demais comunidades da época, e esse período é o marco inicial de uma evolução que servirá de referência para vários povos. O período homérico tem este nome em referência a Homero, pois, mesmo não havendo uma confirmação contundente de sua existência, conforme cita a professora Aranha (1989), a ele é atribuída a autoria das epopéias Ilíada e Odisséia, que serviram de norte na educação dos jovens guerreiros gregos até o século IV a.C. O século IV a.C. marca o rompimento definitivo da sociedade grega com o mítico, que até então predominava na Grécia. A partir daí nasce a filosofia, assim ensina Aranha (1989), alguns autores chamam de “milagre grego” essa passagem do pensamento mítico para o racional e filosófico. Hoje, porém, há pesquisadores 29 afirmando que essa passagem não se deu de forma tão repentina, mas foi sendo construída ao longo dos anos. A razão autônoma assume a concepção do homem e assim nasce um processo educacional necessário à formação do novo homem grego. Com as demandas desse novo homem, surge também a necessidade de outra educação. A escola que já existia desde o período homérico assume o papel da formação do cidadão grego voltado para a pólis. Mesmo assim, persiste a diferenciação dos educandos em relação ao padrão econômico. A escola se mantém elitizada, servindo somente aos filhos dos que detinham um certo poder econômico e buscavam uma formação mais apurada. Os filhos dos pobres, por sua vez, recebiam apenas uma preparação para aprenderem um ofício. O próprio termo escola, na sua origem grega, representa o lugar reservado para uma casta da sociedade, nas palavras de Maria Lúcia Aranha: Na sociedade escravagista grega, o ócio digno significa a disponibilidade de gozar do tempo livre, privilégio daqueles que não precisam se preocupar com a própria subsistência, não por acaso, a palavra grega para escola (scholé) significa inicialmente - o lugar do ócio (ARANHA, 1989, p. 50). A Grécia do século IV a.C., embora constituída de diversas regiões, não constituía uma unidade política Savater (1998). Havia diversas formas de constituição da sociedade, diferentes em cada região. A educação, conseqüentemente, era também diferenciada em cada uma delas. Destacam-se nesse período duas regiões: Esparta e Atenas. Em Esparta, cidade-estado, onde muito antes da era dos filósofos gregos (século IV a.C.) já existia uma ampla organização educacional, havia a preocupação com a formação do guerreiro espartano, sem que com isso se abstivessem da formação moral. O objetivo, porém, era formar guerreiros. A educação em Esparta 30 se destaca, de acordo com Aranha (1989) por dois motivos: a organização do sistema educacional, que a partir do século IX a.C., com o legislador Licurgo, é ministrada de forma pública e gratuita, e a preocupação com a mulher, nada comum para a época. As crianças permanecem com a família até os sete anos, quando o Estado passa a oferecer uma educação pública e obrigatória. Vivem em comunidades constituídas por grupos que se formam de acordo com a idade, supervisionados pelos que se distinguem no desempenho das tarefas exigidas. Como todos os gregos, os espartanos desenvolvem o estudo de música, canto e dança coletiva (ARANHA, 1989, p. 51). Atenas ainda hoje serve de referência como símbolo da filosofia e da democracia, e é considerada o berço da educação. Segundo Tucides (século V a.C.), citado por Aranha (1989, p. 51), Atenas foi “a escola de toda a Grécia”. É em Atenas que se dá a formação do “cidadão” da pólis. E, apesar das limitações impostas por uma sociedade escravagista, representou um marco político para todas as sociedades que se constituíram após a democracia grega. O cidadão ateniense participava diretamente das decisões tomadas na cidade. Para que isso ocorresse, eram preparados intelectualmente, aprendendo a falar em público, se expressar com clareza, construir um raciocínio lógico, atributos essenciais para a participação efetiva nos destinos da cidade. Sendo assim, houve a necessidade de uma educação apropriada para a formação desse novo homem que não tinha mais a responsabilidade de defender a cidade dos invasores, mas sim, a defesa dos destinos da pólis numa luta de idéias. A educação ateniense era ministrada à criança no início de sua infância. Aos sete anos de idade o homem já era retirado da família e encaminhado para receber as primeiras lições. Quanto à mulher, diferentemente da sociedade espartana, era encaminhada para o Gineseu, onde se dedicava aos afazeres domésticos. O processo educacional na antiga Atenas era dividido em três níveis: 31 elementar, secundário e superior. O nível elementar era para o jovem até os treze anos de idade, ao fim do qual os mais pobres eram encaminhados para aprenderem um ofício, e os filhos dos que tinham melhores condições financeiras continuavam seu aprendizado no ginásio. A discriminação em razão da classe social era tão evidente que Sólon, legislador grego da época, fez o seguinte pronunciamento, conforme citação de Aranha: As crianças devem, antes de tudo, aprender a nadar e a ler; em seguida, os pobres devem exercitar-se na agricultura ou em uma indústria qualquer, ao passo que os ricos devem se preocupar com a música e a equitação, e entregar-se à filosofia, à caça e à freqüência aos ginásios (SOLON apud ARANHA, 1999, p. 53). A educação superior era oferecida tanto pelos sofistas quanto pelos filósofos, especialmente Platão e Aristóteles. 3.3 A EDUCAÇÃO PLATÔNICA Filósofo grego (428-347 a.C.), discípulo de Sócrates, ateniense aristocrático por descendência familiar, Aristocles, conhecido como Platão, elaborou sua teoria pedagógica numa época de extrema efervescência cultural em Atenas. Contemporâneo do sofista Isócrates, sofreu deste duras criticas sobre a importância da filosofia. Platão em A República (1996), livro VII, elabora sua teoria educacional, expondo-a de forma simbólica por meio de uma parábola, A Alegoria da Caverna. Para ele, o mundo perceptível é o mundo sensível, este mundo, ou seja, o mundo sensível, é apenas uma sombra do mundo das idéias, lugar da essência imutável de todas as coisas, dos verdadeiros modelos ou arquétipos. 32 Na parábola A Alegoria da Caverna, alguns homens ficam acorrentados desde a infância dentro da caverna, dispostos um do lado do outro, de costas para a entrada. À sua frente está o fundo da caverna, onde só vêem as sombras das coisas que passam às suas costas, onde há uma fogueira. Se eles se soltassem todos, a princípio sua visão ficaria ofuscada e nada conseguiriam enxergar. Com o tempo, acostumados ao brilho da luz, poderiam vislumbrar melhor a realidade. Assim é o aprendizado: o saber é a luz que contagia, a princípio ofuscando, porém, ao se acostumar com ela, enxergamse as belezas do mundo. Se apenas um deles se soltar e sair da caverna para observar, deve então voltar e contar para os demais a existência de uma realidade exterior. Essa é a missão do filósofo. Afinal, ele conseguiu enxergar a luz do conhecimento; e conhecer, para Platão, significa atingir a concepção do Bem e despertar para o mundo das idéias. O conhecimento, entretanto, não vem de fora para dentro, mas do esforço de cada um em buscar a verdade. Na análise proposta por Platão (1996), o homem acorrentado representa aquele individuo comum preso às suas paixões, e só alcança um conhecimento imperfeito da realidade, restrito ao mundo dos fenômenos, no qual as coisas são meras aparências e estão em constante fluxo. Ele se encontra totalmente dominado pelas amarras da ignorância, não consegue ver a perfeição da realidade. Cabe ao filósofo conduzir os homens comuns, incapazes de sozinhos encetarem essa caminhada até o mundo ideal. A República é uma obra política e, como tal, representa um pensamento político. Platão segue o mesmo raciocínio quando analisa o Estado; nesse mundo ideal há também um Estado ideal, sem família e sem propriedade, governado pelos que têm capacidade intelectual aguçada. A educação tem um papel singular na filosofia platônica, segundo Muniz (2002, 33 p. 21) “não porque a reconhecia como um direito do homem, mas porque somente ela poderia propiciar a felicidade ao indivíduo e o bem-estar para o Estado”. Seguindo esse princípio, sistematizou a educação como de responsabilidade do Estado e oferecida a todos indistintamente. No entanto, não da mesma forma para todos, mas de acordo com a capacidade intelectual de cada um, que deve contribuir para as tarefas da pólis, sendo preparado adequadamente para a função que for exercer. O filósofo grego dividia a educação em três fases: bronze, prata e ouro. A cada fase seria realizada uma seleção antes de se passar à nova fase. Todos entrariam em igualdade de condições, não havendo privilégios em razão da origem. No primeiro corte, os chamados homens de alma de bronze seriam encaminhados para o aprendizado das tarefas mais básicas, como a agricultura e os ofícios da cidade. Em seguida, haveria o segundo corte, no qual ficariam os homens de alma de prata, a quem seriam ensinadas e confiadas tarefas consideradas um pouco mais dignas ou complexas do que as confiadas aos primeiros. Os homens de alma de prata seriam responsáveis pela segurança da cidade. No terceiro corte, por fim, ficariam os homens de alma de ouro, a quem seria reservado o lugar mais nobre da sociedade, o exercício do poder. A eles seria confiado o destino dos povos da cidade. Platão defendia claramente a aristocracia, porém, diferente da até então conhecida, em que o poder era hereditário, passando de pai para filho. Na sua concepção, o poder deveria ser exercido pelos mais sábios, a chamada sofocracia3. Exerceu, na sua época, grande influência na educação ateniense. Dizia-se discípulo de Sócrates, cuja existência, no entanto, é duvidosa, pois muitos creditam 3 Sofocracia etimologicamente significa: poder da sabedoria. 34 à sua mente a criação da figura do mestre. Fundou a Academia, centro de formação de filósofos, onde teve como discípulo Aristóteles, que mais tarde questiona a teoria de Platão e funda o Liceu. 3.4 A EDUCAÇÃO ARISTOTÉLICA Aristóteles, nascido na cidade de Estagira, iniciou seus estudos filosóficos na Academia de Platão, em Atenas, com o qual estudou por duas décadas. Ao sair, fundou sua própria escola, o Liceu. Antes, porém, foi incumbido de ser o preceptor de Alexandre Magno, futuro imperador da Macedônia. Rompendo com os ensinamentos de Platão, Aristóteles desenvolveu seu próprio sistema filosófico, criticando o idealismo platônico e fundando sua teoria com base no realismo. Para desenvolvê-la apoiou-se em dois elementos - a matéria e a forma - para explicar o ser. A matéria é passiva, contendo as virtualidades da forma em potência; a forma é o princípio inteligível, a essência comum aos indivíduos de uma mesma espécie. A finalidade da educação aristotélica é ajudar o homem a alcançar a sua plenitude que já existe enquanto potência, é a busca da verdadeira essência humana. A criança se educa pela observação das ações dos adultos, e com base nesse modelo, ela age da mesma forma. Essa é a maneira aristotélica de transmissão de conhecimento, pela observação e repetição das ações dos outros. A principal obra de Aristóteles, no que se refere à educação, é A Política (1998). Nela ele elabora o ensaio de uma teoria educacional que busca nas ações do Estado a formação de cidadãos livres, capazes de destinar todo o seu tempo 35 para este fim, ou seja, o estudo. Desta forma ele exclui os que se ocupam com o trabalho. Valorizando assim o que ele chama de ócio digno. O mais alto propósito do homem, afirmava ele, é levar uma vida racional em pensamento e conduta, pois a causa final do homem é a felicidade. No entanto, isso dependeria de uma conduta moral e moderada, e dos bons costumes, sem excessos, cabendo ao Estado, através da educação, promover esse bem-estar do cidadão (DURANT, 1942, p. 103). 3.5 A CONCEPÇÃO CRISTà DA EDUCAÇÃO Na Antigüidade e na Era Clássica, o Estado sempre teve uma posição superior à do homem, a quem restou ser um bom indivíduo, e submisso àquele. Com o surgimento do Cristianismo, mudou consideravelmente essa percepção, não mais sendo o homem instrumento de manutenção do Estado e passando a ter projeto próprio. O Cristianismo se ancora, como bem afirma Teobaldo Santos, na busca da felicidade eterna do homem. Nessa concepção, o indivíduo é colocado como perfeição máxima da natureza, contendo em si, ao mesmo tempo, as perfeições de todos os seres que lhe são inferiores e a perfeição específica ou própria de sua racionalidade. Nesta racionalidade de natureza espiritual se alicerça o conceito de personalidade. Somente o homem possui uma personalidade livre e autônoma, e direitos e deveres impostergáveis (SANTOS, 1951, p. 61). Ao homem cabe aprimorar-se para atingir a perfeição moral; o que o envolve família, sociedade e Estado - são os meios que lhe permitirão alcançar seus objetivos. À educação cabe a tarefa de prepará-lo para a vida terrena e espiritual. São Tomás de Aquino citado por Muniz (2002) afirma que a educação é uma 36 atividade que torna realidade aquilo que é potencial. E ainda: “a educação é o meio para atingir o ideal da verdade e do bem, superando as dificuldades interpostas pelas tentações” (AQUINO apud MUNIZ, 2002, p. 53). A Patrística, filosofia dos padres da Igreja, que se caracteriza pela defesa da fé e conversão dos não-cristãos, dominou o pensamento do Cristianismo durante a Idade Média. Essa filosofia era ensinada pelos educadores chamados de escolásticos, cujos principais membros foram Santo Tomás de Aquino e Santo Agostinho. O termo escolástico, cuja origem etimológica é scholasticus, “significa professor das artes liberais; depois também professor de filosofia e teologia, oficialmente chamado de magister” (ARANHA, 1989, p. 70). Destaca-se dessa Escola a obra De Magistro, de Santo Tomás de Aquino, ensinando que a Deus cabe a verdadeira missão de ensinar: “Parece que só Deus ensina e deve ser chamado de Mestre” (AQUINO, [13--], p. 53) Todo o conhecimento existe potencialmente no homem; com o auxilio de Deus, único mestre, o educando é capaz de expô-lo e concretizá-lo através da racionalidade. Ambos os filósofos cristãos admitem que a educação é o meio pelo qual o homem faz sobressair todo o conhecimento já existente internamente. Toda a escolástica tem por base que, através da razão, o homem conseguiria externar o potencial nele contido, cujo objetivo é torná-lo capaz de atingir a felicidade eterna. Ensina Santo Agostinho que “o bem objetivo, único capaz de proporcionar à natureza humana a felicidade perfeita, é Deus. A razão, secundada pela revelação, mostra o caminho que se deve seguir para alcançá-lo” (SANTO AGOSTINHO apud MARCONDES, 1998, p. 111). 37 3.6 JOHN LOCKE John Locke (1632-1704), intelectual inglês, representante dos interesses burgueses, teve relevante interesse pelas mazelas humanas. Certo de que é no intelecto humano que se encontra toda fonte de certeza, buscou conhecê-lo de forma mais aprofundada para saber quais seus limites e suas possibilidades. Locke está entre os filósofos empiristas, assim chamados em virtude de abrirem espaço para a ciência junto à filosofia, valorizando a experiência como fonte de conhecimento. Destaca-se pela Teoria das idéias e pelo seu postulado da legitimidade da propriedade, inserido em sua Teoria social e política. Para ele, o direito de propriedade é a base da liberdade humana, “porque todo homem tem uma propriedade que é a sua própria pessoa” (LOCKE, 1998, p. 84). O governo existe para proteger esse direito. A principal preocupação de Locke foi, contudo, combater a doutrina difundida por Descartes, sobre a existência de idéias inatas na mente do homem. Para Locke, a mente humana era como uma folha em branco, que receberia impressões através dos sentidos a partir das experiências do indivíduo, não trazendo, desde o nascimento, idéias como a de “extensão”, de “perfeição”, dentre outras, como pretendia Descartes. Entendia que as faculdades do homem estão à sua disposição no mundo exterior, que não existem idéias inatas, todas derivando da experiência em suas formas de sensação e reflexão (LAMANA apud MUNIZ, 2002, p. 28). O empirismo, segundo ele, é a forma pela qual o homem constrói o seu intelecto, mas usando a própria vontade. 38 Pode-se afirmar que a educação teve grande importância no pensamento lockeniano, tanto no que se refere ao indivíduo como na sua importância para a formação da sociedade, o que é fundamental para a vida organizada. Segundo o filosofo, a educação é essencial para o homem, determinando seu futuro como gênio, deficiente ou medíocre. A formação da personalidade humana se dá pela capacidade de apreensão dos dados obtidos pela experiência e reflexão e sua transformação em idéias complexas. Quando ele afirma que a mente humana é como uma folha em branco ou como uma tábua rasa, não significa que o homem é ignorante em tudo; a razão natural lhe é inerente, porém transformá-la em algo concreto somente é possível através da educação. Em Dois tratados sobre o governo, Locke afirma que a educação é essencial na formação de uma nova sociedade, observando: Se o que eu disse no início deste discurso for verdadeiro, como não duvido que seja, a saber: que a diferença encontrada nas maneiras e habilidades dos homens é devida mais à sua educação do que a qualquer outra coisa, temos razões para concluir que há de ser tomado muito cuidado em formar as mentes das crianças e dar-lhes cedo aquele tempero que influenciará toda a sua vida posterior. Pois que quando eles fizerem o bem ou o mal, o mérito ou a culpa será lá assentada; e quando qualquer coisa for feita impropriamente, aplicar-se-lhes-á o dito comum de que tal é devido à sua criação (LOCKE, 2000, p. 165). Enquanto as propostas de educação do burguês eram apresentadas pelos autores do século XVIII como novidade para a época, Locke já trazia no século XVII questões importantes no que se refere à formação do cidadão. Sendo assim, pode-se afirmar que, ao forjar uma idéia de sociedade no século XVII, Locke mostra uma forma para que a sociedade possa assimilar o que ele propõe, ou seja, a educação do homem por meio de um projeto moral com pressupostos do liberalismo por ele defendido. Assim como a fortaleza do corpo repousa principalmente sobre o ser capaz de suportar as privações, o mesmo ocorre com a da mente. O grande princípio e fundamento de toda virtude e valor está colocado nisto: que um homem seja capaz de negar a si mesmo seus próprios desejos, contrariar suas próprias inclinações, e seguir puramente o que a razão indica como 39 melhor, embora o apetite incline-se em outra direção (LOCKE, 2000, p. 165166). Defesa da razão, pensamento político e questões sobre religião estão ligados como um todo coerente em seu pensamento, ou Teoria da educação. Se a educação é vital para a formação do homem, se sem ela a mente humana é uma tábua rasa, entende-se que somente através dela é que se pode formar cidadãos livres, autônomos, conscientes. Há uma inteira dependência da educação com a própria vida humana, na concepção lockeniana. 3.7 JEAN-JACQUES ROUSSEAU Rousseau (1712-1778), influente filósofo no pensamento educacional, produziu diversos trabalhos nos quais valorizou de forma destacada o homem no seu estado natural. Para ele, a educação é uma forma de proteger as crianças contra a má influência que vem da sociedade, é a forma de garantir que não sejam contaminadas pela perversidade social. Até que estejam completamente desenvolvidas, não mais podendo destruir-lhes a natureza interior, é necessário que as crianças tenham uma proteção: a educação. A educação é o meio de proteção, o meio de defender a criança contra a influencia da sociedade, a qual deformaria o desenvolvimento natural de seu verdadeiro eu. Ao mesmo tempo em que idolatra Rousseau um estado ideal, que seja não escravidão, e sim liberdade e valorização do indivíduo humano, imagina também uma educação natural, em que o discípulo não seja oprimido pelo mestre, mas simplesmente auxiliado em desenvolver a sua humanidade originária. (FROST, [19-], p. 222-223). O filósofo, nas suas obras, a começar pelo O discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens (1762), propõe o retorno ao estado de natureza, no qual o homem vivia em harmonia, e que a sociedade lhe tomou, transformando-o em 40 um ser corrupto. Posteriormente, no Contrato Social, Rousseau (1999) propõe a solução dos problemas do homem, reconhecendo que, como não há mais condições de ele retornar ao estado de origem, ou de natureza, deve fazer da sociedade uma aliada e não uma inimiga. Caberá ao homem uma nova fase: redescobrir a integridade perdida. A educação, centro da proposta de Rousseau, é o meio pelo qual se formará o cidadão, que fará parte da vontade geral, formadora do Estado. Caberá a esse homem, formado nas bases educacionais novas, viver na sociedade criada pelo contrato social. Segundo Wulf, citado por Monteiro Rousseau foi protagonista do processo de emancipação histórica que culminou na Revolução Francesa, 1789, fonte principal da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do cidadão, autor da primeira tentativa de fazer dos direitos próprios da criança o ponto de partida da educação. [...] Foi também o precursor maior do direito do homem a educação, sob o ângulo da sua legitimidade. Lê no Emile toda uma abordagem ético-jurídicopolitica da educação como poder de configuração do homem pelos homens, onde se encontram já os elementos do direito à educação (WULF apud MONTEIRO, 2006, p. 74). A finalidade do Estado, segundo Rousseau, é a garantia dos direitos naturais do homem, principalmente da liberdade e da igualdade. Há, contudo, um plus para os homens com o contrato social, pois eles continuam com as garantias de serem livres e iguais, e têm seus direitos assegurados, ao contrário do estado natural, quando tinham a liberdade mas nenhuma garantia. A educação, na concepção do autor, é o meio pelo qual o homem conquista novamente os direitos de liberdade e igualdade suprimidos pela sociedade. Em Emilio ou Da Educação (1992), um clássico, uma das mais belas obras de filosofia educacional já publicadas, destacam-se duas passagens em que o filósofo faz belas referências sobre a educação: 41 Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer, e de que precisamos adultos, é nos dado pela educação. Na ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vocação comum é o estado de homem; e quem quer que seja educado para esse, não pode desempenhar-se mal dos que com esse se relacionam. Que se destine meu aluno à carreira militar, à eclesiástica ou à advocacia pouco me importa. Antes da vocação dos pais, a natureza chama-o para a vida humana. Viver é o oficio que lhe quero ensinar. Saindo de minhas mãos, ele não será, concordo, nem magistrado, nem soldado, nem padre; será primeiramente homem. Tudo o que um homem deve ser, ele o saberá, se necessário, tão bem quanto quem quer que seja; e por mais que o destino o faça mudar de situação, ele estará sempre em seu lugar (ROUSSEAU, 1992, p. 15). Que a autoridade moral seja a única a refrear os maus instintos - não por punições, reprimendas e demonstrações forçadas de conceitos morais mas pela sua simples presença, pelo poder de irradiação que só o Bem possui! Mas não vos descuideis também de aliar a esse exemplo moral um constante incentivo ao desenvolvimento da inteligência, porque a terra do futuro deve se constituir de homens fundamentalmente bons, mas igualmente com grande capacidade mental, que se traduz na lucidez de enxergar o universo, com suas leis físicas e morais, e de contribuir eficazmente para a imensa e infindável obra da Criação! (ROUSSEAU, 1992, p. 78). 3.8 KANT Um dos mais importantes filósofos do século XVIII, de marcante influência na história do pensamento, não teve como objeto central de suas reflexões a educação, porém, nas suas obras mais clássicas ele atribui uma determinada importância ao tema, principalmente em A Crítica da Razão Pura (1999), na qual ele desenvolve a critica do conhecimento. Nessa obra Kant retoma o debate entre os racionalistas, representados por Descartes, e os empiristas, representados por Bacon e Locke. Ao examinar a insuficiência das duas posições, elabora uma teoria que investiga o valor dos nossos conhecimentos a partir da critica das possibilidades e limites da razão (ARANHA, 1989, p. 123). 42 Kant vai de encontro a ambas as teorias, refutando os empiristas, que acreditam que o conhecimento vem dos sentidos, pela experiência, e contestando os racionalistas, que afirmam que o conhecimento vem de nós mesmos. Segundo ele, não é nem uma coisa nem outra. Nos ensina Aranha (1989) que no pensamento kantiano há um conhecimento a priori, anterior à própria experiência, cuja verdade já é certa; ele é a síntese dos conteúdos particulares dados pela experiência e pela estrutura universal da razão. O conhecimento experimental é um composto do que se recebe por impressões e do que a própria faculdade de conhecer de si mesmo tira por ocasião de tais impressões. A certeza da verdade absoluta é dada ao homem pelo espírito, órgão sempre em atividade, que transforma os fatos da experiência em ordenada unidade de pensamento. No entanto, entende que nem tudo pode ser percebido pela razão, que o indivíduo não pode conhecer as realidades que não se oferecem à sua experiência sensível, aquelas questões metafísicas não acessíveis ao conhecimento humano. Em A crítica da Razão Pura, afirma que não é possível o conhecimento absoluto; que há um conhecimento a priori, de valor imensurável para o homem. Quando faz referência à moral, discorre que agir moralmente é agir por dever, que a ação tem uma validade objetiva e universal, comum a todo ser racional, e aconselha Kant (1999) a agir de modo que a máxima da tua ação possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio universal de conduta. Dessa constatação, afirma Aranha (1989), resulta que o agir moralmente é uma luta constante entre as inclinações individuais e a lei universal. O homem que age moralmente, assim o faz porque é autônomo e livre no seu ato de vontade. Por que ele age assim? Porque o homem é o único ser capaz de determinar as suas ações de acordo com leis definidas racionalmente. “Para que seja possível a vida 43 moral autônoma, porém, é preciso partir do pressuposto da liberdade da vontade” (ARANHA, 1989, p. 124). O agir moralmente pressupõe que o homem seja livre e autônomo na sua vontade, e para isso é necessário que seja educado de forma a aprender a controlar o desejo através da disciplina, a fim de que atinja seu próprio governo e seja capaz de autodeterminação. Kant em citação feita por Aranha (1989, p. 124) diz que “O homem só pode tornar-se homem pela educação, e ele é tão-somente o que a educação fez dele”. Em seu Tratado sobre a Pedagogia, afirma que somente pela educação o homem passa do estado de animal e ingressa no estado de homem, alcançando sua autonomia intelectual e moral. Essa obra demonstra a forte influência que Kant sofreu de Rousseau, como ele mesmo atesta: “Rousseau me abriu os olhos: com ele aprendo a honrar os homens” (KANT apud SANTOS, 1951, p. 96). A educação, portanto, na filosofia kantiana, deve ser adequada, baseada na experiência, que ele denomina de “física”, compreendendo não só a educação do corpo, mas também da alma, e uma educação “prática”, de modo que, no futuro, o homem se torne moral e prudente, elevando sua razão aos conceitos de dever, obedecendo às leis não por medo do castigo, mas pelo imperativo da lei que existe em sua consciência. A moral é uma verdade absoluta, segundo Kant. Assim, a educação deve despertá-la para que o homem tome consciência de que ela deve fazer parte de todos os atos de sua vida. Os filósofos aqui citados exerceram forte influência na concepção do conceito de educação e do direito do homem à educação, foram unânimes em destacar a 44 importância da educação para a formação intelectual do homem, e mais, para a vida em grupo. Alguns acreditando que o saber é inerente ao indivíduo e precisa ser despertado; outros, que o saber é adquirido por fatores externos. No entanto, independentemente da origem do saber, concluem que ele é essencial para uma vida autônoma e digna. Outros, embora não citados, não foram menos importantes, pois também tiveram grande influência no estudo da educação que deve ser ministrada ao ser humano. Dentre eles, Sócrates, Vives, Erasmo, Rabelais, Bacon, Montaigne e Hegel. Rousseau (1992) acredita que a educação deve ser conduzida de forma a atender ao homem e à sociedade, mas, em primeiro lugar ao homem, pois, antes de qualquer vocação, deve-se priorizar a vida humana. A educação é vital para que o indivíduo exerça seu papel de homem e de cidadão. A filosofia há muito percebeu que é preciso educar o homem, formando-o e transformando-o para que consiga atingir seus objetivos maiores, a felicidade, a liberdade, enfim, tudo o que compõe uma vida digna, proveitosa e feliz. O direito à educação é a consagração do indivíduo enquanto detentor do seu direito de ser educado. John Adams citado por Savater (1998, p. 70), afirmava ser a educação um direito que decorre da natureza humana e sustenta a liberdade: “A liberdade não pode ser preservada sem que os conhecimentos se espalhem entre o povo, que tem, por natureza, um direito ao conhecimento”. O verdadeiro direito à educação, integrante do direito à vida, reconhecido como um direito fundamental, só foi assim afirmado no século XX, e tal conquista deveu-se à Filosofia. No próximo capítulo analisar-se-á a importância da efetivação do direito à 45 educação na formação e na consolidação do Estado Democrático de Direito. 46 4 A EDUCAÇÃO NA FORMAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 4.1 EDUCAÇÃO E CIDADANIA Educação e cidadania, temas que apresentam larga tradição histórica, cujos significados variaram conforme as diversas posições ideológicas no decorrer do tempo, sempre mantiveram alguns elementos recorrentes. Segundo Patrice Canivez, a cidadania define a pertença a um Estado. Ela dá ao indivíduo um status jurídico, ao qual se ligam direitos e deveres particulares. Esse status depende das leis próprias de cada Estado, e pode-se afirmar que há tantos tipos de cidadãos quantos tipos de Estado (CANIVEZ, 1991, p. 15). Paulo Freire (1967) considera cidadão o homem possuidor de uma consciência política que o habilite a transformar a si mesmo e a se engajar na luta por transformações sociais, sejam abrangentes sejam restritas (na escola, no bairro, no trabalho). O autor enfatiza, portanto, o aspecto ativo da cidadania. Numerosos estudos vêm surgindo, nas últimas décadas, sobre o conceito de cidadania, que se encontra na mídia, nos movimentos sociais, no poder político, na produção intelectual, enfim, nos mais diversos lugares. Em virtude dessa diversidade, adotar-se-á neste trabalho as idéias do autor Liszt Vieira (2001, p. 75). Segundo ele, a perspectiva clássica da educação é referenciada por Thomas H. Marshall, que “propôs a primeira teoria sociológica de cidadania ao desenvolver os direitos e obrigações inerentes à condição de cidadão”, estabelecendo o que Marshall denominou tipologia dos direitos de cidadania: Os direitos civis, conquistados no século XVIII, os direitos políticos, alcançados no século XIX - ambos chamados de direitos de primeira 47 geração - e os direitos sociais, conquistados no século XX, chamados de direitos de segunda geração (VIEIRA, 2001, p. 78). Falar em cidadania não se resume em definir a tipologia dos direitos, mas requer a construção de relações e consciências, que resultam no aprendizado, nas relações singulares e coletivas (pois o homem é um ser social), nas relações com os órgãos públicos nos mais diferentes momentos da cotidianidade. Cidadania implica conquista, construção, debate, diálogo, participação, e esses fatores só serão efetivados diante da capacidade de organização; visto que envolve uma questão de pertencimento, este entendido como possibilidade de fazer parte. A Organização das Nações Unidas (ONU), através do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), define como cidadão aquele que tem acesso a seus direitos cívicos, sociais, econômicos e culturais, em perfeita harmonia, todos eles formando um conjunto indivisível articulado: “deve existir um patamar mínimo de igualdade entre os membros da sociedade que outorgue a todos um leque razoável de opções para exercer sua capacidade de escolha e sua autonomia” (PNUD, 2004, p. 61). A educação, na maioria das sociedades, é considerada o meio eficaz e privilegiado para universalizar os valores morais, éticos, culturais, indispensáveis para a formação de cidadãos. Cada sociedade define o que é importante para seu desenvolvimento e dos membros que a compõem. As sociedades que definem como prioridade a emancipação do homem e a sua autonomia, buscando a formação de cidadãos, alcançam seu objetivo com o modelo de educação integral, um processo educacional isento, voltado para a formação humanística, oferecendo um ensino com qualidade e eficiência, estimulando o educando a se engajar constantemente nas lutas por melhores 48 condições sociais. O cidadão com formação acadêmica bem estruturada torna-se apto para participar efetivamente da vida escolar, da vida do bairro, de seu município e de seu trabalho. E ainda, condições de compreender as verdadeiras contradições desse modelo de sociedade, seus conflitos, o processo de alienação e a dialética da exploração e do explorado. O compromisso da escola com a formação para a cidadania pressupõe que o aluno se aproprie realmente dos conhecimentos sistematizados básicos, que são instrumentos essenciais para a participação na dinâmica da vida social, profissional e cultural. É necessário despertar nas novas gerações a consciência acerca dos grandes problemas da sociedade, tais como: globalização e seus reflexos, saúde, moradia, alimentação, desemprego, violência, meninos de rua, meio ambiente, corrupção, escândalos, exclusão e marginalização, que devem tornar-se objeto de discussão e de debate nas escolas. 4.2 A DEMOCRACIA E A EDUCAÇÃO A luta do homem na busca de liberdade, justiça e progresso, e o poder que se desencadeou quando ele tentou impor seu ponto de vista e a forma de buscar aqueles valores, deram lugar a diversas formas de organização dos seres humanos. A democracia foi uma delas. Surgindo há mais de 2.500 anos na Grécia, depois desapareceu. Segundo Dahl, citado no PNUD (2004), a democracia entrou e saiu de nossa história várias vezes. Assim como o fogo, a pintura ou a escrita, a democracia parece ter sido reinventada muitas vezes e em muitos lugares. O sistema democrático, confundido como um método para se eleger quem 49 governa, é bem mais do que isso: é também um forma de construir, garantir e expandir a liberdade, a justiça e o progresso, organizando tensões e os conflitos gerados pela luta do poder. É um sinônimo de liberdade e justiça. É ao mesmo tempo um fim e um instrumento. Contém, basicamente, uma série de procedimentos para o acesso e o exercício do poder, mas é também, para os homens e as mulheres, o resultado desses procedimentos. Dallari (1999, p. 60) ensina que o Estado Democrático se assenta em três pontos fundamentais: a) a vontade popular deve ser suprema, mais extensa do que o próprio voto; b) a manutenção da liberdade, entendendo os seus limites e respeitada por todos os homens, inclusive pelo Estado; c) a igualdade de direitos, seu gozo sem restrições por motivos econômicos, raciais, religiosos, etc. Teixeira (1968) entende que a forma democrática vivida como a conhecemos hoje, é um desenvolvimento relativamente recente da humanidade, uma grande experiência humana. Essa experiência tem como base o princípio da igualdade dos indivíduos, proclamado como princípio fundamental da democracia. Essa nova forma de vida se baseia no pressuposto de que todos os membros da sociedade têm algo a oferecer em prol do coletivo, de que ninguém é tão inútil que não tenha algo a oferecer. O certo, porém, que a desigualdade entre as pessoas é evidente. Em razão disso, o princípio da igualdade individual não pode ser entendido como igualdade psicológica (TEIXEIRA, 1968, p. 13), mas como igualdade material, dando a todos os membros da coletividade oportunidades iguais de desenvolvimento e de participação. Teixeira cita Pedro Aleixo, educador que se dedicou a analisar a educação e a 50 sua importância para a formação da democracia, e que ensina: A forma democrática exprime a convicção de que a despeito da desigualdade dos indivíduos, existe, em todos eles um mínimo de inteligência que os capacita à participação na experiência social e a contribuírem para a sociedade. Para que esta experiência se faça em condições apropriadas, a sociedade terá de oferecer a todos os indivíduos acesso aos meios de desenvolver suas capacidades, a fim de habilitá-los à maior participação possível nos atos e instituições em que transcorra sua vida, participação que é essencial à sua dignidade de ser humano (ALEIXO apud TEIXEIRA, 1968, p. 13). Para que a democracia, de fato, seja um regime de igualdade de oportunidades, tal qual foi concebido, faz-se mister o oferecimento de condições de acesso aos meios que permitam aos membros da comunidade progredirem intelectual e materialmente, habilitando-os a participarem ativamente das decisões e instituições que interfiram em sua vida, para que esta se torne uma vida digna. A garantia da efetivação do direito ao ensino fundamental é, assim, condição básica na consolidação da democracia. O PNUD alerta para povos latino-americanos sobre o risco do sistema democrático na região. Na América Latina, as regras e instituições do regime são semelhantes às dos países democraticamente amadurecidos, no entanto, as sociedades latino-americanas e as desses países são quase diametralmente opostas. Aqui existe uma realidade diferente, com a convivência da democracia com a pobreza e a desigualdade em grau extremo, um panorama que coloca um permanente desafio para a manutenção da democracia. Segundo o PNUD, A limitada compreensão dessa realidade singular pode levar a duas conseqüências graves para a democracia. A primeira é ignorar a necessidade da viabilidade econômica da democracia. Isso significa ignorar a necessidade de construir bases sólidas de uma economia que torne possível atacar a pobreza e a desigualdade. Por exemplo, para muitos cidadãos latino-americanos, atingir maiores níveis de desenvolvimento em seus países é uma aspiração tão importante que muitos estariam dispostos a apoiar um regime autoritário que pudesse atender suas demandas de bem-estar. A segunda é desconhecer a viabilidade política dos programas econômicos. Isso significa ignorar que esses programas se aplicam em sociedades em que as demandas cidadãs e a opinião sobre essas políticas se expressam livremente (PNUD, 2004, p. 39). 51 A essência da teoria democrática é a supressão de qualquer imposição de classe, fundada no postulado ou na crença de que conflitos e problemas humanos, sejam econômicos, políticos ou sociais, são solucionáveis pela educação, isto é, pela cooperação voluntária, mobilizada pela opinião pública esclarecida. A construção e a manutenção da democracia pressupõem a possibilidade efetiva de participação de todos em prol dos valores democráticos, e isso somente é possível se a educação estiver ao alcance de todos. Merece destaque, nesse sentido, o ensinamento de Doria citado por Gomes: Duas são as formas extremas dos regimes políticos: ou o poder é a vontade dos governantes imposta aos governados, ou o poder é a vontade dos governados delegada aos governantes, para o exercerem em nome deles. Ou autocracia, ou democracia. Nas autocracias, quanto mais afundar-se o povo na ignorância, melhor. Quanto muito, monopolizar o governo a educação, para fanatizar as massas e silenciá-las no trabalho. Nas democracias, quanto mais educado o povo na escolha da liberdade, melhor. [...] Tendo proclamado, no art. 1º da Constituição para si, o regime democrático, o que cumpre em conseqüência ao País, é tudo fazer para que o povo se eduque na escola da liberdade, na consciência do seu destino, na capacidade para o trabalho. A educação é o problema básico da democracia (DORIA apud GOMES, 2005, p. 94-95). 4.3 ESTADO DE DIREITO A consolidação do poder legítimo sustentado pelo sistema de normas é a chamada legalidade do poder ou, como diz Bobbio (2000, p. 237), “o contrário de poder legítimo é o poder de fato, o contrário do poder legal é o poder arbitrário”. O Estado de Direito é para ele a “destinação final de todo grupo político que se distingue de outro grupo social pela existência de um sistema normativo, cujas normas, necessárias para a sobrevivência do grupo, se fazem valer através da coerção”, que, segundo Kant, não é incompatível com a liberdade, uma vez que o princípio de liberdade deve ser igual para todos os indivíduos. A busca de cada um 52 pela sua felicidade, ou seja, o arbítrio de cada um, deve ser compatível com arbítrio de todos. Assim, afirma Cicco que “a utilização da força é válida para que se imponha um limite à liberdade de cada indivíduo, limite suficiente apenas para que ele respeite a liberdade do outro. Dessa maneira, legalidade e liberdade são idéias compatíveis” (CICCO, 1995, p. 186). É na fundamentação da idéia de liberdade individual que está construída a noção de Estado de Direito. Para Kant, a felicidade é algo muito pessoal e cabe ao Estado reunir as condições para que cada indivíduo busque a que deseja. Dessa maneira, ele se contrapõe às formas de Estado intervencionista ou paternalista, que indicaria aos súditos caminhos para atingirem a felicidade. O Estado ideal, para Kant, é aquele que garante a liberdade pelo Direito, e essa liberdade é entendida essencialmente como não-impedimento de usar ou fazer algo. Na lição de Cicco (1995) associada às idéias desenvolvidas por Kant, está a noção de garantia dos direitos individuais de Benjamin Constant, segundo a qual a organização do Estado deve pautar-se na garantia da inviolabilidade das liberdades individuais: liberdade pessoal, religiosa, de imprensa e, por fim, de propriedade. Para Constant, a liberdade política, ou seja, a participação de todos do povo nos organismos de poder, é uma maneira de garantir unicamente as liberdades individuais. E a separação do Poder em três funções, a forma de operacionalizar essa garantia. Também Kant destacou a divisão de poderes como fundamental no Estado de Direito: “Todo Estado contém em si três poderes, isto é, a vontade geral unificada se decompõe em três pessoas, o legislador, o executor e o juiz” (Kant apud CICCO, 1995, p.188). Existe uma primazia da lei como encarnação da vontade popular, isto é, um pilar da concepção moderna de democracia, presente em Kant, em Rousseau e em 53 outros. A diferença entre os autores está na forma de participação do povo na elaboração das leis. Para Rousseau (1999), ao povo cabe fazer as leis, diretamente, sem intermediários. Para outros, as leis devem ser elaboradas pelos representantes do povo, tal como é o Estado de representação moderno. Segundo Bobbio (1992), a democracia vem se ampliando no Estado moderno em dois sentidos: a extensão do direito de voto a diversos segmentos da população, até o sufrágio universal, e, com a criação de esferas de poder local, através da ampliação dos órgãos de representação. Na mesma linha de pensamento, de acordo com Bobbio, está o pensamento de Weber, para quem, embora o Estado de Direito não seja sinônimo de poder legal, guarda estreita relação com ele, tendo em vista que a divisão de poderes, na forma constitucional de organização do poder político, é o que garante a sua legalidade em todos os níveis da sociedade, até os mais altos níveis de comando. Bobbio (1992) afirma que a doutrina do constitucionalismo é a forma perfeita de governo das leis, aprimoramento da idéia de que a lei, despida das paixões próprias do homem, guarda a sabedoria popular por meio da história. Pensado por Locke, Montesquieu e Kant como uma forma de contraposição ao poder absoluto dos reis, um sistema de freios ao governo através da divisão dos poderes, o sistema constitucional prevê que o poder não fique subordinado a uma pessoa ou a um grupo de nobres notáveis. Divide-se, assim, o poder de fazer as leis, o poder de executar as decisões e o poder de punir e julgar as divergências que ocorrerem na sociedade. Bobbio destaca que o direito nos dias atuais é expressão da exata e consciente vontade soberana do povo, explicitada por meio de um órgão, a assembléia legislativa. Outrora o direito era parte integrante de uma vida social espontânea; hoje é um instrumento com que o 54 Estado democrático intervém na sociedade, para manter a paz social e prevenir as necessidades futuras (BOBBIO, 1998, p. 255). Deflui da teoria de Bobbio que o Estado de Direito tem dois princípios básicos: legalidade e controle judiciário. O princípio da legalidade significa que a atuação do Estado deve seguir um paradigma, uma norma geral e impessoal, como deve ser a lei. O princípio do controle judiciário prevê a generalidade dos casos e não um em especial e determinado. Deve ser destinado a todas as pessoas igualmente, sem nenhuma distinção. O Estado de Direito pressupõe que a lei e, portanto, o direito, seja a norma que vise à realização da justiça. Deriva da concepção segundo a qual há um direito anterior e superior ao direito positivo de cada Estado, que serve na medida da justiça e da injustiça do direito positivo, de seu valor e de sua desvalia. Assim, o Estado de Direito é o Estado de Justiça porque a concepção que o inspira e vivifica traduz que só é direito aquilo que é justo. É Estado de Justiça porque o próprio Estado é submetido ao controle judicial, que expressa o segundo dos princípios do Estado de Direito. O controle judicial significa fiscalização e controle de governo, em sua missão de aplicar a lei, e é garantia indispensável da legalidade. 4.4 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Estado Democrático de Direito, conjugação dos princípios, considerados por Canotilho (1998, p. 1034) como princípios estruturantes: Democracia e Estado de Direito. De fato, porém, representa no seu conteúdo bem mais do que a soma deles. Silva (1999, p. 123) ensina que o Estado Democrático de Direito não significa 55 apenas unir os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito. Consiste, na verdade, na criação de um novo conceito, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo. Historicamente, poder-se-ia localizar o surgimento do Estado Democrático de Direito nas sociedades européias recém-saídas da catástrofe da Segunda Guerra Mundial, que representou a falência tanto do modelo liberal de Estado de Direito, como das fórmulas políticas autoritárias que se apresentaram como alternativa. Se em um primeiro momento observou-se o prestígio de um modelo social e, mesmo, socialista de Estado, a fórmula do Estado Democrático de Direito se firma a partir de uma revalorização dos clássicos direitos individuais de liberdade, que se entende não podem jamais ser sacrificados em nome da realização de direitos sociais. O Estado Democrático de Direito, então, representa uma forma de superação dialética da antítese entre os modelos liberal e social ou socialista de Estado. Em sendo assim, tem-se o compromisso básico do Estado Democrático de Direito na harmonização de interesses que se situam em três esferas fundamentais: pública, privada e coletiva, formados para a consecução de objetivos econômicos, políticos, culturais e outros (GUERRA, 1999, p. 129). Streck e Morais (2000), após analisarem os modelos estatais liberal e social, também ressaltam o papel transformador atribuído pelo poder constituinte ao Estado Democrático de Direito: É por essas, entre outras, razões que se desenvolve um novo conceito, na tentativa de conjugar o ideal democrático ao Estado de Direito, não como uma aposição de conceitos, mas sob um conteúdo próprio onde estão presentes as conquistas democráticas, as garantias jurídico-legais e a preocupação social. Tudo constituindo um novo conjunto onde a preocupação básica é a transformação do status quo. [...] O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade, não restringindo, como Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização de um vida digna do homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública quando o democrático qualifica o Estado, o que irradia os valores da democracia sobre todos os seus elementos constitutivos, e, pois, também sobre a ordem jurídica. E mais, a idéia de democracia contém e implica, 56 necessariamente, a questão da solução do problema das condições materiais de existência (STRECK; MORAIS, 2000, p. 86-87). No Brasil a consolidação do Estado Democrático de Direito se deu com a Constituição de 1988, o art. 1º da Constituição determina que: “A República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]”, não como mera promessa de organizar o Estado brasileiro, pois a Constituição aí já o está proclamando e fundando. Guerra Filho destaca que, diante do que se encontra no preâmbulo da Constituição de 1988, está evidente que: os constituintes de 88 escreveram que se reuniram com a determinação de ‘instituir’ um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais. Assim, houve uma explicitação que não deixa dúvidas, que o titular da soberania, o povo brasileiro, assinalava que era necessário o abandono da ordem vigente e se inclinasse totalmente para um sistema democrático (GUERRA FILHO, 1999, p. 12-13). O Estado Democrático de Direito tem como fundamento o princípio da soberania do popular, que impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública. Não se exaure na simples formação das instituições representativas, que constituem estágio da evolução do Estado Democrático. Seu objetivo é superar as desigualdades sociais e regionais e instaurar um regime democrático que realize a justiça social baseada nos princípios da constitucionalidade, da proteção dos direitos fundamentais, da igualdade dos cidadãos, da separação dos poderes, da independência do juiz, da legalidade e da segurança jurídica. Cabe então a seguinte indagação: O que tem a ver Estado Democrático de Direito e o direito à educação? A resposta está no próximo tópico, mas antes ressalte-se que a educação é um processo que visa “ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, conforme está no art. 205 da Constituição da República Federativa do 57 Brasil de 1988. Para se saber o que representa o direito à educação, é necessário que se faça a seguinte pergunta: Qual a conseqüência da ausência da educação na vida do homem e da sociedade na qual ele está inserido? 4.5 O DIREITO À EDUCAÇÃO COMO EXIGÊNCIA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Por ser imprescindível ao desenvolvimento da pessoa humana, ao afetar em vários aspectos sua vida enquanto existência e modo de ser, a educação veio a merecer a proteção do Direito. Em razão da relevância do valor nela presente, passou a significar, na esfera jurídica contemporânea, um direito fundamental. Por que direito fundamental? Apóia-se aqui, no âmbito do discurso jurídico, a já referida conceituação elaborada por Maria Garcia (2002, p. 115-123) a respeito de direitos fundamentais. “O direito à educação é fundamental por se tratar de um direito social diretamente vinculado ao direito à vida. Este se apresenta como um dos direitos fundamentais básicos previstos na Constituição Brasileira de 1988”. Teixeira (1968) afirma que, no início, “a relação entre a forma democrática e a educação não foi percebida em todo o seu alcance. A nova experiência de vida não se poderia fazer sem que todos e cada indivíduo tivessem oportunidade de se educar até o limite de suas possibilidades”. Essa condição era sine qua non para a formação e consolidação do Estado Democrático de Direito. Conscientes da relevância da educação - não só para o indivíduo mas para própria viabilidade da democracia, acolhida esta na fórmula política do Estado 58 Democrático de Direito -, os constituintes brasileiros fixaram, no texto constitucional, os alicerces fundamentais da educação, aos quais foram, posteriormente, vinculadas outras normas infraconstitucionais. As normas são, do ponto de vista jurídico, os fundamentos necessários e desafiadores para a construção de uma sociedade democrática, com apoio da educação. Isso porque, somente por meio desta é possível desenvolver o ser humano de forma integral. A construção e vivência da democracia pressupõe a possibilidade de efetiva participação de todas as pessoas em prol dos valores que compõem o conteúdo do ideário democrático. E Isso se torna possível se a educação estiver ao alcance de todos. Em tal regime assume-se que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente” (TEIXEIRA, 1968, p. 32). Entende-se que o povo seja suficientemente esclarecido a respeito de seu papel político ativo, de sua capacidade para atuar, seja por meio dos representantes que lhe compete eleger, seja diretamente, nos casos previstos na Constituição. E esse conhecimento, esclarecimento, apenas vai ser obtido por meio da educação. É a educação que prepara o indivíduo para transformar-se positivamente. E, conseqüentemente, mudar a sociedade na qual está inserido. O ideal democrático será alcançado com um processo educacional efetivo de formação de cidadãos livres, que tenha como base o indivíduo como ser integral, tornando-o capaz de perceber a realidade em que está inserido. Trata-se de uma educação que lhe dê condições de se tornar um ser produtivo e em constante realização, enquanto sujeito integrado, não apenas em seu grupo, mas em toda a comunidade. 59 A Constituição de 1988 articulou no seu bojo o direito à educação com os demais princípios fundamentais do próprio Estado Brasileiro. Dessa forma, a Constituição uniu o direito à educação a três dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito: a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a vida. Assim, o ponto de partida para o estudo do direito à educação no Brasil passa pela definição constitucional. Qual educação está positivada na Constituição? A educação mencionada como essencial é qual? Compreende o ensino fundamental, o médio, o superior, ou todos eles? A partir dessas questões é possível estudar com mais objetividade os seus desdobramentos. O texto da Constituição trata da educação em diversos dispositivos, estabelecendo o direito, os objetivos, as diretrizes para o sistema educacional, e apontando os titulares e os meios para a sua efetivação. O constituinte de 1988 estabeleceu que o direito ao ensino fundamental é direito público subjetivo e que importa em responsabilização da autoridade competente pelo não-oferecimento ou oferecimento irregular desse direito, conforme se observa no art. 208, §§ 1º e 2º da Constituição Federal: Art. 208 - O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria; [...] 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. 2º O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular importa responsabilidade da autoridade competente. O direito ao ensino fundamental, tornou-se, de acordo com a Constituição, tão importante quanto o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, todos evidenciados pelo caput do art. 5º, tendo como conseqüência a 60 possibilidade de demanda, independentemente de qualquer política pública que o evidencie. Tudo porque o constituinte originário estabeleceu que o direito ao ensino fundamental é um direito público subjetivo. É este o direito à educação que, no próximo capítulo, estará evidenciado como não efetivo no Brasil, necessitando de se encontrar caminhos para a sua efetivação. 61 5 O DIREITO À EDUCAÇÃO Excluem-se da escola os que não conseguem aprender, excluem-se do mercado de trabalho os que não têm capacidade técnica porque antes não aprenderam a ler, escrever e contar e excluem-se, finalmente, do exercício da cidadania esses mesmos cidadãos, porque não conhecem os valores morais e políticos que fundam a vida de uma sociedade livre, democrática e participativa (BARRETO apud BALSANO, 2004, p. 121). Inicialmente, para se ter um melhor entendimento do direito à educação, é fundamental que se conheça a sua natureza jurídica. E por que isso é importante? Porque a partir daí verificar-se-á o alcance, a eficácia e a exigibilidade das normas que o estabelecem. Direito natural? Direito humano? Direito fundamental? O que de fato é o direito à educação? É necessário ressaltar, antes, que tanto na doutrina como no direito positivado há grande confusão quanto às expressões direito natural e direitos fundamentais, direitos humanos, direitos subjetivos, que muitas vezes são utilizadas como sinônimos. Na opinião de Sarlet, citado por Muniz (2002, p. 46), não há motivos para essa confusão. Direitos fundamentais são os direitos humanos quando positivados nas Constituições dos Estados; o direito do homem, por sua vez, é aquele que se encontra nas normas internacionais, carregando consigo a idéia de que todos os seres humanos são merecedores de igual respeito pelo simples fato de serem humanos, apesar das diferenças individuais que os tornam indivíduos. Tem-se que é uma categoria de direitos da pessoa humana. São assim denominados por serem comuns a toda espécie humana, independente de lugar e tempo. 62 Direitos naturais para Ráo (1997, p. 81) são “princípios e respectivos preceitos que, por serem inseparáveis da natureza humana, são universais e por todo o sistema jurídico legítimo hão de ser reconhecidos”. Outro ponto que merece destaque é o direito público subjetivo. Silva (2004, p. 176-177) define direito subjetivo como “prerrogativas estabelecidas em conformidade com regras do direito objetivo: exercê-lo depende somente da vontade do titular, que dele pode dispor como melhor lhe convier”. O direito público subjetivo é, pois, a situação jurídica subjetiva do indivíduo em relação ao Estado, visando colocar os direitos fundamentais no campo do direito positivo. Celso Bastos entende que O direito subjetivo é a permissão para exigir, no caso de violação da norma jurídica que o estabelece, o cumprimento desse direito por parte do Poder Público. Pode ainda ser definido como uma espécie de poder, que se traduz nas prerrogativas do titular desse direito de buscar a obtenção do efeito jurídico advindo da norma. (BASTOS, 1981, p. 40). E Torres complementa dizendo que a elevação do direito à educação como subjetivo público confere-lhe o status de direito fundamental, mínimo existencial, arcando o Estado, nos limites propostos, com prestações positivas e igualitárias, cabendo a este, também, através de sua função jurisdicional, garantir-lhe a execução. (TORRES, 1995, p. 121). A educação, como um todo, está evidenciada como direito social no art. 6º, caput, da Carta Magna. No que tange ao ensino fundamental, houve o seu deslocamento para a categoria de direito fundamental. Tem-se assim que o direito ao ensino fundamental é tão importante quanto o direito à vida, à liberdade, à igualdade. Tendo sido, portanto, estabelecido o direito ao ensino fundamental como um direito subjetivo público, há faculdade de obrigar, isto é, o cidadão tem o direito de exigir do Estado a prestação da obrigação. Essa coação será feita pelo mesmo 63 Estado, via Poder Judiciário, que se incumbirá de interpretar a norma constitucional no tocante à educação básica, como determina a Constituição. A efetivação deste direito não se dá como atendido apenas pelo acesso, mas entendendo-se o acesso como permanência do educando na escola, garantindo-selhe transporte, alimentação, qualidade de ensino, dentre outras. Ressalta-se por fim que o cerne do direito à educação é o direito à vida. Garanti-lo é proteger a vida humana, pois o direito à educação é indispensável para a vida em sua plenitude. Segundo Muniz (2002, p. 58), “assim como as plantas modificam pela cultura, sendo necessário regá-las, podá-las, assim também é a educação para o homem”. Dessa forma, será analisado a seguir o direito à educação como direito integrante do direito à vida, constituindo-se direito humano fundamental com origem no direito natural, indispensável ao pleno desenvolvimento da pessoa em relação direta com a dignidade, sem o que jamais poderá atingir sua plenitude material ou espiritual, sua integração social e sua capacitação para o exercício da cidadania. 5.1 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO À VIDA Alguns direitos são tão essenciais à formação da personalidade humana que, em sua ausência, o homem perde a razão de ser, de existir. Os direitos considerados medula da personalidade integram a própria noção de pessoa. Dentre eles destacam-se, a liberdade, a honra, a vida. A valorização de um ou outro desses direitos varia ao longo da história da humanidade de acordo com o valor que é dado à pessoa humana. 64 O direito à vida, bem maior da humanidade, durante longo período histórico foi compreendido como o direito à sua preservação, à sobrevivência. Entretanto, a partir, principalmente, da Declaração dos Direitos do Homem, em 1789, a vida humana passou a ter um novo significado, não se tratando mais da preservação física puramente, mas sim da preservação física com dignidade, em todo o seu valor existencial. São Tomás de Aquino, segundo Muniz (2002), ensina que a vida é muito mais do que apenas função biológica. Ela é a fusão do corpo e da alma, tornando-os uma unidade composta. O corpo é carente de alimento para se manter; o alimento por sua vez, é bom para o corpo e essencial para a sua preservação. A alma, tal qual o corpo, também depende de alimento para se manter e desenvolver, e seu alimento é a sabedoria, a busca da verdade. Preservar a vida humana é, então, mantê-la em condições plenas de sanidade física, psíquica e moral, adequadas à dignidade da pessoa, ao livre desenvolvimento da personalidade. A educação, portanto, integra a vida e dela faz parte incondicionalmente na busca da dignidade e plenitude. Costa, citado por Muniz (2002, p. 62-64), afirma que “o homem, na ânsia de buscar o saber, busca realmente a satisfação no conhecimento das coisas que o rodeiam. Para alcançá-lo, atingir seu verdadeiro objetivo, o homem precisa de uma educação consciente e transformadora”. Assim, ao atingir seu anseio, ele terá discernimento para distinguir o que é bom para si e o que é bom para a humanidade. Por tudo isso é que o direito à educação não pode ser considerado apenas como um direito social fundamental, sendo ele algo mais, pois está ligado diretamente à vida humana, é intrínseco a ela. Garantir o direito à educação de qualidade, de acesso universal, é dar ao homem a condição mínima para que ele atinja o seu fim: ser humano. 65 5.2 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO NATURAL Em todas as sociedades sempre houve o reconhecimento da existência de princípios universais, ligados diretamente à natureza humana, havendo divergência somente quanto à sua formação, que uns atribuíam à razão, outros às causas históricas ou sociológicas, como afirma Ráo (1997, p. 82). Estes princípios universais constituem o direito natural, parâmetro da idéia de justiça que sempre norteou o homem, e, baseado nesse direito, pautou-se por muito tempo o direito positivo. Ele era considerado o limite para atuação do Estado. Diz Arias, citado por Muniz que durante toda a Antigüidade e a Idade Média, o direito natural serviu de modelo ao direito positivo, impondo limites a toda e qualquer forma de autoridade estatal. Aparece na cultura grega como proteção frente aos poderes opressores, goza de uma aceitação durante muitos séculos, principalmente com o advento do cristianismo, e, quando parece decair no século XIX, renasce no principio do século XX após as atrocidades acontecidas na Segunda Guerra Mundial, para gozar, nos dias de hoje, um vigor nunca antes experimentado. (ARIAS apud MUNIZ, 2002, p. 63) Cícero, citado por Del Vechio, afirmava que havia um justo por natureza, imutável, e que a própria consciência humana provava sua existência, em contraponto àqueles que afirmavam não haver tal direito, tudo mutável e relativo, não havia uma justiça absoluta. Segundo Cícero, Há certamente uma lei verdadeira, a reta razão conforme a natureza, difundida entre todos, constante, eterna, que, comandando, incita ao dever e, proibindo, afasta a fraude [...] Nesta lei não é licito fazer alterações, nem é licito retirar dela qualquer coisa ou anulá-la como um todo [...] Ela não será diferente em Roma, em Atenas, hoje ou amanhã, mas, como lei única, eterna e imutável, governará todos os povos e em todos os tempos, e uma só divindade será guia e chefe de todos: a que encontrou, elaborou e sancionou essa lei, e quem não lhe obedecer estará fugindo de si mesmo, e, por haver renegado a própria natureza humana, sofrerá as mais graves penas, mesmo que tenha conseguido escapar daquilo que em geral é considerado suplício (CICERO apud VECCHIO, 1979, p.55) O direito natural é então compreendido neste trabalho como a expressão do ideal de justiça almejado pelo homem. Partindo-se da premissa de que todos os seres 66 humanos têm o direito de serem tratados de forma digna, pelo fato de serem homens, independentemente das suas diferenças individuais, é necessário que ele tenha acesso ao mínimo de garantias que lhe permitam sua existência. Compreende-se assim que há alguns direitos que não podem depender de vontade política, que são pressupostos básicos da vida humana, a garantia de um mínimo existencial. O direito à educação compreende um desses direitos essenciais para que se garanta uma condição mínima de existência ao homem. A educação é instrumento de liberdade, que conduz à verdadeira cidadania, e segundo Torres (1999, p. 263) “sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais da liberdade. A dignidade humana e as condições materiais em retroceder aquém de um mínimo”. Na elaboração das leis que buscam proteger o direito à educação, cabe ao legislador se basear nos princípios do direito natural, o qual representa o que é justo, aquilo que advém do próprio homem. A finalidade precípua de toda lei é garantir que o homem se realize de modo a obter a plenitude temporal e espiritual: temporal, quando lhe são garantidos o direito à saúde, à moradia e ao trabalho; espiritual, quando lhe são dadas condições de desenvolver todo o potencial cognoscitivo, que lhe é inerente, por meio de uma educação integral e solidária. 5.3 A EDUCAÇÃO E OS DIREITOS HUMANOS Direitos Humanos nos remete diretamente à idéia de que são direitos do homem. Direitos que visam garantir os valores mais preciosos da pessoa humana, direitos como a liberdade, a igualdade, a dignidade. Em razão da amplitude do tema conceituá-lo torna-se uma difícil tarefa. 67 Bonavides (1998), citando Hesse, menciona duas acepções de direitos humanos, uma ampla e outra restrita, que pode-se interpretar como baseadas, respectivamente, num critério material e num critério formal de caracterização. A mais ampla, ou seja, a material, seria a dos direitos que almejam “criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana”. A mais estrita, ou seja, a formal diria que “são aqueles direitos que o direito vigente qualifica como tais”. Entretanto, para a elaboração deste trabalho optou-se pela definição de Mello que afirma serem os direitos do homem [...] aqueles que estão consagrados nos textos internacionais e legais, não impedindo que novos direitos sejam consagrados no futuro. [...] os já existentes não podem ser retirados, vez que são necessários para que o homem realize plenamente a sua personalidade no momento histórico atual. (MELLO, 2000, p. 571). Na lição de Lafer (1988) no início da Era Moderna (séculos XVI e XVII), o direito natural foi racionalizado, e seu fundamento divino, substituído pela razão. Sob forte influência da filosofia racionalista do século XVIII, através da escola do Direito Natural, foi elaborada a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, votada pela Assembléia Constituinte francesa em 26 de agosto de 1789; entretanto, há de se destacar que, treze anos antes, em 1776, nos Estados Unidos da América do Norte, havia sido feita a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, a que pode ser considerada o marco da defesa dos Direitos do Homem. Esse documento é que deu o impulso inicial para a positivação dos direitos naturais, isto é, dos direitos humanos, declarando: Todos os seres humanos são, por natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos direitos inatos, dos quais, quando entram em estado de sociedade, não podem por qualquer acordo privar ou despojar sua posteridade; nomeadamente, o gozo da vida e da liberdade, com os meios de adquirir a propriedade de bens, bem como de buscar e obter a felicidade e a segurança (FERREIRA FILHO apud MUNIZ, 2002, p. 54). 68 Pouco mais de uma década se passou após essa Declaração quando, na França, desencadeou-se um processo revolucionário que culminou com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789. Inspirados no Iluminismo, iriam escrever a nova Constituição francesa. A crítica política e filosófica racionalista e a ascensão econômica da classe burguesa levaram a um período de revoluções contra os regimes absolutistas e contra a organização hierárquica das sociedades. As revoluções levadas a cabo na busca pela igualdade dos indivíduos extinguiram a divisão em estamentos, instituindo o status único da cidadania. Em troca dos privilégios que o status conferia, foram positivados os direitos naturais nas Constituições pós- revolucionárias. Os direitos então declarados constituem a primeira geração de direitos humanos. Com isso houve o reconhecimento explícito da universalidade dos direitos do homem. O preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, é o seguinte: Os representantes do povo francês, constituídos em Assembléia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram solenemente declarar os direitos naturais, inalienáveis e sagrados no homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes recorde seus direitos e deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser a qualquer momento comparados com a finalidade de toda instituição política, sejam mais respeitosos; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e a felicidade geral. Segundo Muniz (2002, p. 75), “com base nesse documento, Constituições de diversos países passaram a inserir os direitos individuais no seu texto”. A próxima etapa na esteira dos direitos humanos é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, embora não se possa deixar de citar dois documentos anteriores, de relevância no reconhecimento dos direitos humanos: a 69 Constituição do México, em 1917, e a Constituição de Weimar, em 1919, as primeiras constituições a incluir os direitos sociais como direitos humanos fundamentais, cujos titulares são os miseráveis excluídos. A educação, que segundo Monteiro (2005, p. 25) é “fenômeno central da vida de todas as comunidades, desde as tribais, na medida em que é o recurso principal da reprodução e renovação da sua existência e identidade”, encontra nessas duas Constituições sua primeira referência direta, clara e objetiva. Em 10 de dezembro de 1948, após a Segunda Guerra Mundial, no Palácio de Chaillot, é oficializada a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Assinada inicialmente por 51 países, proclamou os direitos do homem como ideal a ser alcançado por todos, trazendo a concepção moderna dos direitos humanos, segundo Piovesan (1999, p. 15): “os direitos humanos compõem uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, na qual os direitos civis e políticos hão de ser conjugados com os direitos econômicos, sociais e culturais”. O direito à educação, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, passa a ser reconhecido universalmente como um direito fundamental do homem, indispensável à dignidade da pessoa humana e ao desenvolvimento da sua personalidade. Cita nos artigos 26 e 27 que: Art. 26. [...] § 1º Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar e fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser generalizado, o acesso aos estudos superiores deve ser aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito. § 2º A educação deve visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana e o reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das atividades das Nações Unidas para a manutenção da Paz. Art. 27. Toda pessoa tem o direito a tomar parte livremente na vida cultural 70 da comunidade, a usufruir das artes e participar do progresso cientifico e dos benefícios que dele resultar. Outros documentos internacionais ratificaram a Declaração Universal dos Direitos do Homem, como o Pacto de San José da Costa Rica, em 1969, chamado de Declaração Americana dos Direitos Humanos. O Brasil, signatário de ambos, ratificou-os plenamente na Constituição de 1988. Nos lembra Muniz (2002) que “as Declarações, por si só, pelo menos enquanto permanecem no âmbito do sistema internacional, não dão efetividade aos direitos humanos fundamentais, pois formulam direitos morais não sancionáveis”. Estes direitos somente ganham força de fato quando passam a fazer parte das constituições. Bobbio defende que melhor seria se tivesse mecanismos de se fazer efetivar os direitos consagrados nas Declarações, segundo ele deveria ser: a) que o reconhecimento e a proteção de pretensões ou exigências contidas nas Declarações provenientes de órgãos e agências do sistema internacional sejam considerados condições necessárias para que um Estado possa pertencer à comunidade internacional; b) a existência, no sistema internacional, de um poder comum suficientemente forte para prevenir ou reprimir a violação dos direitos declarados. (BOBBIO apud MUNIZ, 2002, p. 78). 5.3.1 Outras normas internacionais sobre a educação 5.3.1.1 Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais A divisão da Europa em dois blocos ideologicamente opostos - capitalistas e socialistas - fez com que a Organização das Nações Unidas, a fim de dar concretude jurídica aos direitos preconizados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, convocasse seus membros para elaborarem um novo documento. Em 1966, foi 71 elaborado então o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC). O art. 13 desse Pacto trata especificamente do direito à educação, definindo que Art. 3º - Os Estados-Partes reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam, ainda, que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participarem efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da Paz. Para assegurar o pleno exercício do direito à educação, o inciso II do art. 13 determina que: a) a educação primária deverá ser obrigatória e acessível gratuitamente a todos; b) a educação secundária em suas diferentes formas, inclusive a educação técnica e profissional, deverá ser generalizada e tornar-se acessível a todos, por todos os meios apropriados e, principalmente, pela implementação progressiva do ensino gratuito; c) o ensino superior deverá igualmente tornar-se acessível a todos, com base na capacidade de cada um, por todos os meios apropriados e, principalmente, pela implementação progressiva do ensino gratuito; d) a educação de base para os que não receberam educação primária ou não concluíram o ciclo completo de educação primária deverá ser intensificada na medida do possível; e) deve-se prosseguir ativamente no desenvolvimento de uma rede escolar em todos os níveis de ensino, na implementação de um sistema adequado de bolsas de estudo e na melhoria contínua das condições materiais do corpo docente. O art. 14 do mesmo Pacto dispõe que Art. 14 - Todo Estado-Parte, que no momento em que se tornar Parte, ainda não tenha garantido em seu próprio território ou território sob sua jurisdição a obrigatoriedade ou gratuidade da educação primária, se compromete a elaborar e adotar, dentro de um prazo de dois anos, um plano de ação detalhado, destinado à implementação progressiva, dentro de um número razoável de anos estabelecidos no próprio plano, do princípio da educação obrigatória e gratuita para todos. O PIDESC estabelece que o Estado, progressivamente, adote medidas concretas para efetivar os direitos nele estabelecidos; no que se refere ao direito à 72 educação, os dispositivos citados determinam ações positivas do Estado para a sua concretização. 5.3.1.2 Pacto de San Salvador No mesmo sentido do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), o Pacto de San Salvador determina no art. 13º que todas as pessoas têm direito à educação. Os Estados-Partes devem se orientar na elaboração de políticas públicas para que a educação seja orientada para o pleno desenvolvimento da personalidade humana, de sua dignidade, fortalecendo o respeito aos direitos humanos. A educação capacitará as pessoas para participarem efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista. Determina ainda que o direito à educação dos Estados deve se orientar pelos seguintes princípios: a) O ensino fundamental, primário e secundário, deve ser obrigatório, acessível a todos gratuitamente; b) o ensino superior é também acessível a todos, devendo ser implementado progressivamente; c) o Estado-Parte deverá proporcionar o acesso à educação daqueles que não tiveram acesso na época devida. 5.4 DIREITO À EDUCAÇÃO NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS As Constituições, instrumentos normativos dos Estados Modernos, sempre foram influenciadas pelas Declarações de Direitos do Homem, compreendendo 73 desde a finalidade de limitação dos poderes do Estado, até a proteção dos direitos humanos, reparando ou prevenindo sua violação. No Brasil, desde 1824, quando foi promulgada a primeira Constituição, que remonta à época do Império, já se fala no direito à educação, no art. 179, XXXII: “A instrução primária é gratuita a todos os cidadãos”. Ocorre que grande parte da população brasileira não tinha acesso ao ensino, pois negros, índios e mulheres não eram “cidadãos”, o que limitava o alcance da norma. Apesar dessas limitações históricas, que restringiu o avanço da proteção ao direito à educação naquele período, há de se ressaltar a importância da sua inserção no texto constitucional, uma vez que representa o início da construção do direito à educação nos textos constitucionais brasileiros. Outro ponto de destaque na Constituição de 1824 é a subjetivação e a positivação dos direitos do homem, que segundo Silva (1998, p. 171) “foi a primeira Constituição do mundo a fazê-lo”. Art. 179. A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império. Em 1889 inicia-se o período republicano no Brasil e, em 1891, é elaborado novo documento constitucional: a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Como Rui Barbosa não fora eleito para Presidente da recém criada República, manteve-se a mesma mentalidade colonialista do período imperial. Omissa quanto ao direito à educação, deixou a critério das Constituições estaduais a regulamentação do ensino. Assim, a primeira Constituição brasileira do período republicano, na contramão dos demais textos constitucionais da era dos direitos humanos sociais e fundamentais, não garantia em seu texto a proteção ao ensino gratuito e universal. 74 A Constituição de 1934, fruto das transformações políticas e econômicas do início do século XX, deu uma tônica diferente ao tema, dedicando um capítulo à educação e cultura. Carregada dos valores democráticos e republicanos, considerava a educação indispensável à formação da personalidade do indivíduo, conforme preceitua o seguinte dispositivos. Art. 149. A educação é direito de todos e deve ser ministrada pela família e pelos Poderes públicos, cumprindo a estes proporcioná-la a brasileiros e a estrangeiros domiciliados no Brasil de modo que possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação, e desenvolver num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana. Vê-se o notável avanço da Carta Magna de 1934 em relação a Constituição anterior na definição dos objetivos traçados para a educação, sua importância para: a formação do Estado Democrático e a construção de uma sociedade mais justa e humanitária. O art. 150 determina que seja “ensino primário integral gratuito e de freqüência obrigatória extensivo aos adultos”. O texto de 1934, apesar de social, não definiu a educação como dever do Estado; e nem sequer chegou a ser aplicado, porque, em 1937, ao ser instalado o Estado Novo, regime ditatorial de Getúlio Vargas, foi substituído por uma nova Constituição. A Constituição de 1937 significou um retrocesso no que se refere aos direitos sociais, em especial ao direito à educação. O Estado Novo não assumiu o papel de promotor do ensino primário. Art. 130. O ensino primário é obrigatório e gratuito. A gratuidade porém não exclui um dever de solidariedade dos menos para os mais necessitados; Assim, por ocasião da matrícula, será exigida aos que não alegarem, ou notoriamente não poderem alegar escassez de recurso, uma contribuição módica e mensal para caixa escolar. A Carta de 1937 estabelece que o dever primeiro na educação é dos pais, cabendo ao Estado apenas o dever de colaborar e complementar as deficiências da 75 educação, como se verifica na redação do artigo 125: Art. 125. A educação integral da prole é o primeiro dever e direito natural dos pais. O Estado não será estranho a esse dever, colaborando, de maneira principal ou subsidiária, para facilitar a sua execução ou suprir as deficiências e lacunas da educação particular. Com o fim do Estado Novo e a redemocratização do País, há também uma nova Constituição - a Carta de 1946 -, que recuperou os direitos sociais da Constituição de 1934. Nela é determinado que a educação é direito de todos, devendo ser ministrada no lar e nas escolas pelos poderes públicos e pela iniciativa privada, firmando a obrigatoriedade do ensino primário gratuito nas escolas oficiais. Reforça no art. 166 o princípio da solidariedade no direito educacional: “A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola. Deve inspirar-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana”. Destaca-se, segundo Silva, citado por Muniz (2002, p. 82), que “na Constituição de 1946, pela primeira vez, a inserção do direito do homem à vida, em substituição ao termo - subsistência”. Em 1961 entra em vigor a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, estabelecendo que, em caso de comprovados o estado de pobreza dos pais, a insuficiência de escolas, doença ou anomalia grave da criança, dentre outros, haveria isenção da obrigatoriedade do Estado na oferta do ensino primário obrigatório. Abriu-se a porta da discricionariedade do poder público na oferta do ensino, tornando-a assim menos efetiva. A Constituição de 1967 tratou da educação afirmando que se trata de um direito de todos os indivíduos entre 7 e 14 anos de idade. A educação deveria ser transmitida no lar, pela família e na escola, devendo se inspirar nos princípios da unidade nacional e nos ideais de liberdade e solidariedade. 76 A Emenda à Constituição n. 1, de 1969, alterou o direito à educação consideravelmente, definindo-o como dever do Estado, conforme o dispositivo abaixo: Art. 176. A educação inspirada no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e solidariedade humana, é direito de todos e dever do Estado, e será dada no lar e na escola. 5.4.1 A Constituição de 1988 e o direito ao ensino fundamental A Constituição promulgada em 1988 trouxe novamente a esperança de um direito à educação positivado e efetivado. Fruto da luta incansável de toda a nação brasileira, a Constituição marcou definitivamente a redemocratização do País, coroando a sociedade com avanços extraordinários na proteção dos direitos individuais e coletivos. A educação foi elevada, de acordo com a doutrina mais atual, à categoria de direito fundamental do homem. Integrante do direito à vida, ele deve ser preservado como tal, conforme preceitua Renato Di Dio: Admitindo-se que o direito fundamental é o direito à vida, o direito à educação surge como seu corolário. Com efeito, quando se preserva a vida, procura-se protegê-la para que seja uma vida digna, plena, produtiva e feliz. Se assim é, a educação apresenta-se como condição dessa dignidade, plenitude, produtividade e felicidade. Preservar-se a vida sem que, ao mesmo tempo, se criem condições para que o indivíduo desenvolva e atualize todas as suas potencialidades, mais que um absurdo lógico, é uma claudicação moral. Manter-se o indivíduo vivo sem que se lhe garantam as possibilidades de realizar seus anseios naturais é assegurar uma expectativa antemão frustrada. Mesmo porque o direito à vida não se cinge à preservação biológica, mas se estende aos valores psicológicos, sociais, políticos e morais, que, sem um mínimo de educação não chegarão a existir para o ser humano (DI DIO, 1982, p. 88). O tema “educação pública” gerou longos debates na Constituinte de 1988. Segundo Aranha (1989, p. 223), “muitos foram os confrontos e pressões, inclusive da escola particular, desejosa de manter o acesso às verbas públicas garantidas 77 pela Constituição anterior”. Destacou-se na defesa da educação pública o Prof. Florestan Fernandes4, então deputado pelo Partido dos Trabalhadores. Ao fim, proclamada a Constituição em 5 de outubro de 1988, viu-se que a luta dos defensores da educação pública foi vitoriosa, sendo incluídas no texto constitucional muitas garantias, dentre as quais são destaca-se: • Ensino fundamental obrigatório e gratuito; • Acesso ao ensino obrigatório e gratuito como direito público subjetivo; • Gratuidade do ensino público; • Plano nacional de educação visando à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis; • Integração das ações do Poder Público de forma a dar um fim ao analfabetismo, melhoria da qualidade do ensino, etc. O direito à educação perante a atual Constituição brasileira é juridicamente classificado como direito social, compreendido na concepção contemporânea dos direitos humanos fundamentais de segunda geração. Silva (1992, p. 258) declara que “direitos sociais são os pressupostos para o gozo dos demais direitos individuais, para o exercício efetivo da igualdade garantida formalmente, ou seja, 4 Florestan Fernandes - vendedor de produtos farmacêuticos quando, aos 18 anos, ingressou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em 1947, formando-se em ciências sociais. Doutorou-se em 1951 e foi assistente catedrático, livre docente e professor titular na cadeira de sociologia, substituindo o sociólogo e professor francês Roger Bastide em caráter interino até 1964, ano em que se efetivou na cátedra. O nome de Florestan Fernandes está obrigatoriamente associado à pesquisa sociológica brasileira. Sociólogo e professor universitário com mais de cinqüenta obras publicadas, transformou as ciências sociais no Brasil e estabeleceu um novo estilo de pensamento. Na educação Florestan vai criticar a pedagogia tradicional, que criava um educador distante do processo social e não engajado na tarefa de transformação da sociedade. Influenciado por Dewey e pelo seu discípulo (de Dewey), Anísio Teixeira, Florestan defendeu uma escola pública de qualidade acessível a todos os brasileiros. Para ele não existe Estado e sociedade democrática sem uma Educação democrática. E a escola pública gratuita é a única capaz de promover a democracia. E para isso a Educação precisa estar vinculada ao pensamento socialista, para que possa ser a chave da construção coletiva de formas mais simples e compensadoras de sociedade e de civilização. ... 78 igualdade perante a lei”, conforme os dispositivos abaixo: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantido aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. [...] Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. O fundamento dos direitos sociais encontra-se na constatação de que o homem não poderá usufruir de uma vida digna, plena e enriquecedora, se não forem satisfeitas suas necessidade básicas, dentre elas, o direito à educação. O Capítulo I, que estabelece os direitos e deveres individuais e coletivos, está inserido no Título II - Dos direitos e garantias fundamentais -, assim como o art. 6º, situado no Capítulo II. Por conseguinte, o Título II trata do direito à educação no art. 5º, quando se refere ao direito à vida, já que a educação está inserida na vida, e também no art. 6º, quando expressamente declara o direito à educação. A Constituição da República Federativa do Brasil trata da educação em diversas normas do Título VIII - Da ordem social -, no Capítulo III, Seção I, em sintonia com a tendência mundial de promover a justiça social e os direitos humanos fundamentais. O art. 206 do texto constitucional estabelece quais os princípios que devem ser observados ao ser ministrado o ensino; o art. 208 estabelece as metas e objetivos a serem alcançados e seu § 2º diz que o não-oferecimento ou oferecimento irregular importam responsabilidade da autoridade competente; o art. 210 delega ao 79 legislador ordinário a fixação dos conteúdos mínimos para o ensino fundamental; o art. 212 prevê a aplicação compulsória de receitas de impostos na educação, com possibilidade de intervenção do ente federal em caso de não observância. 5.4.1.1 Eficácia e aplicabilidade A garantia de um direito expresso no texto constitucional não significa que o direito está garantido no plano material. É necessário que ele alcance a sua eficácia, do contrário será letra morta, apesar de estar elevado à categoria de direito constitucional. Quando se fala de normas que definem direitos fundamentais, estas têm aplicação imediata, conforme estabelece a própria Constituição no seu art. 5º, § 1º: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Não há dúvidas quanto à eficácia quando se analisam os direitos fundamentais individuais, os que têm status negativus, ou seja, não dependem de ação do Estado, conforme ensina Lima (2003, p. 26); quando, porém, se avaliam as normas que exigem ações positivas do Estado, as que têm o status positivus libertatis, que precisam de prestações do Estado, passa-se a enfrentar dificuldades para a sua consecução. Na medida em que se considera a educação como um direito social, apresenta-se o argumento de que, como tal, para se ter eficácia, depende-se de recursos financeiros. É bem verdade que os direitos sociais, em especial o direito à educação, requer recursos financeiros para serem oferecidos; mas também é verdade ser este um argumento frágil, visto que os impostos pagos já contemplam os custos da educação. E mais, a própria Constituição estabeleceu as fontes de recursos. Se não fosse assim, para que positivá-los? Aceitar que a 80 concretização dos direitos sociais dependem da discricionariedade dos administradores públicos, que se escondem no argumento da falta de recursos, é fadá-los à morte. São pertinentes os ensinamentos de Muniz (2002, p. 92) ao asseverar que “o fundamento dos direitos sociais, em especial o direito à educação, encontra-se na constatação de que o homem não poderá viver uma vida plena, digna, enriquecedora, se não lhe forem satisfeitas as necessidades básicas”. Assim sendo, o Estado não pode se furtar de tal dever sob alegação de inviabilidade econômica ou de falta de normas de regulamentação. Assim também entendem alguns constitucionalistas, a exemplo de Marcos Augusto Maliska, que ensina: A questão aqui discutida exige considerar o significado e o alcance da norma constante do art. 5º, $ 1º, da Constituição Federal. Quanto à questão de que o dispositivo estaria reduzido às normas do art. 5º, tal entendimento pode ser afastado pela simples interpretação literal da norma que se refere a ‘direitos e garantias fundamentais’. Desta forma, a localização tópica da norma não serve como critério para justificar tal entendimento restritivo. Uma interpretação sistemática e teleológica conduzirá aos mesmos resultados, uma vez que ao utilizar a expressão ‘direitos e garantias fundamentais’, o constituinte buscou atingir a totalidade da normas do Título II, o que inclui também os direitos políticos, de nacionalidade, os direitos sociais e não apenas os direitos e garantias individuais e coletivos (MALISKA, 2001, p. 106-107). No mesmo caminho trilham outros constitucionalistas a exemplo de: a) José Afonso da Silva que diz: O Título II da Constituição contém a declaração dos direitos e garantias fundamentais, incluindo aí os direitos individuais, coletivos, sociais, de nacionalidade e políticos. O art. 5º, $ 1º, por seu lado, estatui que ‘as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata’. Isso abrange, pelo visto, as normas que revelam os direitos sociais nos termos dos arts. 6º a 11º [...] Então, em face dessas normas, que valor tem o disposto no $ 1º do art. 5º, que declara todas de aplicação imediata? Em primeiro lugar, significa que elas são aplicáveis até onde possam, até onde as instituições ofereçam condições para o seu atendimento. Em segundo lugar, significa que o Poder Judiciário, sendo invocado a propósito de uma situação concreta nelas garantida, não pode deixar de aplicá-las, conferindo ao interessado o direito reclamado, segundo as instituições existentes (SILVA, 1999, p. 165). 81 b) Alexandre Moraes: Em regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia e aplicabilidade imediata. A própria Constituição Federal, em uma norma-síntese, determina tal fato dizendo que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. As exceções ficaram por conta de expressa previsão constitucional (Por exemplo, art. 7º, inciso I). Essa declaração pura e simplesmente por si só não bastaria se outros mecanismos não fossem previstos para torná-la eficiente (MORAES, 2002, p. 446). O direito à educação, então, de acordo com a Constituição em vigor no Brasil e também com a doutrina contemporânea, é um direito fundamental e social, dotado de eficácia plena e imediata e de acionabilidade, uma vez que a própria Constituição fornece mecanismos para torná-lo efetivo. O constituinte originário, se não bastasse, mas no intuito de não deixar à mercê de interpretação, deu ao direito ao ensino fundamental o status de direito público subjetivo. Sabedor da importância da efetividade deste direito, como instrumento necessário para o próprio exercício do direito de liberdade que lhe é também constitucionalmente assegurado, não podendo ficar a reserva do possível, deu aos destinatários a chave para buscar sua aplicabilidade imediata, tal qual está na texto constitucional. Definindo desse modo no art. 208, § 1º, que “O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo”, o Estado tem o dever de entregar a prestação educacional e, não o fazendo, resta ao indivíduo a faculdade de socorrer-se do Judiciário para plena satisfação do seu direito. E o mesmo artigo, no § 2º, estabelece que o seu oferecimento deve ser de forma regular, do contrário caberá a responsabilização das autoridades competentes: “O não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular importa responsabilidade da autoridade competente”. Em observância aos ditames constitucionais, o art. 5º da Lei n. 9.394/1996 82 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e o art. 54, § 1º, da Lei n. 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) dispõem também ser o ensino fundamental direito público subjetivo. Oferecer o ensino fundamental é o grande desafio do Estado no campo da educação. O constituinte, ao estabelecer que o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é um direito público subjetivo, quis dizer que é exigível por parte do seu titular. Os comentários de Bastos sobre o referido dispositivo da Constituição são os seguintes: O direito subjetivo é a permissão para exigir, no caso de violação da norma jurídica que o estabelece, o cumprimento desse direito por parte do Poder Público. Pode ainda ser definido como uma espécie de poder, que se traduz nas prerrogativas do titular desse direito de buscar a obtenção do efeito jurídico advindo da norma. [...] Portanto, a educação concebida como um direito público subjetivo significa que o particular dispõe da faculdade de exigir do Estado o cumprimento da prestação educacional pelo próprio Estado. Nossa Constituição visa, sobretudo, à promoção da educação. Para que isso se concretize serão utilizados todos os meios possíveis para efetivá-la como um direito público subjetivo (BASTOS; MARTINS, 1998, p. 555). Da forma como está disposto na Constituição, em especial no art. 208, §§ 1º e 2º, o direito à educação que tem o status de direito público subjetivo é o ensino fundamental, ou seja, aquele que compreende da 1ª à 8ª série. Apenas este é direito público subjetivo exigível perante o Estado, que tem a obrigação de oferecê-lo de forma satisfatória. Entendeu o constituinte que essa etapa da educação, sem desmerecer as demais, é imprescindível para qualquer indivíduo e vital para a construção de uma sociedade democrática, que tem como pretensão se desenvolver em estrito respeito à dignidade da pessoa humana. 5.5 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 83 A legislação infraconstitucional tem integralizado de forma incontestável a Constituição no que se refere ao direito à educação. Em ordem cronológica, temos três diplomas legais que atestam a afirmação acima: Lei n. 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA); Lei n. 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB), Lei n. 10.172/2001 (Plano Nacional da Educação - PNE). No atual estágio da sociedade, o Estado não mais desempenha o papel de criador e de tutor da sociedade civil, mas desempenha o papel de articulador, reordenando as transformações provenientes da sociedade, organizando-a para o exercício da cidadania popular. Nesse sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente é o símbolo do novo Estado que se deslumbra. O Estatuto da Criança e do Adolescente, comumente chamado de ECA, veio para atender à demanda constitucional do art. 227, o qual determinava que fossem integralizados através de uma norma específica os direitos da criança e do adolescente. Materializando as transformações ocorridas na ordem social, o ECA substituiu o Código de Menores, estabelecendo a partir de então um novo conceito de proteção integral da criança e do adolescente. Estes passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos, logo, cidadãos, proclamando assim, de acordo com a Constituição e os documentos internacionais, a doutrina da proteção integral. Na trilha da afirmação acima, acha-se Coelho, citado por Cury: Os direitos de todas as crianças e adolescentes devem ser universalmente reconhecidos. São direitos especiais e específicos, pela condição de pessoas em desenvolvimento. Assim, as leis internas e o direito de cada sistema nacional devem garantir a satisfação de todas as necessidades das pessoas de até dezoito anos, não incluindo apenas o aspecto penal do ato praticado pela ou contra a criança, mas o seu direito à vida, à saúde, à educação, convivência, lazer, profissionalização, liberdade e outros (COELHO apud CURY, 2003, p. 15). A Constituição da República Federativa do Brasil, ao considerar a criança e o 84 adolescente como sujeitos de direitos, reconhecendo neles os mesmos direitos de toda pessoa humana e mais aqueles decorrentes de serem pessoas ainda em desenvolvimento, reconhece que eles possuem efetivamente o direito de exercê-los, inclusive o acesso à justiça em sua defesa e para sua concretização. Isso significa que a criança e o adolescente, sujeitos de direitos, efetivamente podem ser cidadãos, uma vez que os seus direitos já foram abrangidos pelo ordenamento jurídico. O direito da criança e do adolescente no Brasil percorreu um longo caminho até a sua consagração em 1988. No período monárquico, as normas tinham um caráter mais próximo da idéia de manutenção da situação vigente do que de real proteção. O Brasil vivia um período de escravidão e toda a legislação tinha como objetivo a manutenção da mão-de-obra representada pela criança e pelo adolescente. Em 1871, graças a uma forte pressão internacional, a Lei do Ventre Livre libertou os filhos de escravas que nascessem a partir de então. A medida, apesar de positiva do ponto de vista de ser um passo dado no sentido de pôr fim à escravidão, trouxe um problema social. Com a libertação dos filhos e a manutenção dos pais escravos, passou-se a ter um contingente de filhos sem pais, que permaneciam na senzalas. Com o fim da escravidão em 1888, o Estado foi pressionado pela sociedade para ter uma participação efetiva na proteção e assistência à criança, tarefa que era exercida quase na totalidade pela Igreja. Em 1927, em resposta aos reclamos da sociedade, foi elaborado o Código de Menores, que disciplinava a assistência à infância, preconizando que, em vez de punir, dever-se-ia educar as crianças e os adolescentes. Com essa disposição, houve um choque com o Código Civil de 1916, segundo o qual o pai detinha o pátrio 85 poder e o exercia sobre a sua estrutura familiar sem interferência do Estado. O Código de Menores punha limites ao pátrio poder, podendo até mesmo perdê-lo o pai que não pudesse ou não quisesse promover a educação do filho. A Constituição de 1937 foi a primeira a proteger o menor de 18 anos: proibiu que menores de 14 anos trabalhassem; que menores de 16 anos realizassem trabalho noturno, e que menores de 18 anos trabalhassem em condições insalubres. Em 1979, uma versão do Código de Menores foi elaborada na tentativa de superar as incorreções e sanar as omissões do código em vigor. Infelizmente, tal qual o código de 1927, o atual restringia a sua abrangência aos que se encontravam nas chamadas “situações irregulares” (menores infratores, vítimas de maus-tratos, por exemplo). Falhou ainda quando não reconheceu as crianças e os adolescentes como cidadãos, sujeitos de direitos, carecedores de proteção em razão da sua situação de desenvolvimento. O ECA, na trilha da Constituição de 1988 e dos instrumentos internacionais, como a Convenção dos Direitos da Criança aprovada na Assembléia da ONU de 1989, reconhece definitivamente os seus destinatários como sujeitos de direitos, verdadeiros cidadãos, dando-lhes os instrumentos jurídicos para reivindicá-los. No art. 1º estabelece que “Esta lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”. No artigo 3º dispõe: Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Os direitos assegurados aos jovens pela Constituição e pelo Estatuto, principalmente o direito à educação, além de concretizarem princípios de direitos humanos, são fundamentais para a construção de uma sociedade justa e, sobretudo, 86 para a elevação de tais indivíduos ao verdadeiro significado de ser humano. O direito à educação foi positivado no Estatuto da Criança e do Adolescente nos arts. 53 e 54, assim como a Constituição estabelece a prioridade para o ensino fundamental, os objetivos desse direito, e a responsabilidade por fazer se efetivá-lo, respectivamente. Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - direito de ser respeitado por seus educadores; III - direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores; IV - direito de organização e participação em entidades estudantis: V - acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência. Parágrafo único. É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais. Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente: I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria; [...] § 1º Acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. § 2º O não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público ou sua oferta irregular importa responsabilidade da autoridade competente. Nos comentários de Hélio Xavier Vasconcelos sobre o Artigo 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente aprende-se o seguinte: Tem-se claro, portanto, que o Estatuto assegura, coerentemente, uma educação voltada para o pleno desenvolvimento da pessoa, o que torna explícita a prática para a cidadania e a capacitação para o trabalho. [...] Assegurando esse direito, o Estatuto deseja e quer que todas as crianças e adolescentes brasileiros tenham uma escola pública gratuita, de boa qualidade, e que seja realmente aberta e democrática, capaz, portanto, de preparar o educando para o pleno e completo exercício da cidadania. (VASCONCELOS, 2003, p. 193). Vê-se que o Estatuto é o instrumento mais forte nos sentido de efetivar o direito à educação, uma vez que se destina à proteção integral com absoluta 87 prioridade das crianças e adolescentes. Estabelece explicitamente: • dever da família, da comunidade e do Poder Público em assegurá-la; • o acesso à Justiça para a sua efetivação; • a perda do pátrio poder em razão do não cumprimento do dever de educar; • a legitimação do Ministério Público, das associações e dos entes federativos em defesa do direito individual, difuso e coletivo à educação; • o ensino fundamental obrigatório como direito subjetivo. Além de regulamentar, oferece ainda os instrumentos que possibilitam a sua concretização por via extrajudicial e também judicial. Ou seja, o ECA, além de assegurar o direito à educação para as crianças e os adolescentes, e de estabelecer o dever do Estado em ofertar o direito ao ensino fundamental, ainda oferece mecanismos que possibilitam a sua concretização e a responsabilidade por sua garantia. Se o direito à educação não for assegurado pelos pais ou se não for ofertado pelo Poder Público, o Estatuto confere instrumentos para a sua efetivação. Para que isso aconteça é fundamental a participação do Ministério Público como legitimado a “zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis”, conforme disposto no art. 201, VIII, do diploma legal. 5.6 LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL Promulgada a Constituição, restava aprovar à lei complementar detalhar as diretrizes e bases da educação nacional. A LDB anterior somente foi elaborada 15 anos após a promulgação da Constituição de 1946, ou seja, em 1961. Em razão desse lapso 88 temporal, o fruto não foi outro senão um texto ultrapassado. Restava ao Legislativo não cometer o mesmo erro de outrora, porém, apesar dos esforços da sociedade civil e de alguns parlamentares sensíveis à questão educacional, passaram-se oito anos entre a promulgação da Constituição e a aprovação da nova LDB. Em atenção ao art. 22, XXIV, da Constituição Federal de 1988, que estabelece a competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional, foi aprovada em 20/10/1996 a Lei n. 9.394 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que passou a reger o sistema escolar brasileiro em substituição à Lei n. 4.024/1961. Em cumprimento aos arts. 205 e 214 da Constituição de 1988, a nova LDB passa a regulamentar a educação escolar, da infantil à superior, a ser desenvolvida em instituições específicas, com a participação das famílias e da sociedade, assim dispondo: Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. § 1º Esta lei disciplina a educação escolar que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias. § 2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e a prática social. A presente norma inovou ao tratar a educação de forma abrangente, compreendendo o processo de escolarização que se desenvolve nos estabelecimentos de ensino, e de pesquisa em todos os graus, bem como na formação que ocorre no seio da família, no trabalho e na convivência humana em geral. Trata, dentre outras questões, da gestão democrática do ensino público, da autonomia das escolas, dos níveis e modalidades de educação e de ensino, da formação e valorização do magistério e dos recursos financeiros. 89 Reafirma o texto constitucional no que se refere aos fins da educação, que é responsável pela preparação do homem, a fim de que ele possa explorar o seu potencial integralmente e enfrentar os desafios da vida. Em seguida, a LDB diz que a escola deve integrar-se à realidade do educando, partindo da premissa de que a escola desligada do seu meio social é tanto alienada quanto alienante, tendo vista que os conhecimentos adquiridos devem ser de utilidade para o aluno, tanto na questão profissional quanto na social. O art. 21 organiza a educação escolar brasileira, definindo-a da seguinte forma: A educação escolar compõe-se de: I - educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; II - ensino superior; O art. 32 estabelece que o ensino fundamental oferecido em escolas públicas e privadas não é restrito aos que estejam na faixa etária entre 7 e 14 anos, mas a todos aqueles que não tiveram oportunidade de acesso ao ensino na faixa etária determinada. A Constituição e, na sua trilha, a LDB, reconhecem que o acesso ao ensino fundamental é elemento essencial para que o indivíduo se integre na sociedade, adquira condições de ingresso no mercado de trabalho e exerça plenamente a sua cidadania, tendo participação na sociedade. Motta cita Carnoy, que assevera: A educação desempenha um papel crucial na promoção do desenvolvimento humano e nacional. [...] Segundo os milhares de estudos que avaliam uma geração de experiência educacional, a educação de uma criança é seu passaporte para uma vida mais saudável e produtiva. Ao oferecer uma educação básica a todas as crianças, criamos a estrutura necessária para uma sociedade mais saudável e produtiva - capaz de sustentar o desenvolvimento e garantir sua plena participação no mundo em rápido processo de transformação (CANOY apud MOTTA, 1997, p. 287). É inquestionável a importância do ensino fundamental na formação e consolidação do Estado Democrático; é condição mínima para o desenvolvimento 90 humano e para a realização dos fundamentos constitucionais da dignidade da pessoa humana e da cidadania. A efetivação desse direito é condição necessária para que se tenha uma sociedade mais justa e humana. A LDB constitui-se em mais um instrumento na luta pela efetivação desse direito, que não se limita a garantir o acesso à escola, mas ao direito de nela permanecer, com ensino de qualidade, garantindo ao educando a suplementação de material didático-escolar, transporte, etc. Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria; [...] VIII - atendimento ao educando no ensino fundamental público, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transportes, alimentação e assistência à saúde; Segundo Sari, embora a LDB apresente algumas contradições e omissões, é quase unânime entre os autores que ela trouxe uma nova esperança para toda a sociedade, pois é inovadora no seu texto, aponta para uma mais flexibilização da estrutura escolar, para a descentralização e avaliação do ensino. (SARI, 2004, p. 72). Por tudo isso, entende-se que é um marco na luta pela educação pública de qualidade. 5.7 PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO Em cumprimento ao que determina o art. 214 da Constituição e o art. 87, § 1º, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em 9 de janeiro de 2001 foi aprovada a Lei n. 10.712 (Plano Nacional de Educação - PNE), que contém as diretrizes e as metas da educação para um decênio. Plano Nacional de Educação (PNE): Art. 87. É instituída a década da Educação, a iniciar-se um ano a partir da 91 publicação da Lei. § 1º A União, no prazo de um ano a partir da publicação desta lei, encaminhará ao Congresso Nacional o Plano Nacional de Educação, com diretrizes e metas para os dez anos seguintes, em sintonia com a Declaração Mundial sobre Educação para todos. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração plurianual, visando à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à integração das ações do Poder Público que conduzam à: I - erradicação do analfabetismo; II - universalização do atendimento escolar; III - melhoria da qualidade de ensino; IV - formação para o trabalho; V - promoção humanística, científica e tecnológica do País. A elaboração do Plano Nacional de Educação seguiu o que determina a Constituição vigente, a LDB e as recomendações da Unesco, e visa determinar as prioridades que devem nortear as políticas educacionais, contemplando todos os níveis de educação. As principais metas podem ser definidas em síntese como: a) elevação global do nível de escolaridade da população; b) melhoria da qualidade de ensino em todos os níveis; c) redução das desigualdades sociais e regionais no tocante ao acesso e à permanência na educação pública; O PNE estabelece a Década da Educação, afirmando que os objetivos, as metas e as prioridades do ensino brasileiro devem ser cumpridas em dez anos, com a participação da sociedade civil que, interessada no aprimoramento das crianças e adolescentes, participa do acompanhamento e da avaliação do Plano. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), os Conselhos Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, os Conselhos Tutelares e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino 92 Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), organizados nos três níveis da administração, têm co-responsabilidade pela condução do PNE. É preciso então elaborar os planos estaduais e municipais de educação, todos coerentes com PNE, articulando-se as ações da União, dos Estados e dos Municípios para a consecução das metas estabelecidas para um decanato. Isso está ainda em processo de construção, por meio de reuniões e outros eventos, como o Seminário Nacional de Implementação do PNE, incluindo representações dos três níveis de governo, do Congresso Nacional, da sociedade civil e de organismos internacionais, conforme esclarece Sari (2004, p. 73). Salienta ele que “há mecanismos legalmente previstos para a realização de avaliações periódicas e o acompanhamento de sua implementação, cabendo aos Planos Plurianuais das três esferas de Poder darem suporte à consecução de seus objetivos e metas”. O PNE elaborou um diagnóstico dos problemas do ensino fundamental no Brasil, com dados fornecidos pelo MEC e INEP. Pela análise dos dados, verificou-se que no ensino fundamental, dentre vários problemas, um se destacava: a discrepância entre a idade do aluno e a série que cursa. Segundo os dados levantados, as matrículas do ensino fundamental estavam em torno de 35 milhões de alunos, entretanto, os dados demonstravam que 8 milhões desses alunos tinham idade superior à adequada para o ensino fundamental, ou seja, 25% do total matriculado estavam acima da faixa de sete a quatorze anos. Um outro dado interessante do diagnóstico realizado pelo MEC/INEP demonstra que há uma séria discrepância entre o ensino fundamental da escola pública e o da escola particular. O sentimento geral é de que, realmente, há uma diferença, mas ela se apresentou gritante. De cada cem crianças de escolas públicas, 36 estão atrasadas nos estudos, ao passo que, na escola particular, esse 93 número cai para 6, o que representa uma diferença de 600% (MEC/INEP, 2004). A efetivação do direito à educação fundamental é, sem dúvida, um desafio. Há, contudo, que se articular os diversos diplomas normativos existentes a respeito do tema e usá-los de forma a extrair deles o maior proveito. 5.8 DIREITOS INERENTES AO DIREITO AO ENSINO FUNDAMENTAL Aliada a maior oferta de vagas no ensino fundamental, requer do Estado que ele ofereça os meios necessários para que o educando tenha o maior proveito do que lhe é oferecido. Para se atingir os objetivos constitucionais, há que se estruturar o sistema de ensino brasileiro, a fim de que seja capaz de oferecer não somente acesso, mas acesso com qualidade. Aliado ao maior número de vagas oferecido, é necessário que também se garantam outros direitos, inerentes ao direito ao ensino fundamental. Sem oferecê-los, se torna inócua a oferta de salas de aulas, pois eles são a base para que se tenha efetivado o direito à educação. São vários os direitos inerentes ao ensino fundamental, mas destacam-se três essenciais: a) o direito à merenda escolar; b) o direito ao material escolar e ao transporte; c) o direito a um ensino de qualidade. 94 5.8.1 Direito à merenda escolar Pensar em educação de qualidade sem oferecer uma boa alimentação para os educandos é tão inócuo quanto não oferecer a própria educação. O grande destinatário da educação pública no Brasil é a parcela da população que vive abaixo ou muito próximo da linha da pobreza absoluta. São crianças e adolescentes que não têm o mínimo da alimentação recomendável para pessoas em desenvolvimento. Pensando nisso, o legislador brasileiro estabeleceu no art 208, inciso VII, da Constituição que o direito à educação seja efetivado mediante a garantia de atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares, dentre os quais o de alimentação e o de assistência à saúde. Também o art. 4º, inciso VII,I da Lei n. 9.394/1996 - LDB -, determina que sejam garantidos os programas suplementares. A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer tal direito no art. 208, VII, também aponta a fonte de custeio dos programas suplementares de alimentação e assistência à saúde, definindo que serão financiados com recursos das contribuições sociais e outros recursos orçamentários, estes especificados pelos arts. 211 e 212, § 4º, bem como o art. 60 e seus parágrafos, com as alterações introduzidas pela Emenda Constitucional n. 14, de 12/9/1996. A importância dada à alimentação não é outra senão o reconhecimento do papel que um organismo nutrido pode desempenhar no desenvolvimento intelectual e físico de uma pessoa. 95 5.8.2 Direito ao material escolar e ao transporte Da mesma forma que o direito à merenda escolar, o direito ao material escolar e ao transporte estão inseridos no bojo das garantias previstas para a efetivação do direito à educação fundamental, fazendo parte do mesmo inciso VII do art. 208. No interesse de dar ao estudante a estrutura mínima que lhe permita o acesso à escola, o legislador definiu que o aluno do ensino fundamental tem o direito a receber gratuitamente o material escolar e o transporte. A essenciabilidade desse direito encontra-se no fato de que a grande maioria dos alunos que usufruem da educação pública são crianças cujos pais não têm condições financeiras que lhes permitam adquirir o material escolar, e tampouco custear o transporte. Em decorrência da carência desses dois elementos, fatalmente ocorre a desistência escolar. Afirma Lima que, ao cuidar do direito à educação e do dever de educar, a Lei de Diretrizes e Bases reforçou o atendimento ao educando do ensino fundamental por meio de programas suplementares, reconhecendo-os como complemento necessário ao propósito da universalização da educação fundamental. (LIMA, 2003, p. 103). O custeio do direito ao material escolar e ao transporte será feito através da contribuição social do salário-educação. Assim, o direito ao material escolar e ao transporte, como os demais direitos complementares, faz parte do direito fundamental à educação e goza das mesmas prerrogativas, cabendo à autoridade que os descumprir as penas estabelecidas na LDB: 96 Art. 5º [...] [...] § 4º Comprovada a negligência da autoridade competente para garantir o oferecimento do ensino obrigatório, poderá ela ser imputada por crime de responsabilidade. 5.8.3 Direito à qualidade do ensino A Constituição Federal de 1988 determina no art. 206 que seja garantido, como princípio norteador do ensino brasileiro, o padrão de qualidade da educação. Para garantir a qualidade desejada, o legislador não mediu esforços, estabelecendo a formulação do Plano Nacional de Educação, cujo objetivo é articular os diversos níveis de governo para integrar as ações de forma a conduzir a erradicação do analfabetismo, a universalização do ensino, dando ênfase ao ensino fundamental. Estabeleceu as fontes de recursos e ainda definiu que, não sendo suficientes para suprir os gastos com a educação fundamental, os entes federados podem alterar as alíquotas dos impostos de sua competência, de forma a suprir imediatamente a diferença. A discussão acerca do padrão de qualidade de ensino e o que o define é algo controverso, havendo pouca concordância quanto aos critérios que possam defini-lo como de alta ou baixa qualidade. A questão mais complexa é definir as necessidades para a aprendizagem na educação fundamental. Ciente dessa dificuldade, o legislador estabeleceu que seriam definidos os critérios de aplicação dos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (FUNDEF), o que foi feito pela Lei n. 9.424/1996, arts. 13, e incisos, e 14, nos seguintes termos: 97 Art. 13. Para ajustes progressivos de contribuições a valor que corresponda a um padrão de qualidade de ensino definido nacional e previsto no art. 40, § 4º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias serão considerados, observados o disposto no art. 2º, § 2º, os seguintes critérios: I - estabelecimento do número mínimo e máximo de alunos em salas de aulas; II - capacitação permanente dos profissionais de educação; III - jornada de trabalho que incorpore os momentos diferenciados das atividades docentes; IV - complexidade de funcionamento; V - localização e atendimento da clientela; VI - busca do aumento do padrão de qualidade. Apesar de não atenderem ao propósito de parâmetros mais apurados, que levem em consideração, por exemplo, o nível de aprendizado do aluno, a capacitação do professor, etc., o estabelecimento legal desses critérios dá ao cidadão a possibilidade de requerer judicialmente que eles sejam cumpridos, visando à proteção de um direito líquido e certo, sendo o responsável pela nãoentrega da prestação administrativa do Estado a autoridade pública coatora, que infringiu a lei, conforme leciona Lima (2003). O Ministério da Educação e Cultura (MEC), através do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), utiliza outros indicadores, mais apurados, para avaliar a qualidade do ensino, que levam em consideração fatores que determinam de fato se o ensino oferecido está sendo eficaz. Com base nos dados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), que verifica o desempenho dos alunos pela proficiência - conjunto de habilidades cognitivas dos alunos desenvolvidas no processo de escolarização: o que sabem, compreendem e são capazes de fazer -, obtém-se a demonstração do padrão de qualidade da educação, certamente levando em consideração outros indicadores. Contudo, eles já sinalizam para qual direção está a instituição de ensino ou o sistema educacional como um todo. 98 A baixa qualidade na educação brasileira tem levado ao desenvolvimento de um mal silencioso, que vem condenando várias gerações de brasileiros a um futuro desastroso. Tão grave quanto à carência de vagas escolares ou o analfabetismo, é o analfabetismo funcional - entendido como a alfabetização insuficiente para o exercício de funções básicas -, que é o maior dos danos causados pela baixa qualidade no ensino. Não detectados pelas estatísticas brasileiras, por opção do Estado em não contabilizá-los, contudo, os dados da última pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2000) retratam que de cada 10 alunos que concluem o ensino fundamental, 7 sabem minimamente ler e escrever, mas não conseguem fazer a interpretação de um texto um pouco mais complexo ou fazer uma operação matemática. E a pior constatação é de que essa dificuldade apontada está presente em 12% dos alunos universitários. A exclusão escolar no Brasil, apesar de aparecer em curva decrescente, ainda é elevadíssima. Dados fornecidos pelo IBGE, em 1996, apontam que 2,7 milhões de crianças entre 7 e 14 anos estavam fora da escola, ou porque nunca freqüentaram ou porque a abandonaram. O fato de haver crianças fora da escola não significa a inexistência de vagas, mas relaciona-se também com a má qualidade de ensino, a distorção idade/série e a precariedade das condições de vida de grande parcela das famílias brasileiras. Não basta somente abrir vagas, mas são necessários também a criação de programas paralelos de qualificação do ensino e assistência à família e ao educando, para que tenham condições de promover o acesso à escola e sua permanecerem nela. É inquestionável o arcabouço jurídico que se criou em torno do direito à educação, principalmente nas duas últimas décadas, todos eles unânimes em estabelecer a importância de se efetivar a educação com qualidade e para todos. 99 É certo que não é mais um problema normativo a efetivação do direito ao ensino fundamental de qualidade, da forma que a sociedade anseia, dependendo agora de vontade política e de sensibilidade dos gestores públicos para implementarem os meios que demonstrem e concretizem a relevância que a educação desempenha no desenvolvimento humano e do país. 100 6 DA EFETIVAÇÃO DO DIREITO AO ENSINO FUNDAMENTAL A educação somente pode ser direito de todos se há escolas em números suficientes e se ninguém é excluído delas, portanto, se há direito público subjetivo à educação, o Estado pode e tem de entregar a prestação educacional. Fora daí é iludir com artigos de Constituição ou de Leis. Resolver o problema da educação não é fazer leis ainda que excelentes; é abrir escolas tendo professores e admitindo alunos. (MIRANDA, 1963, p. 187). Após a constatação do vasto aparato normativo existente, tanto constitucional quanto infraconstitucional, algumas questões ainda persistem. Por que tantas crianças de 7 a 14 anos, em idade de freqüentar o ensino fundamental, ainda estão fora do sistema educacional? Por que a grande distorção idade-série? Enfim, o que pode ser feito para a efetivação do direito ao ensino fundamental? Antes de dar prosseguimento às questões acima, há que se descortinar um aspecto ainda nebuloso: De quem é o dever de oferecer o ensino fundamental? É importante, para o desenvolvimento deste trabalho, determinar quais os deveres educacionais impostos ao Estado (nacional, estadual e municipal) pela Constituição Federal. O primeiro dever constitucional do Estado, neste tema, é o de realizar a normatização infraconstitucional - arts. 22, XXIV, 23, V, 24, IX e 214 da CR/88 -, o que vem sendo satisfatoriamente cumprido, por intermédio do Poder Legislativo. Foram elaboradas no período pós Constituição, dentre outras, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e o Plano Nacional de Educação. O art. 212 da Constituição Federal define as responsabilidades dos entes federados na organização dos sistemas de ensino, no entanto, não exclui a 101 responsabilidade de colaboração. Art. 212. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus Sistemas de Ensino. § 1º A União organizará o Sistema Federal de Ensino e dos Territórios, financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. § 2º Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil. § 3º Os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio. § 4º Na organização de seus Sistemas de Ensino, os Estados e Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório. O dever do Estado na manutenção da rede educacional estatal gratuita destinada a oferecer o ensino fundamental, desdobra-se no dever de garantir o acesso à escola aos que tenham idade entre 7 e 14 anos e no dever de diligenciar para que o educando nela permaneça, evitando a evasão escolar (art. 208 da CR/88). Sari (2004) assevera que nem a Constituição nem a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional fixam a idade própria para o ensino fundamental, no entanto, tendo em vista ser dever dos pais matricular os filhos menores, a partir dos 7 anos art. 6º da LDB -, e o ensino fundamental ter duração de oito anos, é possível afirmar que a idade própria é entre 7 e 14 anos, embora não se esgote nesse limite. Segundo a autora, tendo em vista que a maioria dos brasileiros, infelizmente, não teve oportunidade de cursar ou concluir o ensino fundamental até os quatorze anos e que o ECA (art. 2º) define como criança a pessoa até os doze anos incompletos, e adolescente aquele com idade entre doze e dezoito anos, explicitando o dever da família e do Poder Público de assegurar-lhes, com absoluta prioridade, seus direitos, é possível outra interpretação, ou seja, que a idade própria para o ensino fundamental obrigatório corresponde à faixa etária dos sete aos dezoito anos (SARI, 2004, p. 77). Constata-se, portanto, que ficou estabelecido um sistema de co- responsabilidade entre os entes federados - União, Estados, Municípios e Distrito 102 Federal -, no sentido de proporcionar, em caráter prioritário, condições adequadas para o acesso, a permanência e o sucesso de todos os alunos do ensino fundamental. Para isso é necessário haver ações coordenadas entre os entes da Federação e a integração dos respectivos programas, conforme escreve (LIBERATTI, 2004). O dever do Estado perante a educação é determinado com base nos fundamentos de cidadania e dignidade da pessoa humana. Para que o homem se realize como tal é necessário que o Estado estruture a questão educacional. É uma obrigação que deve ser considerada com muita seriedade pelos agentes públicos, pois apesar de ser comprovada a importância da influência da família na formação dos primeiros anos de vida, é inquestionável a atuação do Estado por meio de um sistema de ensino adequado. A omissão do Poder Público pode gerar danos de difícil reparação para os indivíduos, para a sociedade e para o próprio Estado. A Constituição de 1988, ao atribuir competência educacional aos entes federativos, promoveu a descentralização do ensino, reservando à União a competência de legislar sobre as diretrizes e bases da educação, mas pretendeu não padronizar o ensino. Ao contrário, permitiu que fossem respeitadas as diferenças existentes entre os diversos entes federativo. Apesar de afirmar a existência dos sistemas de ensino federal, estadual e municipal organizados em colaboração, dispôs que os Municípios poderão organizar os seus próprios sistemas de ensino, desde que não contrariem as leis em vigor e não se choquem com as diretrizes nacionais. Conforme dispõe o § 2º do art. 211 da CR/88, cabe ao Município atuar prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil. Deflui dos ensinamentos de Bastos (1998, p. 62) que ao Município não é vedado o oferecimento do ensino médio ou superior, entretanto, só poderá fazê-lo após 103 oferecer a educação infantil e, principalmente, o ensino fundamental, porque este é prioridade do Município. A Emenda Constitucional n. 14/1996, no artigo 3º estabelece que a atuação dos Estados e do Distrito Federal é prioritária no ensino fundamental e médio, ou seja, que estão proibidos de ofertar outras modalidades de ensino antes de oferecer satisfatoriamente o ensino médio e o fundamental. Tem-se então que o dever de oferecer o ensino fundamental é do Município e também do Estado e do Distrito Federal, que o constituinte o priorizou a ponto de conceder atuação a mais de um ente federativo. E além disso, estabeleceu que a União é co-responsável, devendo colaborar para a efetiva concretização do dessa fase do ensino. A omissão do Poder Público em cumprir suas referidas obrigações para com seus educandos, que será analisada adiante, poderá ser sanada pela via judicial, na qual também será perseguida a responsabilidade administrativa, civil e criminal do administrador ou agente público a quem ela é atribuída. 6.1 A EDUCAÇÃO BRASILEIRA Durante séculos a educação foi oferecida de forma espontânea pela família, que passava de geração em geração as suas tradições e as suas técnicas. Só mais tarde, quando a família percebeu ser incapaz de transmitir tudo o que seus filhos necessitavam, é que o ensino passou a ser ofertado sistematicamente em instituições próprias, assim nos ensina Brandão (1995, p. 71). Na Idade Média, a educação passou a ser atribuição e monopólio da Igreja, 104 embora exclusividade da minoria privilegiada. O ensino era ministrado pela Igreja conforme os pensamentos e as idéias da classe dominante, já que tinha por objetivo a manutenção dos privilégios, e não a capacitação para que as pessoas se situassem no mundo em que viviam. No Brasil não foi diferente, a Igreja, através dos Jesuítas5, chegou junto com os colonizadores portugueses. Em 1549 fundam na Bahia a primeira de uma série de escolas no Brasil. A ordem religiosa permanece no país e monopolizam o ensino até meados do século XVIII, quando é expulsa pela coroa portuguesa. Segundo Gadotti (1997, p. 2) o Marquês de Pombal, Primeiro-ministro de Portugal (17501777), defendendo idéias do despotismo esclarecido, empreendeu reformas no campo educacional com uma incipiente luta pela escola pública. Nesta época também ocorre a expulsão dos jesuítas sob a alegação “obscurantismo cultural e envolvimento político”. Em 1808 com a vida da família real para o Brasil, o foco da educação passou a ser então a formação de uma elite governante e de militares. No ano de 1827, logo depois da Independência do Brasil, foram criadas duas faculdades de Direito, uma em São Paulo e outra em Recife. Também nesta época foram criadas duas faculdades de Medicina, uma no Rio de Janeiro e outra em Salvador. Em 1838 é inaugurada a primeira escola pública secundária, o Colégio Pedro II. Neste período, cita Gadotti (1997) que o Brasil tinha aproximadamente 14 milhões de habitantes, destes, cerca de 85% eram analfabetos. Inicia o século XX, enquanto a maioria da população européia já está alfabetizada, no Brasil a educação chega a uma minoria (SCHWARTZMAN, 2005, p. 16). Acreditando os governantes do início do século que a ignorância do povo era a 105 causa de todas as crises do país, criaram-se então diversas Escolas Normais de formação de Professores primários. Registra também neste princípio de século o surgimento do movimento de combate ao analfabetismo. Em 1924 é criada a Associação Brasileira de Educação (ABE) que reunia grandes nomes da educação nacional. A partir dela surgiu o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” em favor do ensino fundamental público, gratuito e obrigatório (ARANHA, 1999, p. 137). O ano de 1930 começa com o processo revolucionário liderado por Getúlio Vargas. Com a revolução importantes transformações ocorreram no campo educacional, destacando-se a criação, no mesmo ano, do Ministério da Educação e Cultura. O primeiro ministro da Educação, Francisco Campos, criou o Estatuto das Universidades Brasileiras, nesta época também foi criada a Universidade de São Paulo (1934). A partir de 1946, a Constituição determinou a fixação orçamentária para a educação. Anualmente, a União teria que aplicar não menos que 10%, e os Estados, Distrito Federal e Municípios, nunca menos que 25% dos valores arrecadados com impostos. Entre 1946 e 1964, curto período democrático, surgem diversos movimentos populares em defesa da educação pública. Período de intensa efervescência da vida democrática, as pessoas passam a se manifestar e a cobrar a efetividade dos direitos de cidadania. No campo da educação destacam-se: a Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário, a de Erradicação do Analfabetismo, a de Educação de Adultos e a de Educação Rural. O golpe militar de 1964 interrompeu reformas importantes que vinham sendo implantadas no país, influenciadas, sobretudo, pelo educador Paulo Freire. No inicio 5 Ordem religiosa católica, fundada por Inácio Loyola, em 1534. 106 dos anos 70 a educação obrigatória passou de 4 anos para 8 anos. Assim o ensino básico, passou a ser chamado de primeiro grau, compreendendo da primeira série até a oitava série. Os primeiros anos da década de 1970, chamado de período do milagre econômico, foram responsáveis por grandes retrocessos na educação nacional. O regime quebrou todo o entusiasmo em que se encontrava a sociedade; os movimentos de reivindicação legítimos foram todos classificados como subversivos e extintos. Segundo o censo do IBGE, o país entrou a década de 1980 com ainda 25,5% de analfabetos em idade superior a 14 anos. Com o término do regime militar em 1985 e a situação econômica do país deteriorada, a década de 1980 não representou nenhum avanço na área educacional. Apesar da retomada da organização da sociedade, reorganização dos sindicatos e do Movimento Estudantil, a qualidade do ensino nesta década foi ao seu pior nível desde que os números passaram a serem registrados. Os índices de evasão e repetência tornaram-se alarmantes, Gadotti (1997) cita que apenas 44% dos alunos matriculados no ensino fundamental conseguiram terminar as oito séries, e para isso precisaram, em média, de 11,4 anos na escola. Apenas 3% concluíram a oitava série sem repetências e 65% terminaram apenas a quinta série. Na década de 1990, pós Constituição de 1988, o País volta a se organizar em torno da educação fundamental pública e de qualidade. A partir de uma proposta do Senador Darcy Ribeiro é aprovada a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, dando, segundo Schwartzman (2005, p. 25) “mais liberdade e flexibilidade para as instituições educacionais em todos os níveis para montar seus próprios assuntos”. Esta década também marca a reabilitação do antigo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) como Agência de Pesquisas Estatísticas e Avaliação do Ensino 107 e a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF) para reduzir as diferenças regionais e estabelecer um piso para os gastos estaduais e municipais com o ensino fundamental. A Constituição de 1988 também redefine, segundo Schwartzman (2005, p. 25), os gastos públicos com educação. Determina que a União gaste 18% de seus recursos com educação, os Estados e Municípios, 25%. Gomes (2005), fazendo comentário sobre a qualidade do ensino fundamental, apresenta reportagem da Revista Veja (2003, p.53) mostrando estudo mundial, realizado pela Unesco, que compara a educação de diversos países, dentre eles o Brasil. Estudantes de 41 países, na faixa dos 15 anos, foram testados em leitura, matemática e ciências. O Brasil apresentou um desempenho lamentável. Em leitura, os alunos brasileiros ficaram em 37 lugar, à frente apenas da Macedônia, da Indonésia, a Albânia e do Peru. Em matemática e ciências, em quadragésimo. A pesquisa concluiu também que ‘nenhum país conseguiu obter bons resultados no campo da educação sem fazer investimentos significativos - e bem distribuídos. [...] O Brasil reúne dois defeitos. O dinheiro é curto (30.000 reais por aluno até os 15 anos) e a distribuição dos valores, heterogênea. ... Nos últimos dez anos, houve um salto de quantidade no sistema educacional brasileiro. Praticamente todas as crianças foram matriculadas e se ampliou a oferta de vagas no ensino médio e no superior. No governo de Fernando Henrique Cardoso, o ministro Paulo Renato de Souza organizou um importante sistema de avaliações, que monitora do ensino fundamental ao superior. [...] A Coréia investe pesado em educação há trinta anos’. Segundo os resultados do mesmo estudo comparativo, os estudantes coreanos obtiveram o 1º lugar em ciências, o 3º em matemática e o 7º em leitura. A reportagem que noticia o referido levantamento toca no ponto central do problema da educação brasileira no estágio em que se encontra: Resta enfrentar o desafio de oferecer não apenas um lugar em sala de aula mas garantir que as crianças absorvam o que lhes está sendo ensinado.E pode-se acrescentar: mais do que absorver, passivamente, ensinamentos, o educando deve ser visto como um agente capaz de participar ativamente do processo educacional. Isso só será possível se contar não só com o espaço físico da sala de aula mas, também, com professores suficientemente preparados para educar e não apenas transmitir conhecimentos. E isso implica, obviamente, na necessidade de se valorizar a figura e a profissão do Professor. Infelizmente, neste quesito, o Brasil também carece muito de uma urgente evolução que seja capaz de colocá-lo em posição menos distante dos países que há muito investem e, cada vez mais, em educação. Perceberam eles não haver possibilidade de desenvolvimento da sociedade sem que os integrantes desta sejam suficientemente educados, desenvolvidos, como seres humanos que são. (GOMES, 2003, p. 97). 108 O ensino fundamental brasileiro apresenta, segundo dados do MEC/INEP, os seguintes dados: O quadro 1 - Número de matrículas em todas as modalidades de Ensino Fundamental, por Região Geográfica - demonstra que o Nordeste é a região com maior número de alunos matriculados no ensino fundamental dentre todas, praticamente 40% do número total de alunos no Brasil. Verifica-se que enquanto algumas regiões do país o grande volume de alunos do ensino fundamental está nas cidades, no Norte e no Nordeste este percentual chega a mais de 20% dos matriculados. O quadro 2 - Número de Professores exercendo atividades em sala de aula no Ensino Fundamental, por Região Geográfica - demonstra dois importantes dados: A relação Aluno x Professor no Norte e no Nordeste estão acima da média nacional; A relação Aluno x Professor no rural é em média inferior a 30% da mesma relação nas cidades. O quadro 3 - Formação dos Professores do Ensino Fundamental de 5ª a 8ª séries por nível de formação, por Região Geográfica - demonstra o quanto o ensino fundamental brasileiro está carente de professores bem formados. Apesar de ainda apresentar alguns professores lecionando sem o ensino fundamental completo, o dado que destaca é aquele que indica 23,45% dos professores com o apenas o ensino médio. E pior, no Norte e Nordeste este percentual chega próximo dos 50%. Uma verdadeira disparidade com o restante do país, principalmente Sul e Sudeste. O quadro 4 - Número de estabelecimentos da Educação Fundamental por localização - demonstra a relação estabelecimento x aluno, tanto no rural quanto no urbano. Em razão da baixa densidade demográfica o Nordeste e o Norte o número de alunos por estabelecimento é inferior ao de outras regiões mais populosas. Entretanto, este dado remete a uma outra análise. Cruzando-o com os dados deste 109 quadro com os dados do quadro 2 observa-se que, em média para cada estabelecimento de ensino urbano o Nordeste apresenta 6 professores, enquanto no Sudeste esta média é de 13 professores. Há certamente uma grande carência no sistema educacional nas regiões Nordeste e Norte do país. Apesar do grande número de alunos matriculados, são as Regiões que apresentam os maiores números de professores com baixa formação, o que implica diretamente na qualidade do ensino; as maiores relações professor x aluno; os maiores números de escolas rurais. Região Total Urbano % 6.247.799 4.944.644 79,14% Norte 20.980.027 16.352.770 77,94% Nordeste 19.086.233 18.200.707 95,36% Sudeste 6.895.998 6.338.675 91,92% Sul 3.602.796 3.359.598 93,25% Centro-Oeste 56.812.853 49.196.394 86,59% Brasil Quadro 1: Número de Matrículas em todas as modalidades de Região Geográfica, em 31/03/2004 Rural % 1.303.155 20,86% 4.627.257 22,06% 885.526 04,64% 557.323 08,08% 243.198 06,75% 7.616.459 13,41% Ensino Fundamental, por Fonte: MEC/INEP, 2004. Região Total Urbano % Norte 166.667 122.086 73,25% Nordeste 581.293 425.103 73,13% Sudeste Sul Centro-Oeste 566.754 253.854 108.328 Rural 44.581 156.190 518.879 91,55% 47.875 216.920 85,45% 36.934 96.424 89,01% 11.904 Relação Prof. Relação Prof. X Aluno X Aluno (Urbano) (Rural) 26,75% 40,50 29,23 % 26,87% 38,47 29,63 08,45% 14,55% 10,99% 35,08 29,22 34,84 18,50 15,09 20,43 1.676.896 1.379.412 82,26% 17,74% 35,66 25,60 297.484 Quadro 2: Número de Professores exercendo atividades em sala de aula - Ensino Fundamental - por Região Geográfica, em 31/03/2004 Brasil Fonte: MEC/INEP, 2004. Fundamental Médio completo Superior completo Incompleto Completo Norte 0,02% 0,21% 49,40% 50,30% Nordeste 0,02% 0,13% 37,57% 62,20% Sudeste 0,03% 0,02% 05,92% 96,70% Sul 0,05% 0,40% 08,16% 91,40% Centro-Oeste 0,01% 0,20% 21,15% 78,62% Brasil 0,03% 0,14% 23,45% 76,38% Quadro 3: Formação do Professores do Ensino Fundamental de 5ª a 8ª, por nível de Formação, por Região Geográfica, em 31/03/2004 Região 110 Fonte: MEC/INEP, 2004. Região Total Urbano % 44.139 24.888 56,39% Norte 135.584 78.922 58,21% Nordeste 53.216 41.026 77,09% Sudeste 30.892 22.100 71,54% Sul 10.572 7.958 75,27% Centro-Oeste 274.403 174.894 63,74% Brasil Quadro 4: Número de estabelecimentos da Região - 2004 Relação Estab. Relação Estab. X Aluno Urbano X Aluno Rural 19.251 43,61% 251,04 67,69 56.662 41,79% 265,83 81,66 12.190 22,91% 465,22 72,64 8.792 28,46% 312,04 63,39 2.614 24,73% 452,73 93,04 99.509 36,26% 324,84 76,54 Educação Fundamental por localização, segundo Rural % Fonte: MEC/INEP, 2004. 6.1.1 Os indicadores da educação brasileira Na década de 1990, o Brasil e mais oito países reunidos em Jontien, na Tailândia, no chamado “Grupo dos Nove” - países cuja população é das mais altas e a produtividade educacional está entre as mais baixas -, firmaram o compromisso de Educação para Todos, que tem por finalidade instituir políticas públicas direcionadas à educação. No Brasil, como fruto desse protocolo, instituiu-se o Plano Decenal de Educação para Todos (MEC, 2003). O plano brasileiro tinha dois focos: o primeiro, garantir o acesso de todos à escola; o segundo, a implementação de um ensino fundamental de qualidade. A escola pretendida era aquela capaz de preparar o educando para conviver na sociedade, atendendo às suas demandas e proporcionando-lhe uma vida autônoma. Em 1996, na avaliação dos cinco anos decorridos da Década da Educação para Todos, verificou-se que alguns avanços já eram percebidos, especialmente no que se refere ao acesso, ficando, porém, evidenciado que não havia indicadores que permitissem definir quanto ao padrão de qualidade do ensino, principalmente diante da tamanha diversidade e extensão do Brasil, um verdadeiro continente. No intuito de obter dados mais consistentes nesse aspecto, o INEP/MEC, criou novos 111 indicadores capazes de demonstrar, tanto no aspecto quantitativo quanto no qualitativo, se o direito à educação estava ou não se efetivando. Do ponto de vista quantitativo, os indicadores são: taxas de matrícula, taxa de ingresso e escolarização. Qualitativamente, os indicadores estão relacionados a resultados da educação: taxa de repetência, taxa de sobrevivência (aprovação), coeficiente de eficácia, porcentagem de alunos que dominam um conjunto de competências básicas, qualificação dos professores. Além disso, como bem afirma Liberatti (2004, p. 124), outros indicadores relacionados a estes devem ser observados: financiamento do ensino, titulação dos docentes e o número de alunos por docente. Todos eles, segundo o autor, têm íntima relação com a qualidade de ensino. A instituição de indicadores é importante, uma vez que proporciona à sociedade e ao governo condições de planejar o sistema educacional de acordo com as demandas. Segundo Balzano citado por Liberatti (2004, p. 289), “os processos de avaliação estratégica da educação são, hoje, mundialmente considerados indispensáveis como mecanismos de acompanhamento e controle das reformas e das políticas educacionais”. No campo da pesquisa educacional, o Brasil vem se destacando mundialmente. Apesar de ainda não conseguir resolver o problema da qualidade do seu ensino, é reconhecido pelo trabalho do Instituto Nacional de Pesquisas e Estudos Educacionais (INEP), órgão responsável por grande número de informações à disposição no campo da educação, o que tem permitido o aprofundamento da discussão pela sociedade civil e as tomadas de decisões pelo Poder Público. A última pesquisa realizada pelo INEP, em 2004, demonstra que o Brasil conseguiu avançar consideravelmente quanto à garantia de acesso ao ensino. No entanto, apesar de estar sendo garantido com razoável eficiência, o País tem 112 encontrado dificuldades no que se refere à qualidade do ensino. Prova disso é a crescente taxa de analfabetismo funcional que, embora não seja medido oficialmente, é perceptível nos dados do IBGE: está em curva ascendente, pois em 1990 era de aproximadamente 4% da população brasileira, chegando a quase 8% em 1998. Isso demonstra que, houve o aumento da oferta de sala de aula, entretanto, diminuiu assustadoramente a qualidade da educação oferecida. Na tabela abaixo, do MEC/INEP, pode-se visualizar e comparar as taxas de escolarização bruta e líquida nos níveis de ensino fundamental, médio e superior e sua evolução no período 1996 e 2003, sendo a Taxa de Escolarização Bruta a que compreende todos os alunos matriculados em determinado nível de ensino, independente da idade. A Taxa Líquida informa o número de alunos em idade apropriada ao nível de ensino em que se encontra matriculado. TABELA 1 Taxa de Escolarização Bruta e Líquida por nível de Ensino - Brasil 1996/2003 Nível de Ensino Taxa de Escolarização Bruta 1996 Ensino Fundamental (7 a 14 anos) 112,30% Ensino Médio (15 a 17 anos) 50,70% Educação Superior (18 a 24 anos) 9,30% 2003 Ensino Fundamental (7 a 14 anos) 119,30% Ensino Médio (15 a 17 anos) 81,10% Educação Superior (18 a 24 anos) 18,60% Fonte: IBGE, PNAD´s 1996 e 2003 apud MEC/INEP, 2004. Taxa de Escolarização Líquida 86,50% 24,10% 5,80% 93,80% 43,10% 10,60% A sua análise revela evolução em todos os níveis e demonstra o resultado de políticas governamentais adotadas nas últimas décadas, em especial os incentivos financeiros proporcionados pelo FUNDEF, que levaram à inclusão de milhares de jovens que não estavam na escola. Em que pese o progresso, a mesma tabela mostra gargalos importantes que tais políticas, inclusive o FUNDEF, não conseguiram resolver. Se tomarmos o conjunto de matrículas do Ensino 113 Fundamental e compará-lo com a população de 7 a 14 anos, vemos um excesso de cerca de 20% de alunos, indicando que ainda há, nesse nível de ensino, estudantes que já ultrapassaram a idade considerada adequada para a conclusão dos 8 anos do fundamental. Dessa forma, embora o País tenha atingido um nível de acesso à escola, da população de 7 a 14 anos, praticamente universal, o nível de escolaridade média da população de 15 anos ou mais é de apenas 6,7 anos. Esse aparente paradoxo pode ser explicado pela baixa eficiência do sistema educacional brasileiro em produzir concluintes, pois se o acesso é quase universal, é baixo o percentual daqueles que concluem o ensino fundamental, sobretudo na idade adequada. Haveria, portanto, uma população de quase 20% que, embora pudesse cursar o Ensino Médio, permanece retida no nível anterior, isso sem contar os que evadiram. Essas considerações ficam demonstradas pela análise dos indicadores de fluxo escolar. Em um sistema de ensino de progressão seriada, eles são um valioso instrumento para acompanhar a trajetória dos alunos, medir a eficiência das redes de ensino e a capacidade do sistema em produzir concluintes. Tornam possível desvendar um dos problemas crônicos da educação brasileira - os altos índices de fracasso escolar dos estudantes que, apesar de passarem em média aproximadamente 10 anos na escola, completam com sucesso pouco mais de 6 séries. Mostram também que ainda estamos longe de atingir, na média, as oito séries de escolarização obrigatória. Mesmo que as taxas de repetência no Brasil tenham diminuído nos últimos anos, saltando de 30,2% em 1995, para 19,2%, em 2003, conforme Tabela 2, ainda continua elevada e muito aquém dos índices registrados em países com níveis de desenvolvimento equivalentes ou até mesmo inferiores ao brasileiro. Outro dado é a 114 Taxa de Promoção e a Taxa de Evasão, que se mostram pequenas alterações. A evasão piorou um pouco - de 5,3% em 1995 para 6,8% em 2003. Esses resultados demonstram um inchaço do sistema educacional e baixa taxa de conclusão do ensino fundamental, o que quer dizer baixa qualidade. TABELA 2 Taxa de Transição por Série - Brasil 1995-2003 Ano Total 1ª Taxa de Promoção 1995 64,5 53,5 2000 73,4 62,8 2003 74,0 70,1 Taxa de Repetência 1995 30,2 45,5 2000 21,7 36,2 2003 19,2 28,9 Taxa de Evasão 1995 5,3 1,0 2000 4,9 1,0 2003 6,8 1,0 Fonte: MEC/INEP, 2004. 2ª Ensino Fundamental 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª Total Ensino Médio 1ª 2ª 3ª 64,4 71,3 71,9 57,6 63,9 69,9 69,0 73,7 77,5 79,4 68,1 73,9 76,5 74,7 76,9 80,1 78,3 68,4 71,9 74,8 72,0 65,0 73,4 71,7 53,9 64,5 62,6 67,3 75,0 73,7 83,7 85,3 84,3 32,2 23,5 19,1 33,6 27,4 22,8 17,9 22,5 17,6 14,8 24,8 17,6 17,1 15,2 19,6 15,1 13,6 22,9 18,3 15,8 15,5 26,7 18,6 20,6 34,7 24,6 27,0 24,7 17,2 18,5 13,5 10,6 12,7 8,3 8,0 7,7 11,4 10,9 10,4 8,0 7,8 7,8 2,8 4,1 3,0 3,4 3,8 3,5 5,2 4,9 4,8 9,0 5,8 8,1 8,8 7,1 8,7 8,7 8,5 9,8 7,3 13,1 6,4 10,1 9,4 12,5 A Taxa de Promoção deve ser entendida como o percentual de progressão, ou seja, como está a evolução dos estudantes. Verifica-se na tabela acima que o total de transição série no ensino fundamental em 2003 foi de 74%, enquanto em 1995 estava em cerca de 64%. A Taxa de Repetência indica o percentual de reprovação dos alunos, do total dos alunos do ensino fundamental em 2003 a repetência ficou próximo de 19%. A Taxa de Evasão demonstra o percentual de alunos que entram e não concluem o ano letivo. Retomando a questão dos indicadores, o INEP/MEC trabalha hoje com 23 indicadores, distribuídos em seis blocos, que permitem ter uma visão abrangente da situação educacional do País. Segundo Liberatti (2004, p. 127), os indicadores possibilitam que os resultados educacionais sejam associados aos fatores que 115 influenciam direta ou indiretamente na educação. São seis os blocos de análise do INEP/MEC: a) Contexto Sóciodemográfico: Indica os aspectos sociais, econômicos e demográficos que têm relação com as variáveis educacionais. São: Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), Distribuição Espacial da População, Percentual da População em Idade Escolar por Faixa Etária, Taxa de instrução populacional e de analfabetismo (não considera o analfabetismo funcional, somente o tradicional). Além de outras possibilidades, esses indicador permite estimar a demanda por vagas na educação infantil, no ensino fundamental e no médio b) Condições da oferta: Este bloco mostra as condições de atendimento pelos Sistemas de ensino, tais como: infra-estrutura das escolas; situação salarial e qualificação dos recursos humanos que atuam na educação. Tais dados apresentam forte relação com a qualidade do ensino, dentre eles, os índices que definem o número de alunos atendidos por tamanho da escola, o número médio de alunos por turma, o número médio de horas-aulas diárias, a qualificação e o salário médio dos docentes e os recursos disponíveis na escola. c) Acesso e Participação: Neste bloco é indicado o atendimento escolar na faixa etária adequada, nos diferentes níveis de ensino da educação básicafundamental e médio. São eles: as taxas de atendimento, escolarização bruta e líquida e a distribuição de matrícula por sexo. d) Eficiência e Rendimento Escolar: Este bloco tem singular importância na avaliação qualitativa do ensino. O objetivo desses indicadores é verificar taxas de aprovação, reprovação, abandono e distorção idade/série. E ainda, taxa de transição de fluxo escolar, que avalia a progressão do aluno ao final do período letivo; taxa de eficiência do fluxo escolar, que estima o tempo médio de 116 permanência e número de séries concluídas; taxa de expectativa de conclusão, que corresponde à análise da produtividade dos Sistemas de Ensino, permitindo avaliar sua eficiência a partir do percentual de alunos que concluem o ensino fundamental ou médio e do tempo em média necessário para essa conclusão. e) Desempenho Escolar: Neste bloco o que se busca é analisar os resultados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB). A avaliação realizada ao fim de cada ciclo escolar nas disciplinas de Matemática e Português, buscando verificar o que os alunos sabem, compreendem e são capazes de fazer. Os indicadores de proficiência permitem avaliar a qualidade do ensino ministrado nas escolas. Surpreenderam a sociedade os dados do SAEB de 2005, inferiores aos obtidos nos últimos anos. f) Financiamento da Educação: Este último bloco, reúne os indicadores capazes de demonstrar os gastos públicos com a educação nos três níveis de governo União, Estados e Municípios. Os dados que dizem respeito ao financiamento da educação são organizados a partir dos balanços das esferas governamentais e apresentados como: Desembolso Público com Educação em Relação ao PIB, relação entre o gasto geral do setor público e o que se destina à educação e outros. A consolidação desses indicadores pelo INEP tem como objetivo situar a educação brasileira. É uma tarefa estratégica: oferecer estatísticas relevantes e confiáveis; avaliar o desempenho dos sistemas e dos alunos e fomentar ações nessa direção junto aos Estados e Municípios, para que eles também se autoavaliem e imprimam políticas consistentes para que o Brasil seja capaz de superar o grande desafio de elevar o seu nível educacional. Em resumo, transformar em qualidade os ganhos quantitativos realizados na última década. 117 Liberatti afirma que: esses dados oferecem respostas para questões como: Em que contexto social se desenvolve a educação? O que as escolas estão oferecendo? Quem tem acesso e em quais condições? O que os alunos aprendem? Quem financia e quanto se gasta em educação no Brasil? (LIBERATTI, 2004, p. 130). Os indicadores apresentados pelo INEP demonstram que, apesar dos avanços, principalmente no acesso à escola, são ainda tímidas as ações que apresentam resultados na qualidade do ensino. A solução para as questões educacionais passa necessariamente pela análise dos indicadores qualitativos, para que ações sejam tomadas de forma objetiva e sem desperdício de recursos públicos. Gomes, comentando a respeito da efetividade do direito à educação, diz que: está a depender de um maior compromisso com o seu significado. Por isso, cabe buscar uma argumentação que vá além da mera referência à positivação de tal direito. Uma argumentação que almeje ao convencimento de todos aqueles que exercem o poder em qualquer esfera - pública ou privada - e que por isso, com suas decisões afetam a qualidade de vida de milhões de pessoas que se vêem prejudicadas pela ausência de acesso a uma educação adequada ao desenvolvimento integral da personalidade. É preciso convencer tais agentes de que a educação deve ser melhor implementada por todos os meios possíveis a fim de que o viver e o conviver do ser humano seja, efetivamente, ‘menos desumano’ do que o presenciado no mundo contemporâneo. Isso não é tarefa fácil, porque tal convencimento está a depender do grau de compreensão que tais agentes do poder possuem sobre o fenômeno educacional. Assim, por exemplo, se estes não forem suficientemente educados para o exercício da convivência democrática, tendem a agir de modo autoritário, egoístico e dominador ou então com descaso em relação à própria educação a qual também lhes falta. Daí a gravidade da questão democrática alusiva à escolha dos mandatários do poder político, pois quem os elege (povo ou massa?) nem sempre conhece - exatamente por falta da educação política adequada - as virtudes e os vícios dos escolhidos, sua efetiva formação, seus reais propósitos e o grau de sinceridade com que assumem os programas de ação que anunciam antes das eleições, em suas campanhas pelo voto popular. Para evitar seus abusos não basta a existência de normas escritas. Há de se contar com uma população suficientemente educada para o convívio social a ponto de saber que, no regime democrático, cabe a ela, pelos meios institucionais adequados, fazer uso dos instrumentos jurídicos e políticos impeditivos e corretivos do poder. No entanto, só a educação possibilita tal conscientização e o pleno desenvolvimento da pessoa. Só ela é capaz de libertar o indivíduo e os povos das amarras da ignorância a respeito dos seus próprios direitos, valores e dignidade, bem como sobre os direitos, valores e dignidade do outro, de modo a ver neste um semelhante e não um inimigo. Só a educação forma o sujeito autônomo, pois somente ela é capaz de abrir-lhes os olhos para dimensões da realidade inacessíveis por outros meios. [...] 118 O reconhecimento da importância da educação tem como dado objetivo as normas jurídicas já existentes que a positivam como um direito de todos. Mas, é preciso ir além, isto é, necessário se ‘levar a sério’ o reconhecimento de tal direito e aprofundar a reflexão sobre os motivos que ensejam o status da educação como um ‘direito fundamental’. São estes elementos que merecem ocupar maior espaço nas consciências de mandantes e mandatários, cidadãos e governos a fim de que o direito fundamental à educação seja mais bem efetivado. (GOMES, 2005, p. 95-98, grifo nosso). O povo, verdadeiro mandatário no Estado Democrático de Direito, por meio de seus representantes, já estabeleceu a educação pretendida, muito diferente desta que hoje se observa pelo país e que o INEP demonstra através de números. A Constituição estabeleceu o direito ao ensino fundamental como prioridade no Estado brasileiro, a forma como deve ser efetivada e por qual ente federativo. 6.1.2 Analfabetismo no Brasil Não são raros os casos hoje em que o processo de alfabetização começa muito cedo, na fase pré-escolar, diferentemente de outros tempos em que apenas com o ingresso no chamado curso primário se iniciava a alfabetização do aluno. Considerada como o ato de saber ler e escrever, a alfabetização valeria como algo definitivo na vida de cada um que pudesse responder afirmativamente à questão: Sabe ler e escrever? O ideal seria que os alunos, já nos primórdios da vida escolar, dominassem completamente o ato de ler e de escrever, fazendo dele um recurso de uso e de validade permanentes. A realidade mostra outra face da questão: milhões de crianças, passando ligeiramente pela escola, captam apenas os rudimentos da fundamental conquista. Como depois não fazem uso suficiente dela em seu quotidiano, essa alfabetização superficial tende a ser um bem logo perdido. 119 Por aí se vê que encarar a alfabetização apenas como uma etapa quase inicial na vida escolar, sem ampliar o seu sentido e o alcance, é a maneira errada e ilusória de tratar um dos elementos mais importantes no permanente processo de inserção social das novas gerações. O Brasil tem diante de si um triste dado, o de ser um dos países com o maior número de analfabetos do planeta. Apesar dos esforços públicos e também da sociedade civil em “letrar” a população, ele ainda pesa sobre os ombros do País. A Tabela 3 faz um comparativo entre as taxas de analfabetismo de diversos países em 2000. TABELA 3 Taxa de Analfabetismo na População de Quinze ou Mais Anos em Países Selecionados - 2000 País Bulgária Espanha Argentina Chile Cuba Israel Paraguai Equador Brasil Bolívia Fonte: Unesco, 2003. Analfabetismo 2,00% 3,00% 4,00% 6,00% 6,00% 6,00% 10,00% 12,00% 15,00% 20,00% Observa-se que o Brasil está atrás de diversos países, inclusive latinoamericanos, como Paraguai, Equador, Argentina, Chile. Analistas ligados à área da educação têm discutido intensamente a necessidade de melhorar a cobertura escolar, principalmente para a população em idade própria, além de uma profunda melhoria na qualidade do ensino praticado. É certo que o País tem avançado consideravelmente no sentido de reduzir o analfabetismo, que nas últimas décadas caiu de 39,5%, em 1960, para 8% em 2005, porém, segundo o IBGE, ainda apresenta um elevado número de analfabetos em 120 valores absolutos, cerca de 15 milhões de pessoas, sendo que em 2005 o índice entre a população maior de 15 anos o índice era 13,63%. Os indicadores educacionais têm demonstrado que o analfabetismo ainda é um problema crônico, principalmente em determinadas regiões brasileiras, onde os programas de alfabetização não atingiram uma parcela significativa de pessoas. Prevalece ainda um acentuado contraste regional, com forte concentração no Norte e no Nordeste brasileiros, na zona rural e com pessoas acima de 30 anos de idade. Se já não bastasse, os indicadores brasileiros assustam mais por serem dados obtidos numa concepção arcaica de analfabetismo, já superada em todo o mundo. A Unesco defendia em 1958 que o analfabeto era somente aquele que não conseguia ler ou escrever algo simples. Hoje, porém, ela vem adotando um conceito mais moderno e mais complexo, o analfabetismo funcional, que consiste na falta de habilidades necessárias para satisfazer as demandas do indivíduo no seu dia-a-dia. As pesquisas realizadas no Brasil, ainda hoje, se referem ao analfabetismo simples, fornecendo elementos muito elementares do nível educacional. Os pesquisadores, principalmente nos últimos oito anos, têm se aplicado em estudar esse “novo” tipo analfabetismo. Países que hoje têm um nível educacional mais elevado do que o do Brasil, já não se interessam em apurar o analfabetismo tradicional. No entanto, no Brasil, por ainda deter um número elevado de analfabetos tradicionais, a apuração desses dados se faz necessária, segundo o INEP. A Tabela 4, a seguir, mostra as taxas de alfabetização da população brasileira de 15 anos de idade ou mais a partir de 1920. Ainda que tenha havido critérios diferentes de avaliar esse indicador ao longo dos anos, verifica-se que o País tem 121 produzido “avanços”. TABELA 4 Alfabetização da População de Quinze anos e Mais - Brasil - 1900/1991 Ano Alfabetizados Analfabetos Sem Declaração 1900 1920 1940 1950 1960 1970 1980 1991 Fonte: IBGE, 1995. 3.380.451 6.155.567 10.379.990 14.916.779 24.259.284 35.586.771 54.793.268 76.603.804 6.348.869 11.401.715 13.269.381 15.272.632 15.964.852 18.146.977 18.716.847 19.233.239 022.791 060.398 060.012 054.466 274.856 031.828 - Taxa de Alfabetização (%) 35 35 44 49 60 66 75 80 A partir de 1920, a proporção de alfabetizados da população tem crescido de maneira estável. Da metade do século XX em diante a população mostra crescimento acelerado, mas o volume de analfabetos se mantém relativamente constante, o que resulta em aumento nas taxas de alfabetização. A constância desse volume pode ser parcialmente explicada pela manutenção dos analfabetos de gerações passadas na população. Se o ensino, especialmente o escolar, focaliza quase que exclusivamente a população jovem, torna-se, após certa idade, difícil aos adultos inverterem sua condição de analfabetos. Assim, o envelhecimento de uma geração de analfabetos pode, nesse caso, ser considerado o componente demográfico da manutenção do analfabetismo. Entretanto, para ser mantido no tempo, o número de analfabetos exige reposição, ou seja, o surgimento de novos analfabetos nas gerações mais novas. Logo, além dos aspectos essencialmente relacionados à dinâmica demográfica, o analfabetismo está também relacionado a condições que produzem novos analfabetos. A Tabela 4 apresenta uma situação estática. Como as taxas totais de analfabetismo possuem um componente demográfico, a história da redução do analfabetismo pode afetar a interpretação dessa situação. Países que iniciaram a 122 redução do analfabetismo mais cedo, reduziram o efeito da componente demográfica nas taxas atuais, que tendem a ser menores. Isso permitiria levantar a hipótese de que a má posição do Brasil em relação a países próximos seria resultado de um processo tardio de redução do analfabetismo. Seria possível, inclusive, argumentar que o atual analfabetismo no Brasil é restrito às gerações antigas e, portanto, é meramente uma questão demográfica. No entanto, a distribuição etária da população analfabeta apresentada no Gráfico 1 não corrobora a hipótese da redução tardia. Se essa hipótese fosse verdadeira, seria de se esperar que a estrutura etária da população de analfabetos apresentasse o formato aproximado de uma pirâmide invertida. O que ocorre, no entanto, é que a distribuição apresenta-se bastante uniforme, se considerado todo o País. Os dados da Tabela 4 também apresentam evidência contrária a essa hipótese. No caso de uma redução tardia, em algum momento nos últimos trinta ou quarenta anos - período que englobaria a alfabetização da geração com idades atuais entre 40 e 60 anos, aproximadamente -. deveria haver súbita aceleração na evolução das taxas de alfabetização. No entanto, observa-se um aumento estável da alfabetização a partir de 1920. Isso sugere que não se trata fundamentalmente de defasagem, mas sim de redução insuficiente do analfabetismo ao longo do tempo. Essa característica na evolução da alfabetização no Brasil indica que o problema não é apenas uma questão demográfica. O argumento de que as atuais taxas de analfabetismo no Brasil são elevadas apenas por reflexo da insuficiência do sistema de ensino das décadas passadas, pode ser derivado da hipótese da redução tardia. A primeira parte do argumento baseia-se na idéia de que o analfabetismo seria alto porque as pessoas de gerações antigas que permaneceram alheias ao 123 sistema de ensino constituem um estoque de analfabetos que não é alcançado pelos esforços de melhoria do sistema. A segunda parte considera que, se as melhorias do sistema permitirem a redução do analfabetismo nas novas gerações, o estoque de analfabetos será consumido, sem reposição suficiente, com o envelhecimento e morte dos analfabetos e, portanto, a taxa total de analfabetismo cairá. Gráfico 1: Distribuição Etária da População Analfabeta - Brasil / 1996 Fonte: PNAD, 1996. Na Tabela 5 são apresentadas as taxas de analfabetismo segundo as faixas etárias e a participação da população de cada faixa etária na população total. É possível notar que, entre 1980 e 1990, houve deslocamento do peso na determinação da taxa total das gerações mais jovens para as mais velhas. Cresceram as desigualdades na distribuição etária dos analfabetos, e aumentou a participação das faixas etárias mais velhas na taxa total de analfabetismo. No entanto, como o analfabetismo atual é também resultado de redução insuficiente ao longo do tempo, as gerações antigas não podem ser consideradas as únicas responsáveis pelas altas taxas atuais, pois pessoas com menos de 30 anos em 1991 determinavam cerca de 31% do analfabetismo total. Em outras palavras, o estoque de analfabetos na população é, por um lado, consumido 124 pela morte dos analfabetos mais velhos e, por outro, reposto pela não-alfabetização de parte da população jovem. TABELA 5 Taxas de Analfabetismo segundo Faixas Etárias Idade 10 a 19 20 a 29 30 a 39 40 a 49 50 a 59 60 a 69 10 a 69 Fonte: IBGE, 1995. Taxas de Analfabetismo 1980 1991 21% 15% 17% 12% 24% 15% 31% 24% 37% 31% 47% 40% 24% 18% Participação no total 1980 1991 28% 24% 17% 16% 16% 16% 15% 17% 13% 15% 10% 13% 100% 100% O Estado brasileiro tem se empenhado no sentido de inverter o quadro do analfabetismo. Por determinação constitucional foi elaborado o Plano Nacional de Educação - Lei n. 10.712/2001 -, já citado neste trabalho, que tem como objetivo prioritário a melhoria da qualidade de ensino e a erradicação do analfabetismo no País. Da mesma forma, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação - Lei n. 9.394/1996 - no art. 87 determina o prazo de dez anos para pôr fim ao analfabetismo no Brasil. O PNE tem como uma de suas prioridades à extensão da educação a todas as faixas etárias, bem como objetivo de proporcionar oportunidade de educação a todos que não a tiveram na época devida. Essa meta incorpora, de forma ampliada, a determinação constitucional de erradicação do analfabetismo, entendendo que a alfabetização deve ser interpretada no seu sentido mais amplo, isto é, como domínio de instrumentos básicos da cultura letrada, das operações matemáticas elementares, da evolução histórica da sociedade humana, da diversidade do espaço físico e político mundial e da constituição da sociedade brasileira. Envolve, ainda, a formação do cidadão responsável e consciente de 125 seus direitos. A ainda “alta” taxa de analfabetismo apresentada demonstra que o problema não está relacionado somente às gerações antigas da população, restrito a uma questão meramente demográfica. Há uma clara ineficiência do atual sistema educacional brasileiro, que poderá inviabilizar gerações e gerações de brasileiros. No futuro próximo, com a evolução tecnológica que certamente virá, ser simplesmente alfabetizado deixará de ser relevante; as necessidades de hoje, e muito mais nos próximos anos, vão requerer um nível de conhecimento mínimo além do simples ato de ler e escrever. Faz-se necessário urgentemente efetivar o direito a educação, pois é ela “a chave da nova sociedade que tem o desafio de não admitir a figura do analfabeto, ou daquele excluído da tecnologia e do modus vivendi da era da informação, embora ainda habitando em palafitas e morrendo de dengue” (LIBERATTI, 2004, p. 19). Rui Barbosa, citado por Chaves, há mais de cem anos já dizia que a chave misteriosa das desgraças que nos afligem é esta e só esta: a ignorância popular, mãe da servilidade e da miséria. Eis a grande ameaça contra a existência constitucional e livre da Nação: eis o formidável inimigo interno que se asila nas entranhas do País. Para vencer, releva instaurarmos o grande serviço de defesa nacional contra a ignorância (CHAVES, 2001, p. 129). 6.2 A EFETIVAÇÃO DO DIREITO AO ENSINO FUNDAMENTAL POR MEIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS A educação que toda a sociedade brasileira almeja se realizará quando ela própria se organizar para reivindicar do Poder Público as políticas adequadas ao direito à educação fundamental. 126 Se o Estado Democrático brasileiro pretende de fato alcançar os objetivos fundamentais estabelecidos no art. 3º da Constituição Federal: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, e ainda mais, a sua integração na ordem internacional como um país desenvolvido e comprometido com o desenvolvimento pessoal de seus habitantes, em estrito cumprimento aos fundamentos constitucionais “da cidadania e dignidade da pessoa humana”, faz-se necessário passar de inspiração da educação para todos, para a sua realização. A concretização dos direitos coletivos depende da formulação e da implementação das políticas públicas. Tais políticas são formuladas pelo Poder Legislativo que, em tese, legislam correspondendo aos anseios da sociedade. Segundo Bucci (2002, p. 268, 271), “Políticas Públicas são programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados”. Destaca ainda que execução das políticas públicas sempre significa que uma parcela formadora dessa política fica em mãos do Poder Executivo, uma vez que as informações sobre a realidade a ser transformada, a capacitação técnica e a vinculação dos servidores públicos, a disponibilidade financeira e outros tantos elementos, que determinarão o sucesso ou o insucesso da política, dependem dos organismos da Administração Pública. A esse propósito a autora considera que “o mais correto seria que pudessem ser realizadas pelo Executivo, por iniciativa sua, segundo as diretrizes e dentro dos limites aprovados pelo Legislativo”. 127 As Políticas Públicas tiveram sua origem no século XIX, após o início do processo de Industrialização da Europa. Com as mazelas provocadas pelas péssimas condições de trabalho próprias daquela época, os socialistas fizeram atuar o princípio da solidariedade. A responsabilidade dos membros da sociedade em amparar aqueles indivíduos que se encontravam carentes e necessitados, fez com que fossem reconhecidos como direitos humanos os direitos sociais: a seguridade social, a educação, a moradia, a alimentação, a saúde. Segundo Comparato (2001, p. 63), “os direitos sociais somente se realizam quando políticas públicas são executadas com o objetivo de amparar e proteger os mais fracos e mais pobres, que não dispõem de recursos próprios para viverem dignamente”. A afirmação definitiva das políticas públicas veio com a positivação dos direitos sociais pelas Constituições. São direitos com uma característica especial: a sua efetivação requer, ao contrário dos direitos individuais, a ação positiva do Estado. Novamente Comparato assevera que os direitos sociais têm por objeto não a abstenção, mas uma atividade positiva do Estado, pois o direito à educação, à saúde... e outros do mesmo gênero só se realizam por meio de políticas públicas, isto é, programas de ação governamental. Aqui, são grupos sociais inteiros, e não apenas indivíduos, que passam a exigir dos Poderes Públicos uma orientação determinada na política de investimento e distribuição de bens; o que implica uma intervenção estatal no livre jogo do mercado e uma redistribuição de renda pela via tributária (COMPARATO, 2001, p. 200). As políticas públicas, por estarem calcadas nos direitos sociais, requerem do Estado uma interferência direta, programada e contínua na vida social para se chegar à realização dos objetivos de interesse comum da sociedade e à concretização dos direitos fundamentais. Os direitos sociais, contidos dentre os direitos fundamentais, são garantidos pela ação positiva do Estado. A concretização deles direitos somente é alcançada quando formuladas e implementadas políticas públicas. A formulação das políticas públicas está ligada à competência do Poder Legislativo, cabendo aos 128 representantes do povo estabelecer os objetivos para os mais diversos setores da sociedade, fazendo-o através de leis, gerais ou específicas. A execução das políticas públicas está a cargo do Poder Executivo. Com base nas leis criadas pelo Legislativo para este fim específico, a Administração Pública, munida de diagnósticos que retratem os dados da realidade, vai dimensionar os recursos financeiros e outros necessários para concretizar o determinado na lei. O processo de formulação das políticas, em resumo, consiste em determinar o objeto; feito isso, definem-se as metas que se propõe alcançar; positiva-se em lei; e por fim determina-se o tempo e os recursos que serão utilizados. A educação passou por todo o trâmite comum às políticas públicas, conforme é visto abaixo, faltando-lhe, agora, a última etapa: a concretização. a) Houve a decisão de resolver um problema social: número elevado de crianças de uma determinada idade fora da sala de aula; b) a política educacional é a política pública a ser adotada; c) Definem-se as metas, o tempo a ser solucionado o problema e a melhor maneira de agir; d) Cria-se a lei - Plano Nacional de Educação; e) Cabe então ao Poder Executivo agir positivamente para que o Plano seja concretizado. Um dos problemas apresentados pelos educadores para a não-execução do Plano Nacional de Educação é a falta de planejamento da educação, enquanto política de Estado. Ocorre que, a cada mudança de governo, são esquecidas e inacabadas muitas ações, reiniciando o processo. A política educacional, política pública da mais alta relevância para a sociedade, tem que ser planejada a longo 129 prazo, por mais de um mandato do Executivo. Souza, educador, considera que para ultrapassar governos e tornar-se plurigestacional, a política deve ser formulada, não apenas pela equipe técnica de um ministério ou de uma secretaria, agindo em circuito fechado e, sim, por colegiados de educadores e administradores, tanto quanto possível sem laços de subordinação para com os governantes de plantão. Porque se impõe a essa política expressar as aspirações nacionais e não as do partido ou dos políticos transitoriamente no poder (SOUZA, 1996, p. 144). A execução das políticas publicas encontra outros entraves, dentre os quais o principal é a restrição orçamentária. É importante que os administradores públicos sejam conscientizados para os projetos nacionais. O orçamento público não pode engessar a realização dos objetivos constitucionais. É evidente que cabe ao administrador mensurar o que se deve gastar e onde, não perdendo de vista que políticas públicas são instrumentos de efetivação de direitos. As contas devem prever não somente as contas a pagar, devem, sobretudo, garantir o efetivo exercício dos direitos sociais dos cidadãos. O Estatuto da Criança e do Adolescente define como prioridade do Estado brasileiro o cumprimento das necessidades das crianças e dos adolescentes, dentre elas a educação. A não- execução desse direito tem como conseqüência outros problemas sociais que despenderiam valores maiores para sua solução. Torna-se claro que a implementação das políticas públicas, que têm como objetivo a efetivação do direito à educação, depende hoje fundamentalmente do Poder Executivo. A Constituição já estabeleceu que o direito a educação é um direito subjetivo público. Essa determinação constitucional é a chave para que o administrador implemente com a máxima prioridade o que determina a Constituição, do contrário estará sujeito à responsabilização. Não cabe o juízo de discricionariedade do administrador, porque ele está vinculado constitucionalmente e infraconstitucionalmente às normas. Não lhe é atribuída a competência para definir 130 pela conveniência ou não dessas políticas;o máximo que lhe é permitido, a título de discricionariedade, é a escolha da melhor forma. Nesse sentido, Frischeisen escreve que explicitado restou que as normas constitucionais criam vinculação para a administração e para o legislador, pois a Constituição Federal estabelece claramente políticas públicas, que foram explicitadas em leis integradoras, a serem cumpridas para implementação dos direitos estabelecidos no título da ordem social e em outros dispositivos já mencionados anteriormente (FRISCHEISEN, 2000, p. 93). As políticas públicas, quando efetivadas, têm a função de conseguir atenuar a imensa desigualdade social, o fosso onde estão milhares de brasileiros. A igualdade, princípio norteador do Estado Democrático de Direito, constitucionalizado no art. 5º da Constituição Federal, que permite ao cidadão se realizar de fato, abrange muito além do que a igualdade formal. O princípio está relacionado diretamente à efetividade dos direitos sociais. Ao Poder Judiciário cabe então garantir o efetivo exercício dos direitos sociais, pois de nada valeria a sua constitucionalização se não fosse dado ao cidadão meios de exigir a sua consecução. O não-cumprimento ou o cumprimento inadequado das políticas públicas gera a possibilidade de os titulares do direito demandarem a sua efetivação. 6.3 A EFETIVAÇÃO DO DIREITO AO ENSINO FUNDAMENTAL POR VIA JUDICIAL A categorização do direito à educação fundamental como um direito público subjetivo, teve como principal conseqüência a possibilidade de se buscar a sua efetividade pela via judicial. Segundo ensina Canotilho: 131 Pode-se dizer que um índice relativamente seguro para aquilatar da existência de um direito subjetivo, reconhecedor de pretensões jurídicas diretamente atuáveis na norma constitucional, é a possibilidade de o titular ativo poder recorrer aos tribunais para acionar judicialmente - em caso de necessidade - a satisfação de pretensões jurídicas contra os respectivos destinatários passivos (CANOTILHO, 1998, p. 378). A radical mudança de paradigma ocorrida com o advento da nova orientação jurídico-constitucional, no entanto, em alguns casos não foi acompanhada da mudança de atitude por parte daqueles encarregados de interpretar e aplicar a lei, gerando situação tanto ambígua quanto anômala, em que práticas arbitrárias do passado são agora pretensamente legitimadas por um discurso garantista. É necessário que a sociedade supere o velho tradicionalismo do Poder Judiciário brasileiro, acostumado a lidar com questões de direito individual, havendo juízes que ainda hesitam diante da crescente necessidade de interpretar e aplicar os direitos humanos e sociais constitucionalizados. Capilongo afirma que o esquema de evolução dos direitos formulado por Marshall pressupõe concepções de cidadania muito específicas e pouco relacionadas com a realidade social brasileira. Entre nós, o processo que vai dos direitos civis aos políticos, e destes aos direitos sociais, não foi nem linear nem cumulativo. De modo imperfeito, truncado e simultâneo, a luta pela cidadania desenvolveu-se em todas as frentes. O problema dos países periféricos é justamente combinar as três gerações de direitos. A diferença, continua o autor, reside no fato de que, para os direitos civis, esse equilíbrio procura manter o padrão de eficácia da ordem jurídica e de intensidade dos direitos. Para os direitos políticos, o problema está em harmonizar os diferentes tipos de direitos legalmente garantidos para suprir vazios de efetividade e alargar sua intensidade a amplos setores das classes trabalhadoras. Os desafios redistributivos impostos ao sistema político e cobrados ao sistema judicial são muito mais fortes. (CAPILONGO, 2005, p. 31-32). No Brasil as políticas públicas são exteriorizadas nas mais diversas formas, uma vez que não possuem um padrão jurídico único e claro. Pelo fato de elas se consubstanciarem, ora como plano, ora como programa de ação, paira a insegurança sobre a existência de vinculação da Administração Pública sobre tais formas de expressão. Em conseqüência, também existem dúvidas sobre a 132 possibilidade ou não de o cidadão exigir em juízo a execução de determinada política formulada e, em caso afirmativo, a dúvida permanece quanto à forma de fazê-lo. E ainda mais, o Poder Judiciário pode ou não provocar a execução das políticas e, sendo possível, como fazê-la. O acesso ao Poder Judiciário para o efetivo exercício dos direitos sociais, em especial ao direito ao ensino fundamental, é não somente possível, ele é necessário, porque de nada valeria a declaração sem o correspondente direito de ação para a sua defesa. Sendo assim, a omissão da Administração no cumprimento do que dispõem as normas que estabelecem a efetivação do direito ao ensino fundamental, através da implementação de políticas públicas, gera responsabilidade jurídica pela inconstitucionalidade e ilegalidade omissiva. A Constituição Federal, ao estabelecer os direitos sociais e as políticas públicas para concretizá-los, e afirmar no art. 5º, XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, dita a possibilidade de ser exigido em juízo um direito não realizado. Dessa forma, o texto constitucional afirma a possibilidade de os titulares de certa política pública exigirem seu cumprimento em juízo. Bucci (2002) para demonstrar essa possibilidade de exigência judicial no sentido de viabilizar a concretização de um direito posto por determinada política pública, cita: “a existência de uma política de valorização do ensino fundamental pode fazer surgir o direito à matrícula numa escola em determinada região onde se poderia falar apenas em titularidade do direito à educação” (BUCCI, 2002, p. 257). A garantia de novos direitos trazidos pela Constituição Federal de 1988 fez com que o Judiciário passasse a enfrentar questões até pouco tempo distantes dos tribunais. Normalmente preparados para resolver questões tradicionais, coloca-se 133 diante do juiz agora um novo desafio: interpretar e aplicar os direitos humanos e sociais constitucionalizados. Os juízes estão indecisos entre definir o sentido e o conteúdo das normas programáticas definidoras dos direitos sociais ou defini-las como não vinculantes, e, por isso, mostram-se, muitas vezes, incapazes de contribuir com a efetivação dos direitos sociais. Ao Poder Judiciário cabe abandonar a tradição do processo individual e inovar com a utilização dos processos coletivos, sempre que diante dele estiver uma questão de não-efetivação dos direitos sociais. Os direitos humanos sociais, que foram estabelecidos para a coletividade, em especial para os menos favorecidos, para que possam ser materialmente eficazes, necessitam da intervenção ativa e contínua dos Poderes Públicos. Essa gama de direitos exige do Poder Público um amplo rol de políticas públicas dirigidas à sua clientela específica, os carentes, os mais pobres. Esses novos direitos representam interesses coletivos, ou seja, interesses de grupos, comunidades e classes que exigem que as normas e conceitos jurídicos sejam interpretados à luz do novo contexto social. Essa categoria específica de direitos requer a adoção de uma nova mentalidade jurídica para que seja possível que os direitos sociais constitucionalizados alcancem os objetivos de socializar riscos, neutralizar perdas e atenuar diferenças. O Poder Judiciário garante os direitos sociais quando acolhe as demandas em prol dos menos favorecidos e quando atua contra a inércia ou a insuficiência do Poder Público, na implementação de políticas públicas indispensáveis à efetivação dessa categoria de direitos. 134 6.3.1 Meios judiciais de acesso à educação A Constituição Federal, no art. 208, § 1º, destaca que “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo”. Em seqüência, a Lei n. 9.394/1996 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - dispõe da seguinte forma: Art 3º - O acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda o Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo. A classificação do direito ao ensino fundamental como direito público subjetivo torna-o exigível judicialmente, sendo líquido, certo e indisponível, que pode e deve ser exigido do Poder Público, sem perquirir sobre a condição pessoal e social, tampouco econômica, do titular do direito. Outro importante instrumento legal que viabiliza o acesso à Justiça para garantir o direito à educação fundamental é o Estatuto da Criança e do Adolescente Lei n. 8.069/1990. O sistema de garantias criado pelo Estatuto determina que o Poder Judiciário aprecie a ausência ou insuficiência de uma estrutura adequada ao regular exercício do direito à educação, e para isso é possível até mesmo anular atos ilícitos, impor obrigações de fazer ou não fazer, perseguir a responsabilidade civil, administrativa e criminal daqueles e, se for o caso, estipular indenização (LIBERATTI, 2004, p. 89). O ECA, no art. 212 estabelece que: “Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por esta lei, são admissíveis todas as espécies de ações pertinentes”. O dispositivo citado determina que há um leque de medidas judiciais que podem ser utilizadas para fazer cumprir os mandamentos legais e constitucionais, fazendo com que o Judiciário se manifeste no sentido de fazer valer a lei e a Constituição Federal. 135 Ainda no mesmo diploma legal se destaca o art. 208: Regem-se pelas disposições desta lei as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular: I - do ensino obrigatório;. Por diversos meios, o legislador procurou instrumentalizar os cidadãos, no sentido de dar-lhes condições de recorrer ao Poder Judiciário em busca de defesa dos direitos sociais, garantindo o acesso de crianças e adolescentes ao sistema educacional de qualidade e responsabilizando os agentes omissos. Caso vencidas todas as etapas extrajudiciais e não se obtendo êxito, não restará outra opção além da busca do socorro junto ao Poder Judiciário, que deverá, então, fazer valer as regras e princípios legais e constitucionais estabelecidos com tal finalidade. A seguir serão comentados alguns dos instrumentos judiciais que se encontram à disposição daqueles que buscam a efetivação do direito ao ensino fundamental. a) Ação de Rito Sumário A Lei n. 9.394/1996 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional -, no art. 5º, caput e § 3º, regula a ação de rito sumário como instrumento à disposição de “qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária” para forçar o Poder Público a garantir o acesso ao ensino fundamental a todos os que desejarem nele ingressar. Em consonância com a Constituição, que determina a oferta de ensino fundamental a todos, gratuitamente e de forma irrestrita, é de suma importância também que se tenha à disposição um instrumento jurídico a ser facilmente manejado contra o Poder Público a fim de exigir o exercício desse direito. 136 b) Ação Civil Pública A ação civil pública é um instrumento de larga abrangência, cujo objetivo é a defesa judicial de qualquer interesse difuso ou coletivo que sofra, por ação ou omissão, ameaça por parte de agente público ou privado. Dentre os direitos difusos, aqueles de natureza transindividual, devendo ser tratado coletivamente, está a educação, por seu caráter coletivo, não podendo ser dividido em partes com destinatários certos. Dessa forma, como determina a Lei n. 7.347/1985, o Ministério Público tem a legitimidade para ajuizar a ação. Paulo Afonso Garrido de Paula, citado por Liberatti, afirma que a ação civil pública para a defesa de interesses difusos e coletivos afetos à infância e juventude é um caminho ímpar de resgate da enorme dívida social para com os pequenos grandes marginalizados deste país: as crianças e os adolescentes. É chegada a hora da justiça cobrar responsabilidade dos governantes, colocando-os como réus quando de suas omissões no trato desta questão que é crucial, de sorte a verdadeiramente amparar os desvalidos, efetivamente protegendo-os da decúria estatal (PAULA apud LIBERATTI, 2004, p. 352). Pela força que lhe conferem, tanto a Lei n. 8069/1990 quanto a Lei n. 7.347/1985, a Ação Civil Pública presta-se para garantir o acesso, mas acima de tudo a qualidade do ensino, a fim de fazer cumprir os princípios e objetivos constitucionais. Assim, a presente ação surge como um dos instrumentos de maior relevância na busca da efetivação do direito ao ensino fundamental, que por seu intermédio pode ser rapidamente reconhecido, trazendo uma luz no sombrio mundo “sem educação”, que uma parcela de agentes públicos, por descaso, não cumpre a determinação constitucional de fornecer educação de qualidade a todos. c) Ação Popular Outro instrumento de relevância colocado à disposição do cidadão é a ação popular. Como o próprio nome designa, a ação popular visa instrumentalizar o cidadão comum para defesa dos seus direitos fundamentais, em especial neste trabalho, o 137 direito ao ensino fundamental. O art. 5º, LXXIII, da Constituição de 1988 determina que Art. 5º - LXXIII - Qualquer cidadão é parte legitima para propor Ação popular que vise anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência [...] A ação popular ataca em primeiro plano as ações que são contrárias ao princípio da moralidade administrativa. No que concerne ao direito à educação, considerado pela Constituição como um “direito de todos e dever do Estado” (art. 205) e que “é dever do Estado, da família e da sociedade assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, a saúde, [...], a educação” (art. 227, caput), implica dizer que cabe ao Estado se aparelhar no sentido de fornecer com eficácia e qualidade, dando a esse direito o caráter de serviço público essencial. Decorre daí que, segundo Liberatti (2004) o não-cumprimento dá ensejo à propositura de ação popular, por atentar ao princípio da moralidade administrativa. Os dois requisitos principais da ação popular são que o autor seja “cidadão” e o interesse seja público. Configura então a ação popular como um dos mais importantes meios judiciais à disposição da sociedade para viabilizar uma educação universal e de qualidade, que ocorrerá, também, através da destinação de recursos públicos em patamares adequados às necessidades de cada estabelecimento de ensino, bem como o seu uso de forma adequada. d) Mandado de Segurança Coletivo O mandado de segurança coletivo é regulado pela Lei n. 1.533, de 31/12/1951, que disciplina seus requisitos e a forma como deve ser processado. Um dos mais antigos instrumentos de proteção contra o arbítrio do Estado e de seus agentes, o seu manejo é uma das garantias fundamentais da Constituição Federal 138 de 1988, estando assegurado no art. 5º, LXIX. A ação ou a omissão dos agentes públicos causam diretamente ameaça ou efetiva violação dos direitos coletivos. Verifica-se, na maioria dos casos, como afirma Liberatti (2004, p. 358), que “no exercício de suas funções eles se desviam do objetivo maior do Estado, que é o bem-estar de toda coletividade”. O presente instrumento objetiva a estimular o Judiciário a intervir no sentido de corrigir os atos lesivos aos direitos individuais e coletivos, realizados pela Administração Pública, em todas as esferas. 6.3.2 O papel do Ministério Público na defesa do direito ao ensino fundamental Na tarefa de garantir o acesso ao Poder Judiciário em defesa dos direitos sociais, encontra-se a figura do Ministério Público. A Constituição Federal, nos arts. 127 a 130, regula as atividades do Ministério Público, que passou a ter, pelo atual texto constitucional, funções mais amplas que no passado. Art. 127. O Ministério Público é uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica do regime democrático e dos interesses sociais e individuais e indisponíveis. O Ministério Público tem legitimidade para a defesa individual e coletiva dos direitos da criança e do adolescente, dentre os quais o direito ao ensino fundamental. Recomenda o trabalho conjunto das Promotorias de Justiça e dos Conselhos Tutelares para a identificação prévia das crianças que não obtiveram vagas nas escolas, com posterior ajuizamento da ação cabível e prolação de 139 provimento que determine a inserção específica das crianças identificadas na rede pública. Há um expressiva participação do Ministério Público na propositura de Ação Civil Pública em defesa dos direitos sociais constitucionalizados. Tratando-se de direitos sociais, o Ministério Público, um dos co-legitimados à propositura da Ação Civil Pública, tem o dever de ofício de agir para a sua efetiva implantação, e não apenas o dever de atuar como fiscal da lei, conforme atribuições constitucionais e legais. O Ministério Público pode agir em defesa do direito de todos ao ensino fundamental, não apenas judicialmente, também extrajudicialmente, por meio de inquérito civil, compromisso de ajustamento, audiências públicas e de recomendações. O inquérito civil, segundo Mazzilli (1999, p. 303), “é um procedimento administrativo investigatório, informal e desprovido de contraditório, exclusivamente a cargo do Ministério Público, com exclusão de todos os demais co-legitimados à Ação Civil Pública”. O objetivo do inquérito civil é a coleta de elementos, através do procedimento investigatório, para servir de base à propositura de uma ação coletiva em defesa dos interesses metaindividuais, portanto, em defesa dos direitos sociais, incluindo o direito ao ensino fundamental. No inquérito civil ainda existe a possibilidade da formulação de compromissos de ajustamento de conduta e realização de audiências públicas e recomendações. O compromisso de ajustamento, conforme ensinamento de Mazzilli (1999, p. 303), “é outro meio de defesa dos direitos sociais de que pode se valer o Ministério Público extrajudicialmente”. O art. 113 do Código de Defesa do Consumidor inseriu o § 6º ao art. 5º da Lei da Ação Civil Pública, estendendo o compromisso de ajustamento de conduta às exigências legais, em defesa de quaisquer interesses metaindividuais. O 140 compromisso de ajustamento pode ser tomado por qualquer órgão público, mas é fato que o Ministério Público é o órgão que mais tem firmado esse acordo dentro do inquérito civil, uma vez que é o único legitimado a efetuar o processo investigatório. Esse instrumento tem a qualidade de título executivo extrajudicial, todavia, se for homologado em juízo, passará a ter valor de título judicial. As audiências públicas, também segundo Mazzilli (1999, p. 323-333), “têm por objeto a participação do cidadão na tomada de decisões de gestão da coisa pública, tendo-o como o principal destinatário.” As audiências são mecanismos pelo qual o cidadão e as entidades civis colaboram com o Ministério Público nas suas funções de zelar pelo interesse público e defender os interesses metaindividuais, como o efetivo respeito ao direito ao ensino fundamental. As recomendações realizadas pelo Ministério Público são resultado de uma investigação, por inquérito civil ou audiências públicas, dos fatos necessários para a defesa dos direitos constitucionais dos cidadãos. Nessa investigação, o órgão ministerial deve colher informações técnicas e precisas para no final, conforme o caso concreto, diagnosticar os problemas e apontar soluções. Nem sempre uma investigação do Ministério Público deve evoluir para uma Ação Civil Pública, sendo melhor, muitas vezes, que o resultado prático seja uma recomendação. Mazzilli afirma que, apesar das recomendações não vincularem, produzem efeitos práticos, uma vez que elas devem ser respondidas pela autoridade destinatária, de forma fundamentada, tanto ao acolhê-la, quanto ao recusá-la e, como conseqüência, pode ser contrastada judicialmente. (MAZZILLI, 1999, p. 338). A função constitucional de defensor da sociedade concedida ao Ministério Público, que se consubstancia na promoção da ação civil pública, do inquérito civil, do compromisso de ajustamento, da convocação para audiências públicas e na 141 expedição de recomendações, pode ser invocada na defesa do direito fundamental à educação fundamental. Nesse sentido, Frischeisen esclarece que O papel do Ministério Público é bastante claro, como fiscal da Lei e defensor dos interesses sociais deve zelar pela efetiva implantação das políticas públicas que visam à concretização da ordem social constitucional e, nesse sentido, as Leis que trouxeram maior densidade aos ditames constitucionais nomeiam o Parquet como defensor dos direitos estabelecidos nos respectivos diplomas legais (FRISCHEISEN, 2000, p. 116). A função constitucional de defensor da sociedade concedida ao Ministério Público, que se consubstancia na promoção da ação civil pública, do inquérito civil, do compromisso de ajustamento, da convocação para audiências públicas e na expedição de recomendações, pode ser invocada na defesa dos direitos das crianças e adolescentes entre 7 e 14 anos de receberem o ensino fundamental com qualidade. 142 7 CONCLUSÃO O marco inicial do presente trabalho é o ser humano, considerado em sua natureza, suas características e suas necessidades. Por quê? Buscou-se evidenciar como o direito à educação está ligado ao significado da natureza humana, considerando a educação como vida e alimento para o homem, sem a qual ele não alcançará o seu pleno desenvolvimento intelectual, material, social. Esta análise nos remete à idéia de direitos fundamentais, por serem essenciais à vida humana e ao seu aperfeiçoamento. O homem é um ser que não nasce com suas faculdades já desenvolvidas. Precisa ser educado, amparado e protegido para desenvolver-se plenamente como pessoa. Os direitos fundamentais são a última barreira de proteção da dignidade da pessoa humana. Quando tudo mais houver falhado, há ainda os direitos fundamentais como esperança. No Estado Democrático de Direito tais direitos tomam uma dimensão até então inimaginável por nós. Ele se baseia na proteção irrestrita da dignidade da pessoa humana. Cabe a ele estado promover a efetividade dos direitos fundamentais em todas as modalidades que se apresentam. O direito ao ensino fundamental, reconhecido como um direito humano, e, em razão da sua constitucionalização, adquiriu status de direito fundamental social, inserido no direito à vida, é indispensável na concretude do Estado Democrático de Direito. Em razão de sua importância no pleno desenvolvimento da personalidade humana, é que o direito à educação foi qualificado como direito humano e posteriormente direito fundamental. 143 O direito ao ensino fundamental, no ordenamento jurídico brasileiro, é considerado no âmbito do direito público como um direito social fundamental. Assim, ele deve ser considerado um direito fundamental, inserido no direito à vida, absoluto, gerando efeito erga omnes; subjetivo público, por determinação constitucional, já que diz respeito ao individuo como ser humano e se propõe a assegurar-lhe o gozo do próprio ser. Sendo assim gera um dever positivo do Estado no sentido de viabilizá-lo, para que possa ser efetivamente usufruído. A efetivação do direito ao ensino fundamental enfrenta sérias dificuldades no Brasil, estabelecendo um paradoxo entre a legislação e a sua efetivação. Enquanto tem-se diplomas legais avançadíssimos, como é o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sem contar com a própria Constituição Federal de 1988 que estabelece o direito ao ensino fundamental como um direito subjetivo, tem-se também milhares de crianças e adolescentes analfabetos e semi-analfabetos. São espantosos os números do analfabetismo funcional e os dados de defasagem idade-série. O que isso evidencia? Evidencia que, apesar dos instrumentos legais serem formalmente válidos, no plano fático não são observados. Revelada a omissão da Administração Pública e seus agentes, não resta aos seus titulares opção outra senão bater às portas do Judiciário, com o fim de exigir sua implementação ou a correção dos seus propósitos. O status de direito público subjetivo torna o direito ao ensino fundamental oponível à Administração Pública, dando ao seu titular o poder de exigi-lo. A Constituição concedeu ao ensino fundamental um acento diferenciado dos demais direitos, isto é, determinou que ele não seja relegado à reserva do possível ou tampouco estar adstrito às opções ocasionais. 144 Cabia então a definição dos instrumentos jurídicos passíveis de ser manejados pelo cidadão para garantir uma educação pública e de qualidade no ensino fundamental. Tanto a Constituição como a legislação ordinária ofereceram à sociedade os instrumentos necessários para a correta reivindicação judicial. Temos neste sentido a Ação de Rito Sumário, a Ação Popular, a Ação Civil Pública e o Mandado de Segurança Coletivo. Ante a hipossuficiência dos titulares do direito ao ensino fundamental, ao Ministério Público, como defensor do Estado Democrático de Direito e dos direitos constitucionalmente defendidos, cabe a adoção de medidas que obriguem a Administração Pública a adotar e implementar políticas públicas que atendam à determinação constitucional, bem como à fiscalização das medidas já implantadas. Por fim, considerando que a legislação pertinente é suficiente para garantir a exigibilidade do direito ao ensino fundamental e que o meio de se disponibilizar tal direito é a adoção de políticas públicas constitucionalmente definidas, revela-se imprescindível a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário, voltadas para a efetiva implementação de tais políticas, já que estas, se devidamente elaboradas e aplicadas, proporcionarão alcançar os objetivos constitucionais da educação, quais sejam, “o pleno desenvolvimento da pessoa humana, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 205, CR/88). 145 REFERÊNCIAS AQUINO, Santo Tomás de. De magistro. Tradução e notas por Van Acker. [s.l]: Ed. Odeon, [13--]. (século provável). ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação. São Paulo: Moderna, 1989. ARISTÓTELES. A política. Tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1998. BALZANO, Sônia Maria Nogueira. 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