1 A INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA NOS ESTADOS: A QUESTÃO KOSOVO LEONARDO MIGUEL ALLES1 RESUMO O presente estudo visa analisar a guerra do Kosovo. Conceitos de conflito serão apresentados para auxiliar o leitor ao tema. Um breve histórico das origens étnicas da província do Kosovo fornece subsídios para o entendimento do conflito. Além disso, apresentar-se-ão as instituições e os personagens que desencadearam a guerra, bem como a inaplicabilidade da norma internacional sobre a questão, pois a intervenção humanitária, doutrina que ainda causa profundos debates na comunidade internacional, foi dirigida contra um Estado soberano, sem qualquer respaldo ou mandato do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Palavras-Chave: Guerra – Kosovo – Legitimidade – Intervenção Humanitária 1 Acadêmico da Faculdade de Direito da PUCRS. Banca: Orientador: Prof. Me. Ricardo Koboldt de Araújo, Prof. Guilherme Pederneiras Jaeger e Profª. Carolina Ruschel. 2 INTRODUÇÃO A guerra do Kosovo foi o conflito mais recente na ex-Iugoslávia. Dos Bálcãs, uma das regiões mais conturbadas da década de noventa, exsurgem perguntas sobre os motivos de tantos conflitos. Este trabalho oportuniza o encontro de muitas respostas. O presente estudo tem por escopo analisar a intervenção armada de cunho humanitário na província do Kosovo, que diferentemente de outras guerras, teve como peculiaridade marcante o uso da força pela OTAN, sem o mandato do Conselho de Segurança da ONU, sob a denominação de “intervenção humanitária”. 3 1 A GUERRA: DIFERENTES PERSPECTIVAS No século XVI, Alberico Gentili afirmou que a “guerra é a justa contenda de armas públicas”2. Já a guerra privada só tem relevância quando ameaça a paz internacional, ou, ainda, quando decorrer de aspectos humanitários3. Além disso, no que refere a defesa dos súditos de outrem contra seu soberano, diz não acreditar que súditos de outro Estado devam ser cortados do consórcio humano4. Hugo Grotius, em seu brilhante livro “O Direito da Guerra e da Paz”, traz o conceito de guerra de Marcus Tullius Cícero que a definiu como “um debate que se resolve pela força”, seu uso, porém, acabou por designar o termo não uma ação, mas um estado. Destarte, a guerra é o estado de indivíduos que resolvem suas controvérsias pela força5. Para ele, quem empreende uma guerra pelo interesse de outrem está, na verdade, prestando “um serviço a outrem, dentro dos limites de nosso poder, não é somente um fato lícito, é ainda um ato honesto”6. Frente a dificuldade de se conceituar a guerra no Direito Internacional duas correntes se manifestam: a) a subjetivista assevera que só há guerra quando estamos presente do animus belligerandi, que sozinho cria a guerra; b) a objetivista considera que a prática de atos de guerra cria o estado de guerra, independente da 2 GENTILI, Alberico. Direito de guerra. Traduzido por Ciro Mioranza. Ijuí: Unijuí, 2005. Tradução de: De iure belli libri tres, .p. 61. 3 MELLO, Celso Duviver de Albuquerque. Curso de direito internacional público vols 1 e 2. 14. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 1462. 4 GENTILI, op. cit., p. 142. 5 GROTIUS, Hugo. O Direito Da Guerra E Da Paz, vols 1 e 2. Traduzido por Ciro Mioranza. Ijuí: Unijuí, 2004. Tradução de: De Iure Belli ac Pacis Libri Tres, p. 71. 6 Ibidem, p. 273. 4 intenção. A maioria dos doutrinadores defendem a reunião de ambas7. Assim, nenhuma guerra surge por acaso, mas sempre por vontade do Estado8. Para Delbez, a guerra é “uma luta armada entre Estados, desejada ao menos por um deles e empreendida tendo em vista um interesse nacional”9. Carl von Clausewitz sustentou que “a guerra é uma simples continuação da política por outros meios”10. Para Quincy Wright, a guerra constitui-se em “um violento contato de entidades distintas mas semelhantes”11. Esta definição enseja duas críticas: 1) não exaure o conceito de guerra; 2) nem tudo aquilo que ela compreende é catalogável, conforme o sentido comum, como guerra12. Os doutrinadores geralmente referem o uso de “força armada”. Isso reduz bastante os casos em que podemos configurar o estado de guerra, mas, nada obstante, se ampliou a precisão sobre a matéria, perdeu-se um pouco do contato com a realidade do nosso tempo. Hoje, a “força” não se expressa mais apenas em termos militares, mas igualmente em termos econômicos, psicológicos etc.13 7 MELLO, op. cit., p. 1455. Ibidem. 9 DELBEZ, Louis. Apud MELLO, op.cit., p. 1456. 10 CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. Traduzido por Maria Teresa Ramos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Tradução de: Vom Kriege. p. 27. 11 WRIGHT, Quincy. Apud GORI, op. cit., p. 571. 12 . GORI, Umberto. GUERRA. In: BOBBIO, Norberto, METTEUCCI, Nicola, e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política, vol 1. 5. ed. São Paulo: Imprensa Oficial, 2004, 2000, p. 571. 13 Ibidem. 8 5 O exame da doutrina nos leva a concluir que não existe uma definição uníssona do conceito de guerra. Q. Wright14 analisou os fatos históricos concretos, que foram chamados de “guerras”. Tais fatos se caracterizavam por: a) atividade militar; b) alto grau de tensão na opinião pública; c) adoção de normas jurídicas atípicas, referentes às vigentes no período de paz; d) uma progressiva integração política dentro das estruturas estatais dos beligerantes. Dessa forma, passamos a analisar o caso Kosovo. 2 BREVE HISTÓRICO DO CONFLITO DO KOSOVO A decadência do Império Otomano no século XIX fez com que a população kosovar tivesse liberdade de culto religioso e ensino15. Os ataques de tropas sérvias e montenegrinas levou a criação da Liga de Prizen que buscava dentro do Império Otomano criar um território autônomo albanês. A Liga chegou a governar o Kosovo até ser aniquilada em 1881 pelo império, seu sumiço fomentou o sentimento por um Estado albanês arraigado ao Kosovo16. Hitler conquistou a Iugoslávia, criou um Estado facista chamado Ustasha e dividiu o Kosovo entre a Albânia, Croácia e Sérvia ocupada. Essa divisão contribuiu para surgimento de ódios que viriam eclodir com a desintegração da Iugoslávia. 14 WRIGHT, Quincy. Apud GORI, op. cit., p. 572. FRANÇA, Paulo Roberto Caminha de Castilhos. A Guerra do Kosovo, a OTAN e o conceito de “Intervenção Humanitária”. Porto Alegre: UFRGS, 2004, p. 20. 16 Ibidem, p. 24. 15 6 Uma nova Iugoslávia foi idealizada em 1943, no Segundo Conselho Antifacista para a Libertação Nacional da Iugoslávia. Nele foi assentado que o novo país seria fundado no direito dos povos à autodeterminação, a secessão e o de se unir com outros povos em conformidade com as verdadeiras aspirações de todos os povos da Iugoslávia. Em 1945, o Kosovo foi anexado à Sérvia e transformou-se em região autônoma e, portanto, seria considerada uma das Repúblicas da Iugoslávia17. Com Josip Broz Tito, a população albanesa teve um destino diferente do passado, pois ele foi responsável pela reversão de políticas discriminatórias de colonização do Kosovo por sérvios e da supressão da língua albanesa na educação e nos cultos religiosos. Nos anos 70, a província quase alcançou o status de República no âmbito da Federação. A cisão de Tito e Stalin fez com que a Iugoslávia e Albânia se afastassem, reaproximando apenas em 1969, com um acordo comercial e a criação da Universidade de Prístina. O estreitamento das relações entre o Kosovo e a Albânia fez com que na Constituição de 1974 a província ainda continuasse nessa situação e não como uma República. A diferença básica entre as Repúblicas e as províncias residia apenas no de essas últimas não terem direito à secessão18. Em 1980, Tito morre, a Iugoslávia, socialista e multiétnica, sob seu comando tornou-se uma potência industrial. A partir de 1980, a crise do endividamento externo e a postura de Washington contribuíram para a desintegração do país. 17 18 Ibidem, p. 26. Ibidem, p. 29. 7 No Kosovo, região isolada dos benefícios da industrialização, uma revolta, contra a prisão de manifestantes que gritavam por uma República do Kosovo, terminou em mortes. Alguns manifestantes foram julgados e sentenciados à prisão por quinze anos, o que atribuiu um forte caráter irredentista ao movimento que inicialmente não tinha. Uma série de crimes e atos de vandalismo começaram a ser imputados tanto a sérvios quanto a albaneses. Milosevic visita Pristina em 24 de abril de 1987, para ouvir as queixas dos sérvios. Quando Slobodan entrava no prédio da reunião viu policiais batendo em sérvios, flagrado pela câmeras de tv disse: “Nunca mais ninguém ousará bater em vocês”19. Em 1989, Milosevic assume a presidência da Iugoslávia, e o Kosovo se destaca em sua política. A assembléia sérvia reduziu a autonomia que o Kosovo desfrutava. Jornais e escolas albanesas foram fechados, servidores públicos de origem albanesa foram demitidos, ruas que antes tinham nomes albaneses receberam nomes sérvios20. Em julho de 1990, a Assembléia provincial é fechada. Nesse momento nevrálgico, surge Ibrahim Rugova, presidente da Associação dos Escritores do Kosovo, que liderou a Liga Democrática do Kosovo, LDK, partido que recebeu o nome em referência a Liga de Prizren. A LDK adotou uma política alternativa, ao invés da insurreição preferiu a resistência pacífica e tinha como pilares os valores do estado democrático de direito e da economia de 19 20 Ibidem, p. 38. Ibidem, p. 41. 8 mercado. Rugova era conhecido pelos kosovares de origem albanesa como seu presidente, constituiu um governo de seis ministérios e sua sede era na capital da Eslovênia, ele viajou por diversos países europeus para angariar fundos à sua administração junto a kosovares emigrados. A Iugoslávia entrou no foco da mídia mundial devido a crise econômica de 1992 em que seu PIB encolheu, fruto da transição do socialismo para o capitalismo. Disso resultou a desagregação da Iugoslávia quando Croácia e Bósnia optaram, mediante plebiscitos, pela independência. Duas guerras advieram, por isso a questão do Kosovo restou incólume perante a comunidade internacional21. A crise econômica também atingiu a Província, com o aumento do desemprego a economia foi vítima da “informalização” e do “gangsterismo”, a rede mafiosa que surgiu financiou a criação de forças paramilitares entre elas o ELK22. O Acordo de Dayton que pôs termo à guerra da Bósnia foi uma derrota a política pacifista de Rugova, uma vez que o texto do Tratado não considerou a questão do Kosovo. Esse fato deu ensejo ao recrudescimento da violência. Responsável pela luta armada, o Exército de Libertação do Kosovo surgiu em 1993. O ELK tinha como líderes: Kadri Veseli, chefe de segurança da organização; Hashim Thaci, mestre em relações internacionais pela universidade de 21 22 Ibidem. Ibidem. 9 Zurique; Xhavit Haliti, ativista da luta albanesa do Kosovo na Suíça; e Abaz Xhuka, pseudômino de alguém que vive na clandestinidade em algum lugar na Macedônia23. Além do Acordo de Dayton, outro fato favoreceu o ELK, a crise do Estado albanês, em 1997. O ELK conseguiu um arsenal portentoso por um preço irrisório24. As ações do ELK se intensificaram, o governo sérvio qualificou o ELK como organização terrorista e aumentou a repressão. Violações de direitos humanos aconteceram sistematicamente25. Conflitos aconteceram nas cidades de Likosane e Donji Prekaz com pesadas baixas para policiais e guerrilheiros. Ante os acontecimentos, Robin Cook, então Secretário dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, foi a Belgrado, em nome da União Européia, pedir moderação a Milosevic em relação ao Kosovo26. O conflito no Kosovo finalmente se internacionalizara. Destarte, a província deixara de ser um assunto exclusivamente interno sérvio. Após reiteradas investidas violentas por parte da polícia sérvia o Grupo de Contato, criado à época da guerra da Bósnia e constituído pelos Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Itália e Rússia, condenou o uso da força contra civis e solicitou a retirada das unidades policiais. 23 Ibidem. Ibidem. 25 Ibidem. 26 Ibidem p. 61. 24 10 Os desmandos de Milosevic foram tema da Resolução 1160 do CS27. Os E.U.A. tentaram interferir através de seu embaixador Robert Gerald, porém a medida fracassou, então, Richard Holbrooke, negociador da paz na Bósnia, e Madeleine Albright, Secretária de Estado norte-americana, conduziriam as negociações. Encontros entre Milosevic e Rugova fracassaram. Em junho de 1998, o Grupo de Contato, acrescidos de Japão e Canadá, aventou uma possível intervenção militar, caso as tropas sérvias não evacuassem o Kosovo28. Ieltsin chamou Milosevic e conseguiu restabelecer o diálogo entre este e a liderança moderada albanesa, bem como a abertura da região a grupos humanitários, porém Milosevic disse que não iria retirar suas tropas da Província. Com a anuência de Milosevic à presença de organizações de cunho humanitário, Holbrooke criou e liderou a Missão Observadora Diplomática do Kosovo – MODK. Essa missão se aproximou do ELK, o que foi criticado pelos europeus do, pois, para estes, o parceiro da Europa no Kosovo era a LDK, liderada por Rugova29. O aumento das atividades do ELK elevou o número de refugiados sérvios de duzentos mil, em 13 de agosto de 1998, para mais de trezentos mil, em outubro30. 27 Vide item 3.1. FRANÇA, op. cit., p. 70. 29 Ibidem, p 71. 30 Ibidem, p. 73. 28 11 No mês seguinte o CS aprovou a Resolução 119931. Em outubro, os ministros das relações exteriores da Inglaterra, Robin Cook, dos E.U.A., Madeleine Albright, da Alemanha, Klaus Kinkel, da Rússia, Igor Ivanov, da França, Hubert Védrine, se reuniram no aeroporto de Heathrow, Londres, para debater a respeito de uma sanção militar contra a Iugoslávia e se o tema deveria ser objeto de análise por parte do Conselho de Segurança.”32. Javier Solana, Secretário-Geral da OTAN, disse que havia suficiente embasamento jurídico para uma ameaça de força e a sua implementação33. Milosevic negociou com Richard Holbrooke medidas para implementar o cumprimento da Resolução 1199. O acordo parecia promissor, as tropas sérvias haviam se retirado em sua grande maioria, e os refugiados começavam a retornar a seus lares. O Grupo de Contato optou por dar um lastro multilateral ao acordo Holbrooke-Milosevic e aprovou a resolução 120334. Com a saída das tropas sérvias, o ELK assume as posições estratégicas do Kosovo, o terrorismo contra civis sérvios aumenta. Como resultado Pacto HolbrookeMilosevic esgotou-se, pois esse Acordo não envolvia o ELK nos compromissos de cessar-fogo, tratava apenas de medidas a serem observadas pelo lado sérvio e não dispunha de mecanismo algum de monitoramento sobre os guerrilheiros35. Paulo França critica a OTAN nas tratativas, pois “Aos guerrilheiros, para o cumprimento do cessar-fogo, se pedia tão-somente a sua cooperação”36. 31 Vide item 3.1. FRANÇA, op. cit., p. 77. 33 Ibidem. 34 Ibidem, p. 79. 35 Ibidem, p. 82. 36 Ibidem. 32 12 A diplomacia naufragou com o massacre realizado por tropas paramilitares sérvias em Racak, onde 45 pessoas foram mortas, inclusive mulheres e crianças. Diante disso, em de janeiro de 1999, o Grupo de Contato se reuniu em Londres buscando um cessar-fogo, bem como negociações de paz a serem realizadas em Rambouillet até o dia 06 de fevereiro de 1999. Após Conselho de Segurança declarar que a crise no Kosovo ameaçava a paz e a segurança internacional, sérvios e albaneses se reuniram em Rambouillet, castelo francês, para impedir uma catástrofe humanitária. Na conferência foram estudados dois documentos. O primeiro versava sobre princípios não negociáveis. O segundo era um Projeto de Acordo Interino para a Paz e a Autonomia do Kosovo, que almejava um cessar-fogo, bem como instituir elementos de autonomia. Dias mais tarde, foi apresentado o anexo militar, que dava às tropas da OTAN, e todo seu equipamento bélico, passagem livre e irrestrita por toda República Federal da Iugoslávia37. Para alguém cônscio da história sérvia, as propostas de Rambouillet certamente levariam a guerra. O país que lutou contra os impérios otomano e austríaco, muitas vezes sozinho, e que, ferrenhamente resistiu a Hitler e Stálin, sem ajuda de aliados, nunca permitiria o trânsito de tropas estrangeiras em seu território nem deixariam uma província com raízes históricas sob administração da OTAN.38 37 Ibidem, p. 87. KISSINGER, Henry. Does America need a foreign policy? Toward a diplomacy for the 21st century, 2001, p. 262. 38 13 Tanto sérvios como albaneses não assinaram o acordo. Aqueles apostando na falta de consenso entre os membros da OTAN para o uso da força, e que os albaneses não fossem assinar o acordo. Estes estavam frente um dilema, preocupavam-se com a menção ambígua sobre um futuro plebiscito, bem como o desarmamento das forças do ELK. Madeleine Albright reuniu-se com a delegação albanesa e disse que só haveria bombardeio à Iugoslávia caso eles assinassem o acordo e os sérvios não. Rambouillet findou por uma reconvenção das delegações para 15 de março em Paris. Hashim Thaci, líder do ELK, surpreendeu o mundo, ao assinar o acordo. Os sérvios propuseram uma série de emendas ao acordo que não foram acolhidas. Assim, para entendermos melhor o contexto internacional sob o qual se desenvolveu essas negociações passamos a analisar os fatores reais de poder. 3 OTAN39 E A INTERNACIONALIZAÇÃO DO CONFLITO Com o fim do Pacto de Varsóvia, estrategistas militares perguntavam-se se a OTAN também deveria ser extinta. As incertezas vividas pelo leste europeu fez com que todos se tornassem céticos com tal possibilidade. Em julho de 1990, em Londres, iniciou-se o processo de reformulação da instituição, entre as medidas 39 OTAN. Declaração de Roma. Disponível em: http://www.nato.int/docu/comm/49-95/c911108a.htm. Acesso em: 21.fevereiro.2006. 14 debatidas estavam a possibilidade de um ação militar onde a paz estivesse ameaçada, bem como a admissão de novos membros. Na reunião de Roma, em 199140, os chefes dos países membros da OTAN formularam o Novo Conceito Estratégico que se subdividiu em quatro pontos: prover a estabilidade européia, inibindo qualquer agressão por parte de uma nação do continente; munir um foro de debate transatlântico sobre segurança; manter do papel inicial de defesa contra qualquer ameaça estrangeira a um membro da OTAN; e o quarto seria o de sustentar o equilíbrio estratégico na Europa. Os bombardeios contra a Iugoslávia visando proteger kosovares de etnia albanesa marcaram uma nova etapa na vida da OTAN. O novo conceito estratégico, apresentado anos antes em Roma, ainda enfatizava que “A Aliança tinha caráter puramente defensivo”. Essa frase simplesmente desapareceu do novo conceito estratégico adotado em 1999. Para Seitenfus, os atuais desdobramentos da aliança tendem fazer da OTAN a guardiã da segurança e da paz internacionais segundo os interesses e perspectivas do Ocidente desenvolvido, provocando mudanças sensíveis a proposta original da organização e deslocando o foco da manutenção da paz e segurança internacionais do Conselho de Segurança para a OTAN41. Para Celso de Albuquerque Mello, as organizações regionais não têm o poder de polícia, ademais, “a OTAN foi utilizada e não o CS da ONU, que era o 40 Ibidem. SEITENFUS, Ricardo. Manual das Organizações Internacionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 323-324. 41 15 órgão que possui competência para agir nesses casos, porque a Rússia, tradicional defensora dos sérvios, ameaçava utilizar o seu direito de veto42. 3.1 Legitimidade de Uso da Força A legitimidade do Estado ou de um grupo de Estados é condição necessária porém não suficiente para que a norma seja legítima, bem como para que as atitudes e políticas o sejam substantivamente. Para obter legitimidade processual é preciso que o Estado tenha legitimidade. Gelson Fonseca Jr. acrescenta, “E, insistamos, a legitimidade internacional não se limita à norma e deverá necessariamente servir para a avaliação também dos atos políticos”43. Quando ocorrem “desvios” da boa conduta, são as potências que os corrigem, embora, nessa visão, não se resolva o problema de saber quais são tais “desvios” e se a “correção” corresponde ou não a um movimento legítimo. Ou melhor, processos políticos resolvam essas questões. De qualquer modo, o que dá ao poder legitimidade é o fato de agir em nome de normas reconhecidas como universais e, dessa forma, preservar valores e instituições que servem a todos”44. 42 MELLO, op. cit., p. 726. FONSECA JR, Gelson. A legitimidade e outras questões internacionais: poder e ética entre as nações. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1998, p. 176-177. 44 Ibidem, p. 181. 43 16 Quando se pretende travar uma guerra em nome dos “direitos do homem”, uma guerra humanitária, renuncia-se ao direito de negociar a cessação das hostilidades com o adversário45. Eis a lição de Henry Kissinger: Os membros da OTAN justificaram suas ações por analogias históricas vagas e pouco acuradas: como se as duas guerras mundiais tivessem raízes nos Bálcãs, ou que a guerra estava direcionada contra a figura hitlerista de Slobodan Milosevic.[...] Milosevic era um líder violento, mas não Hitler, pois, no fim, foi removido do poder pelo seu próprio povo em meio a uma manifestação.46 Casualmente, anunciou-se, em julho de 1999, que as tropas britânicas haviam descoberto em Pristina documentos sérvios provando “o planejamento meticuloso da limpeza étnica pelas autoridades de Belgrado”47, nos moldes da solução final nazista. A MODK e a mídia, levadas por representantes do ELK aos sítios onde atrocidades foram cometidas, tratavam de noticiar apenas os abusos cometidos pelas tropas sérvias48. Nesse sentido, Hans Morgenthau: Não podemos esquecer tampouco que os governos totalitários só se tornaram possíveis graças à moderna tecnologia, que lhes facultou colocar os seus próprios cidadãos em uma espécie de dieta moral e intelectual, alimentando-os com certas idéias e informações e 49 privando-os de outras . (grifo nosso) 45 VIRILIO, Paul. Estratégia da Decepção. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 18. KISSINGER, op. cit., p. 263. 47 VIRILIO, op. cit., p. 85. 48 FRANÇA, op. cit., p. 76. 49 MORGENTHAU, Hans. A política entre as nações: a luta pelo poder e pela paz. Traduzido por Oswaldo Biato. Brasília: Universidade de Brasília, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, 2003. Tradução de: Politics among nations: the struggle ofr power and peace, p. 489. 46 17 A mídia se transformou num instrumento essencial para a afirmação do poder, nas relações internacionais. Sua influência até mesmo para definir a agenda internacional foi designada como “efeito CNN”50. Madeleine Albright, em coletivas passou a referir a legitimidade do uso da força pela OTAN para evitar o que já fora qualificado pela mídia mundial como uma iminente catástrofe humanitária51. Eis a lição de Morgenthau: Quando uma nação invoca valores como a “opinião pública mundial” ou “a consciência da humanidade”, no intuito de assegurar a si própria e às demais ações que as suas políticas externas se ajustam aos padrões compartilhados pelos homens em toda a parte, ela não está apelando para algo real. [...] No nosso século, as pessoas querem acreditar que advogam idéias da humanidade e não somente, e talvez nem mesmo primordialmente, os seus próprios interesses 52 nacionais. . (grifo nosso) A legitimação também ocorre no âmbito das instituições e a primeira instituição que nos vem à mente é o Conselho de Segurança. O Kosovo foi objeto de análise em quatro Resoluções. Vejamos cada uma delas. A Resolução 1160 qualificou a situação do Kosovo como uma ameaça à paz e à segurança internacional53. A Resolução determinou: a) embargo à venda de armamentos à Iugoslávia até que os sérvios retirassem suas tropas do Kosovo; b) que fosse permitida a entrada de organizações internacionais; c) que fosse restabelecido o diálogo político; d) que o promotor do Tribunal para a Ex-Iugoslávia recolhesse material com as autoridades iugoslavas sobre a violência no Kosovo. 50 FRANÇA, op. cit., p. 157. Ibidem, p. 76. 52 MORGENTHAU, op. cit., p. 499. 53 CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU. Resolução 1160/98. Nova York, NY, 31 mar. 1998. Disponível em: http://www.un.org/Docs/sc/unsc_resolutions.html . Acesso em 30.abril. 2006. 51 18 Em setembro de 1998, foi editada a Resolução 1199, que acenava para o uso da força na Iugoslávia. O preâmbulo dela estipula: a preocupação pela intensificação dos combates no Kosovo e o uso excessivo e indiscriminado de força pelas tropas iugoslavas com a conseqüência de inúmeras baixas entre a população civil e mais de 230 mil refugiados; preocupação com a rápida deterioração da situação humanitária no Kosovo e a iminente catástrofe humanitária; a deterioração da situação no Kosovo constitui uma ameaça à paz e à segurança na região54. A parte dispositiva da Resolução 1199 demandava: o cessar-fogo imediato e o fim das hostilidades entre os beligerantes; a adoção de medidas pelas autoridades iugoslavas e pela liderança albanesa (LDK) com vistas a melhorar a situação humanitária; reinício dos diálogos políticos com a participação da comunidade internacional. Além disso, a Resolução requeria a retirada das tropas sérvias que reprimia a população civil; facilidades para o monitoramento internacional por parte das missões diplomáticas acreditadas no país, bem como pelas organizações humanitárias. A Resolução mencionou a declaração dos presidentes Ieltsin e Milosevic sobre a solução dos problemas por meio de debate político; que a liderança albanesa condenasse categoricamente os atos de terrorismo. Por fim, o CS, decidiu que consideraria uma ação futura55 para manter ou restaurar a paz na região, caso essas medidas não fossem concretizadas. O representante permanente dos E.U.A. na ONU, Peter Burleigh, afirmou que “a Resolução e as medidas prévias adotadas no âmbito do Conselho de 54 CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU. Resolução 1199/98. Nova York, NY, 23 set. 1998. Disponível em: http://www.un.org/Docs/sc/unsc_resolutions.html . Acessado em 30.abril. 2006. 55 O termo utilizado, em inglês, na Resolução foi “further action”. 19 Segurança constituíam uma base no direito internacional para o uso da força”. Jeremy Greenstock, embaixador britânico, manifestou-se de modo semelhante. A Resolução 120356, de 24 de outubro, endossou os acordos assinados por Holbrooke e Milosevic, sobre o cumprimento da Resolução 1199. No tocante ao futuro status da Província, sempre objetivando uma maior autonomia para uma significativa auto-administração. Para Paulo França, nenhuma dessas resoluções contêm linguagem que justifique o uso da força. Entretanto, os Estados Unidos invocaram resoluções do CS afirmando que elas proviam alguma autoridade implícita para o uso da força. A resolução 1199 estabeleceu em seu penúltimo parágrafo operativo que o Conselho de Segurança: “deveria considerar uma futura intervenção e medidas adicionais para manter ou restabelecer a paz e a estabilidade na região, caso medidas concretas demandadas nessa resolução não fossem tomadas”57. O hermeneuta não pode depreender daí alguma autorização de uso da força. Cumpre assinalar que o argumento dos defensores da intervenção no sentido de que a rejeição pelo Conselho de Segurança de projeto de Resolução de censura à intervenção liderado pela Rússia atribuiria legitimidade à intervenção não procede, pois a Resolução 1244 (1999), não faz menção a operação da OTAN contra a Iugoslávia. Aliás, houve tentativa dos países da OTAN membros do Conselho nesse sentido e que foi contraarrestada pelas delegações da Rússia, da China e do Brasil58. Por outro lado, no 56 CONSELHO SEGURANÇA. Resolução 1203/98. Nova York, NY, 24 out. 1998. Disponível em: http://www.un.org/Docs/sc/unsc_resolutions.html . Acesso em: 30.abril. 2006. 57 Idem. Resolução 1199/98. 58 FRANÇA, op. cit., p. 76. 20 entender de Jorge Castro, a Resolução 1244 do CS, aprovada no dia 10 de junho de 1999, legitimou o ocorrido59.. A guerra empreendida, embora não tivesse sido condenada, não recebeu autorização expressa do Conselho de Segurança, nem tampouco uma legitimação a posteriori. Deduz-se, assim, que o bombardeio da Iugoslávia não pode ser enquadrado em nenhuma das exceções ao princípio que proíbe a ameaça ou uso da força (art. 2º, § 4º, da Carta)60. 4 INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA Bruce Jones redigiu a definição adotada neste trabalho, como: intervenções armadas e coercitivas acontecem quando está envolvido o uso da força contra a vontade de pelo menos uma das partes do conflito61. A proibição da ameaça e do uso da força encontra-se no artigo 2(4) da Carta das Nações Unidas. Embora Estados e doutrinadores entendam que a proibição do uso da força não é apenas um tratado ou costume internacional, mas sim ius cogens. A controvérsia surgiu pelo uso da força da OTAN no Kosovo em 1999. Estados e doutrinadores expressaram suas divergências sobre a legalidade 59 CASTRO, Jorge. Kosovo e o novo sistema de segurança internacional. Política Externa. São Paulo. v. 8, n. 3, dez.-fev. 2000, p. 109. 60 FRANÇA, op. cit., p. 137. 61 JONES, Bruce. Apud RODRIGUES, Simone Martins. Segurança Internacional e Direitos humanos: A Prática da Intervenção Humanitária no Pós-Guerra Fria. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 98. 21 dessa intervenção. Alguns afirmaram que um novo direito de intervenção estava emergindo, outros que a ação da OTAN foi uma brecha da Carta da ONU62. A controvérsia centrou-se na segunda parte do artigo 2(4) da Carta: deveriam as palavras “contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas”63 ser concebidas como uma estrita proibição ao uso de toda sorte de força contra outro Estado, ou elas permitiriam o uso da força estipulando que o objetivo não fosse derrubar o regime político ou expandir o território do Estado e que a ação foi consistente com os propósitos da Carta da ONU? Devemos frisar que as conversas realizadas em 22 de março entre Holbrooke e Milosevic, antes do bombardeio, foram ameaças do uso da força contra a Iugoslávia e, assim, não satisfazem as exigências legais associadas com o comprometimento de uma solução pacífica para as disputas internacionais. Além disso, o artigo 2(4) da Carta proíbe claramente a ameaça ou uso da força. O Capítulo VII da Carta estabelece que o Conselho de Segurança irá determinar a existência de qualquer ameaça à paz, de ruptura da paz, ou ato de agressão e recomendará, ou irá decidir quais as medidas que serão tomadas, de acordo com os artigos 41 e 42, para manter ou restaurar a paz e a segurança internacional (art. 39); delimita que nada na Carta impedirá os membros de exercerem o seu direito de legítima defesa individual ou coletiva em caso de ataque 62 GRAY, Christine. International Law and the Use of Force. 2. ed. New York: Oxford University Press, 2004, p. 23. 63 ONU. Carta das Nações Unidas. Coletânea de direito internacional. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 22 armado até que o Conselho tenha adotado as medidas necessárias para manter a paz e a segurança internacional e estipula que as medidas adotadas pelos membros no exercício do direito de legítima defesa devem ser imediatamente informadas ao Conselho e não deverão de forma alguma afetar a sua autoridade e responsabilidade para adotar a qualquer momento a ação que julgue necessária para manter ou restaurar a paz e a segurança internacional (art. 51)64. O referido direito de “intervenção humanitária” não é compatível com a Carta das Nações Unidas e por esta razão não chega a surpreender que, na vigência da Carta, não exista suficiente defesa da legalidade desse direito. 4.1 Reino Unido e Adoção do Conceito de Intervenção Humanitária A partir de 1992, a Grã-Bretanha defendeu a doutrina da intervenção humanitária como forma de justificar as ações no Iraque (zonas de exclusão aéreas para proteger curdos e xiitas iraquianos), essa doutrina não foi sustentada perante o Conselho de Segurança, mas como resposta a pressões internas e publicações dentro da própria Inglaterra. O Reino Unido elaborou mais tarde uma doutrina de intervenção humanitária. Essa política britânica de intervenção humanitária parece ser a primeira adotada por um Estado desde a criação da ONU. Os E.U.A. não alegaram essa doutrina, preferindo mover seu maquinário bélico baseado em autorização implícita do Conselho de Segurança65. 64 65 FRANÇA, op. cit., p. 129. GRAY, op. cit., p. 34-35. 23 4.2 Intervenção humanitária e costume internacional Seria a intervenção humanitária um costume? Ian Brownlie enumera os seguintes autores como defensores da intervenção humanitária: Richard B. Lillich, Carillo Salcedo etc . Constituem uma minora, pois suas posições estão sustentadas no direto internacional costumeiro que depende da prática estatal baseada na opinio jure, ou seja, a opinião de que a ação está de acordo com o direito internacional. É possível que a Carta das Nações Unidas seja modificada como resultado da prática dos Estados-membros que eventualmente consolidem um novo costume. Mas os precursores de alteração têm o ônus de comprová-lo66. O ponto nevrálgico em relação à guerra do Kosovo é a ausência de evidência de mudança de perspectiva pela maioria dos Estados. Ademais, a opinião contrária da Rússia, China, Índia, México e Brasil, entre outros tantos países67, denota que não houve acordo quanto à existência de argumento legal que legitimasse a ação bélica. E, de acordo com a teoria voluntarista, no direito internacional, o costume se encontra no consentimento tácito dos Estados, o que no caso não houve68. Por fim, Brownlie contesta a intervenção no Kosovo dizendo que a ela não pode ser atribuída o adjetivo de humanitária devido os bombardeios acima de 15.000 feet69. 66 FRANÇA, op. cit., p. 136. Ibidem, p. 181. 68 MELLO, op. cit., p. 285. 69 BROWNLIE, Ian. Apud FRANÇA, op. cit., p. 136. 67 24 4.3 Bombardeio acima de 15.000 feet Em 22 de março de 1999, Javier Solana autorizou o início da Operação Força Aliada. A OTAN, com vistas a reduzir ou eliminar as perdas em vidas humanas e equipamentos, determinou que seus aviões voassem a quinze mil pés70. No dia 24 de março de 1999, a Rússia solicitou ao CS o exame da ação militar empreendida pela OTAN. Ela não defendeu as violações de direitos humanos cometidas na Iugoslávia, mas que cabia ao CS monitorar e velar pelo cumprimento de suas resoluções. Os países-membros da OTAN justificaram que a ação era moralmente correta e tinha por objetivo evitar uma catástrofe humanitária iminente71. A campanha aérea foi realizada em três fases. Na primeira, os bombardeios visavam a artilharia anti-aérea iugoslava. Na segunda fase, foram atacadas a infraestrutura militar na Sérvia, Montenegro e no Kosovo, bem como as tropas sérvias. Em abril iniciou-se a terceira fase72, essa fase tinha como alvo inúmeros objetivos civis. Somente a França objetou o bombardeio a alvos não militares73. O bombardeio da Iugoslávia gerou a catástrofe humanitária que a OTAN pretendia evitar. Para a OTAN, a horda de refugiados foi provocada pela limpeza étnica realizada pelos sérvios. O próprio ELK tinha interesse nesse resultado. A 70 FRANÇA, op. cit., p. 93. Ibidem, p. 189. 72 Durante essa terceira fase, no dia 7 de maio, a Embaixada da China em Belgrado foi atingida. 73 FRANÇA, op. cit., p. 93. 71 25 decisão da OTAN de imputar a culpa apenas ao governo iugoslavo pelo recrudescimento da crise e apoiar o ELK elevou este grupo terrorista ao status de representante dos kosovares albaneses da província em detrimento da liderança moderada encabeçada por Ibrahim Rugova. Ao longo da campanha, 863 mil pessoas saíram de seus lares em direção à Albânia, Macedônia e Montenegro, novamente a OTAN soube capitalizar isso, enquanto as redes BBC e CNN demonizavam Milosevic74. Após 78 dias de bombardeios, o número de mortos atingiu 2500 referente aos conflitos entre tropas sérvias e albaneses, 500 entre civis devido os bombardeios, 490 mortos em função de minas terrestres e explosões de bombas. Sem contar em um número incalculável de feridos75. 4.4 Enfim, a Pax Em 14 de abril de 1999, Ivo Daalder, assessor do presidente Clinton, afirmou: “A OTAN não atingiu seu objetivo mínimo no Kosovo. O fracasso é patético”76. Perguntava-se como pôr termo ao conflito. A solução encontrada por Clinton e Ielstsin, para encerrar a guerra, foi a criação de um canal diplomático entre Viktor Chernomyrdin e Al-Gore, bem como 74 Cf supra item 3.1. FRANÇA, op. cit., p. 161. 76 DAALDER, Ivo. Apud VIRILIO, op. cit., p. 69. 75 26 Strobe Talbott, secretário de Estado alterno. A União Européia designou o presidente finlandês, Martti Atisaari, como seu representante especial para o Kosovo. Quatro reuniões foram realizadas, Washington já não insistia em questões inegociáveis como em Rambouillet77. Em 2 de junho, Viktor e Atisaari foram a Belgrado negociar com Milosevic até o dia 9 do mesmo mês. Restou acordado a retirada das tropas sérvias do Kosovo e a entrada de uma força de segurança internacional (KFOR), com forte participação da OTAN, para monitorar o acordo e permitir o retorno dos refugiados78. No dia 10 de junho, Javier Solana ordenou a suspensão dos bombardeios, e, no mesmo dia o Conselho de Segurança aprovou a Resolução 1244. No dia 12, as primeiras tropas da KFOR marcharam no Kosovo a partir da Macedônia. Kofi Annan nomeou Bernard Kouchner, ex-presidente da ONG Médicins sans Frontière, para liderar a UNMIK, Administração Civil interina sob os auspícios da ONU. A queda de Milosevic em setembro de 2000 e a ascensão de Vojislav Kostunica trouxeram a possibilidade de uma pacificação aos Bálcãs, mas não facilitam a solução política no Kosovo. A província ainda enfrenta os problemas que deram ensejo a “intervenção humanitária” da OTAN. E, do ponto de vista político parece não haver, a curto e médio prazo, uma solução viável para o protetorado exercido pela ONU e OTAN. 77 78 FRANÇA, op. cit., p. 96. Ibidem, p. 97. 27 CONCLUSÃO A guerra do Kosovo poderia e deveria ter sido evitada. A administração norte-americana tentou reaplicar a mesma doutrina executada na Bósnia, ou seja – punir os sérvios mediante bombardeios até levá-los a mesa de negociação-, embora seja discutível culpar apenas os sérvios pelas atrocidades cometidas. O Kosovo é uma província sérvia que tem um forte significado histórico e religioso. Slobodan construiu sua carreira defendendo o Kosovo como província sérvia, por esse motivo ele estaria assinando sua morte política, caso cedesse rapidamente as pressões norte-americanas. O problema caso se aceite a guerra do Kosovo como modelo são dois. Primeiro, é abdicar do tratamento das causas dos conflitos para se fixar apenas nas suas conseqüências. É reduzir toda a problemática dos direitos humanos a uma questão de polícia, sem identificar as situações que provocam o desrespeito à dignidade humana. Significa, em outras palavras, renunciar à prevenção. Segundo, é atribuir ao executor da intervenção militar o poder discricionário para julgar quando, como, por que e onde intervir. No plano internacional, não existem os mecanismos jurisdicionais a que estão submetidas as polícias nacionais para inibir abusos e transgressões. Afora isto, os limites entre o interesse humanitário, moralmente elevado, e o interesse nacional, geralmente egoísta, nem sempre claros. 28 Ademais, o pensamento estratégico, em questões de segurança internacional, deve passar de “pensar a guerra” como objeto de estudo para “pensar a crise”. Pois, o centro da questão é a segurança, que implica focar a prevenção e a comunicação. Por fim, no presente ano dois dos principais atores do conflito kosovar faleceram: Ibrahim Rugova e Slobodan Milosevic. O primeiro, em 21 de janeiro, de câncer no pulmão, o ex-professor de literatura, que se graduou em filosofia, teve Fatmir Sejdiu como substituto eleito pelo parlamento em fevereiro. Cabe a ele dar seguimento a campanha pela independência do Kosovo. Milosevic, após o movimento popular que lhe tirou do poder em setembro de 2000, foi preso em março de 2001 e extraditado para Haia, em junho do mesmo ano. Milosevic negou a legitimidade do Tribunal Internacional para Ex-Iugoslávia, dispensou os advogados e realizou sua própria defesa nos julgamentos. E foi nesta prisão que Milosevic, aos 64 anos, faleceu na cela que ocupava no último dia 11 de março. Os advogados que cuidavam dos interesses do ex-presidente acusaram a ONU de negligência, que teria sido a responsável pela falta de atendimento médico Milosevic tinha problemas cardíacos - ou por seu envenenamento, ao passo que os jornais não descartaram a possibilidade de suicídio. As vítimas dos crimes de Milosevic perderam a chance de fazer justiça, já que ele foi o primeiro Chefe de Estado a ser indiciado por um Tribunal Penal Internacional. Termina, assim, mais um capítulo na história dos Bálcãs. 29 REFERÊNCIAS CASTRO, Jorge. Kosovo e o novo sistema de segurança internacional. Política Externa. São Paulo. v. 8, n. 3, p. 98-113, dez.-fev. 2000. CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. Traduzido por Maria Teresa Ramos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Tradução de: Vom Kriege. CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU. Resolução 1160/98. Nova York, NY, 31 mar. 1998. Disponível em: <http://www.un.org/Docs/sc/unsc_resolutions.html> . Acesso em: 30 abr. 2006. _______. Resolução 1199/98. Nova York, NY, 23 set. 1998. Disponível em: <http://www.un.org/Docs/sc/unsc_resolutions.html> . Acesso em: 30 abr. 2006. _______. Resolução 1203/98. Nova York, NY, 24 out. 1998. Disponível em: <http://www.un.org/Docs/sc/unsc_resolutions.html> . Acesso em: 30 abr. 2006. _______. Resolução 1244/99. 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