Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais ISSN 2177-6687 A FILOSOFIA DE SÓCRATES ENQUANTO AÇÃO PEDAGÓGICA BORDIN, Reginaldo Aliçandro (PPE/UEM/PUC-PR) PEREIRA MELO, José Joaquim (DFE/PPE/UEM) Sócrates (470-399 a. C.), imortalizado pelos diálogos de Platão (427-347 a. C.), nos quais ocupou papel central, é personagem frequentemente requisitada por estudiosos do mundo antigo, embora, segundo consta, não tenha deixando sua herança filosófica escrita. Entre os motivos que o levam a ser revisitado e pesquisado, além da suspeição que tinha pela escritura, se deve ao tipo de atividade filosófica que desempenhou e, nela, a preocupação com a educação do homem, com vistas à felicidade. Diferente dos filósofos da natureza, Sócrates estava empenhado em pôr o homem no centro de suas cogitações filosóficas e discutir, em um momento no qual Atenas gozava seu apogeu econômico, político e cultural, os meios que o habilitavam a viver bem na cidade. A ele interessava discutir mais os fins da vida humana do que os princípios, as causas, do mundo físico. Essa mudança de perspectiva do objeto filosófico põe Sócrates como um dos primeiros a interessar-se por um tipo de sabedoria ou de conhecimento que se ocupava, sobretudo, em ponderar os limites éticos da ação humana. Apesar dos Sofistas terem sido desbravadores nesse campo de investigação, foi Sócrates quem estabeleceu matizes de uma existência pautada por virtudes universais, tais como a felicidade e a justiça, que seriam sistematizadas especialmente por Platão, e se tornariam referência importante para os estudos da filosofia e da educação. A atitude assumida por Sócrates coloca-o em uma posição privilegiada para filósofos e historiadores da educação que buscam referências para compreender os fundamentos e processos educativos e suas modificações. Isso se deve ao fato de que, como indica A defesa de Sócrates, de Platão, Sócrates se definia como um homem cuja ocupação era a de “[...] dirigir exortações, de ministrar ensinamentos em toda ocasião [....] e a andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão ferrenhamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível da alma” (PLATÃO, 1987, 29d;30a). Em um momento em que ocorriam profundas transformações sociais, como se 1 Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais ISSN 2177-6687 verá a seguir, Sócrates se mostrava preocupado com os valores educativos que viriam formar os gregos e, por isso, repensou a tarefa da filosofia. A Atenas no tempo de Sócrates Sócrates surgiu em um momento singular de Atenas. A maior parte de sua vida correspondia ao que ficou conhecido como o “Século de Ouro”, período de vitalidade econômica, política, cultural e de expansão ateniense. Contribuía para essa situação privilegiada a vitória de Atenas sobre os persas, nas chamadas guerras médicas, em Salamina (480 a. C.) e em Micala (479 a.C.). O triunfo ateniense seria significativo porque representava, ao menos provisoriamente, seu predomínio militar e hegemonia econômica no Mediterrâneo, situação que Atenas procurou garantir ocupando o Egeu e fazendo uma aliança, não sem resistência, entre as cidades aliadas, chamada de Confederação de Delos, em 477 a. C. Além dessa condição privilegiada, que duraria até 404 a.C, quando perderia, diante de Esparta, a Guerra do Peloponeso, Atenas consolidaria um regime político iniciado um século antes, em 508-507 a.C, por Clístenes 1. O florescimento da democracia implicava na luta contra a tradição aristocrática homérica e o estabelecimento de uma conjuntura política que colocava o cidadão no centro da vida pública, na ágora. Nessa época, os direitos políticos de uma aristocracia guerreira, fundada numa ordem social hereditária, como a que caracterizava o mundo homérico, são modificados. A antiga tradição, sustentada pelos privilégios hereditários e religiosos, cedeu espaço às decisões tomadas na ambiência pública, que se transformaria no novo corolário da vida social, das relações entre os homens e da atividade filosófica. O que se estabelece, em função dos conflitos sociais que levam à decomposição da nobreza aristocrática e a emergência de outros setores econômicos e sociais, é inteiramente novo em sua estrutura. Ocorre um deslocamento das decisões políticas privadas e gentílicas para a polis, que se abria à participação do homem comum. Segundo Jean-Pierre Vernant, as reformas de Clístenes situam-se no plano das instituições sociais, que fixam o quadro no qual se desenvolveu a vida política de Atenas clássica. Inicialmente, a cidade se tornou a referência do cidadão. O centro da 1 Filho de Megácles e membro da família dos Alcmeônidas, foi um político ateniense que governou entre os anos de 525 a 505 a. C. 2 Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais ISSN 2177-6687 cidade, a ágora, é um espaço público, homogêneo e de igualdade, não mais de diferenciação e de hierarquia, como a genos. Em função desse deslocamento do “lugar” político, situava-se um aspecto importante: o princípio da isonomia. Por ele, o cidadão passava a ter igual participação no exercício do poder e a cidade, por sua vez, resolveria seus problemas graças ao funcionamento de suas instituições, de acordo com o respeito de seu próprio nómos (VERNANT, 1990, p. 286-287). Clístenes havia colocado o homem como um cidadão dedicado à vida pública, na qual poderia deliberar sobre as condutas e valores que os orientariam. No entanto, a aparente igualdade pretendida por Clístenes não eliminava necessariamente as contradições de uma cidade-Estado que tentava harmonizar e integrar politicamente grupos sociais distintos, como a aristocracia, os comerciantes e os artesãos. Os conflitos que ocorreram no “Século de Ouro” podem indicar, assim, uma situação adversa: o pretenso equilíbrio político não persistiria porque o mais importante conflito ─ que duraria aproximadamente 30 anos, entre as ligas de Esparta e Atenas, iniciada em 431 a.C. ─ desestabilizaria a vida ateniense, encerrando um ciclo importante de Atenas, já que ela saiu derrotada. As consequências foram desastrosas, porque resultaram na destruição de vidas e propriedades, hostilidade e na rivalidade entre Estados, além da disseminação da violência, o que provocou um colapso dos hábitos, instituições, crenças e limites morais, que eram os fundamentos do que se entendia como vida civilizada (KAGAN, 2006, p. 22). Em face das bruscas transformações sociais de Atenas, que a conduziam à ruína, os filósofos, a exemplo dos Sofistas, são chamados a dar respostas às alterações que se apresentavam e sobre as práticas políticas boas e justas. Considerados como mestres da palavra, os Sofistas surgiram ao mesmo tempo em que a democracia era estabelecida em Atenas. Ao contrário dos pré-socráticos, os primeiros a romperem a tradição mítica, seus principais objetos de análise eram os problemas morais e políticos. Na esteira da crise do modelo aristocrático, do desenvolvimento da democracia e da valorização da palavra como instrumento de poder, os Sofistas se destacaram pelo tipo de atividade filosófica que desempenhavam: ao colocar em dúvida os valores antigos, eles defenderam o pressuposto de que as exigências do saber, do conhecimento e do exercício político, não dependiam da arete, mas poderiam estar ao alcance do homem comum. 3 Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais ISSN 2177-6687 A prática política, nesse caso, não requisitaria virtudes inerentes de quem conduziria a administração da cidade, mas de conhecimentos objetivos que habilitariam a participação do homem na definição das leis que ordenariam a polis. Sendo assim, tornava-se imperioso ao homem de Estado recorrer aos instrumentos que conferissem aptidões para a participação política, nesse caso, a faculdade da oratória e do convencimento. No momento em que a vida democrática, as assembleias públicas e a liberdade da palavra tornavam indispensável o uso de qualidades discursivas, os Sofistas eram aqueles que dispunham dos meios, mediante pagamento, para ensinar tais ferramentas. Era a eles que acorriam os que ambicionavam formar-se para a política, já que ela havia se transformado em uma técnica, uma prática (JAEGER, 1995, p. 340). Por ter um caráter prático e útil, os conhecimentos oferecidos pelos Sofistas procuravam atender as necessidades que a nova realidade política requisitava. Sob essa perspectiva, podemos considerar que eles tiveram relativo êxito, já que foram acusados de enriquecerem, como denunciou Platão, no Mênon2. Em virtude dessa atitude dos Sofistas, Sócrates e Platão entenderam que eles não poderiam realizar os ideais de uma cidade justa porque a prática de cobrar associada ao relativismo ético, especialmente de Protágoras (481-411 a. C.), não deveria ser o princípio pedagógico da educação dos gregos e, consequentemente, o fundamento político do Estado. Essa constatação também resultava da compreensão de que os Sofistas haviam reduzido a retórica a um instrumento, uma arte de “conduzir as almas por meio da palavra, e isso não apenas nos tribunais e em outras reuniões públicas, como também nos ajuntamentos particulares” (PLATÃO, 2011, 261a). À atividade utilitária e lucrativa praticada pelos Sofistas, Sócrates procurou outros referenciais para contrapor às exigências de seu tempo. Ao compreender o homem como portador de uma anima, uma essência, Sócrates introduziu na filosofia um aspecto inovador e original: ele possivelmente elaborou o conceito de alma, algo que se define como a sede da inteligência e do caráter moral e que era preciso torná-la o melhor possível. A alma, enquanto personalidade consciente pode ser, segundo A. F. Taylor, sábia ou enganadora, virtuosa ou viciosa, dependendo da disciplina que recebe, por isso, precisaria de cuidados (TAYLOR, 2004). 2 “E abertamente pretendem fazer dinheiro em troca disso? Eu decididamente não consigo acreditar em ti. Pois sei de um único homem, Protágoras que adquiriu mais dinheiro com sua sabedoria do que Fídias, que tão brilhantemente produziu obras-primas, e mais outros dez escultores” (PLATÃO, 2001, 91d). 4 Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais ISSN 2177-6687 Assim, em função das controvérsias de seu momento, Sócrates elaborou uma filosofia que acreditava oferecer as respostas que precisava e, em função dessa mesma filosofia, definiria novo papel pedagógico para o filósofo, que não se situava no campo de investigação dos Jônios e dos Sofistas, mas da ciência humana que buscava os meios para tornar a vida feliz e harmoniosa. A tarefa pedagógica da filosofia, segundo Sócrates São conhecidos alguns fatos sobre a vida de Sócrates e o fim que obteve em um tribunal, quando foi condenado e morto, em 399 a.C., ao ingerir cicuta. Por meio de Platão, especialmente, conhecemos os relatos de seu julgamento, os acusadores, os motivos, a sua defesa e a missão que acreditava seguir: interrogado sobre qual seria a sua tarefa, Sócrates afirmou estar em uma missão divina, a fim de investigar quem eram os verdadeiros sábios (PLATÃO, 1987, 20e; 21a.ss). A princípio, não considerava sábios aqueles que se ocupavam dos fenômenos celestes e os que se dedicavam a fazer prevalecer a razão mais fraca, isto é, os retóricos (PLATÃO, 1987, 23d). Se Sócrates não estava convencido de que nem um e nem outro pudessem alcançar a verdadeira sabedoria é porque entendia que a filosofia deveria se ocupar de outra realidade, a humana, para torná-la feliz. Em linhas gerais, a ele é atribuído o mérito de ser desbravador de um tipo de filosofia que não se vinculava às especulações da physis, que até então os pré-socráticos desempenharam. A filosofia socrática foi construída em oposição aos pré-socráticos, naturalistas que se dedicaram a compreender as causas físicas ou materiais. Xenofonte, em suas Memoráveis, assinala que o interesse especulativo de Sócrates distanciava-se “das leis que presidem a cada um dos fenômenos celestes” para centrar-se no estudo dos “assuntos humanos” (XENOFONTE, 2010, I, 12). Essa posição negativa de Sócrates em relação aos físicos parece resultar do entendimento de que não era possível encontrar resposta para tais questões, já que “o mais conceituado desses pensadores discute estas teorias sem conseguir harmonizá-las e comportam-se uns com os outros como se fossem loucos” (XENOFONTE, 2010, I, 13-14). Segundo Conford, Sócrates rejeitou a especulação sobre a natureza por dois motivos: a considerou dogmática e inútil. Ao julgar a filosofia da natureza como 5 Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais ISSN 2177-6687 dogmática, Sócrates se posicionou contra as certezas e a segurança que os jônios afirmavam ter sobre a origem do mundo, pois pareciam tê-la testemunhado. Não era possível, para Sócrates, obter conhecimentos seguros de realidades que não poderiam ser adequadamente examinadas, como, por exemplo, a origem das coisas. A segunda objeção, a de que era inútil, Conford compreende que Sócrates se referiu à inutilidade de conhecer aquilo que não fosse a principal e verdadeira preocupação humana: o conhecimento de si mesmo e os modos corretos de viver. Nessa perspectiva, o conhecimento dos fins da vida humana era mais importante do que sua origem e, nesse caso, compreender os meios pelos quais fosse possível obter uma vida feliz aqui e agora se tornaria o objeto primeiro do ato filosófico (CONFORD, 2005, p.28). Para Werner Jaeger, na Paideia, a crítica aos filósofos da natureza demonstrava que a visão de Sócrates incidia sobre o problema ético e religioso e não sobre a filosofia da natureza, já que essa não poderia responder o problema que Sócrates se propunha fazer (JAEGER, 1995, p.517-518). Sócrates, portanto, mudou o direcionamento filosófico que até então era dominante: o exercício reflexivo não deveria ser orientado para os fenômenos celestes, mas tão somente para a condição humana, para os atos que tornariam o homem feliz. Sua filosofia constituía, “grosso modo”, uma antropologia, porque passava a interrogar a natureza do homem. Instituía, tal como afirmou Platão, uma “ciência humana” cujo objetivo principal era “melhorar o mais possível a alma” (PLATÃO, 1987, 20d;30a). Nesse sentido, a filosofia professada por Sócrates se caracteriza como aquela que definiu como escopo o conhecimento de si mesmo e não dos outros (PLATÃO, 1987, 38a). Sócrates abria uma perspectiva nova para a filosofia porque direcionava a ação investigativa para aquilo que definia o homem: sua alma. Por isso, o homem deve adotar uma atitude racional de interrogar a própria natureza e conhecer as virtudes, a fim de praticá-las sabiamente. Ao se entregar à investigação de um saber que se pretendia universal, Sócrates não só revelou ao homem o recurso à interioridade como também o treinou para usá-la (MAGALHÃES-VILHENA, 1984, p. 89). A vida reflexiva, a única que em seu julgamento mereceria ser vivida, indicava que ele se propôs a examinar-se e a corrigir-se, esses dois procedimentos constituíam a verdadeira sabedoria. O saber, que era possibilitado por uma existência dedicada à reflexão, trazia consigo a necessidade da ação moral que se sustentava pelo 6 Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais ISSN 2177-6687 conhecimento da essência humana e não da arché da qual os jônios haviam se ocupado em compreender. Ao professar, em sua defesa no tribunal, que nada sabia, Sócrates parece ter invertido a perspectiva filosófica até então reinante: nada sabia dos conhecimentos a respeito das causas e princípios da physis e alegava nada saber sobre o movimento sofístico, a que também se opunha, sobretudo devido à prática usual dos sofistas em cobrar pelo ensino que ofereciam. O fato da cobrança realizada pelos Sofistas não constituía, por si só, o motivo da crítica desempenhada por Sócrates e seu mais famoso discípulo, Platão. A censura não era apenas circunscrita aos ganhos econômicos, mas tinha outras motivações, entre as quais a de que a virtude não poderia ser ensinada mediante pagamento e a tarefa filosófica seria considerada missão sagrada. No que diz respeito à primeira objeção, Sócrates, descrito por Platão, no Mênon, partiu do pressuposto de que a virtude é um bem e, por não ser uma ciência, não é “coisa” que se ensina, uma vez que não haveria mestres capazes de fazê-lo (PLATÃO, 2001, 98d-e). Acerca da segunda, Sócrates, se referia à sua missão como um serviço divino. Ao examinar os que afirmavam tudo saber, ele declarava fazê-lo “por uma determinação divina, vinda não só do oráculo, mas também de sonhos e todas as vias pelas quais o homem recebe ordens dos deuses” (PLATÃO, 1987, 33c). Dessa maneira, a sabedoria que Sócrates assumia não se atinha ao universo econômico, mas ontológico e ético, já que considerava a filosofia um dever moral. Ao admitir estar privado de lazer e viver na pobreza extrema em função de sua investigação (PLATÃO, 1987, 23b-c), o filósofo transformou a reflexão filosófica em uma missão existencial, uma atividade voltada para a investigação dos problemas humanos, isto é, para a interioridade, como podemos deduzir da máxima atribuída a ele: “conheça-te a ti mesmo”. Empenhado em responder as afirmações de Pítia, Sócrates não encontrava nos políticos, poetas e artesãos, o modelo de sábio, mas nele mesmo, embora declarasse não ser portador do saber. Essa constatação, ou seja, o reconhecimento dos limites do próprio conhecimento, parece indicar um dos aspectos mais significativos de sua filosofia: a de ser mais sábio justamente porque reconhecia a sua ignorância. Segundo Miguel Spinelli, Sócrates percebeu que aquele que não identificava a própria ignorância incorria em duas possibilidades: ser muito sábio ou, então, ser muito ignorante (SPINELLI, 2006, p.70). 7 Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais ISSN 2177-6687 Dessa maneira, Sócrates propõe um novo exercício filosófico, cuja finalidade era fazer o homem repensar, a partir de sua alma ou consciência, aquilo que considerasse virtuoso e possibilitasse uma vida feliz. Se a ignorância, em particular a de si mesmo, era um obstáculo para a materialização desse objetivo, tratava-se, então, de conhecer-se para corrigir-se. A vida boa e a felicidade decorriam da capacidade que o homem tinha de examinar, por meio da razão, os princípios que orientariam a prática de vida, especialmente na ambiência política. Sócrates, na sua atividade educadora, além do ethos, exigia a clareza teórica e a competência para desempenhar as funções, sejam elas quais fossem. Mais até, com os amigos mais chegados, a sua atitude era esta: no que de facto já estava destinado, aconselhava-os a agir do modo que acreditassem ser o melhor; agora, tratando-se de coisas cujo resultado fosse incerto, enviava-os a consultar os oráculos para saberem de que modo agir. E dizia ele que os que pretendiam gerir correctamente casas e cidades necessitavam de adivinhação, porque todos esses saberes, o de ser carpinteiro, ferreiro, agricultor, governante de homens, perito nestes ofícios, contabilista, administrador, estratego, podiam - pensava ele - ser adquiridos pela inteligência humana (XENOFONTE, 2010, I, 6-7). Para ele, o homem comprometido com a arte investigativa não deveria se abster de pensar em proveito dos serviços públicos. Apesar de realizar críticas às leis e instituições que lhes pareciam contrárias ao bem do Estado, também expressava respeito a outros regulamentos da cidade, como aqueles que o fizeram desistir da fuga, antes de sua execução. Além disso, Sócrates mostrava-se convencido da necessidade do adequado preparo dos magistrados, apelando aos políticos para que considerassem sua missão comparável à do médico ou à de qualquer outro especialista (MONDOLFO, 1972, p.32-33). Em face das crises de seu momento histórico, é provável que tivesse compreendido que as competências dos naturalistas e as discussões retóricas dos que considerava ambulantes do saber, não respondiam as exigências das tensões de Atenas à mercê de sua rival, Esparta. Para Guillermo Fraile, Sócrates havia refletido sobre a ruína de Atenas e avaliado que físicos e retóricos haviam minado, com seu ceticismo e cosmopolitismo, a fé na religião tradicional e também o respeito às leis e às instituições da cidade. Seu esforço era para despertar nas ruas e nas praças a consciência dos 8 Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais ISSN 2177-6687 atenienses, a fim de que voltassem sua atenção aos problemas urgentes da cidade com o objetivo de salvá-la (FRAILE, 1982, p.240). Para isso, era fundamental que os filósofos assumissem uma nova conduta que rompia com o que estava estabelecido: a ciência filosófica, como já referido, devia se voltar para o conhecimento da natureza humana e para o seu cuidado, de tal modo que, ao salvar o homem, socorreria também a cidade. Conhecimento e cuidado expressam, assim, o núcleo do pensamento socrático, o corolário pelo qual a natureza da sua filosofia e, por extensão do filósofo, é definida. O apelo socrático ao cuidado da alma para torná-la ótima resultava no estabelecimento de um novo ideal de filósofo e de filosofia: ele era aquele a quem, se dermos razão aos testemunhos de Xenofonte, importava examinar tudo o que constituía o agir correto, isto é, tudo o que diz respeito ao homem, como as noções de beleza e vergonha, justiça e injustiça, bem como as questões relativas ao governo e aos governantes (XENOFONTE, 2010, I, 16). À filosofia, Sócrates deu uma finalidade não meramente pragmática, mas teórica. Ele a praticou como a ciência do discernimento, isto é, uma ciência na qual as verdades estão submissas à soberania da razão e que, por isso, pode regular o bem viver. Essa é a tarefa a que Sócrates se impôs em relação a polis porque, ao dar crédito à existência de deuses e à medida em que propôs o autoconhecimento, buscou, não fora, mas dentro de si mesmo os referenciais do destino humano (SPINELLI, 2006). Dessa maneira, a atuação de Sócrates, na vida pública ou no tribunal diante de seus acusadores, levava-o a construir um tipo de filosofia que, por meio da habilidade argumentativa e especulativa, colocava em relevo o conhecimento de si mesmo como condição primeira do agir bem. Para agir corretamente, era preciso, em primeiro lugar, desejar saber o que é o bem. Ninguém procura o mal, mas poderá fazê-lo, se ignora o que é o bem. Assim, a autêntica ação humana deve ser iluminada pela filosofia, já que a razão é um fator crítico que possibilita o discernimento e favorece a escolha dos bens que nos levam ao encontro da felicidade (BARROS, 2000). Sua filosofia levou à descoberta da essência do homem e, sobretudo, dos meios necessários para educá-lo, a fim de que fosse bom e justo. Enquanto ciência do homem, a filosofia era uma teoria que se destinava, principalmente, a compreender os princípios que tornariam o homem virtuoso, o que faz dela um autêntico pensar sobre a educação. Por ela, Sócrates pôde determinar qual seria a finalidade do homem e de como ele 9 Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais ISSN 2177-6687 cumpriria seu ideal de vida: ao escrutinar a si mesmo e aos outros, considerou que a vida “sem exame não é digna de um ser humano” (PLATÃO, 1987, 38a), pois o homem se distingue dos demais pela capacidade de interrogar a própria natureza e buscar, por meio de uma ação pedagógica, a excelência moral. Sócrates, enfim, em um momento no qual ocorria o desmantelamento da ordem social e política de Atenas, compreendeu que era preciso repensar os fundamentos da ação humana. Os remédios, antes de serem aplicados à cidade, deveriam, primeiro, ser receitados ao homem. Essa constitui a natureza do filósofo e da filosofia, porque coube a eles, mediante o uso da razão, procurar discernir os princípios que orientariam a vida, em nome de uma felicidade comum. Ao fazê-lo, Sócrates patenteava uma filosofia que estava preocupada em garantir os meios para salvar o homem, educando-o. REFERÊNCIAS BARROS, Gilda. N. M. Sócrates - Raízes Gnosiológicas do Problema do Ensino. São Paulo: Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, março de 2000. http://www.hottopos.com.br/rih3/gildsocr.htm. Data de acesso, 10/06/2012. CONFORD, F.M. Antes e depois de Sócrates. São Paulo: Martins Fontes, 2005. FRAILE, G. Historia de la filosofia: Grecia y Roma. Madrid: B.A.C, 1982, Vol. I. JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. 3. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. KAGAN, D. A Guerra do Peloponeso: novas perspectivas sobre o mais trágico confronto da Grécia Antiga. Rio de Janeiro: Record, 2006. MAGALHÃES-VILHENA, Vasco de. O problema de Sócrates: o Sócrates histórico e o Sócrates de Platão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1984. MONDOLFO, R. Sócrates. 3. Ed. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1972. PLATÃO. A defesa de Sócrates. 4.ed. 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