Título: PENSANDO A DIFERENÇA COM DELEUZE : UM PROCESSO EM CONSTRUÇÃO Área Temática: Educação e Filosofia Autora: CLÁUDIA CISIANE BENETTI Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul Introdução Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever (Deleuze, 1988, p. 18). O contato com o texto Diferença e Repetição de DELEUZE causou-me inicialmente certa resistência devido à dificuldade que encontrei de inserir-me no movimento do pensamento que o texto propõe. Seguramente a resistência foi inicial, sendo que logo foi substituída pela curiosidade e pelo desejo de compreendê-lo, compreensão essa que veio a passos lentos e que possui vazios. Nesse sentido, penso esse texto como um processo em construção. Deste contato surgiu a pretensão de traçar alguns aspectos da crítica de DELEUZE à filosofia da representação ou filosofia clássica e por conseqüência, a sua afirmação de uma filosofia que pense a Diferença não subordinada portanto, às determinações da representação. Diante disso, apresento de que forma a psicanálise pôde ser pensada no contexto dessa afirmação e em que situações da educação são possíveis identificar alguns pressupostos da filosofia da representação, inserindo nessa discussão possibilidades de emergência da diferença. Para estabelecermos tal trajeto é necessário que apresentemos inicialmente os elementos da filosofia de PLATÃO e ARISTÓTELES que encaminharam a exclusão de uma filosofia da Diferença, os quais permaneceram na filosofia presa aos domínios da representação, para 2 posteriormente pensar as implicações na psicanálise e na educação da filosofia da diferença de DELEUZE. Platão e Aristóteles sob o olhar de Deleuze DELEUZE propõe que não olhemos o método de divisão de PLATÃO a partir de ARISTÓTELES, pois estaríamos incorrendo num erro considerando que, as preocupações que os orientam são diferentes. Como compreender as intenções de PLATÃO e quais suas contribuições para pensar a Diferença? O que interessa para PLATÃO não é estabelecer a diferença por gêneros e espécies, conforme pensou ARISTÓTELES, mas estabelecer as espécies representativas do que deve ser selecionado e eliminado afim de colocar em evidência a Idéia. DELEUZE ressalta que a intenção de PLATÃO é de estabelecer a diferença pelo método de divisão como forma de eliminar o que pode rivalizar com a Idéia, compreendida como linhagem pura. “O sentido e o objetivo do método da divisão é a seleção dos rivais e a prova dos pretendentes (...)” (DELEUZE, 1988, p. 113). Mas a questão que se coloca é de como PLATÃO irá estabelecer a diferença? De que maneira irá estabelecer o que são os rivais, o que é o verdadeiro e o falso? O mito será a forma utilizada para estabelecer o processo da diferença. Um dos mitos, no Fedro, apresenta a transmigração das almas que explica a participação das mesmas, pela contemplação, no mundo das Idéias, sendo que recordar essa contemplação garante a identificação do verdadeiro e do falso ou seja, identifica quem são os verdadeiros participantes da Idéia. No Político aparece a imagem de um DeusPastor que determina o mundo dos humanos, sendo que o homem político é o que mais se aproxima dessa imagem e a partir disso os outros humanos são avaliados seguindo uma ordem de participação, podendo assim, distinguir aqueles que são rivais do político. O fundamento, na forma das Idéias e do Deus-pastor, é o que estabelece a diferença, selecionando o que participa ou não desse mundo maior. 3 Este fundamento encontra-se determinado no Fedro sob a forma das Idéias, tal como são contempladas pelas almas que circulam acima da abóboda celeste; encontra-se determinada no político sob a forma de Deus-pastor que preside o movimento circular do universo. Centro ou motor do círculo, o fundamento é instituído no mito como o princípio de uma prova ou de uma seleção, que dá todo seu sentido ao método de divisão, fixando os graus de participação eletiva (DELEUZE, 1988, p. 115). A Idéia como fundamento possui o primeiro lugar e os pretendentes que dela participam são os autênticos, os justos, os verdadeiros. A Idéia de Justiça deriva como segundo lugar, os justos por participação e semelhança. É necessário atravessar a prova do fundamento que dará os graus de participação no objeto da pretensão, e a prova se da por semelhança a Idéia. A concepção de fundamento estabelece o processo de subordinação dá diferença à semelhança, pois os graus de participação revelam que há exclusão daqueles que não passam pela prova, passando a ser considerados rivais, falsos pretendentes, simulacros. “A diferença aqui é pensada sob o princípio do Mesmo e sob a condição da semelhança” (DELEUZE, 1988, p. 430). Aquelas imagens que não passam pela prova da semelhança com a Idéia são considerados por PLATÃO como simulacros, cópias sem semelhança, portanto falsas. Ou seja, o simulacro é a imagem que não tem semelhança com o modelo Idéia. Por outro, as cópias se tornam boas cópias na medida que se assemelham a Idéia modelo. PLATÃO exclui assim , segundo DELEUZE, as possibilidades da Diferença submetendo-a ao fundamento que se tornará o caminho para a subordinação da diferença à representação. Aquilo que não possui semelhança com o mundo das Idéias será considerado como negativo, maldição que deve ser excluída. Através dos mitos, se estabelece o fundamento Idéia como mediação da diferença excluindo as cópias sem semelhança com o fundamento e os simulacros, portanto a Diferença. O caminho aberto pela perspectiva platônica, será retomado sob os pressupostos da filosofia da representação. Todo o platonismo, ao contrário, é dominado pela idéia de uma distinção a ser feita entre a “coisa mesma” e os simulacros. Em vez de pensar a diferença em si mesma, ele já a relaciona com um fundamento, subordina-a ao mesmo e introduz a mediação sob uma forma mítica (DELEUZE,1988, p. 121). 4 Diferentemente de PLATÃO, DELEUZE vê nos simulacros a potência da Diferença. A maldição atribuída aos simulacros por PLATÃO possuem em DELEUZE o espaço de privilégio. Reverter o platonismo significa dar voz aos simulacros, voz da Diferença. O simulacro é a instância que compreende uma diferença em si, como duas séries divergentes (pelo menos) sobre as quais ele atua, toda a semelhança tendo sido abolida, sem que se possa, por conseguinte, indicar a existência de um original e de uma cópia (DELEUZE, 1988, p. 124). Apresenta-se aqui um ponto do texto Diferença e Repetição que distingue o pensamento da filosofia clássica de PLATÃO da filosofia de DELEUZE. Enquanto que na primeira o simulacro possui o espaço do negativo, na segunda possui o estatuto de uma potência positiva, capaz de colocar em cheque as categorias de modelo e cópia. Resta-nos perguntar como compreende ARISTÓTELES a diferença? Para DELEUZE, ARISTÓTELES enquadra a diferença na categoria de maioridade e perfeição. Afim de que prevaleça a maior e mais perfeita diferença deve-se estabelecer um critério de distinção e o critério adotado será a oposição “ a maior diferença é sempre a oposição” (DELEUZE,1988, p. 66). No entanto, entre as formas de oposição deverá se estabelecer a mais perfeita e, a que apresenta a possibilidade de estabelecer esse critério é a contrariedade, pois não modifica o sujeito na atribuição de opostos. Mas a contrariedade, que possui a capacidade de enquadrar a diferença, é a contrariedade na essência ou forma, que proporciona um conceito de diferença essencial, pois “na essência, com efeito, é próprio do gênero ser dividido em diferenças, tais como, “pedestre” e “alado”, que se coordenam como contrárias. Numa palavra, a diferença perfeita e máxima é a contrariedade no gênero, e a contrariedade no gênero é a diferença específica” (DELEUZE,1988, p. 67). A diferença só é a maior quando se estabelece por elementos contrários em gênero pois é através dessa oposição que se forma o conceito. Que lugar estabelece ARISTÓTELES à diferença? Ao delimitar a diferença específica ARISTÓTELES estabelece assim o que é essencial para um conceito ou representação e coloca a diferença sob os domínios da representação. 5 Parece que a diferença específica responde a todas as exigências de um conceito harmonioso ou de uma representação orgânica. Ela é pura, porque formal; intrínseca pois opera na essência. Ela é qualitativa; e, na medida em que o gênero designa a essência, a diferença é mesmo uma qualidade muito especial, “ segundo a essência”, qualidade da própria essência. Ela é sintética, pois a especificação é uma composição, e a diferença se acrescenta atualmente ao gênero que só a contém em potência. Ela é mediatizada, ela própria é mediação, meio termo em pessoa (DELEUZE, 1988, p. 67). Segundo DELEUZE, temos a diferença subordinada à identidade do conceito ou representação quando ARISTÓTELES delimita que ao identificar-se com o conceito a diferença é tida como maior. A concepção aristotélica apresenta uma confusão entre o que seria o conceito de diferença e diferença conceitual. Ao estabelecer que o conceito de diferença se dá através da identificação da diferença com o a forma conceitual que por sua vez é delimitada nas relações de gênero, sendo esse o princípio especificador da “diferença maior”, coloca-se a diferença como que atravessada pelas delimitações das oposições de gênero. Essa oposição, expressa pela contrariedade, torna-se princípio e portanto, controle do que pode ser considerado diferença, tendo alcançado tal estatuto a diferença conceitual, formal. Não temos assim, a diferença específica que represente universalmente as singularidades mas, a inscrição da diferença num conceito em geral (diferença conceitual), totalmente subordinada ao conceito. Cito DELEUZE, “aí está o princípio de uma confusão danosa para toda a filosofia da diferença: confunde-se o estabelecimento de um conceito próprio da diferença com a inscrição da diferença no conceito em geral – confunde-se a determinação do conceito de diferença com a inscrição da diferença na identidade de um conceito indeterminado” (DELEUZE,1988, p. 69). Vimos no quadro histórico anteriormente apresentado, alguns encaminhamentos da subordinação da diferença à representação, sendo este o principal aspecto sob o qual incidem as críticas da filosofia de DELEUZE. PLATÃO teria proporcionado o nascimento da representação quando atribuiu a Idéia o papel de modelo, fundamento do qual derivariam as boas cópias, sendo os simulacros tidos como a maldição, a negatividade, por não possuir identificação com a Idéia modelo. Assim a diferença possui o espaço do negativo, só serve aquilo que identifica-se com a Idéia. ARISTÓTELES, por sua 6 vez, enquadra a diferença no conceito geral, tornando-a portanto subordinada aos aspectos de mediação através da representação. Esses aspectos apresentados são a mostra do início da subordinação da diferença à representação, entendendo-a como negativa e preparando, assim, o caminho que irá determinar o estilo de compreensão da filosofia, que mesmo apresentando a evolução do pensamento manteve-se presa aos domínios da representação. Domínio esse expresso pela subordinação aos aspectos que comportam-na, que são: a identidade do conceito, analogia, oposição, semelhança, sendo que através destes realizam-se a mediação. Cito DELEUZE, “diz-se que a diferença é “mediatizada” na medida em que se chega a submetê-la à quadrupla raiz da identidade e da oposição, da analogia e semelhança. A partir de uma primeira impressão (a diferença é o mal), propõe-se “salvar” a diferença representando-a e, para representá-la, relacioná-la às exigências do conceito em geral” (DELEUZE, 1988, p. 65). Assim, PLATÃO delega à diferença o estatuto da maldição, e ARISTÓTELES tenta salvá-la e para isso acomoda-a na camisa de força da representação. Podemos dizer que ambos são pensadores da ordem. No contexto de suas teorias não há espaço para comportar o diverso, o anárquico a indeterminação. Àqueles que fugiam aos pressupostos ordenadores do fundamento ou da representação eram tidos como pseudofilósofos. Como exemplo, podemos pensar os sofistas que eram compreendidos como os que não trabalhavam com a verdade do discurso mas com a aparência, com a opinião e portanto, deviam ser denunciados como falsos filósofos, apresentadores não de filosofia mas de simulacro. As críticas de DELEUZE continuam no decorrer do texto apontando outros filósofos que permaneceram sob os aspectos da filosofia tradicional (representação) e tenta apontar alguns que levantaram a diferença fora desses domínios. Roberto Machado expressa a contento a “geografia “ de DELEUZE na relação com os filósofos. Sua geografia do pensamento agrupa os filósofos em espaços antagônicos tomando como critério geral a problemática da representação e da diferença. Para ele, existem filósofos que de modo geral estão excluídos do espaço em que pretende situar seu pensamento. É o caso de PLATÃO , ARISTÓTELES, DESCARTES, LEIBNIZ, KANT, HEGEL, os grandes representantes da imagem tradicional da filosofia como filosofia da representação. E existem filósofos ao lado de quem ele pensa: fundamentalmente 7 NIETZSCHE, mas também os estóicos, LUCRÉCIO, ESPINOSA, HUME, BERGSON, FOUCAULT [...] o estilo filosófico deleuzeano consiste em lhe encontrar aliados em graus diferentes, estabelecendo conexões entre conceitos de filósofos que merecem figurar no espaço de uma filosofia da diferença” (MACHADO, 1990, p. 20-21). Diferentemente da filosofia tradicional que excluiu a diferença, doma-a nos aspectos da representação conforme analisamos em PLATÃO e ARISTÓTELES, DELEUZE exalta o intempestivo, a diferença que se expressa nos simulacros. Retira-lhe o rótulo de maldita e coloca-a no estatuto da produção e da criação, do fundo que vêm à tona e dissolve a forma já estabelecida a priori. Nesse sentido, apresentaremos a relação entre repetição e diferença a fim de traçar os aspectos da psicanálise considerados pela filosofia de DELEUZE como expressão de diferença. A intensa relação : repetição, psicanálise e diferença DELEUZE, ao buscar a compreensão da repetição que não se explica somente pela identidade do conceito, apresenta a causalidade como um processo que está por traz da simetria e do equilíbrio escondendo o dissimétrico e o instável como produtor da repetição, “a repetição de dissimetria oculta-se nos conjuntos ou efeitos simétricos” (DELEUZE,1988, p. 56). Podemos dividir duas formas de repetição, porém não excludentes, pois uma comporta a outra de maneira disfarçada. Uma diz respeito a repetiçãoritmo que é causa atuante, e a outra é repetição-medida sendo esta um efeito abstrato da causa atuante, “ as duas repetições não são independentes. Uma é o sujeito singular, o âmago, a interioridade, a profundidade da outra. A outra é somente o envoltório exterior, o efeito abstrato” (DELEUZE, 1988, p. 56). A repetição compreendida como efeito abstrato refere-se a repetição do mesmo, é estática e comporta os aspectos do conceito trazendo uma diferença apenas externa. Por outro lado, a repetição entendida como causa atuante revela-se como espaço de alteridade, da diferença, de produção do novo – é dinâmica trazendo uma diferença interna. A repetição do mesmo só acontece por que comporta a repetição da diferença de maneira disfarçada, “uma repetição material e nua (como 8 repetição do Mesmo) só aparece no sentido em que uma outra repetição nela se disfarça, constituindo-a e constituindo a si própria ao se disfarçar” (DELEUZE, 1988, p. 52). Na repetição nua a diferença ocorre entre os objetos que são representados no conceito enquanto que, na repetição travestida a diferença é interior à Idéia e desenvolve-se num movimento criador. O processo da repetição aponta a diferença, o fundo obscuro que aparece na superfície. A psicanálise é apontada como uma das possibilidades de produção de diferença através da repetição travestida. De que forma podemos compreender esse propósito? É através do conceito de instinto (pulsão) de morte que DELEUZE mostra a relação da repetição com a diferença no sentido de a mesmo exige um princípio positivo. Num contexto normal compreendemos a repetição como aquilo que, por insuficiência da memória, recognição, rememoração, consciência de si, não lembramos, não compreendemos ou não temos consciência. Nesse sentido, a repetição é apontada como deficiência e compreende uma explicação negativa. Para DELEUZE a psicanálise, ao contrário, aponta a repetição como devir do positivo. FREUD não tomou como determinado o esquema de que se repete por que se recalca no sentido negativo, onde o esquecimento explicaria o processo de repetição. Mas o que levou FREUD a sair do esquema de compreensão da repetição como deficiência? Para que se compreenda mais claramente o processo de repetição em FREUD é importante desenvolver minimamente acerca da inserção do instinto de morte na psicanálise. Em 1920, FREUD escreve Além do princípio de prazer, considerado como o momento de virada na teoria freudiana das pulsões. FREUD observa que há algo que vai além do princípio do prazer apresentado-se fora do espaço regulado por esse princípio, e que coloca em destaque a energia pulsional que não passou pelo processo de inscrição, “ uma forma de ordenação psíquica que ultrapassa o registro da representação [...] isto, é teríamos um conjunto de marcas que não estariam se movimentando num espaço de circulação de resultados” (JOEL BIRMAN,1991, p. 230). Podemos dizer que é devido a essa não representabilidade do instinto de morte que DELEUZE 9 apresenta a psicanálise como um espaço que foge dos aspectos das teorias da representação. De que forma então, se fazem presentes essas marcas do psiquismo humano? Através da compulsão a repetição que indica a presença de algo que não foi inscrito, mas que causa efeito no sujeito. Para DELEUZE o instinto de morte é compreendido não como elemento de destruição, mas vinculado diretamente aos fenômenos de repetição. A repetição se dá na relação do instinto de morte com os disfarces. Mas nessa relação os disfarces expressos nos sonhos, sintomas e outros escondem a repetição do mesmo? Segundo DELEUZE o processo se dá ao contrário, pois esses elementos que se repetem na forma de disfarces são internos a própria repetição e a constituem. Portanto, a repetição já é disfarce e vice-versa, onde “ os disfarces e as variantes, as máscaras ou os travestis não vêm “por cima”, mas são, ao contrário, os elementos genéticos internos da própria repetição, suas partes integrantes e constituintes” (DELEUZE,1988, p. 45). A diferença no entanto, apresenta-se na repetição disfarçada por que o instinto de morte é potência do fantasma que não podemos determinar, representar de antemão, pois está na ordem do imprevisível. A diferença institui-se nesse movimento entre disfarce e repetição sendo nesse espaço que desenrolam-se variantes e possibilidades. O instinto de morte só pode ser entendido como máscara, disfarce, e esse é o estatuto atribuído à diferença pela psicanálise, “as variantes exprimem antes de tudo mecanismos diferencias que são da essência e da gênese do que se repete” (DELEUZE, 1988, p. 46). DELEUZE ao analisar o ritual obsessivo, diz que neste, aparentemente, o que se repete é sempre o mesmo mas, essa repetição encobre uma repetição que nutre o instinto de morte e possibilita vir à tona outra dimensão que encerra a diferença. O instinto de morte entendido como potência, pura força se mostra como uma recusa da permanência no mesmo e, nesse sentido, a compulsão e a repetição ocorrem como tentativa de produzir o novo contrariamente a Eros, que tende a unir na representação. Garcia Roza expressa a relação instinto de morte e diferença, “enquanto Eros tende á unificação, à indiferenciação, a pulsão de morte é produtora dos diferentes. A pulsão de morte é anti - natural (como diz LACAN) e 10 anti-cultural (segundo FREUD) não no sentido dela ter como alvo a destruição da cultura e da natureza mas no sentido de colocar em causa tanto uma como a outra, de recusar a permanência do “mesmo” , de provocar na natureza e cultura a emergência de novas formas”(GARCIA ROZA, 1990, p. 134). A possibilidade da emergência de novas formas através do instinto de morte é o que garante à psicanálise o espaço para pensar as singularidades do sujeito. Repetir remete-nos ao limite de nossa “doença”. De que forma a repetição pode ser entendida como espaço de emergência do novo? FREUD criou o processo de transferência como o espaço da repetição pelo sujeito, comportando a transferência que, segundo DELEUZE, tem a função “de autenticar papéis, selecionar máscaras”. O conceito na conjunção da teoria psicanalítica que utiliza a repetição como àquilo que contém a possibilidade de cura do sujeito é a transferência. É nessa relação de repetição que o sujeito irá operar suas resistências e construir a partir da “doença” suas possibilidades de cura, selecionando suas máscaras e estabelecendo sua trajetória singular. Esse processo de singularização mostra-se sempre como potência, expressa na repetição intrínseca ao instinto de morte, cabendo ao sujeito transformar os obstáculos com que se defronta em questões a serem resolvidas para dar espaço à verdade de seu desejo. O defrontar-se, transformando obstáculos em questões, implica o que DELEUZE aponta como a relação da doença e da cura. A repetição institui o movimento de doença e cura onde o sujeito aprisiona-se e liberta-se, e toda a cura depende da ida ao fundo da repetição para seleção das máscaras onde, “ toda a cura é uma viagem ao fundo da repetição” (DELEUZE, 1988, p. 48). A concepção psicanalítica mostra que o pulsional, sendo potência, não dá garantias para o sujeito acerca do seu futuro implicando, assim, uma dimensão de aposta no traçar de seus caminhos a partir das demandas pulsionais. Segundo BIRMAN, o que se anuncia como problema, para o analista, no exercício do ato de psicanalisar, “é de como construir caminhos possíveis para que as forças pulsionais encontrem percursos de satisfação no universo psíquico e no campo da alteridade” (BIRMAN,1997, p. 67). Ao traçar esses caminhos, o sujeito junto do analista, está realizando escolhas fundamentais que refletem o traçado de sua existência. Vemos que a 11 dimensão da pulsionalidade, entendida como aquilo que escapa à representação, possibilita o surgimento da diferença, através das apostas dos sujeitos. Segundo BIRMAN, o sujeito traçará o seu estilo existencial pautado pela dimensão estética e ética aí implicadas: Ética pois implica a direção do desejo na demarcação do seu lugar e das conseqüências que se impõe no processo de escolhas; e o estético pois ao demarcar o seu lugar o sujeito está constituindo um estilo original de existência possibilitando a produção de uma obra. Podemos dizer que é nesse traçado de escolhas que abrimos espaço para o surgimento do novo, que ocorre devido a repetição insistente da força do instinto de morte. Diante desse traçado de caminhos diferenciados que, por um lado, apresentaram alguns aspectos da crítica de DELEUZE à filosofia da representação e, por outro, aspectos que nos possibilitam pensar a diferença sem as amarras da representação, emerge a pergunta pelo reflexo de tais aspectos na educação e no ensino de filosofia. Assim, levantaremos algumas relações entre a crítica à filosofia da representação e a educação com o intuito de pensá-la como um espaço possível de afirmação da diferença, inserindo nesse contexto o ensino aprendizagem de filosofia. Educação e construção da diferença : algumas inferências com DELEUZE Sempre ao tomarmos uma teoria afim de estabelecer relações com o contexto prático podemos incorrer em erros. Frente essa possibilidade é importante deixar claro que DELEUZE não teve como objetivo central apresentar elementos para pensar o ato de educar, apesar de trazer algumas referências acerca deste durante o desenvolvimento de seu trabalho. Diante desse fato resta-nos a aposta. As relações que aqui traçarei, partindo da crítica de DELEUZE a filosofia da representação para chegar na educação, são possibilidades que creio serem capazes de clarear a compreensão da diferença no processo de aprender e ensinar – contexto onde parte de nossas vidas é engendrada. DELEUZE aponta que a filosofia teve como papel principal dar a diferença o estatuto de maldita tornando-se, assim, necessário domá-la. Para isso a filosofia clássica de PLATÃO abre o caminho, estabelecendo a Idéia como 12 fundamento, sendo que aquilo que desse princípio fundamental se desviasse, era amaldiçoado e deveria ser excluído. ARISTÓTELES, para “salvá-la”, enquadra-a no num conceito formal e geral delimitando, assim, o que pode ser da ordem da diferença. A filosofia cria, para DELEUZE o início das amarras da diferença à representação. A educação que busca na filosofia alguns de seus pressupostos desenvolveu sob esses parâmetros de entendimento o que compreendera, por algum tempo, sobre a diferença. A idéia de fundamento foi um dos pressupostos desenvolvidos na educação, sendo que durante muito tempo, delimitou-se o processo de ensino a partir dos fundamentos que pautaram o que era compreendido por educar, os “fundamentos da educação”. Ao traçar de antemão quais são os fundamentos que implicam no ato de educar delimita-se, enquadra-se o processo em representações deixando de fora aquilo que não entra nessa ordem, o diferente. Em outra palavras, ao traçar, “a priori” o que pode ser considerado como “o ato de educar” determinase quais processos são passíveis de responder ao fundamento, impedindo que algo da ordem da diferença possa vir colocar em cheque seus princípios. Tal concepção remete-nos à compreensão platônica de que tudo o que participa do princípio fundador, por semelhança é positivo, do contrário tornase maldito, levando ao enquadramento num conjunto de representações, o que pode ser considerado como ensinar, educar. A conseqüência que decorre do aprisionamento da educação aos preceitos do fundamento ou representação é a exclusão. Exclui-se os elementos que se diferenciam, sendo essa exclusão a garantia de que o ideal formal proposto no conceito se realize. O processo enquanto possibilidade é soterrado afim de que o resultado triunfe conforme a delimitação do conceito em pauta. O critério de avaliação é a semelhança com os princípios fundantes. Pensando a formação escolar diante disso, durante longo tempo amargou-se com o processo de repetição (rememoração), entendido como produtor de conhecimento e por conseqüência, a idéia de erro como negativo ou entrave ao fim proposto (ensinar). Pode-se retirar de DELEUZE um alerta sobre a possibilidade do ato de educar, entendido como processo de ensino aprendizagem, tornar-se um espaço de retorno do mesmo, da pura semelhança e, assim, impedir o acesso 13 da repetição como produtora de heterogeneidades e singularidades: “nada aprendemos com aquele que nos diz: faça como eu. Nossos únicos mestres são aqueles que nos dizem “faça comigo” e que, em vez de nos propor gestos a serem reproduzidos, sabem emitir signos a serem desenvolvidos no heterogêneo” (DELEUZE,1988, p. 54). Traçando um paralelo com a psicanálise e pensando em alguns aspectos do seu discurso que possam remeter a educação ao espaço de emergência de singularidades penso que torna-se importante considerar que, no ato de educar, o sujeito é um sujeito marcado pelo desejo e, portanto, portador de possibilidades a serem construídas na satisfação das forças pulsionais. Sendo essas possibilidades potências a serem desenvolvidas abrese, assim, espaços de oferecimento e inserção de novas redes simbólicas na relação ensino aprendizagem. Perceber que há algo que repete-se insistentemente afim de falar, não como processo de rememoração – que objetiva o encontro da semelhança com os pressupostos traçados como corretos para o ato de educar – mas, como uma fala que proporciona ao “fundo” subir e destruir os mecanismos de enquadramentos, parece ser um aspecto que a educação possa se utilizar para pensar o surgimento do heterogêneo, da diferença na construção do conhecimento. Nesse sentido, contar com o imprevisível, com a aposta para pensar a construção do sujeitos e de um futuro na educação remete-nos a necessidade de pensar as diferenças durante muito tempo soterradas, segundo DELEUZE, por uma filosofia que priorizou o ato de representar afim de garantir o pensamento seguro, em detrimento da aposta no pensamento que imbricasse a diferença e a intensidade. Para DELEUZE, na intensidade da diferença se produz o encontro mas, “não são os deuses que são encontrados; mesmo ocultos, os deuses não passam de formas para a recognição. O que é encontrado são os demônios, potências do salto, do intervalo, do intensivo ou do instante, que só preenchem a diferença com o diferente; eles são os porta- signos” (DELEUZE, 1988, p. 238). O desejo de pensar o ensino de filosofia, no nível médio, como um espaço de encontro e produção da diferença remete a pensar com DELEUZE, as condições para a filosofia se estabelecer, não como um espaço de reflexão 14 sobre a história da filosofia mas, como um espaço que permita ao aluno compreender o processo de seu pensamento, possibilitando-o criar conceitos, instituindo relações com outras áreas como a música, a arte, o cinema. O ensino de filosofia pode ser um espaço de provocação de forças no pensamento, entendendo o pensamento enquanto processo e não enquanto resultado. O pensamento, segundo DELEUZE, implica movimento e intensidade, que por sua vez, potencializa a diferença. E aprender, nesse contexto, significa não subordinar o pensamento ao método e sim, permitir a descoberta do intempestivo, do imprevisível como movimento de aprendizagem. Movimento que “ implica uma pluralidade de centros, uma superposição de perspectivas, uma imbricação de pontos de vista, uma coexistência de momentos(...)” (DELEUZE, 1988, p. 106). Nesse sentido, valorizar e possibilitar a imbricação de pontos de vistas, buscando o espaço para a diferença pode ser uma possibilidade de tornar o ensino de filosofia com alunos de nível médio mais produtivo e atrativo. Após alguns pontos apresentados aqui, a partir de uma leitura de DELEUZE, penso importante para nós, educadores, considerar as potências presentes na discussão levantada por DELEUZE a medida que, encontramo-nos frente a situações educacionais como por exemplo, a dificuldade de ensinar num momento cultural onde tudo passa muito rápido. Situação, que muitas vezes, coloca ao educador a exigência de lidar com lugares que permitam o imprevisível, a variação e a aposta, não como algo da ordem do negativo mas, como parte de um processo que não podemos determinar “ de antemão” o fim. Referências bibliográficas BIRMAN, Joel. Freud e a interpretação psicanalítica. Rio de Janeiro : Relume- Dumará, 1991. _____. Estilo e modernidade em psicanálise. São Paulo : 34, 1997. DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro : Graal, 1988. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. O mal radical em Freud. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1990. MACHADO, Roberto. Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro : Graal, 1990.