A filosofia dos cuidados paliativos: problemas éticos Dr Fiona Randall O meu percurso profissional z z z z Estagiei no St Christopher’s Hospice em Londres, Fundado pela Dame Cicely Saunders, que ainda coordenava o hospice enquanto lá estive. Ela era responsável pelo desenvolvimento de cuidados paliativos especializados e pelo “movimentos dos hospice” na segunda metade do século é l XX XX. Sou especializada em cuidados paliativos desde 1982, tendo desenvolvido interesse no campo da ética e fiz um PhD em ética nos cuidados de saúde em 2000. 1 A filosofia dos cuidados paliativos z z z Tendo escrito um livro sobre questões éticas nos cuidados paliativos nos anos 90, Aprofundei os meus estudos sobre as implicações clínicas da filosofia dos cuidados paliativos, em particular como esta é descrita pela OMS. Escrevi um livro com um filósofo, Prof. Robin D Downie, i sobre b os problemas bl éticos éi d da fil filosofia fi d dos cuidados paliativos chamado ‘The philosophy of palliative care: critique and reconstruction’, publicado em 2006. O contexto de desenvolvimento dos cuidados paliativos z z z z Desde os anos 50, foram desenvolvidos novos tratamentos curativos que foram recebidos com grande entusiasmo Mas, posteriormente, as pessoas sentiram a necessidade de voltar a reconhecer e a aceitar que todos temos de morrer. Criou-se uma divisão entre os cuidados paliativos p especializados dos hospices e as práticas médicas mais comuns dos hospitais de agudos. Os cuidados paliativos encorajaram a aceitação da morte enquanto a medicina comum encorajou praticamente todas as tentativas para prolongar a vida. 2 Definição de cuidados paliativos da OMS z ‘Os cuidados paliativos são uma abordagem que visa melhorar a qualidade de vida de doentes, e suas famílias, que enfrentam problemas decorrentes de uma doença incurável e/ou grave e com prognóstico limitado, através da prevenção ã e alívio lí i d do sofrimento, fi com recurso à identificação precoce e tratamento rigoroso dos problemas não só físicos, mas também psicossociais e espirituais.’ 2000 4 questões morais inevitáveis nos cuidados paliativos z z z z Tentativas de avaliação da qualidade de vida e respectivos componentes (incluindo a dor e o stress psicológico). A escolha do paciente, ao invés do consentimento do paciente Conflito de interesses entre paciente e família Confusão e maus argumentos sobre eutanásia, suicídio medicamente assistido, e sedação nos últimos dias de vida. 3 Problemas éticos de ‘medição’. z z z z Pressupõe-se que os “dados” têm de ser medidos, Logo, tem-se procurado “medir” coisas que não são quantificáveis e que, consequentemente, não podem ser traduzidas em números. Será que se pode medir a tristeza ou estados de espírito ou a qualidade de vida? Será que poderíamos fazer mais pesquisa qualitativa em vez de tentar medir coisas que não podem ser quantificadas/medidas? Problemas éticos das tentativas de medição z z z z Os pacientes podem ser sobrecarregados com questionários Que estruturam o que o paciente pode comunicar em vez de permitirem o paciente de comunicar o que sente ser mais importante. A informação dos questionários pode não ser válida, l levando d a ffalsas l conclusões l sobre b estratégias é i d de tratamento/cuidados. A avaliação objectiva da qualidade de vida não é possível e deve ser abandonada. 4 Do consentimento do paciente à escolha do paciente: o consentimento z z z Nos finais do século XX concluiu-se sobre a importância do consentimento do paciente face ao tratamento E sobre a importância do paciente ter a informação necessária para consentir ou recusar os tratamentos propostos. Essa decisão resultava duma parceria entre o profissional e o paciente paciente. A responsabilidade do profissional residia na escolha dos tratamentos ou cuidados a propor, e o direito e responsabilidade do paciente residiam na decisão de os aceitar ou recusar. Do consentimento do paciente à escolha do paciente: a escolha z z z z Actualmente, há enfâse, pelo menos no Reino Unido, na escolha do paciente O paciente passa a ser visto como um consumidor que escolhe o tratamento ou os cuidados; a responsabilidade dos profissionais é a de fornecer o que o paciente quer. Devem os médicos e os enfermeiros prestar p tratamentos que acreditam trazer mais desvantagens do que vantagens, mas que são desejados pelo paciente? Deve a autonomia do profissional ser respeitada, ou apenas a autonomia do paciente? 5 Responsabilidade e distribuição de recursos z z Pode o profissional ser considerado responsável pelas decisões do paciente acerca dos tratamentos/cuidados, se a escolha do paciente for contra o que o profissional acredita ser clinicamente apropriado? Como devem ser distribuídos os escassos recursos de cuidados paliativos especializados – de acordo com a escolha do paciente ou de acordo com as suas necessidades? Perda de clareza quanto aos papéis do paciente e dos profissionais. z z z Se o paciente pode escolher os tratamentos e os cuidados e o papel dos profissionais é apenas o de fornecer o que o paciente escolhe, aconteceu então uma grande mudança na relação tradicional entre o paciente e o médico/enfermeiro. A responsabilidade deve passar totalmente para o paciente (e a lei deveria acompanhar esta mudança). 6 Exemplo britânico da escolha: reanimação cardiopulmunar. z z z Durante o período entre os finais dos anos 90 até Outubro de 2007 as directivas, no Reino Unido, quanto à RCP eram confusas. Implicavam que a reanimação deveria acontecer se o paciente quisesse, mesmo quando não existia qualquer hipótese de sucesso, sucesso já que o paciente estava efectivamente moribundo. Esta situação trouxe muito desconforto a vários pacientes e as directivas nacionais no Reino Unido acabaram por mudar. Conflito de interesses entre pacientes e as suas famílias z z z Os cuidados paliativos deram sempre enfâse à importância de cuidar das famílias, Mas, agora, a definição da OMS atribui igual importância ao melhorar da qualidade de vida quer das famílias quer dos pacientes. “ cuidados “os id d paliativos li ti são ã uma abordagem b d que visa melhorar a qualidade de vida dos pacientes e das suas famílias”. 7 Os sérios conflitos de interesse levantados pelos cuidados paliativos z z z z Noutras áreas dos cuidados de saúde, e da lei dos cuidados de saúde, o dever do profissional é o de beneficiar o paciente, não a sua família. Mas nos cuidados paliativos os profissionais sentem o dever de beneficiar a família. Por vezes, vezes o que é bom para a família não o é para o paciente, Especialmente face ao local de prestação dos cuidados. Todos conhecemos casos assim. O aconselhamento e a discussão nem sempre fornecem uma solução z z Os especialistas em cuidados paliativos defendem que mais aconselhamento e discussão podem resolver discordâncias ou diferenças de ponto de vista entre pacientes e famílias, Mas muitas vezes não é resolvido o conflito de interesses. Os profissionais devem decidir se actuam de acordo com o interesse do paciente ou da família. Exemplo... 8 Quando o paciente não tem capacidade… z z z z Os pacientes em fim de vida perdem, muitas vezes, a capacidade de tomar decisão devido à confusão ou à diminuição do nível de consciência. No Reino Unido, a lei afirma que os profissionais devem tomar decisões baseados apenas no que será melhor para o paciente (o que inclui o que o paciente teria querido) querido). Os interesses dos familiares devem ser tomados em conta apenas se essa fosse a vontade do paciente. A lei protege o paciente, não a família. A lei e a ética profissional divergem da filosofia dos cuidados paliativos z z z A lei sobre os cuidados de saúde e o código ético profissional apoiam os interesses do paciente, e não os dos familiares, Mas a filosofia dos cuidados paliativos parece defender igualmente o paciente e a família. Isto pode levar a situações em que o paciente seja lesado em prol da família. Será isso correcto? 9 Recursos distribuídos entre pacientes e familiares z z z Por vezes, nos cuidados paliativos, é empregue mais tempo a apoiar os familiares do que a cuidar do paciente. Se os recursos forem limitados, será correcto dar mais tempo aos familiares do que aos pacientes? O apoio no luto necessita de recursos, mas a OMS concluiu que não existem provas do benefício do apoio individual no luto. O que deverá ser fornecido? Confusão e maus argumentos: eutanásia, SMA e sedação z z z Não quero rever os argumentos contra e a favor da legalização da eutanáisa e do suicídio medicamente assistido (SMA). Mas existem muitos argumentos maus que causam confusão. Por vezes, esses argumentos são usados de forma a persuadir os governos à mudança da lei, permitindo a eutanásia e o SMA. 10 1º mau argumento [1] z z z É defendido, por vezes, que deixar alguém morrer da sua doença, suspendendo algum tratamento que prolongue a vida, no caso da doença terminal, é moralmente equivalente à eutanásia. Esta afirmação é falsa falsa. Quando se permite que um paciente morra naturalmente duma doença terminal, é a doença que causa a morte, não a decisão de não continuar a prolongar a vida. [1] Causa da morte z z z Os médicos não causaram a morte do paciente, mas permitiram o decurso natural e inevitável do processo da morte, Quer porque os riscos associados ao tratamento q que tenta p prolongar g a vida são maiores do que os benefícios, Quer porque o paciente recusou o tratamento. 11 [1] Causa da morte + intenção z z z z Quando é permitido que os pacientes morram da sua doença, os médicos não causaram, nem tiveram a intenção de causar, a morte do paciente. No caso da eutanásia, o médico causa realmente a morte do paciente (através de medicação letal) E, nesse mesmo caso, o médico tem a intenção de causar a morte do d paciente. i Permitir que os doentes terminais morram, sem que se mantenham todos os tratamentos possíveis, não é moralmente equivalente à eutanásia. Conclusão da análise do 1º mau argumento. z z z Não é racional defender que permitir/deixar que os pacientes morram da sua doença terminal é o mesmo que eutanásia. Mas este falso argumento é usado muitas vezes para defender que os casos são iguais e, assim sendo, se é permitida a suspensão dos tratamentos, então a lei também deveria p permitir a eutanásia. É racional que a lei permita o “deixar morrer” através da suspensão de tratamentos que prolongam a vida, ao mesmo tempo que não permite a eutanásia (a maior parte dos países têm leis desta natureza). 12 2º mau argumento [2] z z “o administrar de medicação no fim de vida que alivie o sofrimento, sendo o encurtar da vida um efeito secundário possível, é moralmente equivalente à eutanásia, Assim sendo,, se a sedação ç no fim de vida é permitida, também a eutanásia deveria ser”. [2] Causa da morte + intenção z z z z z Na sedação paliativa, os médicos têm apenas a intenção de aliviar o sofrimento do paciente, A causa da morte é a doença do paciente, não a sedação. No caso da eutanásia, os médicos têm a intenção de matar o paciente. A causa da morte na eutanásia é o acto de matar por parte do médico, não a doença. Assim sendo, a eutanásia e a sedação paliativa não são moralmente equivalentes. Este mau argumento [2] não pode ser usado para defender a legalização a eutanásia. 13 O que é essencial na sedação paliativa z z z É muito importante, do ponto de vista moral, que os médicos e os enfermeiros reflictam cuidadosamente sobre o porquê da administração dos sedativos e sejam honestos acerca das suas razões. É muito importante que a sedação seja necessária e proporcional ao stress existente. É muito i iimportante que os médicos édi e enfermeiros f i não tenham a intenção de encurtar a vida do paciente, mesmo que compreendam que isso possa acontecer enquanto efeito não desejado da sedação. Exemplo. Sugestão para um melhor pressuposto filosófico (definição) z “os cuidados paliativos são os cuidados prestados aos pacientes cuja doença é incurável e da qual se espera que cause a morte num futuro próximo. Os objectivos de tratamento são a minimização da dor e de outros t sintomas, i t e o prolongamento l t da d vida, id com o mínimo de desvantagens e riscos avaliados em conjunto pelo paciente e pelos profissionais.” 14 Nova filosofia/definição… z z “Deve tentar obter-se o consentimento informado face aos tratamentos por parte dos pacientes competentes, apresentando a informação honesta e cuidadosamente. A recusa do tratamento é respeitada. Os pacientes incompetentes (sem capacidade) são tratados de acordo com o seu melhor interesse, o que é decidido pela equipa clínica após análise das circunstâncias clínicas e análise, com a família, do que é conhecido sobre as vontades do paciente. Nova filosofia/definição… z z z z z “Os profissionais dão apoio aos pacientes: Avaliando quanta informação os pacientes desejam obter e transmitindo-a cuidadosamente, Ouvindo a perspectiva dos pacientes sobre os seus objectivos e valores, Discutindo o impacto dos tratamentos sobre a vida do paciente, por forma a decidir quais terão as maiores vantagens, Prestando apoio baseado na experiência.” 15 Nova filosofia/definição… z “Devem ser dadas explicações, aconselhamento profissional e apoio aos familiares dentro dos limites definidos pelas regras de confidencialidade para com os pacientes”. z Esperamos que esta filosofia/definiçãotenha retido o que é importante nos cuidados paliativos, sem criar alguns dos problemas morais que surgem de definições e crenças como a definição da OMS. A nossa é uma sugestão possível. O que é importante z z z z z Devemos reconhecer as questões éticas/morais dos cuidados paliativos, E não devemos recear reconhecê-las, nem enfrentálas. Devemos depois pensar qual a melhor solução para cada caso individual, T d em conta a lleii e o código Tendo ódi ético é i profissional fi i ld do próprio país. Tudo isto faz parte da nossa responsabilidade enquanto profissionais de cuidados paliativos. 16