EXIGÊNCIAS ATUAIS DE BEM-ESTAR ANIMAL E SUA RELAÇÃO COM A QUALIDADE DA CARNE Patrícia de Sousa1 1 Embrapa Suínos e Aves, Cx. Postal 21, CEP 89700-000, Concórdia - SC, [email protected] 1 - INTRODUÇÃO O tema bem-estar animal vem recebendo crescente atenção nos meios técnicos, científicos e acadêmicos. Juntamente com as questões ambientais e segurança alimentar, o bem-estar animal tem sido considerado entre os três maiores desafios confrontando a agricultura nos últimos anos, (Rollin, 1995). O processo de produção precisa ser ambientalmente benéfico, eticamente defensável, socialmente aceitável e relevante aos objetivos, necessidades e recursos da comunidade para o qual foi elaborado para servir, (Fraser, 1999). Sendo assim, o bem-estar animal, pode ser considerado uma demanda para que um sistema seja defensável eticamente e aceitável socialmente e, segundo Warriss (2000), as pessoas desejam comer carne com “qualidade ética”, isto é, carne oriunda de animais que foram criados, tratados e abatidos em sistemas que promovam o seu bem-estar, e que sejam sustentáveis e ambientalmente corretos. Com a industrialização da agricultura, os métodos de produção mudaram radicalmente, relevando uma preocupação quase que exclusiva com o desempenho quantitativo dos animais. O confinamento foi o caminho para reduzir trabalho, perda genética dos animais e ganhar espaço, colocando os animais sob fácil controle. Agravaram-se, então, os problemas de comportamento e bem-estar dos animais. Novos tipos de sofrimento resultaram do confinamento intensivo dos animais como o aumento de doenças, produção sem atenção individualizada dos animais. O sofrimento também resulta de privação física ou psicológica dos animais confinados, tais como, ausência de espaço, isolamento social, impossibilidade de se movimentar, monotonia e outros. Em vários países a questão do bem-estar animal tem se tornado uma preocupação constante, onde a sociedade tem demandado um grande aumento nas regulamentações que melhorem a qualidade de vida dos animais. 2 - DEFINIÇÃO DE BEM-ESTAR Hurnik (1992), definiu bem-estar animal com sendo “o estado de harmonia entre o animal e seu ambiente, caracterizado por condições física e fisiológica ótimas e alta qualidade de vida dos animais”. O sofrimento normalmente está relacionado com o bem-estar, mas falta de bem-estar não é, necessariamente, sinônimo de sofrimento. Os animais mostram sinais inequívocos que refletem dor, angústia, medo, frustração, raiva, e outras emoções que indicam sofrimento. O conforto mental é um estado, que sem dúvida está relacionado com a condição física do animal, mas não apenas. É difícil saber o grau de satisfação do animal com seu ambiente. Entretanto, a manifestação de certos comportamentos se constitui em evidência do desconforto. A privação de estímulos ambientais (ambiente monótono, falta de substratos, palha, ramos, terra) leva à frustração que pode se refletir em comportamentos anômalos ou estereótipos. O animal pode estar em ótimas condições físicas e estar saudável e bem nutrido, mas sofrendo mentalmente. Alta produtividade não necessariamente implica em bem-estar. Pelo contrário, animais selecionados geneticamente para alta especialização e colocados em ambientes pressionados para alta produtividade podem trazer grande sofrimento. 3 - ESTRESSE O estresse tem sido o principal mecanismo de medida ou de avaliação do bemestar animal. Estímulos externos e internos são canalizados via sistema nervoso até o hipotálamo, onde é liberado o hormônio liberador da corticotropina (CRH). O CRH é transportado até a hipófise, estimulando a síntese e a liberação de adrenocorticotropina (ACTH), que por sua vez estimula a liberação de cortisol pelas glândulas adrenais. É o chamado eixo hipotálamohipófise-adrenal (HPA). O CRH também estimula o sistema nervoso simpático– adrenal e a secreção de hormônios catecolaminas, adrenalina e noradrenalina (epinefrina e norepinefrina), responsáveis pela resposta em curto prazo, uma rápida resposta de “alarme”, conhecida como Síndrome de Emergência, que prepara o organismo para a “luta ou fuga”, com sinais como aumento da freqüência respiratória e cardíaca. Outra resposta do estresse ocorre após o alarme e durante um período mais longo, permitindo ao animal recompor-se da situação de alarme ou adaptar-se à nova situação. Este componente da resposta do organismo ao estresse envolve mudanças significativas no sistema endócrino e autônomo, via eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA) e é conhecida como a Síndrome Geral da Adaptação. A liberação do cortisol estimulada pela liberação de ACTH atua sobre o metabolismo orgânico, aumentando o catabolismo protéico, a gliconeogênese no fígado, inibe a absorção e a oxidação da glicose, além de estimular o catabolismo de triglicerídeos no tecido adiposo. A importância disso está no fato de que os estressores crônicos mobilizam energia contentemente, desviando-a da produção, (Zulkifli e Siegel, 1995). O estresse é uma reação do organismo a uma reação do ambiente, numa tentativa de manter a homeostase. Mas o estresse crônico, entretanto, leva a uma outra reação, conhecida como “desistência aprendida”. O animal “aprende” que sua reação ao meio desfavorável não resulta em adaptação e, portanto, deixa de reagir. Essa condição tem inúmeras conseqüências para o organismo animal como, maior fragilidade do sistema imunológico, aumentando a suscetibilidade a doenças; redução da produtividade em alguns casos; ocorrência de comportamento anômalo. Comportamento anômalo é o redirecionamento de um comportamento que o animal tem alta motivação para realizar, mas cujo desencadeamento está impedido pelo ambiente. Há duas grandes vertentes de conduta para melhorar o bem-estar animal. Uma delas é o chamado “enriquecimento ambiental”, que consiste em introduzir melhorias no próprio confinamento, com o objetivo de tornar o ambiente mais adequado às necessidades comportamentais dos animais. Exemplos: 1) colocação de objetos, como correntes e “brinquedos” para quebrar a monotonia do ambiente físico. Isto reduziria a incidência de canibalismo; 2) palha no piso, sobre o cimento, evitando piso ripado: 3) área mínima por animal, reduzindo a agressão e os animais separam área de excreção da área de descanso; 4) Gaiolas com espaço suficiente para o animal virar-se e com palhas para contrição de ninhos. E a outra vertente seria repensar o sistema de produção como um todo, ou propor sistemas de produção alternativos. Exemplos: produção extensiva (suínos, ovinos, bovinos), com animais ao ar livre, sistemas orgânicos (aves: frango verde, criação colonial), produção de gado à pasto, etc. O fator humano também é importante na produção e bem-estar dos animais. O manuseio diário dos animais, ou a maneira como o tratador se relaciona com o animal, voz, contato físico, interação geral, pode influenciar o comportamento e a produtividade do animal. Em termos de personalidade e atitude, um “bom tratador” é normalmente introvertido, confiante, consistente, disciplinado, perseverante e imaginativo. Tem uma atitude de respeito com o animal, “conversando” com voz firme e tocando gentilmente durante o manuseio. Gritos, agressões e violência devem ser sempre evitadas, assim como cães no interior das instalações. Os animais gostam de rotina e reconhecem as pessoas pela imagem, odor, voz, caminhar. Os tratadores devem ser sempre os mesmos, usar uniformes e utilizar a mesma rotina. Treinamento e satisfação com o trabalho também afetam a relação que os humanos têm com os animais, e pode se refletir no comportamento e produtividade dos animais, (Hemsworth e Coleman, 1998). 4 - QUALIDADE DA CARNE Ausência de bem-estar pode levar à produção de uma carne de qualidade inferior, o que resulta em perda de produção e perda de vendas, ou venda de produto de baixa qualidade. Warriss et al., (1994) analisaram animais abatidos em abatedores subjetivamente avaliados como tendo um manejo pré abate inadequado. Os animais tiveram um nível aparente de estresse mais alto, bem como níveis mais elevados de lactato e creatina kinose no sangue coletado ao sangramento, do que os níveis encontrados em animais abatidos em sistemas melhor conduzidos. O estresse pré abate pode ter conseqüências negativas na qualidade da carne, aumentando, inclusive, o risco de incidência de PSE (pale, soft, exudative – pálida, mole, exudativa) e DFD (dark, firm, dry – escura, dura, seca) nas carcaças, (Gregory, 1998). Tabela 1 – Influência do manejo nos parâmetros de qualidade da carne. Nutrição Bem - estar PSE/DFD* X X Condições das Instalações Durabilidade X maciez X Sabor/cheiro Cor/Aparência Raça % carne magra Tamanho Parâmetros de qualidade X X X Transporte X Resfriamento X X Corte X X X X Empacotamento X X *PSE – pálida, mole, exudativa DFD – escura, firme, seca 5 - MANEJO PRÉ ABATE O manejo pré abate em animais envolve atividade muscular, assim como o estresse causado por fatores físicos e emocionais. O efeito do exercício no metabolismo de energia e produção de metabólitos varia de acordo com a intensidade e duração dos exercícios. Durante o carregamento, demanda menos de 60% do consumo máximo de oxigênio, 50% a 80% dos substratos oxidados derivam da gordura (60% ou menos derivam do sangue) e a maioria da glicose utilizada deriva da redução do glicogênio. Nessas condições, a proporção de fontes de energia extramuscular utilizada, aumenta com a intensidade dos exercícios. Quando o carregamento corresponde 60 a 90% do consumo máximo de oxigênio, 50% a 80% das calorias que são queimadas derivam dos carboidratos, o qual 80% derivam da reserva de glicogênio no músculo. Exercitando, a proporção das fontes extramusculares dos carboidratos utilizados aumenta. O lactato é produzido continuamente durante o período de exercício, com mais de 90% de oxigênio máximo obtido, substratos de energia são quase exclusivamente carboidratos, e quase todos derivados de reservas locais. Portanto, o ponto de exaustão aparece muito rápido, quando a reserva de glicogênio nos músculos ainda é alta. Diferente estressores associados ao aumento da atividade muscular durante o período pré abate pode causar diferentes efeitos nas reservas de energia presente nos músculos. Exemplificando, o exercício pode reduzir o fosfato de creatina e ATP, enquanto a liberação de epinefrina pode causar primariamente a degradação de glicogênio, produzindo efeitos distintos no padrão, e declínio no pH pós abate (Henckel et al., 2002). A intensidade, o período, tipo e duração de estressores antes do abate possui um efeito variável no uso e reabastecimento das reservas de energia nos músculos; entretanto, eles também têm efeito variável no metabolismo pré e pós abate, declínio do pH e qualidade da carne. Isto é evidenciado pela associação entre indicadores de estresse e da ocorrência de carnes DFD em suínos (Warriss, et al., 1998). Exercícios antes do abate podem reduzir o nível de glicogênio e, consequentemente, aumentar o pH final dos músculos de animais com dieta normal, assim como, dieta com alto teor de carboidrato. Suínos recebendo uma dieta com baixo carboidrato e alta gordura, submetidos ao exercício, a redução do glicogênio no músculo foi associado ao aumento do pH final e a redução das perdas por gotejamento. Portanto, exercício imediatamente antes do abate pode também ser responsável por um aumento na ocorrência de carne PSE, devido ao aumento da temperatura do músculo e aumento na taxa metabólica. Estudos demonstram que a qualidade da carcaça e da carne, que é o produto final, é influenciada pelo tipo de manejo que os animais recebem durante o período imediatamente antes do abate. A privação de alimento por 48 horas antes do abate tem mostrado muitos benefícios, tais como, economia de alimento por animal, redução de mortalidade no transporte, melhora no sangramento e redução da quantidade de resíduos nas vísceras no abate, (Beattie, et al., 2002). A privação de alimento pode também minimizar o efeito de patógenos trazidos no alimento. Se o trato gastrointestinal do animal for perfurado durante o processo de evisceração no abatedor, as carcaças podem ser contaminadas com bactérias do trato gastrointestinal. O risco de contaminado de carcaça é reduzido se o estômago do animal estiver vazio na hora do abate. O manejo pré abate possui ainda uma outra grande vantagem, o jejum antes do abate reduz a incidência de carnes PSE. No entanto, tais ganhos em economia e produto de qualidade devido a privação do alimento pode ser negativo com relação a diminuição no rendimento de carcaças, mais lesões nas carcaças causadas por brigas, incidência de DFD devido ao prolongado estresse pré abate e redução no bem-estar do animal, (Warriss, 1998). Beattie, et al., 2002, concluíram que a privação de alimento por 12 horas pré abate não afeta a performance, peso da carcaça, qualidade da carne e o bem-estar dos animais. O produtor se beneficia na economia de aproximadamente 1,5 kg de ração/animal (suínos), redução de resíduos e os consumidores se beneficiam com a aquisição de um alimento saudável e seguro. É importante também garantir o fornecimento constante de água aos animais, até o momento do embarque. Atualmente, o efeito do exercício e manejo em diferente intensidade, período e duração nas reservas de glicogênio, assim como, suas relações na qualidade da carne, ainda não foram claramente estabelecidas. O grande número de fatores envolvidos no período pré abate, tais como, manejo durante o carregamento e descarregamento de animais, duração do transporte, tempo de jejum, tempo de espera entre o descarregamento e abate, temperatura ambiente e as interações com genótipos diferentes são provavelmente responsáveis pela larga variação dos resultados já encontrados. 6 - TRANSPORTE Para o transporte, deve-se utilizar um caminhão com no máximo, dois pisos. Ao chegar na propriedade para carregar os animais, o caminhão deve ter sido previamente higienizado e desinfetado, evitando assim a exposição dos mesmos a eventuais agentes contaminantes. Os animais devem ser alojados no caminhão na razão máxima de 2,5 suínos de 100kg/m2, ou seja, proporcionar área mínima de 0,40m2/100kg animal. O transporte deve ser efetuado com calma, de preferência durante a noite, sempre aproveitando as horas mais frescas ou de menor temperatura. O cuidado no transporte deve ser redobrado quando esse for feito em estradas não pavimentadas ou irregulares. Quando o transporte exceder a duração de 3 horas, devem ser adotados cuidados especiais. O transporte em longas distâncias, a mistura com animais desconhecidos, espaço inadequado, carrocerias mal desenhadas, frio, calor, podem resultar em estresse e sofrimento animal. Além das condições eticamente indesejáveis, esses fatores têm influência direta na qualidade da carcaça, lesões nos músculos, hematomas. Um maior nível de indicadores de estresse no sangue, tais como, o lactato e cortisol, e mais baixa qualidade da carne foi observada nos suínos abatidos quando transportados num curto período de tempo (15mim), provavelmente porque os suínos transportados a longas distâncias (3 horas), adaptaram as condições de transporte, (Perez et al., 2002). Animais submetidos a um rápido transporte precisará de um maior tempo de repouso antes do abate. Estudos mostram uma alta mortalidade dos animais durante o transporte, sendo um indicador de falta de bem-estar durante o deslocamento. Outros fatores além do tempo de transporte podem influenciar o bem-estar do animal durante a viagem e subsequente qualidade da carne. Estes fatores são: carregamento e descarregamento dos animais, densidade, condições do tempo (temperatura, velocidade do vento e umidade), características do veículo, privação de alimento e água e mistura de animais de diferentes grupos, (Warriss, 1998). A interação entre estes fatores com o manejo utilizado e tempo de espera entre o descarregamento e o abate, torna-se difícil de interpretar o real efeito do tempo de transporte no bem-estar e qualidade da carne dos animais. Gispert, et al., (2000), constataram que a genética pode também influenciar na susceptibilidade ao estresse, mortalidade no transporte e qualidade da carne. Animais com susceptibilidade ao estresse possuem uma anormalidade no metabolismo de seus músculos, o qual, faz o músculo super reativo aos estímulos estressores como as altas temperaturas. O músculo é propenso ao metabolismo excessivo e em suínos desenvolve a hipertermia e níveis letais de potássio no sangue, (Gregory, 1998). No frigorífico os animais são descarregados e alojados em baias até o abate. Após o abate a carne é destinada aos cortes in natura e ao processamento dos subprodutos e industrialização. A coordenação e liderança da cadeia são exercidas pelo segmento da agroindústria. A produção na indústria sofre um intenso processo de diversificação em produtos e mercados. A estratégia de agregar valor dificulta a popularização do consumo de carne suína. 7 – CONSIDERAÇÕES FINAIS Os sistemas de produção animal podem ser melhorados, adequando-os aos objetivos específicos e melhorando as condições de bem-estar e qualidade de carne, sendo estes, não analisados isoladamente, necessitando estudos multidisciplinares. A produção animal brasileira tem evoluído muito nos últimos anos, mas mesmo assim deve-se buscar a interação dos diferentes seguimentos da cadeia produtiva, visando melhorar os ajustes entre o setor produtivo, indústria e consumidores. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEATTIE, V.E.; BURROWS, M.S.; MOSS, B.W.; WEATHERUP, R.N. The effect of food deprivation prior to slaughter on performance, behavior and meat quality. Meat Science, 62, p. 413-418, 2002. FRASER, D. Animal ethics and animal welfare science: bridging the two cultures. Appl. Anim. Behav. Sci., v. 65, p. 171-189, 1999. 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