Anais do V Congresso da ANPTECRE “Religião, Direitos Humanos e Laicidade” ISSN:2175-9685 Licenciado sob uma Licença Creative Commons VONTADE, CULPABILIDADE E ONTOLOGIA: UMA REFLEXÃO TEOLÓGICA A PARTIR DE PAUL RICOEUR René Armand Dentz Junior Doutorando em Teologia Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte FAJE [email protected] CAPES ST 18 – TEOLOGIA SISTEMÁTICA: QUESTÕES EMERGENTES Resumo: No terceiro nível de uma Fenomenologia da Vontade, intitulado “No Limiar da Ontologia”, Ricoeur trata da passagem de uma fenomenologia transcendental a uma fenomenologia propriamente ontológica. Sua atenção volta-se para mostrar os recursos de uma fenomenologia da vontade na direção de uma passagem para a ontologia. A fenomenologia revela um não ser específico da vontade, algo como uma deficiência ontológica própria da vontade. A interpretação minuciosa dessa negação pode ser entendida como uma fenomenologia das paixões (ambição, avareza, ódio, etc.), uma reflexão teológica sobre a culpabilidade. Trata-se de uma abordagem diferente, o ligar as paixões a um princípio discutível como o da culpabilidade, interpretada também como um não ser. Ricoeur considera o tratamento dado pela psicologia às paixões como deficiente. A paixão não é um grau da emoção nem do involuntário. O fenômeno da paixão vai além da psicologia ordinária, caracterizando uma maneira de ser total do voluntário e do involuntário. O autor afirma que é possível encontrar nas funções do involuntário (desejo, hábito, emoção) o caminho de infiltração e proliferação das paixões; entretanto, coloca também que as paixões são a própria vontade em um modo alienado. No que se refere ao problema da culpabilidade, o autor não o vê como claramente definido, ao contrário, como composto por um emaranhado de aporias. Os sinais de cada paixão devem ser decifrados por meio de sua o uso da vida e da cultura É necessário decifrar os sinais de cada paixão pela vivência e pela cultura, tornando difícil uma fenomenologia das paixões, limitada pelo caráter mítico da noção de culpabilidade. O mito mostra-se irredutível a uma compreensão filosófica puramente racional, que colocaria a falta ou a culpa alinhada com o sofrimento e com a morte. Por tudo isso, afirma Ricoeur, a fenomenologia da vontade fica embaraçada. Compete a ela elaborar conjuntamente uma empírica e uma mítica da vontade. Torna-se importante elaborar uma crítica filosófica do mito que não o reduza, mas que lhe restabeleça a intenção significante. Palavras-chave: Culpabilidade; Vontade; Ontologia. Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1802 1 Introdução Em se tratando do tema “Liberdade”, uma grande influência de Ricoeur nos seus primeiros escritos foi a do filósofo alemão Karl Jaspers. A filosofia de Jaspers é a filosofia do salto, de um aprofundamento da interioridade, agora reveladora da liberdade. A pretensão jasperiana é moldada com o método de aclaramento da existência que, de uma parte, procura determinar a posição humana de uma filosofia que culmine numa metafísica e, de outra parte, realiza essa filosofia incorrendo sobre um caráter do ser que é inacessível à ciência. O legado de Jaspers nos mostra que “a íntima reunião da exigência espiritual e da humildade que reenvia a um ser dilacerado (cindido), a uma lógica humilhada, é uma atitude que Ricoeur se apropriou de transformá-la em sua singularidade” (DOSSE, 1997, p. 121). A fenomenologia, por sua vez, resgata o movimento unitário do voluntário e do involuntário, havendo uma superação do estágio puramente analítico da fenomenologia para, como que, estabelecer um movimento de conjunto da vida e vontade. Ricoeur postula que a reflexão faz a vontade chegar ao seu máximo nas determinações de si por si, isto é: eu ME decido, eu ME determino e determino; o que corresponde a uma relação ativa e passiva do sujeito para si mesmo. Ao atribuir a mim mesmo a responsabilidade pelos meus atos, esta já se mostra presente em minha consciência. Assim, “o primeiro possível inaugurado pelo querer não é o meu próprio poder-ser, mas a possibilidade do acontecimento da obra no mundo projetando agir. É o poder-ser feito” (RICOEUR, 2004, p. 75-76), que significa a possibilidade de ação da minha liberdade. Fenomenologia da Vontade A filosofia de Ricoeur se mostra como uma passagem de uma fenomenologia transcendental a uma fenomenologia propriamente ontológica. Sua atenção volta-se para mostrar os recursos de uma fenomenologia da vontade, na direção de uma passagem para a ontologia. A fenomenologia revela um não ser específico da vontade, algo como uma deficiência ontológica própria da vontade. A interpretação minuciosa Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1802 2 dessa negação pode ser entendida como uma fenomenologia das paixões (ambição, avareza, ódio, etc.), uma reflexão filosófica sobre a culpabilidade. A fenomenologia não é apenas método filosófico que nos capacita a superar a metafísica, mas um meio para se situar a teologia no pensamento. Jean-Luc Marion, por exemplo, defende a idéia de que a fenomenologia modificada adequadamente é “o método de manifestação do invisível por meio de seus fenômenos indicadores” e “assim, também o método da teologia”. Ou seja, a distinção entre fenomenologia e teologia, contudo, é que, enquanto a primeira provê o contexto para a possibilidade do fenômeno da revelação, não consegue determinar sua realidade como revelação. A fenomenologia pode, assim, ser vista como certo tipo de preparação à teologia. Dessa forma, podemos analisar o fenômeno do perdão e sua possível liberdade, estabelecendo uma relação entre fenomenologia e teologia no pensamento ricoeuriano. Trata-se de uma abordagem diferente, o ligar as paixões a um princípio discutível como o da culpabilidade, interpretada também como um não ser. Ricoeur considera o tratamento dado pela psicologia às paixões como deficiente. A paixão não é um grau da emoção nem do involuntário. O fenômeno da paixão vai além da psicologia ordinária caracterizando uma maneira de ser total do voluntário e do involuntário. Ela “não é uma função, uma estrutura parcial, mas um estilo de conjunto, uma modalidade de escravidão que tem sem dúvida a sua intencionalidade própria (a do ciúme, da ambição, etc.)” (RICOEUR, 2004, p. 81). O autor afirma que é possível encontrar nas funções do involuntário (desejo, hábito, emoção), o caminho de infiltração e proliferação das paixões; entretanto, coloca também que as paixões são a própria vontade em um modo alienado. Daí se explica que O fenômeno da paixão diz respeito ao ethos humano em seu conjunto: sob o regime das paixões, os valores que poderiam ser inerentes ao querer como seus impulsos primitivos e aos quais o querer se acha aberto pela motivação, se opõem a ele na transcendência hostil do dever; trata-se da moral, da dura lex que condena sem ajudar e “atiça a concupiscência” (RICOEUR, 2004, p. 82). Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1802 3 Encontramos em “O Voluntário e o Involuntário” as estruturas pré-éticas do homem livre, da vontade finita. No entanto, a produção de uma inteligibilidade do sentido voluntário-involuntário foi feita sob a abstração da falta e da transcendência. Trata-se de uma abstração relativa à espontaneidade do corpo próprio e relativa à paixão – enquanto vertigem que tem sua fonte na alma mesma – de ser o que se é: na falta e na culpa. No que se refere ao problema da culpabilidade, o autor não o vê como claramente definido, ao contrário, como composto por um emaranhado de aporias. Os sinais de cada paixão devem ser decifrados por meio de seu uso da vida e da cultura. É necessário decifrar os sinais de cada paixão pela vivência e pela cultura, tornando difícil uma fenomenologia das paixões, limitada pelo caráter mítico da noção de culpabilidade. O mito mostra-se irredutível a uma compreensão filosófica puramente racional, o que colocaria a falta ou a culpa alinhada ao sofrimento e à morte. Adicione-se a essa abordagem uma aporia relativa ao não ser, que se constitui em vaidade e poder: Por um lado, toda paixão se organiza em torno de um “nada” intencional, que o mito representa com imagens de trevas, de abismo inferior, de corrupção, de servidão. Este nada específico, este espaço é que habita a suspeita, repreensão, injúria, censura, e faz de toda paixão uma corrida atrás do vento. No entanto, do outro lado, a paixão une indissoluvelmente grandeza e culpabilidade [...] A paixão é poderosa e faz o homem poderoso. A mentira da paixão reside precisamente no investimento da responsabilidade em uma fatalidade estranha que possuiria e arrastaria consigo o querer. Por isso, o mito lhe dá o nome de demônio e ao mesmo tempo de nada e trevas (RICOEUR, 2004, p. 83). Nesse momento, a influência de Jean Nabert se evidencia. De fato, a estrutura da “pequena ética” se resguarda numa orientação reflexiva que o texto “Élements pour une éthique” pode inspirar em seu caminho da liberdade. Ricoeur, em seu prefácio de 1962 para a segunda edição deste texto, já anotava que “Jean Nabert redescobre um Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1802 4 sentido do ético que está mais próximo de Espinosa que de Kant: à destinação entre crítica e reflexão corresponde uma distinção similar entre moral e ética” (RICOEUR, 1962, p.9). A “liberdade segundo a esperança” de Ricoeur faz lembrar que está em jogo tanto o logos grego da tradição filosófica quanto o logos judaico da herança teológica e cristã. Contudo, se há apenas um logos, então, Ricoeur proporia, no texto em questão, que “o logos do Cristo apenas me pede, enquanto filósofo, uma mais completa e mais perfeita realização da razão, nada mais do que a razão, mas a razão inteira” (RICOEUR, 1988, p.392). O discurso filosófico da liberdade, então aproximado ao discurso querigmático da esperança, além de partir da distinção kantiana entre razão e entendimento, busca uma validade de pesquisa filosófica possível na reflexão sobre a religião nos limites da simples razão. O tema da culpabilidade e suas implicações ontológicas É sobre o tema “culpabilidade” que podemos estabelecer a conexão mais clara da presente proposta com a Teologia. Para tanto, uma abordagem muito pertinente é aquela relativa ao problema do mal via hermenêutica do si. Em um primeiro movimento da culpabilidade, observa-se que o símbolo passa a ser o momento subjetivo da falta, enquanto o pecado é o momento ontológico e subordinado da consciência do ser falível. Para evidenciar o simbolismo da culpabilidade, é preciso retornar aos demais símbolos do mito adâmico. A relação entre culpabilidade e pecado se dá quando se considera que [...] o pecado designa a situação real do homem diante de Deus. [...] O profeta é esse homem capaz de anunciar ao Rei que o seu poder é débil e vão. A culpabilidade é a tomada de consciência desta situação real (RICOEUR, 1960, p. 100). Já a relação entre culpabilidade e mancha se mostra como um movimento de subordinação do ser, gerando consciência de falta e, por isso, antecipa o castigo pelo erro cometido. Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1802 5 Vimos que o temor específico da mancha era uma antecipação, uma prevenção do castigo. O castigo assim antecipado estende sua sombra à consciência presente que sente pesar sobre ela o peso da [...] ameaça. O essencial da culpabilidade já está contido nesta consciência de estar carregado [...] com um peso. A culpa nunca será, senão o castigo mesmo antecipado, interiorizado e que pesa já na consciência. [...] O homem carrega com a culpa, porque é ritualmente impuro (RICOEUR, 1960, p.100). A culpabilidade em sua essência simbólica original, sem associá-la à mancha e ao pecado, passa a ser uma consciência revolucionária acerca da experiência do mal, pois: “o mal uso da liberdade é experimentado como uma diminuição íntima do valor do Eu” (RICOEUR, 1960, p.101). Observa-se que a culpabilidade denuncia a possibilidade concreta, na realidade, de diminuir o valor do ser; tal constatação inverte o sentido da lei na vida do sujeito. O eu não cumpre a lei porque vai ser punido, mas porque ela pode ajudar o ser humano a manter sua dignidade. O castigo, então, é consequência desta diminuição do eu feita pela própria pessoa, e não uma vingança de quem deu a ordem que não foi cumprida. Logo, constata-se que a punição se torna pedagogia necessária para manter o valor da pessoa em sua integridade. A lei se transforma em mestre do saber ser. Na individualização da culpa, constata-se que a culpabilidade tem graus distintos e progressivos da consciência da falta. E não mais a ideia de tudo ou nada prescrita pela lei da perfeição, “a consciência culpada. [...] confessa que sua culpa comporta o mais e o menos, que tem graus de gravidade” (RICOEUR, 1960, P.105). O eu pode ser extremamente justo, como malvado. Conclusão Saber-se falível significa, então, admitir-se responsável pelo mal e isso gera uma angústia no ser humano, que sente o inferno da justiça por perceber-se medido pelo seu próprio agir, sentir e pensar e não por Deus. Eis a nova experiência ética Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1802 6 apresentada pelo simbolismo da culpabilidade: o sujeito, consciente de si, faz justiça ao oprimido, pois, ele mesmo dá a si próprio, a sentença pela falta cometida sob o olhar de Deus, que busca manter a aliança com amor incondicional, sempre perdoa e restaura o ser que busca superar suas limitações. O reconhecimento da vulnerabilidade própria de toda subjetividade foi proposto por Ricoeur como um novo estágio da fenomenologia pós-husserliana. Em sua filosofia da vontade, o filósofo francês afirma que o desejo originário ambíguo compromete também uma afecção constitutiva que é vivida sob o simbolismo da mancha, da culpa e do pecado. Referenciais RICOEUR, Paul. La symbolique du mal. Paris: Aubier-Montaigne.1960. RICOEUR, Paul. Préface. In Nabert, Jean. Élements pour une éthique. Paris: Aubier, 1962. RICOEUR, Paul. Le mal, un défi à la philosophie et à la théologie. Genève: Labor et Fides, 1966. RICOEUR, Paul. O discurso da acção. Lisboa: Edições 70, 1988. RICOEUR, Paul. La mémoire, l´histoire, l´oubli. Paris: Seuil, 2000. RICOEUR, Paul. Parcours de la Reconnaissance. Paris: Seuil, 2004. DOSSE, François. Paul Ricoeur: les sens d'une vie. 3. ed. Paris: La Découverte, 1997. THOMASSET, J.B. Paul Ricoeur: Une poétique de la morale. 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