Karla Chediak* 161 O universal na filosofia de Deleuze A rejeição dos conceitos universais por parte de Deleuze ficou bem conhecida a partir de uma enunciação, várias vezes repetida em diferentes obras, que diz: “O primeiro princípio da filosofia é que os universais não explicam nada, eles próprios é que devem ser explicados” (Deleuze & Guattari, O que é a filosofia, p. 15). Apesar dessa sua posição ser bem conhecida e não deixar dúvidas quanto à recusa de dar um lugar de importância para o universal, é possível se questionar a extensão dessa rejeição e suas conseqüências. Tomo como ponto de partida para essa reflexão a resposta de Deleuze ao filósofo Manfred Frank na sua conferência intitulada - O que é um dispositivo apresentada no Colóquio Foucault em 1985. No momento das discussões, logo após a apresentação do texto de Deleuze, M. Frank observa que a filosofia de Foucault já pertence a uma tradição pós-hegeliana que rompeu com o universal do pensamento das luzes; no entanto, ainda encontraríamos universais em Foucault, tais como os conceitos de discurso, de dispositivo, de arquivo, etc. Isso provaria, então, que Foucault não estabeleceu uma ruptura absoluta com o universal, mas uma ruptura com certo tipo de universal, aquele que forma unidade absoluta, totalizante. Assim, haveria produção de universais em Foucault atuando permanentemente e em todos os níveis (Deleuze, .1989, p. 193). Porém, ao considerarmos o texto que Deleuze apresentou no Colóquio, observamos que seu esforço é o de mostrar exatamente o contrário, ou seja, o de compreender o conceito de dispositivo sem apelar em nenhum momento para a noção de universal e sem fazer dele um conceito universal. A partir dessa discussão, observamos a formação de duas abordagens interpretativas bastantes distintas sobre a noção de dispositivo em Foucault: uma universalista, outra não-universalista. Na realidade, o nosso interesse * Professora do Depto. de Filosofia da UERJ. o que nos faz pensar n021, maio de 2006 162 Karla Chediak está na resposta que Deleuze dá a M. Frank e que procuramos utilizar como guia para o desenvolvimento da nossa questão sobre os universais. A descrição da resposta de Deleuze nos mostra que o filósofo assinalou que a verdadeira fronteira não está entre universais e particulares, mas entre constantes e variáveis e que a crítica dos universais poderia se traduzir em uma única questão: como é possível que algo novo surja no mundo? Assim, observa Deleuze que a noção de dispositivo em Foucault pode ser apresentada como um termo geral, mas que deveríamos compreender que esses termos gerais são apenas nomes, nomes de variáveis. De fato, para ele, não há universais, não há senão linhas de variação contínua. Por fim, ele diz que o único sentido dos termos gerais é tornar possível a estimativa, ou seja, a avaliação dessa variação contínua (idem). A partir da resposta que Deleuze dá a Manfred Frank, é possível colocarmos três questões: a primeira diz respeito ao que ele compreende por universal e qual é a diferença que existe entre constante e universal; a segunda visa a responder como ele compreende o funcionamento do pensamento sem a presença do universal e, por fim, reconhecendo que, a despeito de tudo, o pensamento não pára de produzir universais, qual seria o seu papel ou a sua função, uma vez que eles existem. Em Diferença e Repetição, Deleuze estabelece uma distinção entre universal e geral, que acredito não ser mais utilizada nas obras posteriores, quando começa a criticar o universal. Em O que é a filosofia, o que Deleuze e Guattari chamam de universal é exatamente o mesmo que ele compreendeu como sendo geral em Diferença e Repetição. Na introdução desta obra, Deleuze estabelece uma distinção entre universal e geral, em que o geral distingue-se do universal por apresentar a semelhança ou a igualdade que há entre duas coisas e que permite que a unifiquemos no conceito. Para Deleuze, a generalidade se define a partir de duas ordenações: a ordem qualitativa das semelhanças e a ordem quantitativa da equivalência. Isso nos mostra o quanto a generalidade diz respeito ao processo de abstração originário da ordem empírica, pois são os entes existentes que são organizados em qualidades sensíveis e em quantidades mensuráveis. O pensamento da generalidade é expressão de um processo de abstração do sensível, seja isso feito de modo explícito ou implícito, quer dizer, pensado como abstração de dados empíricos ou fundado em um sujeito de natureza transcendental. A construção de estruturas transcendentais advém da abstração dos atos empíricos de uma consciência psicológica; na verdade, não haveria outra forma de se chegar a essas estruturas (ibidem, p. 224). O universal na filosofia de Deleuze A caracterização do geral em Diferença e Repetição segue o seguinte critério: um conceito é geral quando seus termos podem ser trocados por outros, sem alteração do próprio conceito. Chamamos de particular exatamente esse termo que pode ser substituído por outro sob um mesmo conceito geral, pois o particular se define exatamente por essa propriedade de submissão ao geral: “a troca ou a substituição dos particulares define nossa conduta em correspondência com a generalidade” (ibidem, p. 21). Em oposição a esse par, Deleuze apresenta o par singular-universal, em que o singular, diferentemente do particular, vai se caracterizar como sendo algo único, não generalizável e que não se sujeita a nenhum processo de unificação pela semelhança ou pela equivalência, não podendo por isso mesmo ser representado. E embora não se possa generalizar o singular, pode-se repeti-lo e essa repetição é sempre uma recriação, ou seja, o aparecimento de um novo singular: “repetir é comportar-se, mas em relação a algo único ou singular, algo que não tem semelhante ou equivalente” (ibidem, p. 22). O que Deleuze nos apresenta é a possibilidade de se conceber um movimento que vai de singular a singular sem passar pelo geral. O universal, nesse caso, não é o geral, ao contrário, se diz da repetição diferencial do singular. Ele cita P. Servien como exemplo para mostrar o funcionamento desses dois pares: enquanto as ciências seriam dominadas pelo símbolo da igualdade, fundando o domínio da generalidade e da lei; a linguagem lírica, em que cada termo é insubstituível, fundaria o da repetição (idem). A duplicidade de pares, particular e geral, singular e universal deixa-se expressar ainda mais quando Deleuze estabelece a segunda distinção, em que a generalidade é apresentada como sendo constitutiva de leis, uma vez que toda lei se assenta na semelhança dos sujeitos a ela subordinados e que para os sujeitos da lei, a repetição é impossível: “há permanências na natureza, perseveranças, assim como fluxos e variações. Mas uma perseverança não faz uma repetição” (ibidem, p. 23). A verdade é que enquanto houver pares, haverá uma dinâmica dualista, haverá por um lado o domínio do constante, do permanente, que se deixa generalizar e haverá variações que só se deixam repetir. No entanto, apesar de apresentar a duplicidade de pares, esses não têm, para Deleuze, o mesmo valor ontológico. Ao contrário, desde Diferença e Repetição esses pares terão pesos distintos. A prioridade do par singular-universal fica clara ao considerarmos a seguinte passagem: “As constantes de uma lei, por sua vez, são variáveis de uma lei mais geral, algo assim como os mais duros rochedos tornando-se matérias moles e fluidas na escala geológica de um milhão de anos” (ibidem, p. 23). 163 164 Karla Chediak Além do mais, isso se reforça quando consideramos outros dois pares importantes: virtual e atual, possível e real, que servem para pensar os processos de gênese das determinações. Eles se distinguem porque o possível e o real estão relacionados pela sua semelhança interna; o que é possível deve ser previsível a partir do real já constituído; enquanto que o virtual é por definição dessemelhante do atual e não pode ser previsível, ele explica, então, a gênese pela diferença. Para mostrar que eles não têm o mesmo valor ontológico para Deleuze, basta considerarmos o que ele diz sobre o possível e o virtual: “No virtual, a diferença e a repetição fundam o movimento da atualização, da diferenciação como criação, substituindo, assim, a identidade e a semelhança do possível, que só inspiram um pseudomovimento, o falso movimento da realização como limitação abstrata” (ibidem, p. 342). Desse modo, podemos observar que mesmo que haja diferentes processos de gênese, eles não têm o mesmo valor ontológico. O par possível e real, bem como o par particular e geral não atingem o que lhe parece importante, quer dizer, a gênese das determinações pela diferença, pois o primeiro apresenta um falso movimento e o segundo nem sequer apresenta movimento, sendo um mero processo de abstração. Ainda podemos encontrar esse pensamento na resposta que Deleuze dá a M. Frank, quando afirma que em relação ao universal só há uma questão verdadeiramente importante: como se explica que algo novo surja? Para Deleuze, essa questão é fundamental e teria se tornado essencial no nosso tempo, porque vivemos em um tempo para o qual não há mais nenhuma transcendência possível. O problema é que não se consegue respondê-la apelando para algum conceito universal nem para a relação possível-real. No seu pequeno texto Périclès et Verdi, Deleuze nos diz que a filosofia de Chatelet é uma filosofia para a qual Deus não é mais um problema, sua morte ou inexistência teria deixado de ser problema para se tornar condição para que qualquer problema realmente importante possa ser levantado (Deleuze, Périclès et Verdi, p. 7). Assim, a resposta à questão apresentada sobre a gênese do novo vai gerar a crítica fundamental ao universal, pois não estando relacionado a nenhuma unidade transcendente e originária, o universal não pode ser o fundamento, não pode explicar nada, mas deve ser explicado. Não há, para Deleuze nenhuma estrutura universal, simples e primitiva, seja biológica, física, lingüística ou filosófica, que possa fornecer dados originários e comuns para servir de suporte ou fundamento para o pensamento e o conhecimento. O originário em última instância é sempre singular, a atualização de um virtual e, por isso, a emergência do novo, ou seja, a gênese das determinações vai se explicar pela diferença, pelo singular. O universal torna- O universal na filosofia de Deleuze se um conceito derivado e secundário e por não poder explicar o aparecimento de algo, não serve para pensar a gênese do real uma vez que toma a realidade sempre como já dada. Cabe aqui observar que essa crítica dirigida ao universal é a mesma que foi dirigida ao geral, indicando assim que a distinção estabelecida na Diferença e Repetição foi abandonada. A passagem bem conhecida que citamos e que diz que o universal não explica nada exatamente porque não explica a gênese do novo se reafirma em uma segunda passagem também bastante conhecida que diz que a questão da filosofia é primeiramente a criação e secundariamente a reflexão, a comunicação e a contemplação (Deleuze & Guattari, O que é a filosofia, p. 15). Esses processos do pensamento seriam essencialmente ‘máquinas de produção do universal’ e é por isso que Deleuze os julga secundários, uma vez que o universal é secundário. A filosofia tem como atividade primeira a criação e tem como objeto próprio o conceito que não é nem universal nem particular, mas singular.1 A noção de singular distingue-se do particular e do individual porque não se deixa subordinar ao universal e isso ocorre porque falta ao singular identidade e unidade mínima para que possa ser apreendido pela representação.2 Por ser um conjunto de singularidades, ou seja, uma multiplicidade, o conceito deve ser pensado como variação pura. Chegamos assim á segunda questão proposta que é a de compreender a distinção entre constante, variável e variação pura utilizada no lugar da distinção entre particular e universal, como afirmou Deleuze na sua resposta dirigida a M. Frank. Em Mil Platôs, quando tratam dos postulados da lingüística, Deleuze e Guattari utilizam largamente essas noções de constantes e variáveis e esse novo par substitui de certo modo todos que apresentamos até agora: particular e geral, particular e universal e até singular e universal. A meu ver isso ocorre primeiramente para dar fim à prioridade do universal e à subordinação do particular presente na relação entre universal e particular. Quando nos apresenta o par constante e variável, uma das observações mais importantes feitas por Deleuze é a de que não deveríamos conceber as cons1 “Não existem universais, mas apenas singularidades. Um conceito não é um universal, mas um conjunto de singularidades em que cada uma se prolonga até a vizinhança de uma outra.” Deleuze, Conversações, p. 183. A meu ver, é preciso cuidado para não se tomar a negação da existência dos universais ao pé da letra. Como veremos, há produção de universais sim, o que está em questão aqui é seu valor e seu grau de realidade ontológico. 2 A relação do particular com o universal é tal que embora se reconheça a existência de uma interdependência entre eles, a verdade é que o universal para sustentar seu valor próprio não pode ser explicado pelo particular, ao contrário, esse que deve ser explicado pelo universal. Se não for assim, acabamos nos aproximando de uma posição nominalista e empirista, que recusa a autonomia do universal, tal como Deleuze o faz. 165 166 Karla Chediak tantes como se elas pudessem existir independentemente das variáveis, ou seja, ao lado delas. Esse nunca é o caso, pois as constantes devem ser sempre entendidas como tendo sido retiradas das variáveis: Erramos algumas vezes ao agir como se as constantes existissem ao lado das variáveis, constantes lingüísticas ao lado de variáveis de enunciação: isso foi feito por comodidade de exposição. Pois é evidente que as constantes são tiradas das próprias variáveis; os universais não têm mais existência em si na lingüística do que na economia, e são sempre inferidos a partir de uma universalização ou de uma uniformização que se refere às variáveis (Deleuze & Guattari, Mil platôs, v.2, p. 49). O que parece ser uma conseqüência inevitável do pensamento de Deleuze é que em última instância o que existe, o que é real ontologicamente é a variação; a constante, tal como já dissemos do universal, tem uma natureza secundária e derivada e, por isso, tem uma realidade ontológica mais fraca. Há, portanto, entre a noção de universal e de constante, tal como Deleuze a concebe, uma profunda analogia, uma vez que ambas significam fundamentalmente o que é comum e o que permanece inalterado e tanto o universal, quanto a constante perdem seu lugar prioritário. No entanto, a utilização do par variável e constante em vez de universal e particular não parece ser gratuita, ela estabelece uma alteração verdadeira na relação, pois enquanto o particular depende do universal e por meio dele se explica, é a constante que se explica por meio das variáveis. Além de revelar melhor sua dependência e subordinação em relação às variáveis, a noção de constante mostra mais enfaticamente a dimensão processual, a dinâmica existente entre constante e variável, enquanto que no par universal e particular, em que uma categoria geral qualquer submete os indivíduos, a relação é estática. Se, para Deleuze, o universal não existe é porque não tem independência ou autonomia, mas certamente o universal existe em outro sentido, pois ele não nega a existência de processos de universalização, entendidos como processos de uniformização das variáveis. Segundo Deleuze, há dois modos de se tratar as variáveis: um desses modos nos leva a procurar suas regularidades e estabelecer constantes, o outro a entendê-las a partir de sua relação como um processo de variação contínua. O principal exemplo de Deleuze para pensar o processo de variação contínua é o conceito filosófico, em que utiliza as noções de singularidade e de multiplicidade, de virtual e atual e não de variável e constante: O universal na filosofia de Deleuze Mas, contrariamente ao que se passa na ciência, não há nem constante nem variável no conceito, e não se distinguirão nem espécies variáveis para um gênero constante nem espécie constante para indivíduos variáveis. As relações no conceito não são nem de compreensão nem de extensão, mas somente de ordenação, e os componentes do conceito não são nem constantes nem variáveis, mas puras e simples variações ordenadas segundo sua vizinhança (Deleuze & Guattari, O que é a filosofia, p. 32). Não há constante no conceito, por isso não se deve utilizar o para constante-variável para pensar o conceito. Recorre-se aos pares virtual e atual, singularidade e multiplicidade para pensar a variação contínua, a variação pura e simples. O conceito filosófico é uma multiplicidade, estando sempre em variação, sendo formado por elementos tanto atuais quanto virtuais, sendo as singularidades suas atualizações, entendidas na sua relação de inseparabilidade do virtual. O conceito dá consistência ao virtual e não se separa dele, ele atualiza o virtual, mas o atual pertence ao virtual.3 Desse modo, o universal não pertence prioritariamente à filosofia, porque essa é primeiramente criação e a atividade de universalização ou supõe o mundo como dado, como se ele já estivesse lá desde sempre, pronto para se submeter ao processo de abstração ou pretende fornecer o fundamento originário a partir do qual o real se constitui. De qualquer modo, em ambos os casos só se considera o atual, como isolado do virtual, ou seja, só considera o ser individualizado, mas para Deleuze o atual é apenas uma parte do real.4 A capacidade do pensamento de ser um processo de variação pura é o que vai distinguir verdadeiramente ciência e filosofia, pois enquanto a filosofia lida com a variação contínua, a ciência se determina por meio da formação de constantes relacionadas às variáveis. Ao atualizar o virtual, a ciência renuncia ao virtual e forma um sistema de referências, ou seja, o domínio da objetividade. O exemplo fornecido por Deleuze é o de que ao adquirir uma posição, 3 “O plano de imanência compreende, a um só tempo, o virtual e sua atualização, sem que possa haver limite assinalável entre os dois. O atual é o complemento ou o produto, o objeto da atualização, mas esta só tem por sujeito o virtual. A atualização pertence ao virtual. A atualização do virtual é a singularidade, enquanto o próprio atual é a individualidade constituída. O atual cai para fora do plano como fruta, enquanto a atualização o relaciona ao plano como ao que reconverte o objeto em sujeito.” Deleuze & Parnet, Diálogos, p.175. 4 A noção de virtualidade nos remete a um campo especulativo concebido por Deleuze como préformal e pré-individual, ou seja como uma realidade potencial sem a qual não se poderia conceber a heterogênese, que designa fundamentalmente a capacidade das coisas se tornarem distintas do que elas são atualmente. 167 168 Karla Chediak uma partícula ganha uma massa, uma energia, ou seja, uma atualidade física e isso ocorre porque foram estabelecidos limites, ou seja constantes físicas.5 O estado de coisas real é assim formado a partir da relação de pelo menos duas variáveis independentes e o que se põe para além dos limites e das constantes é o caos, que, no sentido filosófico, significa um movimento tal em que é impossível o aparecimento de qualquer determinação; ele não é inerte, mas desfaz toda consistência, toda constância e toda referência possível. A ciência, então, por sua natureza luta contra o caos, enquanto que a filosofia, não. A ciência produz uma redução na variabilidade contínua para pôr nela limites, que originam as variáveis independentes, já o conceito não possui nem constante nem variável e se define pela relação de suas componentes, por sua consistência interna e por sua consistência externa, quer dizer, pela relação das suas componentes entre si e da relação dos conceitos uns com os outros. Por isso, o conceito não tem referência, uma vez que põe a si mesmo, ele é sempre auto-referente. Compreendemos assim porque, para Deleuze, a verdadeira fronteira está entre constante e variável e não entre universal e particular. Não faria sentido falar de particular sem universal, mas faz sentido falar da variação pura e simples sem constantes, do mesmo modo que falamos da relação entre variáveis e constantes. Nossa última questão diz respeito à função dos universais ou mais exatamente à função dos processos de universalização que o pensamento produz. Em primeiro lugar, é preciso assinalar que, para Deleuze, a razão entendida como razão universal se apresenta ou como essencialista ou como uma faculdade produtora de fins. Em ambos os casos remeteriam a uma transcendência. A transcendência da idealidade dos fins é a transcendência daquilo que se constitui como universal de direito. Para Deleuze, entretanto, gerar realidade, determinação, é atualizar o virtual, ou seja, criar e não agir tendo em vista fins que a reflexão nos faz considerar desejáveis. Quer dizer, ir de uma singularidade à outra, agenciando-se e prolongando a própria singularidade sem passar pelo universal. O universal não moveria de fato, mas submeteria o movimento a fins que o transcendem. Em segundo lugar, Deleuze acredita que exista uma estreita relação entre o universal e o poder, já que o processo de 5 “A ciência tem uma maneira inteiramente diferente de abordar o caos, quase inversa: ela renuncia ao infinito, à velocidade infinita, para ganhar uma referência que o atualiza por funções. A filosofia procede por um plano de imanência ou de consistência; a ciência, por um plano de referência. No caso, da ciência, é como uma parada da imagem. É uma fantástica desaceleração, e é por desaceleração que a matéria se atualiza, como também o pensamento científico, capaz de penetrá-la por proposições.” Deleuze & Guattari, O que é a filosofia, p.154. O universal na filosofia de Deleuze universalização se relacionaria sempre com um exercício de dominação efetiva ou pretendida. Um exemplo desse vínculo pode ser encontrado no estudo que desenvolve, junto com Guattari, sobre a linguagem, em Mil Platôs, em que se recusa a pensar a linguagem como um sistema homogêneo, que possuiria alguns termos e relações constantes, as chamadas invariantes estruturais, que seriam os universais da linguagem. Na verdade, ele acredita que a linguagem está em variação permanente, que ela é um sistema de variação contínua e que por trás das diferentes línguas empíricas não haveria nenhuma estrutura universal, neutra, e por isso mais do que funcionar como aquilo que permanece sempre o mesmo, as constantes ou os universais funcionariam como centros formadores de modelo, de padronização, segundo um processo de homogeneização. O conjunto de constantes e de relações constantes seriam sempre frutos de processos de abstração, de universalização a partir de processos de variação mais originários. Para Deleuze, pensar a língua como variação contínua garantiria, por um lado, que ela se apresente como um processo de diferenciação e, por outro lado, que não se reduza ou hierarquize suas funções, que vão desde a mais livre que é a poesia, passando pela filosofia e a ciência até a lógica que seria sua expressão mais abstrata. Deleuze entende que a enunciação remete aos agenciamentos coletivos que não são nem universais nem particulares, mas são da ordem da virtualidade, em que cada efetuação seria uma singularidade, por isso existiriam tantos enunciados, quantas fossem as efetuações. Sem dúvida, as reduções podem ser feitas, mas elas não responderiam à questão fundamental da criação, ao problema de saber como seguir adiante, pois não poderíamos progredir sem entrar nas regiões distantes do equilíbrio, regiões em que as pseudoconstantes seriam reconduzidas ao estado de variação (Deleuze, Crítica e clínica, p. 124). A questão da criação só pode ser verdadeiramente posta, para Deleuze, se não admitirmos distinções prévias. Constantes e variáveis dizem respeito ao modo de tratamento das variáveis, consideradas ora como centros provisórios ora como variação contínua. É por isso que a língua apresenta essa variedade de modos que vai da expressão máxima da variação na poesia até a sua formalização máxima na lógica. Há, portanto, pelo menos uma instância em que a ação ainda não estaria articulada aos processos de dominação e seria o que ele denomina as pontas de desterritorialização. Desse modo, nem todo agenciamento se restringiria a formar territórios, codificações, sobrecodificações e, conseqüentemente, desencadear processos de centralização, totalização e unificação. No domínio da codificação e da territorialização há sempre universalização, mas o movi- 169 170 Karla Chediak mento de desterritorialização e de decodificação introduz variações ou inovações e essas se dão pelas pontas de desterritorialização dos agenciamentos que são linhas de fuga a conduzir o movimento, traçando o vir-a-ser, o futuro. Esses movimentos são por natureza revolucionários, isso quer dizer que provocam deslocamentos em relação a qualquer estado de coisas constituído, a qualquer relação de força estabelecida. A sociedade não se contradiz, a sociedade foge, nos diz Deleuze ao assinalar a prioridade desse movimento de fuga em relação a todos outros que possam fazer parte da sociedade.6 Essa concepção tem uma conseqüência prática importante, uma vez que toda criação tem sua gênese no movimento das linhas de fuga. De fato, as decisões e as escolhas determinadas pelo juízo pouco poder teriam sobre a determinação do nosso futuro porque o movimento sempre se faz por outros meios. Além desse aspecto, Deleuze exclui também desse movimento qualquer finalismo, pois no movimento de fuga das sociedades não há lugar parar finalismos. Esses implicariam uma codificação prévia, uma idealização do futuro, uma previsão do que seria melhor, ou seja, um juízo sobre a realidade, mas a política, nos diz Deleuze, é uma experimentação ativa, porque nunca se sabe de antemão o que vai acontecer com uma linha.7 As linhas de fuga são o que escapa, o que por definição não é codificado, embora possa estar sujeita à codificação e à sobrecodificação e seu processo de universalização, mas quando isso ocorre é porque não se trata mais da linha de fuga. Devido a seu caráter criador, ela é primeira e devemos considerá-la como o único fenômeno real de resistência a todo tipo de poder estabelecido. Desse modo, podemos concluir que parece não haver nenhuma função positiva para os universais no contexto da filosofia de Deleuze. No entanto, podemos questionar se os processos de universalização constituídos pela sociedade não poderiam ser pensados como possuindo um certo papel útil, no sentido de fornecer as condições restritivas e limitadoras, porém necessárias, para a atividade própria do pensamento e da ação criadora. O que parece bastante claro é que Deleuze se recusa a associar ao universal um valor originário, ou seja, a função de princípio e de fundamentação a priori e isso quer dizer que nenhum universal responderia pela gênese das determinações do pensamento e da realidade. Também é bastante evidente que ele tampouco atribui aos universais o poder de determinar ou dirigir o futuro, por exemplo as nossas idealizações e os valores universais que muitas vezes pensamos guiar nossa ação prática teriam pouco ou nenhum efeito sobre as transformações 6 Deleuze & Guattari, Mil platôs, v. 3, p. 94. 7 Deleuze & Parnet, Diálogos, p.158. O universal na filosofia de Deleuze reais da sociedade. A função dos universais quando associado ao futuro seria sempre a de julgar o devir, introduzindo finalidade no que por si mesmo não possuiria finalidade nenhuma.8 O que parece sobrar de fato para os universais e penso que, no contexto do pensamento de Deleuze, é isso que lhe cabe, é uma função conservadora, de reter o processo de criação, de impor um mecanismo de reprodução e de repetição ao estado de coisas constituído. Ele responderia pela estabilidade do real, por sua constância e regulação. A questão, no entanto, poderia ainda continuar a ser colocada, já que podemos perguntar se essa função do universal seria algo totalmente negativo. Acredito que encontramos em Deleuze muitas razões para dizer que sim, mas pelo menos em relação a um aspecto poderíamos relativizar nossa resposta afirmativa, porque é só com relação a um estado de coisas constituído que qualquer ruptura pode ser estabelecida. O movimento de desterritorialização e decodificação só faz sentido quando pensado em relação à codificação e ao território, mesmo que provisoriamente traçados. Por isso, não se pode dissociar os movimentos de desterritorialização dos de reterritorialização e os de codificação e sobrecodificação do de decodificação. São processos coexistentes e simultâneos. Um segundo aspecto do problema é a nossa atitude diante dos mecanismos de regulação e de conservação associados ao processo de universalização tendo em vista nosso compromisso com a atividade criadora. Deveríamos resistir a todos eles? Novamente acredito que encontramos nos textos de Deleuze uma forte razão para se dizer que sim, no entanto, quando consideramos que toda forma de resistência se dá em um movimento de criação ou de fuga e precisa estar agenciada com outras linhas para não se transformar em uma linha de morte, entendemos que todo processo de ruptura nunca ou talvez só raramente pode ser total, pois envolve riscos, riscos de destruição total, até mesmo de si próprio.9 Desse modo, acredito que a questão não pode ser reduzida a um simples: todo universal por ser expressão de uma dominação tem que ser combatido. Na realidade, estamos de certo modo comprometidos com processos de universalização, mesmo que relativizados, ou 8 Deleuze afirma no seu texto Para dar um fim ao juízo que todo juízo supõe critérios préexistentes e isso significa para ele valores superiores e atemporais e por isso ‘não consegue apreender o que há de novo num existente, nem sequer pressentir a criação de um modo de existência”... Deleuze, Crítica e clínica, p 153. 9 “Por que a linha de fuga é uma guerra na qual há tanto risco de se sair desfeito, destruído, depois de se ter destruído tudo o que se podia? Eis precisamente o quarto perigo: que a linha de fuga atravesse o muro, que ela saia dos buracos negros, mas que, ao invés de se conectar com outras linhas e aumentar suas valências a cada vez, ela se transforme em destruição, abolição pura e simples, paixão de abolição” Deleuze & Guattari, Mil platôs, v. 3, p. 112. 171 172 Karla Chediak seja, derivados de nossa situação, tendo, portanto, o caráter provisório, sujeito a mudança e com função reguladora. Eles se mostram necessários para que decidamos a cada momento de ação e de decisão que coisas iremos ratificar e ao que iremos resistir como único modo de se construir um meio propício para inserirmos a própria ação criadora.10 Bibliografia Chediak, K. Introdução à filosofia de Deleuze. Londrina: UEL, 1999. Deleuze, G. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992. ________ Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997. ________ Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. ________ Périclès et Verdi. La philosophie de François Châtelet. Paris: Minuit, 1988. ________ Qu’est-ce qu’un dispositif? in Michel Foucault philosophe, rencontre internationale. Paris: Ed. du Seuil, 1989. Deleuze, G. & Guattari, F. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia, 5 vols. São Paulo: Ed. 34, 1995. ________ O que é a filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1992. Deleuze, G. & Parnet, C. Diálogos. São Paulo: Escuta. 1998. May, T. The Political Philosophy of Poststructuralist Anarchism. Pennsylvania: Pennsylvania State Univ. Press, 1994. Pébart, P. & Rolnik, S.(org.) Cadernos de Subjetividade – Deleuze, (n. especial), São Paulo: PUC-SP ed., 1996. 10 Acredito que T. May tem razão quando afirma que nem toda sobrecodificação deve gerar resistência, embora não esteja certa de que se possa derivar isso da filosofia de Deleuze. Para May é preciso descobrir seus efeitos tanto repressivos quanto criativos de modo a questionar sobre o que devemos e sobre o que não devemos resistir. May, T. The Political Philosophy of Poststructuralist Anarchism, p. 107.