Macroglossia: revisão da literatura ARTIGO DE REVISÃO Macroglossia: revisão da literatura Macroglossia: literature review Francisco de Assis Alves Teixeira1, Francisco de Assis Alves Teixeira Junior2, Renato da Silva Freitas3, Nivaldo Alonso4 RESUMO SUMMARY Macroglossia é uma patologia de múltipla etiologia e relativamente incomum em crianças. Esta entidade pode ser classificada como verdadeira, quando há um aumento excessivo da língua, ou como relativa, quando o espaço da cavidade oral é insuficiente para o órgão. Ambas as condições podem ser congênitas ou adquiridas. Malformações vasculares, hipertrofia muscular e tumores são as causas mais comuns de macroglossia verdadeira. A síndrome de Down é a principal causa de macroglossia relativa. A incompatibilidade do tamanho da cavidade oral com as dimensões da língua causa deformidades dentárias e musculoesqueléticas, além de problemas na fala e no manejo de vias aéreas, podendo acarretar até mesmo em obstrução. Em lactentes e em crianças pequenas, a diminuição de mobilidade de língua aumenta o risco de aspiração por meio da diminuição da capacidade de manipular o bolo alimentar para dentro da cavidade oral e da orofaringe. A mastigação está diretamente prejudicada, pois a língua, aumentada de tamanho, recobre os dentes, resultando em traumas e em ferimentos repetidos do órgão, provocando sangramento e dor. Na criança em crescimento, a macroglossia secundária induz à ampliação dos espaços intradentais, bem como à oclusão dentária anormal devido ao aumento mandibular e maxilar. Além disso, todas essas alterações mudam a aparência facial, o que resulta em significativa preocupação psicossocial. Nesse artigo, é apresentada uma revisão da abordagem de pacientes com macroglossia, quanto aos critérios diagnósticos, às técnicas cirúrgicas empregadas e aos resultados obtidos. Macroglossia is a disease of multiple etiology and relatively uncommon in children. This entity can be classified as true macroglossia when there is an excessive increase of the tongue, or as relative macroglossia, when the space of the oral cavity is insufficient for the organ. Both conditions can be congenital or acquired. Vascular malformations, tumors and muscle hypertrophy are the most common causes of the true form of the disease. Down syndrome is the leading cause of relative macroglossia. The incompatibility of the oral cavity size with the dimensions of the tongue causes dental and musculoskeletal deformities, besides problems with speech and with airway management, which may cause even obstruction. In infants and small children, the decreased tongue mobility increases the risk of aspiration by reducing the ability to manipulate the food bolus into the oral cavity and oropharynx. Chewing is negative and directly affected, once the tongue, increased by size, covers the teeth, resulting in traumas and repeated wounds of the organ, producing bleeding and pain. On the growing child, the secondary macroglossia induces interdental distances expansion, as well as an abnormal dental occlusion, due to the mandibular and maxillar enlargement. Moreover, all these alterations change the facial appearance, leading to significant psychosocial concern. This paper presents a management review of patients with macroglossia, concerning diagnostic criteria, surgical techniques and results. Descritores: Macroglossia. Síndrome de BeckwithWiedemann. Glossectomia. Descriptors: Macroglossia. Beckwith-Wiedemann syndrome. Glossectomy. 1. Cirurgião plástico do Hospital Albert Sabin, membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. 2. Estudante de Medicina, Universidade Federal do Ceará. 3. Professor Adjunto IV da Disciplina de Cirurgia Plástica da Universidade Federal do Paraná. 4. Professor livre-docente, Chefe do Serviço de Cirurgia Craniomaxilofacial da Divisão de Cirurgia Plástica e Queimaduras do HC-FMUSP. Correspondência: Francisco de Assis Teixeira Rua Carlos Vasconcelos, 2530 – Fortaleza, CE – CEP 60115-170 E-mail: [email protected] Rev Bras Cir Craniomaxilofac 2010; 13(2): 107-10 107 Teixeira FAA et al. INTRODUÇÃO Figura 1 - Paciente do sexo feminino, nascida a termo, APGAR 8/9, apresentava macroglossia, cisto sublingual e hérnia umbilical. Ultrassonografia abdominal não revelou anomalias. Ficou com hipótese diagnóstica da Síndrome de Beckwith-Wiedemann. Aos 6 anos de idade, retornou por dificuldade de fala e de deglutição (A). Submetida a glossectomia subtotal segundo técnica de Egyedi-Obwegeser (B, C e D). Após 6 meses de pós-operatório, paciente encontra-se com melhora significativa da fonação e da deglutição (E). Macroglossia é uma condição relativamente incomum, que ocorre em pacientes pediátricos e contribui para uma variedade de problemas funcionais1-8. Mais comumente, a macroglossia decorre do crescimento exagerado do tecido muscular e hipertrofia da língua (Quadro 1). Tal condição é vista com frequência na síndrome de Beckwith-Wiedemann (Figura 1). Essa síndrome é uma desordem de crescimento caracterizada pela macrossomia, macroglossia, visceromegalia, tumores embriogênicos (como tumor de Wilms, hepatoblastoma, neuroblastoma e rabdomioblastoma), onfalocele, hiperglicemia neonatal, fístulas auriculares, citomegalia adrenocortical e anormalidades renais. Tem índice de mortalidade ao redor de 20%, principalmente pela prematuridade. A macrossomia e a macroglossia podem estar presente ao nascimento ou aparecerem com o desenvolvimento. Anormalidades genéticas do cromossomo 11p15 são encontradas em menos de 1% dos casos. Testes demonstraram mutação no gen CDKN1C em 40% dos casos familiares e 5-10% nos casos isolados9. Em nosso conhecimento, não há critérios diagnósticos objetivos para macroglossia, nem técnicas de medida direta para descrever um tamanho de língua “normal” ou patologicamente aumentado. Apesar de Wolford e Cottrell8 terem relatado diversas características clínicas e cefalométricas como sinais e sintomas da macroglossia, tais parâmetros foram utilizados apenas para o aspecto ortodôntico, e não, como critérios diagnósticos. Portanto, a inexistência de um método eficaz e prático para dimensionar a língua dificulta o diagnóstico da macroglossia10,11. A indicação imperiosa de intervenção cirúrgica em macroglossia é a obstrução de vias aéreas, como no caso do lactente, com quadro de obstrução de vias aéreas (Figura 2). Outras indicações para cirurgia incluem problemas de deglutição e dificuldades de articulação, secundárias ao aumento volumétrico da língua e a problemas de mobilidade associados (Figura 3). A C B D Dios et al.12 mencionaram ainda, como indicador de tratamento cirúrgico, desordens psicológicas, em consequencia à aparência do paciente, tais como protrusão de língua, dislalia e sialorréia, o que dá a falsa impressão de deficiência mental. Os procedimentos cirúrgicos buscam reduzir o tamanho e volume da língua, enquanto são mantidas mobilidade e a função6,13. No entanto, ainda não há estudos prospectivos randomizados comparando as abordagens terapêuticas em macroglossia14. Van Lierde et al.15 demonstraram a melhora da fonação e do convívio social de pacientes tratados da macroglossia. Diversas técnicas para reduzir o tamanho da língua por excisão cirúrgica da musculatura lingual já foram descritas16-23 (Figura 4). Hoje em dia, a maioria das reduções é realizada por meio da remoção em forma cunha ou “em orifício de fechadura” de tecido lingual, na linha média. Em todos os procedimentos cirúrgicos dos nossos pacientes foi utilizada a técnica de Egyedi-Obwergeser (Figura 1C). Nós acreditamos que este método é adequado para preservar o feixe neurovascular e obter a redução desejada da língua, uma vez que o principal suprimento neurovascular da língua, artéria lingual, nervos Quadro 1 - Causas da macroglossia. Supercrescimento da língua • síndrome de Beckwith-Wiedemann Infiltração dos tecidos • malformação linfática • malformação venosa • neoplasia • cistos congênitos • mucopolissacaridose • amiloidose Macroglossia relativa • síndrome de Down • micrognatia • hipotonia muscular Fonte: Perkins7. Rev Bras Cir Craniomaxilofac 2010; 13(2): 107-10 108 Macroglossia: revisão da literatura Figura 3 - Paciente com epignathus, submetida previamente a ressecção do teratoma oral, apresentava lesão exofítica em dorso da língua (A). Foi submetida à resseção da tumoração (B, C e D), que demonstrou ser um hamartoma. Figura 2 - Paciente do sexo masculino, nascido de parto normal, pré-termo, gemelar. Encaminhado com 3 meses por apresentar dificuldade em se alimentar e dispnéia. Apresentava importantes desconforto respiratório e aumento da língua, principalmente do lado direito, assimetria de face e desvio de língua para a esquerda (A). A tomografia computadorizada evidenciou acentuado aumento volumétrico da língua, redução acentuada do conduto aéreo próprio da rinofaringe. A glossectomia parcial foi realizada (B). Aos 4 anos de idade, paciente retornou ao ambulatório apresentando volume lingual acentuado (C), sendo submetida a nova glossectomia parcial (D), notar o uso do eletrocautério para a ressecção. Paciente no 2º ano de pós-operatório, sem dificuldades de deglutição e com boa fonação. A C A B C D B D Figura 4 - Técnicas de glossectomia parcial. A. Edgerton (1950); B. Dingman (1961); C. Egyedi (1964); D. Kole (1965); E. Gupta (1971); e F. Morgan (1996). lingual e hipoglosso entram lateralmente ao órgão, para só depois seguirem anteriormente, sem cruzar a linha média16. Isso permite a excisão de grandes porções da linha média da língua, sem diminuir a mobilidade, sensibilidade ou comprometer a vasculatura24. Cabe lembrar que, no terço posterior da língua, as papilas circunvaladas e fungiformes devem ser preservadas para manter as funções gustativas. A redução cirúrgica da língua permite que o tamanho do órgão seja alterado em três dimensões. A excisão simples em forma de cunha na linha média diminui, principalmente, a largura e o comprimento, além do volume. Se o comprimento da língua ainda continuar excessivo, a excisão em “orifício de fechadura” pode vir a ser utilizada. Na Figura 2, o paciente apresentava desproporção relacionada à largura, e não ao comprimento. É interessante citar que procedimentos de redução lateral ou da porção anterior da língua têm sido relatados, porém diminuem a sensibilidade, afetando negativamente a fala e a deglutição. Rev Bras Cir Craniomaxilofac 2010; 13(2): 107-10 109 Teixeira FAA et al. Uma das complicações mais comuns da ressecção cirúrgica, independentemente da técnica utilizada, é a deiscência da ferida. No entanto, mesmo com a rotura completa, verificouse que a maior parte da incisão irá cicatrizar por segunda intenção e, geralmente, de maneira satisfatória. A hemorragia pós-operatória e obstrução de vias aéreas devem ser tratadas prontamente. Como grande parte dos pacientes tem história prévia de obstrução de vias aéreas, esta complicação deve ser até mesmo esperada no pós-operatório. Complicações tardias são descritas. Na técnica de Egyedi e Obwergeser25, parestesia da ponta da língua e hipomobilidade foram relatadas. Podem ocorrer ainda anquilose e língua globular - o corpo da língua permanece largo, mesmo que o novo tamanho seja normal, como na Figura 2. Gostaríamos de comentar ainda certas peculiaridades dos casos relatados. Apesar de tecnicamente difícil, optamos pela intubação oro ou nasotraqueal destes pacientes. Entendemos que a traqueostomia incorre em risco considerável de sangramento e infecção da ferida, além de possíveis estenoses e fístulas. Segundo a literatura, a maior chance de recidiva de macroglossia ocorre em pacientes com síndrome de BeckwithWiedemann. Nestes casos, poderia ser útil adiar o tratamento cirúrgico até o término do crescimento lingual, uma condição que ocorre entre as idades de 15 e 18 anos14. No entanto, não se pode adotar esta medida, devido à limitação funcional importante. Interessantemente, houve necessidade de um segundo procedimento cirúrgico em paciente não-portador da Síndrome. 4.De Michelis B, Modica R, Re G. Trattato di clinica odontostomatologica. 3ª ed. Torino:Minerva Medica Ed;1992. 5.Vogel JE, Mulliken JB, Kaban LB. Macroglossia: a review of the condition and a new classification. Plast Reconstr Surg. 1986;78(6):71523. 6.Morgan WE, Friedman EM, Duncan NO, Sulek M. Surgical management of macroglossia in children. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 1996;122(3):326-9. 7.Perkins JA. Overview of macroglossia and its treatment. 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A cirurgia, devidamente indicada, traz o restabelecimento das funções de fonação, deglutição e respiração e a obtenção da harmonia facial, objetivando sempre pouca ou nenhuma alteração na gustação, mobilidade e sensibilidade lingual. REFERÊNCIAS 1.Horn C, Thaker HM, Tampakopoulou DA, De Serres LM, Keller JL, Haddad J Jr. Tongue lesions in the pediatric population. Otolaryngol Head Neck Surg. 2001;124(2):164-9. 2.Ring ME. The treatment of macroglossia before the 20th century. Am J Otolaryngol. 1999;20(1):28-36. 3.Colombo C, Paletto AE, Maggi G, Masenti E, Massaioli N. Trattato di chirurgia. Torino:Minerva Medica;1993. Trabalho realizado no Hospital Albert Sabin, Fortaleza, CE; Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR; Centro de Atendimento Integral ao Fissurado Lábio Palatal (CAIF), Curitiba, PR; Hospital das Clínicas da FMUSP, São Paulo, SP. Artigo recebido: 5/4/2010 Artigo aceito: 21/5/2010 Rev Bras Cir Craniomaxilofac 2010; 13(2): 107-10 110