ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DA NEGAÇÃO DO DIREITO DE ACESSO À ÁGUA TRATADA1 PES, João Hélio2; ROSA, Taís Hemann da3 Resumo: O presente trabalho objetivou analisar através das jurisprudências dos Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul e do Superior Tribunal de Justiça qual tem sido o posicionamento desses sobre o corte no fornecimento de água tratada, realizado pelas concessionárias desse serviço essencial. Apesar de esse serviço, que proporciona o acesso à água potável, constituir-se como essencial à dignidade da pessoa humana e estar enquanto direito fundamental abrangido por tratados internacionais, ratificados pelo Brasil, constatamos que em algumas situações esses tribunais estão permitindo a sua suspensão; é o caso do reconhecimento da legalidade do corte no fornecimento de água realizado após aviso prévio. Palavras-chave: Jurisprudência; serviço essencial; acesso à água, direito fundamental; negação. INTRODUÇÃO O direito de acesso à água tratada no Brasil não se encontra expresso no ordenamento jurídico. Porém, nossa Constituição Federal acenta-se em regras e princípios; nesse sentido, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana deve ser percebido como um dos fundamentos maiores para que se assegure o acesso à água tratada a todos os cidadãos brasileiros. Outro fator que deve ser compreendido como relevante na garantia do acesso á água tratada no Brasil é a disposição do Comitê da ONU para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais pertencente ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, ratificado por nosso país, sobre o direito fundamental de acesso a quantidades mínimas de água potável ao ser humano. Nesse contexto, buscamos analisar quais os entendimentos dos Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul e do Superior Tribunal de Justiça sobre o corte no fornecimento de água tratada, realizado pelas concessionárias desse serviço essencial. Através das análises jurisprudenciais, investigamos em quais situações esses tribunais estão permitindo a suspensão desse serviço. Buscamos apresentar qual o posicionamento desses tribunais sobre o corte no fornecimento de água tratada em diferentes circunstâncias, como no caso do corte em decorrência de débitos pretéritos, corte com e sem aviso prévio, dentre outras situações que emergem nessas demandas judiciais. Além das análises jurisprudênciais, procuramos demonstrar por que o acesso à água tratada deve ser percebido como um direito fundamental, de caráter essencial e garantidor da dignidade da pessoa humana, da vida com dignidade e parte integrante de um mínimo existencial para a vida. 1 O DIREITO DE ACESSO À ÁGUA TRATADA O direito de acesso à água tratada não se encontra expressamente disposto no texto Constitucional brasileiro, portanto, faz-se necessário que teçamos algumas linhas a respeito dos fundamentos que nos levam a definir o acesso à água tratada como um direito essencial de todos os cidadãos brasileiros. Para tal objetivo, primeiramente devemos definir em que se constitui o próprio direito. Assim, convém relembrar ensinamentos de Norberto Bobbio: “[...] se pode falar de Direito somente onde haja um complexo de normas formando um ordenamento, e que, portanto, o Direito não é norma, mas um conjunto coordenado de normas, sendo evidente que uma norma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas com as quais forma um sistema normativo” (1997, p. 21). Doutrinariamente o sistema jurídico tem sido concebido como um sistema de normas que abarcam tanto regras quanto princípios4. A distinção entre princípios e regras é um assunto complexo, não há dúvida de que a grande discussão sobre esse problema ganhou a força atual com as obras de Ronald Dworkin e Robert Alexy. Por não ser o objeto do presente trabalho, interessa aqui utilizar as definições largamente conhecidas. Nesse contexto, as regras devem ser assimiladas como disciplinadoras de determinada situação, é a expressão literal de um fato que pode ou não ocorrer, e caso ocorra essa norma que o define incidirá sobre o mesmo. Por outro lado, os princípios “normalmente apontam para estados ideais a serem buscados, sem que a norma descreva de maneira objetiva a conduta a ser seguida” (BARROSO, 2009, p. 206). Para Alexy os princípios “são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização” (2009, p. 90). 1 Trabalho vinculado ao Projeto de Pesquisa – PROBIC – do Universitário Franciscano (UNIFRA): “O emprego do princípio da dignidade da pessoa humana pelos tribunais brasileiros”. 2 Doutorando em Direito na universidade de Lisboa e Professor do Curso de Direito do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), Santa Maria, RS, Brasil; [email protected]; 3 Acadêmica do Curso de Direito do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), Santa Maria, RS, Brasil; [email protected]; 4 Autores que expressam tal compreensão: DWORKIN (2007), ALEXY (2009) e SILVA (2010). Com ressalvas discordantes: HART (2007, p. 321). Fazendo uma distinção qualitativa e não uma distinção de grau, Alexy define as regras como sendo: “normas que são sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível” (2009, p. 91). A existência de princípios balisadores na Constituição Federal brasileira como o princípio da dignidade da pessoa humana e a cláusula aberta dos direitos fundamentais aos direitos elencados em tratados e, ainda, definições interpretativas sobre o mínimo existencial, são os fundamentos racionais para considerarmos o acesso à água tratada um direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro. 2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E MINIMO EXISTENCIAL Conceituar o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é uma tarefa complexa a ponto de autores profundamente conhecedores das teorias que fundamentam a utilização desse princípio como norma jurídica fundamental efetuarem ressalvas nesse tocante. Ingo Sarlet (2007, p.40) reconhece que não há como negar que uma conceituação clara do que efetivamente seja “se revela no mínimo difícil de ser obtida, isto sem falar na questionável (e questionada) viabilidade de se alcançar algum conceito satisfatório do que, afinal de contas, é e significa a dignidade da pessoa humana hoje”. Jorge Miranda ensina-nos que a unidade valorativa do sistema constitucional (tanto do Português como do Brasileiro) “repousa na dignidade da pessoa humana [...], ou seja, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado” (MIRANDA, 2000, p.180). Várias são as implicações da inclusão do princípio da dignidade da pessoa humana como um dos pilares da Constituição Federal brasileira e como um verdadeiro princípio basilar do ordenamento jurídico pátrio. Poderíamos apontar a necessidade de discriminarmos o que deve ser considerado como imprescindível para viver com dignidade. Porém, é necessário fazê-lo levando em consideração o panorama atual de nossa sociedade. Ou seja, a definição do que se constitui em mínimo existencial deve ser balizada dentro das demandas sociais de nossa época, considerando que a constante evolução tecnológica e social requer uma permanente atualização das demandas sociais para uma vida digna. Assim, neste contexto global “o direito ao mínimo existencial não é reducionista, no sentido de que só lhe caberia garantir um mínimo dos mínimos” (TORRES, 2009, nota prévia). Ou seja, para sua discriminação é indispensável considerar que: A globalização do mundo expressa um novo ciclo de expansão do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório de alcance mundial. Um processo de amplas proporções, envolvendo nações e nacionalidades, grupos e classes sociais, economias e sociedades, culturas e civilizações. Assinala a emergência da sociedade global como uma totalidade abrangente, complexa e contraditória. Uma realidade ainda pouco conhecida, desafiando práticas e idéias, situações consolidadas e interpretações sedimentadas, formas de pensamento e voos da imaginação (IANNI in AARÂO, 2008, p. 207) [grifos meus]. Nessa perspectiva, não é estranho as contendas também reclamarem novos direitos, ou, velhos direitos ainda não efetivados apesar de muitas vezes assegurados constitucionalmente. Nesse sentido, a teoria do mínimo existencial tem a pretensão de oferecer a rationale que conduz à distribuição igual dos bens sociais, mediante a adoção de políticas públicas focalizadas e de escolhas orçamentárias racionais em um ambiente de escassez de recursos financeiros. O direito ao mínimo existencial, em síntese, é o núcleo essencial dos direitos fundamentais ancorado nos princípios da dignidade da pessoa humana e do Estado Democrático de Direito e na busca pela felicidade. Após a reserva do mínimo existencial, que garante a igualdade de chances, é que se iniciam a ação da cidadania reivindicatória e o exercício da democracia deliberativa, aptos a assegurar os direitos sociais prestacionais em sua extensão máxima, sob a concessão do legislador e sem o controle contramajoritário do judiciário (TORRES, 2009, nota prévia) [grifos meus]. Assim, ocorre que todas as necessidades básicas do ser humano para manter-se de forma digna devem ser percebidas como mínimas, devem ser livres da intervenção do Estado na via dos tributos, e exigem ainda uma prestação positiva do Estado para sua manutenção (TORRES, 2009). Para Ana Paula Barcelos “o chamado mínimo existencial, formado pelas condições materiais básicas para a existência, corresponde a uma fração nuclear da dignidade da pessoa humana à qual se deve reconhecer a eficácia jurídica positiva ou simétrica”. (BARCELLOS, 2008, p.278). 2 Contextualizando a realidade brasileira a partir da Constituição de 1988, verifica-se que a “dignidade da pessoa humana tornou-se o princípio fundante da ordem jurídica e a finalidade principal do Estado, com todas as consequências hermenêuticas que esse status jurídico confere ao princípio” (BARCELLOS, 2008, p.279). Contudo, compreendemos que os direitos mínimos a uma condição de vida digna devem ser pensados de acordo com o contexto das demandas sociais atuais. Ou seja, devemos discriminá-los não de forma mínima, mas sim de forma que sejam mínimos para assegurar dignidade. É nessa conjuntura que encontramos no rol de direitos mínimos a serem assegurados direitos como o de acesso ao abastecimento de água tratada. Esse direito, a partir da clausula de abertura, pode ser caracterizado como direito fundamental e na parte final desse trabalho será cotejado com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 3 CLÁUSULA ABERTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS A “cláusula aberta” dos direitos fundamentais nos termos da atual Constituição Brasileira admite considerar como direitos fundamentais determinadas situações jurídicas não previstas na Constituição (chamados de direitos fundamentais não enumerados). Assim, com a adoção da “cláusula aberta”, também denominada de “princípio da não tipicidade dos direitos fundamentais”, passam a ser também considerados direitos fundamentais aqueles que decorrem do regime democrático, dos outros princípios adotados pela Constituição Brasileira e dos tratados de direitos humanos, bastando estar consagrados em lei ou regras (inclusive de costume) nacionais ou internacionais reconhecidas pelo Estado brasileiro. Nesse viés, a Constituição Brasileira aceita outros direitos além daqueles nela expressamente previstos. “Esses direitos não são aqueles que as normas formalmente constitucionais enunciam e, sim, aqueles que são ou podem ser também direitos provenientes de outras fontes, na perspectiva mais ampla da Constituição material” (CUNHA JUNIOR, 2008, p 617). O §2º do artigo 5º5 da Constituição Federal deixa claro que a enumeração dos direitos fundamentais é aberta, meramente exemplificativa, podendo ser complementada a qualquer momento por outros direitos, por meio de outras fontes. A origem dessa cláusula, incluída desde a primeira Constituição Republicana, tem como referencial histórico a Constituição dos Estados Unidos da América, que ao receber o aditamento IX (9ª Emenda Constitucional), em 1791, fixou que a enumeração de certos direitos na Constituição não deve ser interpretada como denegação ou diminuição de outros direitos reservados ao povo (PES, 2010, p.50). A presença da cláusula de “abertura material” nas Constituições Brasileiras até recentemente foi pouco observada, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência. A sua concretude, ou observância prática, muito deixou a desejar porque sempre predominou o entendimento de que os direitos fundamentais o são, enquanto tais, na medida em que encontram reconhecimento nas Constituições formais. “Essa doutrina brasileira, refratária à natureza material dos direitos fundamentais, bem reflete a jurisprudência nacional, que sempre entendeu que os direitos fundamentais são apenas aqueles incorporados ao texto de uma Constituição escrita” (CUNHA JUNIOR, 2004, 612). Assim, é por meio da cláusula aberta que podemos justificar, também, a caracterização de direito fundamental ao direito de acesso à água tratada. Ademais, não devemos considerar o direito de acesso à água tratada um direito que deve ser assegurado apenas aos cidadãos brasileiros, conforme compromissos internacionais, assumidos pelo Brasil, como o de reconhecer o Comitê da ONU para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Esse Comitê, desenvolvendo uma atividade interpretativa do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil, elaborou a Observação Geral nº 15, no ano de 2002, reconhecendo o direito de acesso à água como um direito que está incluído no âmbito dos direitos humanos à saúde, à vida digna e à alimentação, dispondo que: “o acesso a quantidades suficientes de água limpa para uso pessoal e doméstico é um direito fundamental de todos os seres humanos” (ONU, 2002). A partir da cláusula de abertura dos direitos fundamentais, é possível inferir a força normativa que devem conter as disposições trazidas pelos Tratados ratificados pelo Estado brasileiro, como é o caso do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, e ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, aprovado no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 226, de 12 de dezembro de 1991 e promulgado pelo decreto nº 591, de 6 de julho de 1992 (PES, 2010). Assim, tanto a base principiológica do Direito Constitucional brasileiro quanto a ratificação de tratados internacionais que versam sobre direitos sociais, nos quais incluem-se o acesso à água, são alguns dos institutos que apontamos como legitimadores, no Brasil, do direito de acesso à água tratada. 5 Art. 5º(...:)§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 3 4 O ACESSO À ÁGUA NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA: 4.1 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ): PRECEDENTES FORMADOS Em recurso especial não-conhecido por unanimidade, do ano de 2007, o qual destinava-se a julgar recurso especial interposto em face de acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande Sul que “reconheceu lícito o corte do fornecimento de água em face da inadimplência, após aviso prévio, com base na Lei n. 8.987/95, em conjunto com o art. 15, I, § 1º, da LC n. 170/87” (BRASIL, 2007), o Superior Tribunal de Justiça deixou inequívoco seu entendimento sobre a legalidade do corte no abastecimento de serviço público essencial, desde que tal suspensão seja efetuada após aviso prévio. Conforme ementa colacionada: Ementa: Administrativo – Serviço de Fornecimento de Água – Corte por Falta de Pagamento, Após Aviso Prévio – Legalidade – Lei n. 8.987/95 e LC n. 170/87 - Súmula 83/STJ (BRASIL, 2007). A súmula nº 83, citada na ementa, dispõe que “não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”; nesse caso, o entendimento referido pelo STJ é o de que na “relação jurídica entre a concessionária e o consumidor, o pagamento pelo serviço de abastecimento é contraprestação, e o serviço pode ser interrompido em caso de inadimplemento, desde que antecedido por aviso” (BRASIL, 2007). Nessa ocasião, o STJ expressou também sobre seu entendimento referente aos efeitos do princípio da continuidade no que tange aos serviços públicos essenciais, expressando-se da seguinte maneira: “‘a continuidade do serviço, sem o efetivo pagamento, quebra o princípio da isonomia e ocasiona o enriquecimento sem causa de uma das partes, repudiado pelo Direito (interpretação conjunta dos arts. 42 e 71 do CDC)’. (REsp 684.020/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 30.5.2006)” (BRASIL, 2007). Mesmo tratando-se de julgado do ano de 2007, essas exposições refletem o entendimento atual do STJ sobre a suspensão no fornecimento de serviços públicos essenciais delegados. O Ministro do STJ Humberto Martins aponta algumas referências jurisprudenciais6, elencando que “há muito a jurisprudência do STJ trilha no sentido do julgado recorrido” (BRASIL, 2007). Dentre essas jurisprudências, apontadas pelo Minístro, podemos encontrar alguns entendimentos que explicitam o posicionamento do STJ sobre o assunto. Tais acórdãos referenciados pelo Minístro Humberto Martins deixam claro o entendimento do STJ de que o corte do fornecimento de serviço público essencial é lícito. Porém, desde que efetuado após aviso prévio e que o consumidor permaça inadimplente. A relação jurídica nesses casos tem natureza de Direito Privado, sendo o pagamento feito sob a modalidade de tarifa e, portanto, caracterizado como contraprestação. Esclarece, ainda, mais uma vez, que a continuidade do serviço, sem o efetivo pagamento, quebra o princípio da isonomia e ocasiona o enriquecimento sem causa de uma das partes (BRASIL, 2010). Entretanto, é possível encontrar em jurisprudência, também referênciada pelo Minístro Humberto Martins nesse recurso especial, posição inconformada com tal entendimento sobre a questão do corte no fornecimento de serviço público essencial. É o posicionamento do relator do julgado: REsp 691.516/RS, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 11.10.2005, DJ 24.10.2005. O Min. Luiz Fux ressalta ao final do relatório do julgado referenciado que: “‘Destacada minha indignação contra o corte do fornecimento de serviços essenciais a municípios, universidades, hospitais, onde se atingem interesses plurissubjetivos, submeto-me à jurisprudência da Seção. 9. Recurso especial improvido, por força da necessidade de submissão à jurisprudência uniformizadora’”. (REsp 691.516/RS, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 11.10.2005, DJ 24.10.2005) (BRASIL, 2007). Em outra situação, o STJ, discutindo sobre corte no abastecimento de água em decorrência de débitos pretéritos, demonstrou seu entendimento sobre tal circunstância: Ementa: Administrativo e Processual Civil. Recurso Especial. Corte no Fornecimento de Água e Esgoto. Art. 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95. Impossibilidade de Suspensão do Abastecimento na Hipótese de Exigência de Débito Pretérito. Caracterização de Constrangimento e Ameaça ao Consumidor. Art. 42 do CDC. Precedentes (BRASIL, 2008). Nesse caso, não proveu agravo regimental que defendia ser direito da concessionária (Companhia Estadual de Águas e Esgotos – CEDAE) a suspensão do abastecimento em razão de inadimplência do usuário. Isso, pois, entendeu 6 Jurisprudências referenciadas pelo Exmo. Senhor Minístro Humberto Martins: REsp 631.246/RJ, Rel. Min. Denise Arruda, DJ 23.10.2006; REsp 684.020/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 30.5.2006; REsp 691.516/RS, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 11.10.2005, DJ 24.10.2005. 4 ser a hipótese em voga caracterizada pela exigência de débito pretérito, não devendo, portanto, ser suspenso o fornecimento. O STJ esclareceu, taxativamente, que o corte de tais serviços pressupõe o “inadimplemento de conta regular, relativa ao mês do consumo, sendo inviável a suspensão do abastecimento em razão de débitos antigos, devendo a companhia utilizar-se dos meios ordinários de cobrança, não se admitindo nenhuma espécie de constrangimento ou ameaça ao consumidor, nos termos do art. 42 do CDC” (BRASIL, 2008). Porém, também nessa oportunidade, o STJ deixou explícito, mais uma vez, o entendimento sobre a legalidade no corte do fornecimento do serviço, nos casos precedidos de aviso prévio, bem como a inocorrência de afronta ao princípio da continuidade, conforme passagem: O art. 6º, § 3º, II, da Lei n. 8.987/95 dispõe que ‘não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando for por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade’. Portanto, se há o fornecimento do serviço pela concessionária, seja de água ou de energia elétrica, a obrigação do consumidor será a de realizar o pagamento, sendo que, o não-cumprimento dessa contraprestação poderá ensejar, verificando-se caso a caso, a suspensão do serviço (BRASIL, 2008). Em diversas ocasiões, mais recentes, trazidas ao STJ, pode-se perceber expressamente a manutenção do entendimento sobre o corte no fornecimento de serviços públicos essenciais (como água e energia elétrica) decorrente de débitos pretéritos. Tal percepção dá-se através de algumas afirmações apresentadas em diferentes julgados que envolviam situações similares, conforme as elencadas a seguir: a) Datado de 17 de dezembro de 2009: “É firme a jurisprudência desta Corte Superior de Justiça no sentido da impossibilidade de suspensão de serviços essenciais, tais como o fornecimento de energia elétrica e água, em função da cobrança de débitos pretéritos” (BRASIL, 2009); b) Datado de 22 de fevereiro de 2011: “Esta Corte Superior entende que o corte de serviços essenciais, como água e energia elétrica, pressupõe o inadimplemento de conta regular, relativa ao mês do consumo, sendo inviável, pois, a suspensão do abastecimento em razão de débitos antigos, questionados em juízo” (BRASIL, 2011); c) Datado de 08 de fevereiro de 2011: “O Superior Tribunal de Justiça entende que o corte de serviços essenciais, como água e energia elétrica, pressupõe o inadimplemento de conta regular, relativa ao mês do consumo, sendo inviável, pois, a suspensão do abastecimento em razão de débitos antigos” (BRASIL, 2011). Outro aspecto, que merece ressalva, é o entendimento do STJ sobre a característica da cobrança pelo fornecimento de água pelas concessionárias, ou seja, discutiu-se em algumas ocasiões se tal cobrança seria tributação ou tarifação, visto que tributos não devem onerar o cidadão além do que este pode prover. Contudo, o entendimento do STJ é de que tal cobrança é tarifa, conforme trecho a seguir: 1. Os serviços públicos podem ser próprios e gerais, sem possibilidade de identificação dos destinatários. São financiados pelos tributos e prestados pelo próprio Estado, tais como segurança pública, saúde, educação, etc. Podem ser também impróprios e individuais, com destinatários determinados ou determináveis. Neste caso, têm uso específico e mensurável, tais como os serviços de telefone, água e energia elétrica. 2. Os serviços públicos impróprios podem ser prestados por órgãos da administração pública indireta ou, modernamente, por delegação, como previsto na CF (art. 175). São regulados pela Lei 8.987/95, que dispõe sobre a concessão e permissão dos serviços públicos. 3. Os serviços prestados por concessionárias são remunerados por tarifa, sendo facultativa a sua utilização, que é regida pelo CDC, o que a diferencia da taxa, esta, remuneração do serviço público próprio. 4. Os serviços públicos essenciais, remunerados por tarifa, porque prestados por concessionárias do serviço, podem sofrer interrupção quando há inadimplência, como previsto no art. 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95, exige-se, entretanto, que a interrupção seja antecedida por aviso, existindo na Lei 9.427/96, que criou a ANEEL, idêntica previsão (BRASIL, 2005). Nesse interim, podemos constatar que para o Superior Tribunal de Justiça, algumas situações envolvendo o corte no abastecimento de água são incontroversas. Esse é o caso do entendimento sobre a lícitude do corte no fornecimento 5 de água em face da inadimplência do consumidor, após aviso prévio, bem como de que o pagamento por tal serviço é contraprestação, tarifação, podendo ser interrompido em caso de inadimplemento. Tocante ao princípio da continuidade, no que tange aos serviços públicos essenciais, fica patente o entendimento do STJ de que não há afronta a esse princípio, visto que o não pagamento pelo serviço ocasionaria o enriquecimento sem causa de uma das partes, inclusive, ironicamente, daquelas pessoas paupérrimas que deixam de pagar as contas de água por falta de condições financeiras. Relativo ao corte por débitos pretéritos é clara sua inadimissibilidade diante do STJ, que adimite o corte apenas por débitos relativos ao mês do consumo, devendo, portanto, débitos pretéritos ser reclamados em juízo e não através de corte no fornecimento do serviço como meio de coação. Por fim, o Superior Tribunal de Justiça tem fundamentado suas decisões de suspensão no fornecimento de serviços públicos de abastecimento de água com a Lei 8.987, de 13.2.95, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos. É preciso relembrar que tal legislação surgiu com o “claro propósito de abrir o campo dos serviços públicos à livre concorrência com a iniciativa privada” (COUTO E SILVA, 2002, p. 61), e de que no mesmo ano a Emenda Constitucional n. 6, de 15.8.1995, revogou o art. 171 da Constituição, eliminando a definição de empresa brasileira de capital nacional e, com isso, criando as condições para a empresa de capital estrangeiro participar do mercado de prestação de serviços públicos. Portanto, tais decisões judiciais estão perfeitamente em sintonia com os interesses predominantes nesse contexto. 4.2 SOB A ÉGIDE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL (TJ/RS) Em acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS) do ano de 2003, impetrava-se mandado de segurança contra a Companhia Riograndense de Saneamento – CORSAN, visando ao restabelecimento do fornecimento de água na residência da impetrante, que teve o fornecimento de tal serviço interrompido em razão de encontrar-se inadimplente diante da concessionária. Alegava, entretanto, que não dispunha de condições financeiras para efetuar o pagamento de suas dívidas (BRASIL, 2003). Veja ementa: Ementa: Constitucional. Abastecimento de Água. Corte de Serviço Essencial. Sendo a água um bem essencial e deferido à empresa pública o monopólio para o efeito de melhor controlar sua qualidade e administrar seu fornecimento a todos, não pode seu fornecimento ser suspenso sob a alegação de falta de pagamento. Para a respectiva cobrança dispõe a credora de meios próprios e adequados. Precedentes deste Tribunal. Concessão da Segurança. Manutenção da Sentença em Reexame Necessário (BRASIL, 2003) [grifos dos autores]. Em tal situação fática, o acórdão do TJ/RS foi pela concessão da segurança, decisão unanime. Essa decisão acentou-se sob algumas considerações acerca do fornecimento de serviços públicos essenciais delegados. Dentre tais considerações podemos salientar o entendimento do TJ/RS, nesse ano de 2003, de que, por ser a água um bem essencial, deferido à empresa pública o monopólio, não pode seu fornecimento ser suspenso sob a alegação de falta de pagamento, devendo a respectiva cobrança ser fetuada por meios próprios e adequados (BRASIL, 2003). Do voto do Relator, Desembargador Augusto Otávio Stern, podemos destacar alguns trechos que revelam seu entendimento sobre a essencialidade do serviço de fornecimento de água, como: “O fornecimento de água constitui-se em serviço essencial e indispensável ao cidadão” (BRASIL, 2003). O Desembargador cita, ainda, doutrina de Maria Sylvia di Pietro, que aponta que o usuário tem direito à prestação do serviço, e que se o mesmo o for indevidamente negado, pode exigir judicialmente o cumprimento de tal obrigação pelo concessionário, referindo que é comum ocorrerem casos de interrupção na prestação desses serviços quando o usuário encontra-se inadimplente, e que, porém, mesmo nessas ocasiões, há jurisprudência no sentido de que o serviço essencial não pode ser suspenso, cabendo à empresa concessionária cobrar do usuário as prestações devidas através da via judicial cabível (PIETRO apud BRASIL, 2003). Já em outra oportunidade, julgada em março de 2010, que continha como embargante o Departamento Municipal de Águas e Esgotos. O TJ/RS acordou, por maioria, em desacolher os embargos infringentes. O caso em voga foi narrado da seguinte maneira: ENIO JOSÉ DE ANDRADE CÉSAR aforou ação cautelar inominada contra o DEPARTAMENTO MUNICIPAL DE ÁGUAS E ESGOTOS, por ter sido suspenso o serviço [...] sem aviso prévio. [...]. O servidor do demandado ingressou no pátio do imóvel pulando o muro, colocando uma luva em forma de lacre com uma advertência de multa em caso de violação, constrangendo-o sobremaneira. [...]. O DMAE interpôs embargos infringentes, sustentando que o autor continuava inadimplente, tanto que foi revogada a liminar anteriormente concedida, que impedia o corte do serviço. (BRASIL, 2010) [grifos meus]. 6 Na ementa desse julgado resta patente o posicionameto do TJ/RS sobre o corte desse serviço público essencial, dispondo que: “Sendo a água bem essencialíssimo para a sobrevivência humana, inviável permitir que a empresa estatal, concessionária desse serviço e organizada para cumprir o papel do Estado, a quem cabe prover aos serviços essenciais, possa cortar o abastecimento, por conta do inadimplemento” (BRASIL, 2010). Merece destaque o voto da Des.ª Rejane Maria Dias de Castro Bins (Relatora), que ao votar pelo desacolhimento dos embargos infringentes, reportou-se ao Preâmbulo da Constituição de 1988, esclarecendo que o constituinte assentou no mesmo a “busca de um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, o bem-estar das pessoas, como valores supremos, entre outros, de uma sociedade fraterna” (BRASIL, 2010), afirmando ainda que o Preâmbulo deve auxiliar “o intérprete a compreender o pensamento do constituinte e, embora não faça parte da própria Lei, ambos definem seu sentido e finalidade” (BRASIL, 2010). Ainda no voto da Des.ª Rejane Maria Dias de Castro Bins encontramos a referência ao art. 1º da Constituição, que se compromete a ter como fundamento da mesma, a dignidade da pessoa humana, e ao art. 5º que assegura o direito à vida (BRASIL, 2010). Destacou que ao cuidar-se do direito à vida, “e sendo a água bem essencialíssimo para a sobrevivência humana, inviável permitir que o DMAE, autarquia prestadora desse serviço, [...], possa cortar o abastecimento, por conta do inadimplemento. É, talvez, o único bem em que isso não pode ser permitido: em nome da vida, da dignidade da pessoa e da saúde pública” (BRASIL, 2010). A Desembargadora, para basilar seu entendimento, fez emergir alguns diplomas referentes ao reconhecimento da essencialidade da água, como a afirmação do Comitê da ONU para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (novembro de 2002) de que: ‘o acesso a quantidades suficientes de água limpa para uso pessoal e doméstico é um direito fundamental de todos os seres humanos. [...]. Sobre a aplicação dos artigos 11 e 12 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Comitê referiu que ‘o direito humano à água é indispensável para vida com dignidade humana. É um prérequisito da realização de outros direitos humanos’. [...]. Sérgio Vieira de Mello, na ocasião Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, a respeito, perante o Comitê, afirmou ser a água ‘uma parte integrante do direito a um nível de vida aceitável e, de fato, do direito à vida’ (BRASIL, 2010) [grifos do autor]. Referenciou também a Declaração Ministerial de Haia sobre Segurança Hídrica no Século XXI (de 22 de março de 2000), que apresenta a água como sendo “vital para a vida e a saúde das pessoas e para a manutenção dos ecossistemas, sendo um requisito básico para o desenvolvimento dos países” (BRASIL, 2010) [grifos do autor], e a Carta de Porto Alegre, resultado do Fórum Internacional das Águas (outubro de 2003) que “consagrou a água como um direito humano fundamental e inalienável, sendo ‘imprescindível assegurar o acesso à água a cada um dos cidadãos de todos os países, independentemente da condição socioeconômica na qual se encontrem’” (BRASIL, 2010) [grifos do autor]. Foi a partir desses e outros argumentos que a Relatora desse julgado votou por desacolher os embargos infringentes, voto vencedor, juntamente com os votos do Des. Genaro José Baroni Borges, Des. Francisco José Moesch, Des. Marco Aurélio Heinz. Foram contrários, acolhendo os embargos infringentes, o Des. Carlos Eduardo Zietlow Duro (REVISOR), que afirmou que: [...] existente débito, lícita a suspensão do fornecimento de água enquanto não pago o débito existente, sem que se possa falar em violação ao artigo 22 do CDC, tendo em vista que a obrigatoriedade de fornecimento do serviço essencial não abrange a gratuidade deste, havendo necessidade de que o usuário pague a tarifa cobrada pelo serviço. [...]. Não pago o débito, lícita a conduta da autarquia, sendo permitido o corte de água (BRASIL, 2010). Em ocasião posterior, de 29 de abril de 2010, que continha como Agravante uma Associação de Moradores, a Vigésima Segunda Câmara Cível do TJ/RS não deu provimento a agravo que apresentava a situação expressa assim: Ementa: Agravo. Direito Público Não Especificado. Fornecimento de Água. Natureza Não-Tributária. Condomínio. Inadimplência. Corte. Cabimento. Exercício Regular de Direito (BRASIL, 2010). A decisão, que não proveu o agravo, fundamentou-se nas seguintes alegações: “Tratando-se de condomínio que não contém a individualização dos ramais de abastecimento de água, possível a suspensão do fornecimento pela inadimplência, observada a circunstância que cada condômino é responsável pela administração do condomínio. Precedentes do TJRGS e STJ.” (BRASIL, 2010). 7 Apesar de reconhecer o fornecimento de água como essencial, “a continuidade de prestação do serviço é condicionada ao regular pagamento das tarifas, sob pena de supressão de recursos necessários para a prestação do serviço, agindo a SANEP em exercício regular de direito. Interpretação do artigo 22 do CDC” (BRASIL, 2010). Em outro julgado, de maio de 2010, em que houve provimento parcial, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul elenca algumas considerações de seu entendimento sobre o corte no fornecimento de serviço essencial delegado decorrente de débitos pretéritos. A ação destinava-se a julgar Apelação Civel proposta por Nelva Salete Oliveira Duarte, em face da Companhia Riograndense de Saneamento – CORSAN, contra sentença em que se decidiu: [...] JULGO IMPROCEDENTE o pedido na ação declaratória ajuizada por NELVA SALETE OLIVEIRA DUARTE contra a CORSAN – COMPANHIA RIOGRANDENSE DE SENEAMENTO, nos termos do art. 269, I, do CPC. Sucumbente a autora, vai condenada no pagamento das custas e honorários advocatícios devidos ao patrono da parte contrária, que fixo em R$ 500,00, nos termos do art. 20, § 4º, do CPC. Suspensa a exigibilidade, considerando a gratuidade deferida (BRASIL, 2010) [grifos dos autores]. Em tal situação, dentre outras circunstâncias estudadas, analisou-se, portanto, o corte no fornecimento de serviço essencial delegado decorrente de débitos pretéritos. Sobre o assunto destaca-se o posicionamento do TJ/RS - repetido em outros acórdãos do Tribunal - de que, por ser a água um bem essencialíssimo à sobrevivência humana, seria inviável permitir que a empresa estatal demandada (concessionária desse serviço e organizada para cumprir esse papel do Estado) pudesse cortar o fornecimento do serviço, por decorrência de inadimplemento, no caso, tratando-se de débito pretérito (BRASIL, 2010). Ressalvou-se, porém, que tal consumo, resguardado, limita-se “ao correspondente ao valor mínimo de tarifa, suficiente para as necessidades básicas” (BRASIL, 2010). Nesse contexto, podemos compreender diante do TJ/RS que, tratando-se de consumidor inadimplente por não dispor de condições financeiras para efetuar o pagamento das dívidas, por ser a água um bem essencial e indispensável ao cidadão, o serviço não pode ser suspenso, cabendo à empresa concessionária apenas cobrar do usuário as prestações devidas, através da via judicial cabível. Referente ao corte sem aviso prévio, constatamos ser o posicionameto do TJ/RS de que é inviável permitir que a empresa concessionária desse serviço possa cortar o abastecimento, mesmo diante do inadimplemento do usuário. Por outro lado, no julgado que envolvia condomínio, que não continha a individualização dos ramais de abastecimento de água, o TJ/RS considerou possível a suspensão do fornecimento pela inadimplência, visto que cada condômino é responsável pela sua administração, bem como, o cabimento da utilização do CDC, concebendo que a continuidade de prestação do serviço é condicionada ao regular pagamento das tarifas, conforme artigo 22 do CDC. No que tange ao corte no fornecimento do serviço, em decorrência de débitos pretéritos, o mesmo é visto como inviável, conforme precedentes do STJ. CONSIDERAÇÕES FINAIS A abordagem feita neste artigo, embora sucinta, evidenciou a negação por parte dos Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul e do Superior Tribunal de Justiça, em determinadas situações, de um direito fundamental e essencial à vida e a dignidade humana. O direito de acesso à água tratada, que emerge como um direito essencial de todos os cidadãos brasileiros, decorrente das bases principiológicas de nossa Constituição e dos tratados ratificados pelo Brasil, tem sido amplamente violado por esses Tribunais em algumas situações. É o caso da legitimação do corte no fornecimento de água, realizado pelas concessionárias, após aviso prévio, que se converte em um contrassenso, pois deixa prevalecer o direito de suspensão de serviço essencial delegado por inadimplência do consumidor, uma verdadeira garantia patrimonial, sobre um direito fundamental que é o de acesso à água tratada. Apontamos como o mais importante dos princípios negligenciados nessas decisões: o princípio da dignidade da pessoa humana. E ainda, também violado, nesses casos, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que por sua vez, a partir de interpretação do Pacto realizada pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas em 2002, consolidada a partir da Observação Geral nº 15, aponta o acesso a quantidades suficientes de água limpa para uso pessoal e doméstico como um direito fundamental de todos os seres humanos. Compreendemos que a água deve ser percebida como constituinte do mínimo existencial para uma vida humana digna, bem como para uma vida saudável, atributos garantidos pela Constituição de 1988, o que, porém, tem sido negado muitas vezes aos cidadãos brasileiros através das decisões analisadas, que permitem em ocasiões de inadimplemento do cidadão consumidor o corte no fornecimento desse serviço essencial. Ou seja, independentemente de ser o acesso à água tratada um direito de caráter essencial, é permitida a sua negação quando o consumidor não possuir meios financeiros suficientes para pagar por ele, encontrando-se inadimplente. 8 Nesse contexto, emerge a problemática por nós demonstrada, através das decisões jurisprudenciais analisadas, da vedação ao acesso desse bem indispensável à vida humana que é a água potável, vedação essa que consiste na restrição ao exercício de um direito fundamental, restrição que se funda na prevalência de valores vinculados a bens patrimoniais sobre o valor incontestável do bem “vida” e da dignidade da pessoa humana. Assim, constatamos que têm sido dispensadas, no momento das decisões que versam sobre a suspensão no fornecimento de água tratada, em especial nas decisões mais recentes, quaisquer implicações das bases principiológicas do Direito Constitucional brasileiro, bem como da ratificação de tratados internacionais que versam sobre direitos sociais que abarcam o direito de acesso à água tratada. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Vergilio Afonso da Silva. São Paulo: Melhoramentos, 2008. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais – princípio da dignidade da pessoa humana. 2ª ed.. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora UNB, 1997. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial improvido. Administrativo – Serviço de Fornecimento de Energia Elétrica – Pagamento à Eempresa Concessionária sob a Modalidade de Tarifa – Corte por Falta de Pagamento: Legalidade. Recurso Especial nº 705.203 - SP (2004/0166429-5). Recorrente: Cerâmica Artística Kelli Ltda. Recorrido: Elektro Eletrecidade e Serviços S/A. Relator: Minístro Eliana Calmon. Brasília, out. 2005. Disponível em: <https://ww.stj.jus.br>. Acesso em 01 abr. 2011. ______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial não-conhecido. Administrativo – Serviço de Fornecimento de Água – Corte por falta de pagamento, após aviso prévio – Legalidade – Lei n. 8.987/95 e LC n. 170/87 - Súmula 83/STJ. Recurso Especial nº 678.044 - RS (2004/0092807-7). Recorrente: Jurandir João Mattana. Recorrido: Departamento Municipal de Águas e Esgotos - DMAE. Relator: Minístro Humberto Martins. Brasília, mar. 2007. Disponível em: <https://ww.stj.jus.br>. Acesso em 01 abr. 2011. ______. Superior Tribunal de Justiça. Agravo no Recurso Especial não-provido. Administrativo e Processual Civil. Recurso Especial. Corte no Fornecimento de Água e Esgoto. Art. 6º, § 3º, II, da Lei n. 8.987/95. Impossibilidade de Suspensão do Abastecimento na Hipótese de Exigência de Débito Pretérito. Caracterização de Constrangimento e Ameaça ao Consumidor. Art. 42 do CDC. Precedentes. Agravo no Recurso Especial nº 1.027.844 - RJ (2008/00251604). Agravante: Companhia Estadual de Águas e Esgotos - CEDAE. Agravado: Marines de Souza Ramos. Relator: Minístro José Delgado. Brasília, maio 2008. Disponível em: <https://ww.stj.jus.br>. Acesso em 01 abr. 2011. ______. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Agravo de Instrumento improvido. Agravo Regimental em Agravo de Instrumento. Direito Processual Civil. Dissídio Jurisprudêncial não demonstrado. Violação do Artigo 535 do CPC. Recorrente que não define em que consiste a omissão. Súmula nº 284/STF. Artigo 458 do CPC. Ausência de fundamentação no Acórdão. Inocorrência. Instalação de Hidrômetro. Inexequibilidade. Reexame de Provas. Súmula nº 7/STJ. Serviço de Água e Esgoto. Interrupção. Incabimento no Caso de Dívidas Pretéritas. Agravo no Agravo de Instrumento nº 1.207.818 - RJ (2009/0188194-3). Agravante: Companhia Estadual de Águas e Esgotos - CEDAE. Agravado: Nanci do Bonfim Magalhães. Relator: Minístro Hamilton Carvalhido. Brasília, dez. 2009. Disponível em: <https://ww.stj.jus.br>. Acesso em 01 abr. 2011. ______. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Agravo de Instrumento não provido. Processual Civil e Administrativo. Agravo Regimental. Ofensa ao Art. 535 do CPC. Inocorrência. Decisão Mantida por seus Próprios Fundamentos. Serviço Público. Fornecimento de Água. Existência de Hidrômetro. Cobrança Com Base em Estimativa. Ilegalidade. Corte do Serviço. Débito Pretérito. Impossibilidade. Decisão Monocrática Fundamentada em Juriprudência do STJ. Agravo no Agravo de Instrumento nº 1.351.353 - RJ (2010/0174312-3). Agravante: Companhia Estadual de Águas e Esgotos - CEDAE. Agravado: Jorge Luiz da Silva. Relator: Minístro Mauro Cambell Marques. Brasília, fev. 2011. Disponível em: <https://ww.stj.jus.br>. Acesso em 01 abr. 2011. ______. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Recurso Especial improvido. Agravo Regimental - Recurso Especial – Energia Elétrica - Corte do Serviço - Débito Pretérito – Impossibilidade – Súmula 83/STJ – Decisão Agravada Mantida 9 - Improvimento. AgRg no Recurso Especial nº 1.032.256 - SP (2007/0066433-0). Agravante: Companhia Piratininga de Força e Luz. Agravado: Adriana Martins Pereira Faustino. Relator: Minístro Sidnei Beneti. Brasília, fev. 2011. Disponível em: <https://ww.stj.jus.br>. Acesso em 01 abr. 2011. ______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Embargos Infringentes desacolhidos. Apelação Cível. Direito Contitucional à Saúde, ao Saneamento Básico e do Consumidor. Direito Administrativo. Fornecimento de Serviço Público de Água por Concessionária Autárquica. Corte. Débito pretérito. Inviabilidade. Embargos Infringentes n.° 70033845900. Embargante: Departamento Municipal de Água e Esgoto - DMAE. Embargado: Enio Jose de Andrade Cesar. Relator: Rejane Maria Dias de Castro Bins. Rio Grande do Sul, mar. 2010. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em 03 abr. 2011. ______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo desprovido. Agravo. Direito Público não Especifidado. Fornecimento de Água. Natureza não-tributária. Condomínio. Inadimplência. Corte. Cabimento. Exercício Regular de Direito. Agravo n.° 70035955384. Agravante: Associação de Moradores da Cohaduque. Agravado: SANEP – Serviço Autônomo de Saneamento de Pelotas. Relator: Carlos Eduardo Zietlow Duro. Rio Grande do Sul, abr. 2010. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em 03 abr. 2011. ______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Civel provida em parte. Apelação Cível. Direito Contitucional à Saúde, ao Saneamento Básico e do Consumidor. Direito Administrativo. Fornecimento de Serviço Público de Água por Concessionária. Corte. Débito pretérito. Inviabilidade. Apelação Civel n.° 70036295541. Apelante: Nelva Salete Oliveira Duarte. Apelado: Companhia Riograndense de Saneamento - CORSAN. Relator: Rejane Maria Dias de Castro Bins. Rio Grande do Sul, maio 2010. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em 03 abr. 2011. COUTO E SILVA, Almiro do. Privatização no Brasil e o novo exercício de funções públicas por particulares. Serviço público “à brasileira”? Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 230, out-dez/2002, p. 45-74. CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Ed. Podivm, 2008. _____. Controle Judicial das Omissões do Poder Público. São Paulo: Saraiva, 2004 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2007. GUERRA, Sydnei e EMERIQUE L. M. Balmant. “Oprincípio da dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial”. 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