126 Prevenindo a contaminação bacteriana de componentes sangüíneos Andreza Alice Feitosa Ribeiro1, José Mauro Kutner2 1 2 Médica Responsável pelo Serviço de Processamento e Criopreservação do Departamento de Hemoterapia do Hospital Israelita Albert Einstein - São Paulo (SP). Coordenador Médico do Departamento de Hemoterapia do Hospital Israelita Albert Einstein - São Paulo (SP). O risco de transmissão de agentes infecciosos pelas transfusões de sangue e hemocomponentes vem diminuindo ao longo dos anos. Isto tem ocorrido graças ao aprimoramento dos testes sorológicos e à introdução de testes de biologia molecular, utilizados na triagem laboratorial para a detecção daqueles agentes no sangue doado. As transfusões de sangue nunca foram tão seguras como atualmente. Entretanto, a ocorrência de bacteremia associada às transfusões de sangue, evento antes pouco lembrado por sua relativa baixa freqüência, assumiu papel de destaque na medicina transfusional atual(1). A literatura médica relata a prevalência de contaminação bacteriana num hemocomponente sangüíneo como variando de 0,04% a 2%, dependendo do tipo do componente. Isto pode ocorrer mesmo que sejam tomados todos os cuidados de assepsia no momento da coleta e com o uso de materiais descartáveis adequados(1). Estudos recentes revelam que entre 1/22.000 e 1/3.000 unidades de plaquetas estejam contaminadas por bactérias provenientes do doador. Entretanto, apenas uma pequena fração destes casos leva à sepse clinicamente identificável. Na França, outro estudo recente estimou que 1/140.000 transfusões de concentrados de plaquetas por aférese resulta em óbito do paciente por sepses, devido à contaminação bacteriana da unidade transfundida. Nos EUA, estudo semelhante estimou em 1/13.000 o risco de contaminação de uma unidade de concentrado de plaquetas por aférese e em 1/71.000 o risco de morte por este motivo. Estes riscos estão muito além dos riscos atuais de transmissão de outros agentes infecciosos de maior popularidade, como o HIV, HCV e HBV (2-3)(vide figura). A figura mostra a evolução do risco de transmissão de diferentes agentes infecciosos por via transfusional, de acordo com a melhoria das técnicas de detecção einstein 2003; 1:126 viral, e sua comparação com o risco atual de contaminação bacteriana de concentrados de plaquetas, sem a utilização de cultura rotineira das unidades de hemocomponentes. O risco de contaminação bacteriana relacionado à transfusão de concentrado de hemácias é menor: cerca de 1/1 milhão de unidades. A principal razão desta discrepância de prevalência entre os produtos está na capacidade de crescimento dos microrganismos e de sua capacidade de produzir toxinas, nos diferentes tipos de estocagem. Os concentrados de hemácias são armazenados entre 2°C e 6°C, enquanto os concentrados de plaquetas entre 20°C a 24°C. São diversas as possíveis fontes de contaminação bacteriana identificadas. O ponto crítico parece ser a coleta do sangue. Durante a coleta, bactérias de pele, ou mesmo bactérias presentes na corrente sangüínea do doador, podem ser a fonte de contaminação do sangue coletado, mesmo aplicando-se as técnicas adequadas de assepsia no local da punção. Bacteremia assintomática do doador no momento da doação, ou infecções no período de incubação ou de convalescença, que não são referidas pelo candidato durante a triagem clínica, podem também ser a causa de uma contaminação(4). Além disso, devido ao calibre das agulhas utilizadas na coleta de sangue de doadores, também é possível a introdução de bactérias na bolsa, caso um folículo piloso seja seccionado na punção ou um fragmento diminuto de tecido seja introduzido. Os contaminantes mais freqüentemente encontrados nos concentrados plaquetários são predominantemente as bactérias Gram-positivas, principalmente Staphylococcus sp e Propionibacterium sp, germes comuns de pele, seguidas de Serratia marcescens, Streptococcus sp, e um número variado de bacilos Gramnegativos(5). Alguns microrganismos Gram-negativos que proliferam a 4°C, como a Yersinia enterocolitica e a Pseudomonas fluorescens, podem proliferar também em concentrados de hemácias contaminadas e estão relacionadas a 75% das reações transfusionais decorrentes da contaminação por esse tipo de hemocomponente(6). Várias medidas podem ser tomadas no intuito de diminuir o risco de reações adversas relacionadas à contaminação bacteriana de hemocomponentes. Algumas direcionadas à redução do próprio risco de contaminação, e outras visando à identificação e desprezo de hemocomponentes contaminados. 127 Dentre essas medidas, lembramos: a melhoria da técnica de assepsia, realizada em dois tempos e com duas soluções diferentes; a remoção dos primeiros mililitros de sangue coletado, que podem inclusive ser utilizados como amostra para os testes sorológicos e imunoematológicos; a limitação do tempo de estocagem de concentrados plaquetários; e a leucodepleção na fase de pré-estocagem. Nos últimos anos, diversos especialistas têm advogado que, apesar das medidas acima referidas serem fundamentais e de eficácia inquestionável, elas têm suas limitações. Dentro desse conceito, cuidados adicionais devem ser introduzidos na manufatura dos hemocomponentes. Em bacteriologia, o principal teste para avaliação de esterilidade é a cultura microbiológica. Daí a proposta de introdução desta metodologia rotineiramente, como mais um teste de triagem do sangue doado. Diferentemente dos testes sorológicos, ou mesmo dos de biologia molecular, que podem ser aplicados a amostras colhidas no momento da doação do sangue, a detecção de bactérias requer tempo para que os organismos proliferem e sejam passíveis de detecção. A cultura microbiológica rotineira de concentrados sanguíneos apresenta alguns desafios e dificuldades adicionais: • como o inóculo microbiológico inicial é geralmente pequeno, a amostra ideal a ser coletada para análise de esterilidade deve ter um volume mínimo. Este volume pode interferir com a dose terapêutica desejada do componente, lembrando que um concentrado individual de plaquetas tem apenas cerca de 50 ml a 70 ml; • o tempo que o hemocomponente deve aguardar até a liberação do resultado da cultura compromete a disponibilidade de produtos com tempo curto de validade, como os concentrados plaquetários, que têm validade de somente cinco dias. Mesmo com estas dificuldades, diversos centros têm implementado a cultura automatizada dos hemocomponentes e a prática os tem orientado quanto à resolução das adversidades(5). Apesar da cultura microbiológica ainda não ser exigida pelas autoridades sanitárias do Brasil, a literatura médica recente sugere a necessidade de sua introdução. Além disso, a Associação Americana de einstein 2003; 1:127 128 Bancos de Sangue (American Association of Blood Banks, AABB, EUA)(7-8) exige que todas as instituições por ela acreditadas implementem métodos de detecção microbiológica até março de 2004. Há muitos anos o Departamento de Hemoterapia vem realizando, na sua rotina de controle de qualidade, culturas microbiológicas de um percentual das unidades produzidas. Além disso, também faz parte do nosso protocolo de investigação de reações transfusionais febris não-hemolíticas a análise microbiológica do hemocomponente, objetivando a detecção precoce de agentes contaminantes, caso estes existam. O Departamento de Hemoterapia do Hospital Israelita Albert Einstein estará introduzindo a cultura microbiológica rotineira de seus hemocomponentes até o final de 2003. Desta forma, segue a tendência médica mundial, mesmo que ainda incipiente em alguns países, e segue as diretrizes da AABB, entidade de referência e pela qual é acreditada desde 1998, o que obriga a seguir suas orientações técnicas. Porém, mais importante do que estes motivos, é garantir o melhor que a medicina moderna pode oferecer para a segurança de nossos pacientes. einstein 2003; 1:128 Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 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