Uma introdução à reflexão sobre a abordagem sociocultural da alimentação Ana Maria Canesqui Rosa Wanda Diez Garcia SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros CANESQUI, AM., and GARCIA, RWD., orgs. Antropologia e nutrição: um diálogo possível [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005. 306 p. Antropologia e Saúde collection. ISBN 857541-055-5. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. Uma Introdução à Reflexão sobre a Abordagem Sociocultural da Alimentação Ana Maria Canesqui Rosa Wanda Diez Garcia Esta coletânea r e ú n e pesquisas e reflexões q u e elucidam múltiplos entendimentos antropológicos sobre a alimentação c o m o f e n ô m e n o sociocultural historicamente derivado. S e n d o a alimentação imprescindível para a vida e a sobrevivência h u m a n a s , c o m o necessidade básica e vital, ela é necessariamente m o d e l a d a pela cultura e sofre os efeitos da organização d a sociedade, não c o m p o r t a n d o a sua a b o r d a g e m olhares unilaterais. N ã o c o m e m o s apenas quantidades de nutrientes e calorias para m a n t e r o funcionamento corporal e m nível a d e q u a d o , pois há muito t e m p o os antropólogos afirmam que o c o m e r envolve seleção, escolhas, ocasiões e rituais, imbrica-se c o m a sociabilidade, c o m idéias e significados, c o m as interpretações d e experiências e situações. P a r a s e r e m c o m i d o s , ou comestíveis, os alimentos p r e c i s a m ser elegíveis, preferidos, selecionados e preparados ou processados pela culinária, e tudo isso é matéria cultural. R e c e n t e m e n t e , C l a u d e Fischler (1990) disse que, pelo fato de sermos onívoros, a incorporação d a c o m i d a é s e m p r e u m ato c o m significados, fundamental ao senso d e identidade. Se as técnicas, as disponibilidades d e recursos d o meio, a organização da produção/distribuição na sociedade m o d e r n a imprim e m as possibilidades, c a d a vez m a i s ampliadas, de produzir e c o n s u m i r alim e n t o s , c a b e à cultura definir o q u e é ou n ã o comida, prescrever as p e r m i s s õ e s e interdições alimentares, o q u e é a d e q u a d o ou não, moldar o gosto, os m o d o s d e c o n s u m i r e a própria c o m e n s a l i d a d e . A s escolhas alimentares n ã o se fazem apenas c o m os alimentos m a i s ' n u t r i t i v o s ' , segundo a classificação da m o d e r n a nutrição, ou s o m e n t e c o m os m a i s acessíveis e intensivamente ofertados pela p r o d u ç ã o massificada. A p e s a r das pressões forjadas pelo setor produtivo, c o m o u m dos m e c a n i s m o s q u e in- terferem nas decisões d o s c o n s u m i d o r e s , a cultura, e m u m sentido mais amplo, m o l d a a seleção alimentar, i m p o n d o as n o r m a s q u e prescrevem, p r o í b e m ou p e r m i t e m o q u e comer. A s escolhas alimentares t a m b é m são inculcadas muito cedo, desde a infância, pelas sensações táteis, gustativas e olfativas sobre o q u e se c o m e , tornando-se p o u c o permeáveis à c o m p l e t a h o m o g e n e i z a ç ã o imposta pela prod u ç ã o e pela distribuição massificadas. A s análises sociológicas do c o n s u m o , q u e fazem u m a interlocução c o m a cultura e t a m b é m se p r e o c u p a m c o m as escolhas alimentares, m o s t r a r a m as contradições da cultura mercantilizada: a persistência das diferenças nas estruturas do c o n s u m o entre grupos d e renda, classe, gênero e estágio d e vida, b e m c o m o a indissolução dos constrangimentos materiais e das idiossincrasias individuais. N o v i d a d e e tradição; saúde e indulgência; e c o n o m i a e extravagância; conveniência e cuidado - nos termos d e Alan Warde (1997) - são as principais antinomias das m o d e r n a s e contraditórias r e c o m e n d a ç õ e s q u e p r o c u r a m guiar a seleção dos alimentos e os hábitos alimentares nos contextos sociais d o capitalismo avançado, q u e se veiculam a c o m p a n h a d a s por u m t o m m o r a l . D a m e s m a forma, ao analisar os conteúdos das m e n s a g e n s publicitárias, desde a década d e 6 0 até 1990, na E s p a n h a , M a b e l Gracia Arnaiz (1996) destaca os vários discursos: a tradição/identidade; o m é d i c o nutricional; o estético; o hedonista; o d o progresso e da m o d e r n i d a d e ; d o exótico e d a diferença. Entrecruzam-se, por u m lado, os c o n s u m o s , as práticas e os valores q u e p e r m e i a m os c o m p o r t a m e n t o s alimentares, e por outro os discursos publicitários. A m b o s se reforçam e são impulsionados reciprocamente, diante da ampliação das oportunidades de eleição alimentar q u e se m o s t r a m simultaneamente plurais e contraditórias, especialmente nas sociedades capitalistas européias q u e ainda c o n v i v e m , tanto q u a n t o as latino-americanas, c o m as diferenças sociais n o c o n s u m o , s e m serem homogêneas. A c o m i d a foi e a i n d a é u m capítulo vital na história d o c a p i t a l i s m o . M u i t o antes d o s dias d e hoje, o c a p i t a l i s m o p r o c u r o u p o r toda p a r t e transform a r os antigos desejos p o r n o v o s m e i o s . A s c o m i d a s t ê m histórias sociais, e c o n ô m i c a s e s i m b ó l i c a s c o m p l e x a s , diz S i d n e y Wilfred M i n t z ( 2 0 0 1 ) , e o g o s t o d o ser h u m a n o pelas s u b s t â n c i a s n ã o é inato, forjando-se n o t e m p o e e n t r e o s i n t e r e s s e s e c o n ô m i c o s , o s p o d e r e s p o l í t i c o s , as n e c e s s i d a d e s nutricionais e os significados culturais. A o estudar o açúcar, esse autor levou e m consideração a sua história social, ressaltando q u e antes d e esse produto ter c h e g a d o à m e s a d o operariado industrial e m e r g e n t e d o século X I X , na Inglaterra, teve lugar na farmacopéia m e d i e v a l , da m e s m a forma q u e o t o m a t e , vindo das A m é r i c a s , foi t a m b é m r e c u s a d o pelos ingleses durante o século X V I I I por acreditarem ser ele prejudicial à saúde (Wilson, 1973). O g o s t o e o paladar, e m vez de se naturalizarem, são portanto cultivados n o e m a r a n h a d o d a história, d a economia, da política e da própria cultura. S o b u m outro olhar e m a n t e n d o a perspectiva d e longo alcance, Fischler (1990) ainda nos fala d o p a r a d o x o d o onívoro q u e resulta n a sua ansiedade p e r m a n e n t e : a necessidade d a diversidade alimentar, de variedade, inovação, exploração e m u d a n ç a para sobreviver, q u e convive c o m a c o n s e r v a ç ã o no comer, sendo cada alimento d e s c o n h e c i d o visto c o m o potencialmente perigoso. O próprio sistema culinário foi visto por Paul Rozin (1976) c o m o u m produto cultural resultante d o p a r a d o x o d o o n í v o r o a o trazer u m conjunto d e sabores peculiares à cozinha d e u m a d a d a região, propiciando familiaridade e diversidad e d e alimentos. A ênfase na inserção d a a l i m e n t a ç ã o n o sistema cultural c o m o portadora d e significados q u e p o d e m ser lidos e decifrados c o m o código t e m m i n i m i z a d o os fatores materiais e hierárquicos, p r e o c u p a n d o - s e mais c o m a continuidade e m e n o s c o m as m u d a n ç a s , s e n d o q u e o foco na totalidade descuida da diferença. P o r essa razão, Jack G o o d y (1995) sugeriu q u e os esforços de isolar o cultural, levando-o a submergir exclusivamente no sistema simbólico e significante, levam a supor a u n i d a d e cultural, o q u e i m p e d e referências às diferenciações internas, às influências socioculturais externas, aos fatores históricos e aos elementos materiais. O fato de a c o m i d a e o ato d e c o m e r serem prenhes d e significados n ã o leva a esquecer q u e t a m b é m c o m e m o s por necessidade vital e c o n f o r m e o m e i o e a sociedade e m q u e v i v e m o s , a f o r m a c o m o ela se organiza e se estrutura, produz e distribui os alimentos. C o m e m o s t a m b é m d e acordo c o m a distrib u i ç ã o d a riqueza na sociedade, os grupos e classes d e pertencimento, marcados por diferenças, hierarquias, estilos e m o d o s de comer, atravessados p o r representações coletivas, imaginários e crenças. A antropologia se interessou tradicionalmente pelas crenças e pelos c o s tumes alimentares dos p o v o s primitivos, pelos aspectos religiosos e m torno dos tabus, t o t e m i s m o e c o m u n h ã o ; pelas preferências e repulsas alimentares, pelos rituais sagrados ou profanos q u e a c o m p a n h a m a comensalidade, pelo simbolism o da comida, pelas classificações alimentares, além de muitos outros a s p e c tos. R e c e n t e m e n t e , v e m se interessando pelas cozinhas e pela culinária, q u e trazem a m a r c a da cultura. A s c o z i n h a s e as artes culinárias g u a r d a m histórias, tradições, tecnologias, p r o c e d i m e n t o s e ingredientes submersos e m sistemas s o c i o e c o n ô m i c o s , ecológicos e culturais c o m p l e x o s , cujas marcas territoriais, regionais ou d e classe lhes conferem especificidade, além d e alimentarem identidades sociais ou nacionais. C o m o e s p a ç o habitualmente reservado às m u l h e r e s , m a i s d o q u e aos h o m e n s , a culinária imbrica-se no sistema d e divisão e estratificação d o trabalho, e m b o r a os chefs e os famosos cozinheiros sejam antigos personagens dos serviços pessoais d e nobres, papas, d a burguesia e das elites e m geral, q u e se transformaram ao longo do tempo em novas figuras especializadas da g a s t r o n o m i a mercantilizada e m torno d e restaurantes sofisticados ou de outros serviços alimentares. O resgate da gastronomia e da culinária t e m suscitado maior interesse no contexto da globalização, não sendo casual, m a i s recentemente, a recuperação das tradições culinárias, de publicações a respeito - entre as quais aquelas que enfatizam a antropologia da alimentação ou a história da alimentação e dos c o s t u m e s alimentares. A s atuais reedições d e Gilberto Freyre (1997) e d e Câmara C a s c u d o (1983), entre outros autores, m o s t r a m o interesse nessa temática, assim c o m o a criação d e grupos de trabalho sobre s i m b o l i s m o e c o m i d a nas reuniões d a A s s o c i a ç ã o Brasileira d e Antropologia, ao lado dos debates e m m e s a s - r e d o n d a s , n o s congressos de nutrição. U m largo espectro d e questões associadas à alimentação poderia ainda ser e x p l o r a d o nesta b r e v e introdução, e m b o r a as considerações tecidas a respeito n o s p a r e ç a m suficientes para a r g u m e n t a r a favor d e sua a b o r d a g e m sociocultural q u e , certamente, se aprofunda e se c o m p l e t a na leitura dos vários artigos apresentados pelos autores c o m p o n e n t e s d e s t a coletânea. Apesar da h e t e r o g e n e i d a d e d o s enfoques na a b o r d a g e m da a l i m e n t a ç ã o c o m o matéria cultural, sob os olhares diferenciados de antropólogos, sociólogos e nutricionistas, q u e c o m u n g a m a importância de abordá-la dessa maneira, espera-se q u e esta coletânea p r o p o r c i o n e aos profissionais d a saúde, aos cientistas sociais, aos estudiosos, professores e interessados na alimentação h u m a n a u m a c o m p r e e n são d o q u a n t o ela é tributária da cultura. O p a r a d i g m a biológico da nutrição fez u m a interlocução c o m as ciências sociais na qual a cultura, o e c o n ô m i c o e o social se r e d u z e m a fatores ou variáveis sobrepostos a u m a visão biologizante das d o e n ç a s e da própria desnutrição, agregando-os às análises, q u e n ã o abalaram a estrutura do seu entendimento. Esses estudos e iniciativas contribuíram para a multidisciplinaridade sem, no entanto, ter se constituído u m a a b o r d a g e m capaz d e recriar novas p e r s p e c tivas de leituras e c o m p r e e n s ã o dos problemas alimentares e nutricionais c o m os quais a nutrição se preocupa. G e r a l m e n t e , estão marginalizadas d a formação dos nutricionistas a importância da antropologia e as leituras sociológicas sobre a alimentação. D e certo a vertente social da nutrição, inaugurada por Josué de Castro, abriu flancos, no p a s s a d o , para analisar a fome, os seus efeitos e criar u m a a g e n d a para as intervenções d e políticas nutricionais e alimentares governamentais que, e m b o ra transformadas e m sua formulação e i m p l e m e n t a ç ã o no q u a d r o das políticas sociais, ainda se m a n t ê m . Apesar de m e n o s agudas atualmente e m relação às décadas imediatas após a Segunda Guerra Mundial, pobreza, miséria e fome ainda convivem ao lado da maior abundância alimentar, q u e traz outros problemas nutricionais c o m o a obesidade e as doenças associadas, assim c o m o os distúrbios do comportamento alimentar (a bulimia e a anorexia, por exemplo), fortemente ligados à i m a g e m corporal e q u e convivem no quadro das desigualdades sociais e epidemiológicas reinantes e m nossa sociedade. O entendimento restrito da cultura, carimbado geralmente c o m termos c o m o 'irracionalidades' a serem removidas por intervenções que se crêem 'racionais' ou 'científicas', n ã o concede espaço às diferenças e às diversidades culturais q u e m a r c a m a nossa sociedade. A p r i m e i r a parte desta coletânea inicia-se c o m u m artigo d e revisão bibliográfica, feita por A n a Maria Canesqui, sobre os estudos socioantropológicos sobre a alimentação realizados no Brasil, p e r c o r r e n d o as décadas passadas e a corrente. D i s c u t e m - s e t e m a s , c o n c e i t o s e e n f o q u e s t e ó r i c o - m e t o d o l ó g i c o s adotados por diferentes autores, e s p e l h a n d o a multiplicidade d e p a r a d i g m a s q u e c o n v i v e m entre si na a b o r d a g e m d e u m conjunto d e assuntos q u e foram pesquisados, tais c o m o hábitos e ideologias alimentares; produção, acesso, práticas d e c o n s u m o e ideologia; organização da família, sobrevivência e práticas de c o n s u m o alimentar; alimentação, c o r p o , s a ú d e e doença; comida, simbolism o e identidade e representações sobre o natural. M a r i a E u n i c e Maciel destaca as cozinhas, simultaneamente, c o m o expressões das tradições e construções histórico-culturais. A s cozinhas n ã o se r e s u m e m aos seus pratos e ingredientes e m b l e m á t i c o s ou específicos; a partir da leitura da c o m i d a c o m o linguagem, a autora assinala que a cozinha é capaz de c o m u n i c a r as identidades de grupos sociais, étnicos e religiosos; das regiões e de seus habitantes ou da própria nacionalidade. A s s i m , escreve a autora, " o prato serve para nutrir o corpo, m a s t a m b é m sinaliza u m pertencimento, servido c o m o u m c ó d i g o d e r e c o n h e c i m e n t o social". J u n g l a M a r i a Pimentel Daniel e Veraluz Zicarelli Cravo, por sua vez, elucidam a diversidade das sociedades h u m a n a s (tribais, c a m p o n e s a s e capita- listas), as regras e as relações sociais imbricadas c o m o aspecto simbólico q u e p e r m e i a m a p r o d u ç ã o , a distribuição e a c o m e n s a l i d a d e . Elas t a m b é m percorr e m u m conjunto d e estudos etnográficos nacionais, q u e muito b e m e x p r e s s a m a m a r c a das contribuições antropológicas, pelo m e n o s e m u m dado m o m e n t o do d e s e n v o l v i m e n t o das pesquisas. N o r t o n C o r r ê a nos fala da culinária ritual d o b a t u q u e no Rio G r a n d e do Sul. A l é m de servir para demarcar territórios regionais, sociais e diferenças identitárias, os alimentos servidos ritualmente no contexto daquele culto religioso a b a s t e c e m os vivos, os mortos ou as divindades, inscrevendo-se nas relações sociais. C o r r ê a mostra q u e a cozinha, c o m o ' b a s e da religião', constitui f u n d a m e n t a l m e n t e a essência e a existência d o próprio batuque. C a r m e m Sílvia Morais Rial percorre os relatos dos viajantes e suas interpretações sobre os c o s t u m e s alimentares; as espécies vegetais e animais comestíveis; o seu p r e p a r o ; os sabores, odores e os paladares observados; os m o d o s d e c o m e r e beber, assim c o m o o canibalismo, j u n t a m e n t e c o m m u d a n ças e introduções d e novos alimentos, m e d i a n t e o contato c o m os colonizadores. Ela n ã o se interessa apenas pelos relatos e m si m e s m o s , m a s neles lê a interpretação q u e traziam sobre a nossa identidade, q u e a c o m i d a dos ' o u t r o s ' , e m sentido geral, foi capaz de expressar, d e s p e r t a n d o reações naqueles q u e a o b s e r v a r a m e c o m e n t a r a m c o m seus olhares d e e u r o p e u s . Sílvia Carrasco i Pons, adotando a perspectiva socioantropológica, sugere q u e sejam abordados os comportamentos e as experiências alimentares c o m o meios de reconstituir os sistemas alimentares, expostos a u m conjunto de transformações, n u m m u n d o globalizado e desigual quanto à distribuição da riqueza. E s s e sistema sofre, a seu ver, u m conjunto d e influências, às quais se e x p õ e m as e c o n o m i a s tradicionais c o m escassez crônica d e alimentos e crise d e disponibilidade alimentar, p a s s a n d o pelas m u d a n ç a s tecnológicas e ecológicas na p r o d u ç ã o d e alimentos, por intervenções sociossanitárias induzidas pelos prog r a m a s de ajuda internacional e submetidas aos processos de industrialização, urbanização e migração. Ela lembra t a m b é m , entre as m u d a n ç a s recentes dos sistemas alimentares, a crise da alimentação nos países desenvolvidos, ou seja, a ' g a s t r o - a n o m i a ' , apontada por Claude Fischler (1990). O d e s e n h o detalhado d e u m a proposta para o estudo sociocultural da alimentação elucida o seu ponto d e vista sobre a reconstrução do sistema alimentar, c o m o c o m p o n e n t e da cultura q u e serve d e guia para u m trabalho d e c a m p o d e natureza antropológica c o m intenções comparativas e interculturais. A autora p õ e entre parênteses a feitura de u m a etnografia da nutrição, propondo à antropologia a compreensão e a análise das propriedades social e material da alimentação e dos processos sociais e culturais e n ã o dos alimentos, per si, ou dos processos metabólicos, postos pela b i o m e d i c i n a e pela nutrição. N a s e g u n d a parte, os autores aprofundam a reflexão sobre os paradoxos e as r e p e r c u s s õ e s , na c u l t u r a a l i m e n t a r , das t r a n s f o r m a ç õ e s e da internacionalização da economia, das tecnologias, das finanças, d a p r o d u ç ã o cultural e m escala mundial e do c o n s u m o n o contexto da globalização. Trata-se de u m p r o c e s s o q u e c o m p o r t a a h e t e r o g e n e i d a d e e a fragmentação, n ã o sendo h o m o g ê n e o , c o m o parte da literatura sobre a globalização sugere. O s artigos d e Jesús Contreras H e r n á n d e z e de M a b e l G r a c i a Arnaiz admitem, por u m lado, os efeitos relativamente h o m o g e n e i z a n t e s e positivos da globalização sobre a m a i o r afluência alimentar, assim c o m o a massificação do c o n s u m o e a m a i o r acessibilidade alimentar, nos países industrializados, m o v i d o s pelo n o v o ciclo e c o n ô m i c o d o capitalismo, concentrador dos negócios e altamente especializado nas redes d e produção, distribuição e c o n s u m o . Por outro lado, refletem sobre a g e r a ç ã o e a preservação d e várias contradições. Contreras nos fala, entre aquelas m u d a n ç a s , na defasagem entre as representações alimentares dos c o n s u m i d o r e s e os ritmos e a velocidade das i n o v a ç õ e s e tecnologias; d o sistema d e p r o d u ç ã o e distribuição d o s alimentos e m escala industrial, diante dos quais os c o n s u m i d o r e s p e r m a n e c e m desconfiados, inseguros e insatisfeitos. Reflete t a m b é m sobre a importância das políticas culturais q u e t o r n a m as cozinhas e suas tradições objetos de patrimônio, critic a n d o , todavia, os seus usos ideológicos e mercantis por m e i o d a difusão e d a revalorização descontextualizada d e certas cozinhas regionais, locais e n a c i o nais. Se a antropologia s e m p r e se interessou pelas diversidades e diferenças, prestando atenção às relações sociais e às formas culturais criadas pelas distintas s o c i e d a d e s , sugere o autor q u e i n d a g u e m o s sobre as diferenças e os ritmos d o p r o c e s s o d e tornar objetos d e p a t r i m ô n i o as várias tradições culturais alimentares n o s diferentes países; sobre os agentes proponentes, seus propósitos e as características q u e a s s u m e m e m c a d a país. M a b e l G r a c i a Arnaiz é bastante enfática ao tratar da persistência, na afluência alimentar, das desigualdades sociais n o acesso; das diferenças do c o n s u m o , s e g u n d o a b a g a g e m sociocultural d o s vários grupos sociais; da grand e variabilidade da oferta alimentar, q u e s t i o n a n d o a h o m o g e n e i z a ç ã o e reafirm a n d o a existência d o s particularismos locais e regionais, não destruídos pelo p r o c e s s o d e globalização. P a r a a autora, a a b u n d â n c i a alimentar convive c o m : 1) a m a g r e z a rigorosa, c o m o u m n o v o p a d r ã o d a estética corporal p r o d u z i d o por e para certos setores sociais; 2) a s e g u r a n ç a e a insegurança alimentares, ou seja, os riscos reais e subjetivos; 3) os n o v o s produtos comestíveis n ã o - identificados; 4) a destruição da alimentação tradicional, dos seus ciclos e ritm o s e 5) a m a i o r vulnerabilidade de muitos grupos sociais e dos países e m p o brecidos. S e g u n d o ela, a antropologia da alimentação m o v e - s e n u m espaço que lhe p e r m i t e descrever e analisar as m u d a n ç a s d a o r d e m social e contribuir s i m u l t a n e a m e n t e para melhorar a qualidade d e vida e saúde das pessoas, reduzir as desigualdades sociais, evitar discriminações, preservar o m e i o ambiente, a biodiversidade, m a n t e n d o as identidades. N a terceira parte, transpõe-se a alimentação para os diferentes espaços - privados e públicos - nos contextos u r b a n o s . A n a M a r i a Canesqui apresenta u m estudo c o m p a r a t i v o sobre a prática alimentar cotidiana n o âmbito doméstico, realizado e m dois períodos e conjunturas m a c r o e c o n ô m i c a s distintas (1970 e 2 0 0 2 ) entre segmentos d e famílias trabalhadoras urbanas q u e h a v i a m migrado d o c a m p o para a cidade, no início d a d é c a d a d e 7 0 , q u a n d o elas foram p r i m e i r a m e n t e estudadas, e n u m a s e g u n d a vez, após decorridos 30 anos d e experiência e inserção na cidade. A autora enfoca os grupos domésticos, caracterizando-os s e g u n d o a sua c o m p o s i ç ã o , formas d e inserção no m e r c a d o d e trabalho, ciclo de vida e divisão sexual dos papéis familiares, atentando para o m o d o c o m o se organiza e se estrutura a prática alimentar cotidiana (provisão, preparo, distribuição e c o n s u m o final d o s alimentos), i n d a g a n d o sobre as suas m u d a n ç a s e p e r m a n ê n c i a s naquele e s p a ç o d e t e m p o e entre duas gerações. Valendo-se da etnografía, possibilita c o m p r e e n d e r representações e ações sobre os usos e o m o d o d e c o n s u m o dos alimentos - c o n f o r m a n d o u m d a d o estilo d e c o n s u m o - q u e e v i d e n c i a m outras lógicas q u e d e v e m ser c o m p r e e n d i d a s pelos profissionais da saúde. O estudo d e corte qualitativo ultrapassa os d e tipo orçamentário sobre o c o n s u m o , q u e g e r a l m e n t e constatam transformações no p a d r ã o alimentar nas últimas d é c a d a s , justificadas apenas pela r e n d a e pela escolaridade, s e m considerarem a c o m p l e x i d a d e das práticas alimentares que, além d o acesso ao c o n s u m o , c o m p o r t a m valores, identidades, aprendizagem, escolhas e gostos alimentares, c o n f o r m a d o s n o m o d o d e vida e p e r m e a d o s por várias a m b i g ü i d a d e s , q u e d e n o t a m s i m u l t a n e a m e n t e tradições e m u d a n ç a s . R o s a W a n d a D i e z G a r c i a relata p e s q u i s a sobre as representações d a alimentação d e funcionários públicos c o m o c u p a ç õ e s administrativas q u e trab a l h a v a m no centro da cidade de S ã o P a u l o e faziam refeições n o local d e trabalho ou e m restaurantes. N o estudo, ela identifica a existência d e u m discurso sobre a relação entre alimentação e s a ú d e q u e associa causas d e d o e n ças, c o n t a m i n a ç ã o alimentar e excesso d e peso corporal, aspectos q u e se articulam e m torno de valores associados ao c o r p o e ao seu cuidado, de j u í z o s morais sobre o q u e é b o m ou n ã o para c o m e r e d e formas de pensar assentadas n a s classificações culturais e s i m b ó l i c a s s o b r e a c o m i d a . U m c o n j u n t o d e c o n t r a d i ç õ e s entre as formas d e p e n s a r e d e se c o m p o r t a r diante d a a l i m e n tação nos mostra uma mobilidade e flutuações nos discursos e nas práticas q u e e s t ã o t e n s i o n a d o s p e r m a n e n t e m e n t e p o r e s c o l h a s individuais p e r c e b i d a s c o m o transgressões. O sociólogo Jean-Pierre C o r b e a u discorre sobre a d i m e n s ã o simbólica e oculta da c o m e n s a l i d a d e no âmbito hospitalar c o m base na análise d a ' s e q ü ê n cia a l i m e n t a r ' : suas especificidades, o c o n t e x t o e a sociabilidade alimentar naq u e l e e s p a ç o . P a r a o autor, na ' s e q ü ê n c i a a l i m e n t a r ' i n t e r a g e m a s p e c t o s psicossociológicos e culturais do c o m e r c o m os aspectos simbólicos e a própria p e r c e p ç ã o d o alimento pelos c o m e n s a i s . E l e d e s t a c a seis eixos d e perspectivas institucionais na alimentação hospitalar: a higiene, as propriedades dos alimentos, o serviço, o sabor da alimentação, o simbólico e o simulacro presentes n a g e s t ã o d o s hospitais franceses, m a t é r i a s d e c o n f r o n t o d e e x p e c t a t i v a s d e c o m e n s a l i d a d e dos usuários e das instituições, d e m o n s t r a n d o q u e a c o m i d a t e m efeitos n o s tratamentos, u m a vez q u e p o r t a m significados para os adoecidos. G é r a r d M a e s , administrador hospitalar, reconstitui a trajetória das m u d a n ç a s n o t e m p o da alimentação institucional, p o r m e i o de u m t e s t e m u n h o arg u t o d e suas transformações n o c o n t e x t o francês: da sopa, q u e o c u p a u m lugar histórico nessa trajetória, até os cardápios m a i s recentes preparados por chefs d e cozinha. T u d o isso reflete s i m u l t a n e a m e n t e os processos d e m u d a n ç a d e valores e m relação à hospitalização, ao g e r e n c i a m e n t o dos hospitais n o preparo das refeições, na p r o d u ç ã o d e cardápios, atualmente influenciada por profissionais d e nutrição, e sua p e r m e a b i l i d a d e às transformações n o estatuto d o d o e n t e - q u e passou a ser visto m a i s c o m o cliente e m e n o s c o m o paciente. N a quarta parte, são discutidas as possíveis interlocuções entre a nutriç ã o e as c i ê n c i a s s o c i a i s e h u m a n a s , e s p e c i a l m e n t e a a n t r o p o l o g i a . A s organizadoras fazem u m a análise dos currículos d e cursos d e nutrição d o Brasil e d e alguns p r o g r a m a s d e disciplinas por eles ofertadas. D e t ê m - s e sobre os c o n t e ú d o s d e p r o g r a m a s d e cursos d e ciências sociais e h u m a n a s sobre alim e n t a ç ã o , ministrados por universidades norte-americanas e inglesas, c o m a intenção d e tecer c o m p a r a ç õ e s d e c o n t e ú d o s p r o g r a m á t i c o s e metodologias d e ensino d a q u e l e s p r o g r a m a s c o m os nacionais, e a finalidade d e contribuir p a r a a discussão do melhor e q u a c i o n a m e n t o dessas disciplinas nos currículos d o s cursos d e nutrição nacionais. Entre as constatações d o estudo estão, para a situação brasileira, a e x p a n s ã o da inclusão das ciências sociais e h u m a n a s n o s currículos, e m b o r a heterogênea e dispersa q u a n t o aos conteúdos, carga horária e disciplinas apresentadas, o q u e p a r e c e conformar tensões e fragilidades na expectativa da participação dessa área de conhecimento na formação do nutricionista. O s p r o g r a m a s internacionais analisados são mais específicos n o s seus conteúdos, q u e se v o l t a m para u m e x a m e mais focado n a temática da alimentação e dos fatores q u e a elucidam, e x p o n d o u m acervo diversificado d e pesquisas e p r e o c u p a ç õ e s b e m m a i s amplas do q u e as existentes n o Brasil. O s d o i s a r t i g o s q u e se s e g u e m s ã o d i r i g i d o s , r e s p e c t i v a m e n t e , a nutricionistas e a antropólogos. A m b o s assinalam ser a c o m p l e x i d a d e da alimentação como objeto de estudo o fundamento para u m a abordagem interdisciplinar e tratam das dificuldades q u e se o p e r a m na sua aplicação. N a forma d e diálogo entre a antropologia e a nutrição, R o s a W a n d a D i e z G a r c i a reflete sobre a a d o ç ã o d a dieta mediterrânea c o m o m o d e l o d e dieta saudável, destacando a i n a d e q u a ç ã o cultural d e transportar ou generalizar u m m o d e l o dietético f u n d a m e n t a d o n u m a cultura e n u m m e i o d e t e r m i n a d o s . Traduzir em nutrientes, ou em itens alimentares, um modelo de dieta é descontextualizar a sua p r o d u ç ã o , e gera apropriações fragmentadas d e alim e n t o s q u e são reintegrados e m outros m o d e l o s dietéticos, d e s c o n s i d e r a n d o se tanto o resultado desse rearranjo q u a n t o a própria identidade culinária c o m o p a t r i m ô n i o d e outra cultura. Dirigido inicialmente a antropólogos, o artigo d e M a b e l Gracia Arnaiz traz u m a discussão sobre as peculiaridades da antropologia da alimentação, na qual l a m e n t a o r e d u z i d o interesse d o s antropólogos n o seu e s t u d o ; revela as rivalidades entre a antropologia teórica e a prática e a relevância atribuída à primeira, e m detrimento d a segunda. A aplicação d o conhecimento antropológico, ultrapassando as p r e o c u p a ç õ e s exclusivamente teóricas, é defendida p e l a autora. Ela trava t a m b é m u m diálogo c o m profissionais da área d a saúde e m a i s especificamente c o m os nutricionistas, apontando as fronteiras dos c a m p o s profissionais na análise d e p r o g r a m a s e políticas d e alimentação. E s p e r a - s e q u e esta c o l e t â n e a p r e e n c h a u m a l a c u n a bibliográfica e facilite a a p r o x i m a ç ã o d a a n t r o p o l o g i a c o m a nutrição. E m b o r a a c o n s t r u ç ã o d a interdisciplinaridade n ã o g o z e d o c o n s e n s o d e todos os autores dela particip a n t e s , a b r e m - s e p o s s i b i l i d a d e s d e i n t e r l o c u ç ã o entre os diferentes c a m p o s disciplinares n o â m b i t o d a p e s q u i s a , c o m o t a m b é m entre os i n c u m b i d o s , por ofício, d e i n t e r v e n ç õ e s n o s p r o b l e m a s individuais e coletivos d a a l i m e n t a ç ã o e n u t r i ç ã o - i n t e r v e n ç õ e s c u l t u r a l m e n t e ajustadas d e m a n d a m profissionais q u e p e r m a n e ç a m m a i s sensíveis à c o m p r e e n s ã o das diferenças e d a diversid a d e cultural a l i m e n t a r das p o p u l a ç õ e s ou das clientelas às quais se d i r i g e m . D a m e s m a forma, t e n d o e m vista a incipiência, desarticulação e f r a g m e n t a ç ã o o b s e r v a d a na a i n d a frágil p a r t i c i p a ç ã o d a s ciências sociais e h u m a n a s no e n s i n o d a nutrição, e s p e r a - s e auxiliar n o a m a d u r e c i m e n t o d a c o n f o r m a ç ã o d o s c u r r í c u l o s , p a r t i c u l a r m e n t e n o q u e diz r e s p e i t o às abordagens socioantropológicas da alimentação. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS CASCUDO, C. História da Alimentação Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983. FISCHLER, C.L'(H)omnivore. Paris: Odile Jacob, 1990. FREYRE, G Açúcar: uma sociologia do doce com receitas de bolos e doces do Nordeste brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. GOODY, J. Cocina, Cuisine y Clase. Barcelona: Gedisa, 1995. GRACIA, M. Paradojas de la Alimentación Contemporánea. Barcelona: Icaria, 1996. MINTZ, S. W. Comida e antropologia: uma breve revisão. Revista Brasileira de Ciencias Sociais, 16(47):31-41,2001. 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