162 J Bras Nefrol 2000;22(3): 162-8 Atualização em Insuficiência Renal Aguda: Insuficiência renal aguda após acidente crotálico Fábia O Pinhoa, Edivaldo C Vidalb, Emmanuel A Burdmannc a Disciplina de Nefrologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás. bDisciplina de Nefrologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia. cDisciplina de Nefrologia da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto Endereço para correspondência: Emmanuel A. Burdmann Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto Av. Brigadeiro Faria Lima, 5416 15090-000 São José do Rio Preto, SP Tel./Fax: (0xx17) 227-5733 ramal 135 Introdução Os acidentes ofídicos representam sério problema de saúde pública nos países tropicais, pela freqüência com que ocorrem e pela morbi-mortalidade que ocasionam. Existem no mundo aproximadamente 3 mil espécies de serpentes, das quais 10 a 14% são consideradas peçonhentas.1 A OMS (Organização Mundial da Saúde) calcula que ocorram no mundo 1.250.000 a 1.665.000 acidentes por serpentes peçonhentas por ano, com 30.000 a 40.000 mortes.2 A mortalidade dos acidentados varia nas diferentes regiões do mundo.3 Na Ásia, principalmente Índia, Paquistão e Birmânia, os acidentes ofídicos provocam de 25.000 a 35.000 óbitos por ano, sendo uma das serpentes mais importantes a Vipera russelli.4 Na Nigéria, ocorrem 500 casos por 100.000 habitantes, com uma taxa de mortalidade em torno de 10%.5 Nos Estados Unidos, 12 a 15 dos 8 mil casos anuais são fatais, levando a uma mortalidade de 0,2%.6 No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, ocorrem entre 19.000 a 22.000 acidentes ofídicos por ano, com mortalidade ao redor de 0,5%.7 A maioria desses acidentes deve-se a serpentes do gênero Bothrops (jararaca, jaracuçu, caiçara, urutu, combóia e outros) e Crotalus (cascavel), sendo raros os produzidos por Lachesis (surucucu, surucutinga) e Micrurus (coral).8 Segundo a Coordenação Nacional de Controle de Zoonoses e Animais Peçonhentos (CNCZAP) do Ministério da Saúde, no período de 1990 a 1993 ocorreram 81.611 acidentes, com uma média de 20.000 casos/ano para o país. A média de incidência foi de 13,5 acidentes/100.000 habitantes, com a região Centro-oeste contribuindo com o maior índice do país (33 aciden- 5-crotali.p65 162 tes/100.000 habitantes).9 Dentre os casos em que o gênero da serpente foi informado, Bothrops foi responsável por 90,5% dos casos, Crotalus por 7,7%, Lachesis por 1,4% e Micrurus por 0,4%.9 A letalidade geral foi de 0,45%, sendo maior nos acidentes crotálicos, onde em 5.072 acidentes ocorreram 95 óbitos (1,87%).9 A insuficiência renal aguda (IRA) é uma das principais complicações do acidente ofídico, sendo importante causa de óbito para esses pacientes. Lesão renal associada a acidente ofídico tem sido descrita com praticamente todas as serpentes, porém casos de IRA são mais freqüentes após acidentes por Vipera russelli, na Ásia, e serpentes do gênero Bothrops e Crotalus, na América do Sul. A etiopatogenia da lesão renal tem sido atribuída a nefrotoxicidade direta da peçonha, miólise, hemólise, hipotensão, coagulação capilar glomerular, ação tóxica vascular e até mesmo reações de hipersensibilidade à toxina ou ao soro antiofídico.10 Acidente crotálico A serpente As serpentes do gênero Crotalus encontradas no Brasil apresentam características comuns às serpentes peçonhentas, tais como cabeça triangular, um par de fossetas loreais (órgão sensorial termorreceptor), olhos pequenos com pupilas em fenda, escamas na cabeça e dentes inoculadores de veneno. Além disso, apresentam na porção terminal da cauda o guizo ou chocalho, uma característica peculiar desse gênero, que facilita a sua identificação.11 Estão representadas no Brasil por apenas uma espécie, a Crotalus durissus ou cascavel, e distribuídas em cinco subespécies (Tabela 1):12 Crotalus durissus terrificus, encontrada nas zonas altas e secas da região sul oriental e meridional, desde o Rio Grande do Sul até Minas Gerais. A sua denominação popular é cascavel ou boiquira; Crotalus durissus collilineatus, distribuída nas regiões secas do centro-oeste do Brasil (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e norte do Estado de São Paulo). As denominações populares são cascavel e maracabóia; 08/01/01, 16:54 J Bras Nefrol 2000;22(3):162-8 163 Pinho FO et al - IRA após acidente crotálico Crotalus durissus cascavella, encontrada nas áreas de caatinga no Nordeste brasileiro, desde o Maranhão até Minas Gerais. Popularmente denominadas cascavel e cascavel de quatro ventas; Crotalus durissus ruruima, observada nos Estados de Roraima, Amapá, Pará, Amazonas e Rondônia, denominadas popularmente por boiçununga e maracá; Crotalus durissus marajoensis, observada na Ilha de Marajó, onde recebe denominações de boicininga, boiçununga e maracá. Tabela 1 Sub-espécies do gênero Crotalus Crotalus durissus terrificus collilineatus cascavella ruruima marajoensis Essas serpentes são geralmente encontradas em campos abertos, áreas secas, arenosas e pedregosas e raramente na faixa litorânea. Não ocorrem em florestas nem no Pantanal.9 Alimentam-se de ratos, preás e pequenos roedores. São menos agressivas que as do gênero Bothrops, porém mais agressivas que as dos gêneros Lachesis e Micrurus. Não tem hábito de atacar e, quando excitadas, denunciam sua presença pelo ruído característico do guizo ou chocalho.13 As serpentes do gênero Crotalus são responsáveis por aproximadamente 9% dos acidentes ocorridos em nosso meio. O acidente crotálico é mais freqüente no período chuvoso, acomete mais indivíduos do sexo masculino, faixa etária de 20-39 anos e trabalhadores rurais. Os membros inferiores e superiores são as regiões anatômicas mais atingidas.13-16 A peçonha A peçonha crotálica é considerada a mais tóxica entre as peçonhas de serpentes brasileiras, com letalidade de 72% nos casos não tratados e de 5% nos casos em que houve soroterapia.14,15 A sua composição é complexa incluindo enzimas, toxinas e peptídios.17,18 Algumas de suas toxinas já foram identificadas: crotamina, crotoxina, giroxina, convulsina, crotapotina e fosfolipase A2(Tabela 2). O efeito da peçonha é multifatorial, afetando os mús- 5-crotali.p65 163 Tabela 2 Componentes identificados na peçonha crotálica Crotamina Crotoxina Girotoxina Crotapotina Fosfolipase A2 culos esqueléticos, vasos sanguíneos, sistema nervoso, rins e componentes do sangue.8,19,21-26 As três principais ações do veneno crotálico são (Tabela 3): Ação neurotóxica: produzida principalmente pela fração crotoxina, uma neurotoxina de ação pré-sináptica que atua nas terminações nervosas, tanto em nível de sistema nervoso central quanto periférico, inibindo a liberação de acetilcolina. Essa inibição é o principal fator responsável pelo bloqueio neuromuscular do qual decorrem as paralisias motoras e respiratórias apresentadas pelos pacientes. A convulsina e a giroxina contribuem para produzir convulsões e perturbações circulatórias e respiratórias, comprovadas em animais de experimentação.24,26,29 Ação miotóxica: produz lesões de fibras musculares esqueléticas, afetando preferencialmente as do tipo 1, podendo causar importante rabdomiólise, com liberação de enzimas e mioglobina para o soro, com posterior excreção urinária, levando à mioglobinúria. Não está identificada a fração do veneno que produz esse efeito miotóxico sistêmico. Existem evidências que sugerem que a crotamina e a crotoxina possuam ação miotóxica local.14,28,30 Ação coagulante: decorre de atividade de enzima similar a trombina, que tem a capacidade de transformar fibrinogênio em fibrina. Isso provoca consumo dos fatores de coagulação, principalmente fibrinogênio e, por fim, incoagulabilidade sanguínea. Geralmente não há redução do número de plaquetas.13,27 Tabela 3 Principais ações da toxina crotálica Neurotóxica: paralisias motora e respiratória, convulsões, alterações respiratórias e circulatórias. Miotóxica: rabdomiólise generalizada, mioglubinúria. Coagulante: consumo de fibrinogênio e distúrbios de coagulação. 08/01/01, 16:54 164 J Bras Nefrol 2000;22(3): 162-8 Pinho FO et al - IRA após acidente crotálico Quadro clínico (Tabela 4) Manifestações locais: no local da picada pode-se observar desde um simples arranhão até marca puntiforme única ou dupla. Em geral não há reação local, embora um pequeno edema possa estar presente. A dor, quando ocorre, não é intensa. Há parestesia local ou regional, que pode persistir por várias semanas.13 Manifestações sistêmicas gerais: mal-estar, prostração, sudorese, náuseas, vômitos, sonolência ou inquietação e sensação de boca seca podem aparecer precocemente, estando relacionadas a estímulos de origem diversas.9 Manifestações neurológicas: surgem nas primeiras horas e melhoram a partir do segundo dia do acidente. O fácies miastênico é característico e denominado fácies neurotóxico de Rosenfeld, evidenciando ptose palpebral uni ou bilateral, flacidez da musculatura da face, alteração do diâmetro pupilar (midríase bilateral semiparalítica), incapacidade de movimentação do globo ocular (oftalmoplegia), visão turva e/ou visão dupla (diplopia), indicando portanto o comprometimento do III, IV e VI pares cranianos. Como manifestações menos freqüentes, pode-se encontrar paralisia velopalatina, com dificuldade de deglutição, alterações do paladar e olfato e dificuldade respiratória.13 Manifestações musculares: a miotoxicidade do veneno é evidenciada por intensa mialgia generalizada, que pode ser acompanhada por discreto edema muscular. A miólise causa mioglobinúria, que confere cor avermelhada ou vinhosa à urina.13,22,25,31 Manifestações hematológicas: pode haver incoagulabilidade sanguínea ou aumento do tempo de coagulação em aproximadamente 40% dos pacientes, observando-se raramente gengivorragia. Essas alterações ocorrem após algumas horas do acidente e involuem com o tratamento adequado.9,27 Tabela 4 Quadro clínico do acidente crotálico • • • • • • • 5-crotali.p65 Lesão local leve. Ptose palpebral, midríase, oftalmoplegia, diplopia. Mialgia intensa. Oligúria. Sangramentos (raro). Dificuldade respiratória (rara). Choque/hipotensão (raros). 164 Diagnóstico O diagnóstico de certeza é realizado pelo exame e reconhecimento do gênero da serpente. Quando o paciente desconhece ou não traz o animal agressor, o diagnóstico deverá ser confirmado pelos sinais e sintomas característicos do quadro clínico, pois esse é de instalação precoce. O diagnóstico diferencial mais importante é com o acidente elapídico. Embora a picada por Micrurus também possa determinar fácies miastênica, não causa miólise, mioglobinúria maciça e alterações da coagulação sanguínea, presentes no acidente crotálico.14,32,33 Serpentes jovens do gênero Bothrops podem provocar lesão local muito leve, porém a ausência de fenômenos neurológicos e as importantes alterações de coagubilidade sanguínea presentes nesse tipo de acidente botrópico permitem fazer o diagnóstico diferencial.34 Exames laboratoriais A rabdomiólise pode ser comprovada pela presença de mioglobina no soro e na urina. Os níveis séricos de creatinoquinase (CPK), desidrogenase lática (DHL) e aspartase-alanino-transferase (AST) encontram-se elevados. A CPK aumenta precocemente, usualmente 4 a 8 horas após o acidente, podendo atingir níveis extremamente elevados de 100.000 UI/l ou mais. A AST eleva-se nas primeiras 24 horas e a DHL, em geral, aumenta após 48 a 72 horas, permanecendo alta por alguns dias, constituindo-se assim em exame complementar potencialmente útil para diagnóstico tardio de envenenamento crotálico.9 A rabdomiólise maciça pode induzir hipocalcemia, hipoalbuminemia, hiperuricemia, hiperfosfatemia e hipercalemia.25 O hemograma pode mostrar leucocitose, com neutrofilia e desvio à esquerda no 1º e 2º dias, observando-se na maior parte dos casos eosinofilia a partir do 3º dia do acidente. Ao contrário do que se afirmava previamente, não ocorre hemólise significativa.20,21 O tempo de coagulação (TC) está freqüentemente prolongado e geralmente se normaliza após 12 horas do início do tratamento.9,13 Os níveis de uréia e creatinina podem estar elevados se houver presença de insuficiência renal aguda. O sedimento urinário geralmente é normal na ausência de IRA. Podem haver proteinúria e/ou glicosúria discretas. A presença de mioglobina urinária pode ser detectada por métodos imunoquímicos específicos, como imunoeletroforese, imunodifusão ou de agluti- 08/01/01, 16:54 J Bras Nefrol 2000;22(3):162-8 165 Pinho FO et al - IRA após acidente crotálico nação.9 Os exames usuais de fita que utilizam benzidina não diferenciam entre hemoglobina e mioglobina e portanto podem apresentar-se fortemente positivos.19,21 Tratamento e prognóstico O tratamento específico é realizado com soro anticrotálico (SAC), que deve ser administrado endovenosamente, em dosagens superiores a 150 mg. A dose varia de acordo com a gravidade do caso, devendo-se ressaltar que a quantidade a ser administrada à criança é a mesma da do adulto.9,13 Não foi ainda determinado de forma conclusiva se a administração precoce do soro tem efeito benéfico em diminuir a incidência de IRA, embora dados indiretos associem atendimento tardio a maior risco de desenvolvimento de IRA.35 Como no local da picada as manifestações são mínimas, com sinais flogísticos leves, recomenda-se adequada assepsia e analgésicos, se necessário. O uso de antibioticoterapia está condicionado à evidência de infecção, lembrando que os germes patogênicos podem provir da boca do animal, da pele do acidentado ou do uso de contaminantes sobre o ferimento. Devese realizar corretamente a profilaxia do tétano.9 A adoção de medidas clássicas para prevenção de lesão renal secundária à rabdomiólise é particularmente importante. Dentre essas, a principal é certamente a manutenção de hidratação adequada e satisfatória, com fluxo urinário de 1 a 2 ml/kg/hora na criança e 30 a 40 ml/hora no adulto.9 Dados experimentais recentes demonstram de forma clara que a desidratação agravou e a hiperhidratação atenuou a gravidade da lesão renal.36 Pode-se induzir diurese osmótica com solução de manitol a 20% (50 a 100 mg em 24 h) infundido a cada 6 horas ou de forma contínua, por um período de 3 a 5 dias, em função da gravidade e da evolução do caso.13 Advoga-se que esse, além de proteger as células tubulares renais, contribuiria para diminuir o edema cerebral e da musculatura esquelética.13 Pode-se também manter a urina alcalina com a administração parenteral de bicarbonato de sódio monitorada por controle gasométrico. Essa manobra, que visa atenuar ou evitar a lesão renal causada pela rabdomiólise, deve ser realizada com extrema cautela, pois pode causar efeitos colaterais importantes como alcalose metabólica grave, hipernatremia e hipervolemia.9,13,15,25,31 O prognóstico nos acidentes leves e moderados e nos pacientes atendidos nas primeiras seis horas após a picada é bom, observando-se regressão total de sintomas e sinais após alguns dias. Acidentes graves, com atendimento tardio ou acompanhados por IRA apresentam prognóstico mais reservado.9,13,22,23,32 Insuficiência renal aguda após acidente crotálico Prevalência da IRA A IRA é a principal complicação do paciente que sobrevive às ações iniciais da peçonha crotálica.8,14,37 A prevalência descrita de IRA após acidente crotálico é elevada, variando de 9 a 31%.15,35,38,39 Apesar do acidente crotálico ser aproximadamente 10 vezes menos freqüente do que o botrópico, o número absoluto de casos de IRA reportados com os dois gêneros de serpente é semelhante.40 Não existem, até o momento, trabalhos que tenham avaliado de forma sistemática e através de parâmetros adequados o número real de pacientes que desenvolvem lesão renal após acidente crotálico. Os dados disponíveis baseiam-se em análises retrospectivas com utilização de parâmetros de função renal pouco sensíveis. Dados preliminares de um estudo prospectivo demonstram que ao redor de 25% dos pacientes apresentam queda significativa da depuração de creatinina nos primeiros três dias após o acidente crotálico.* Fatores de risco para o desenvolvimento de IRA Em estudo retrospectivo recente, Silveira e Nishioka demonstraram que idade mais avançada e intervalo de tempo mais longo entre o acidente e o atendimento médico associaram-se ao maior risco de desenvolvimento de IRA. Concluíram também que para pacientes maiores de 40 anos de idade, mialgia e face neurotóxica eram fatores preditivos de lesão renal.35 Segundo Ward, em presença de rabdomiólise o grau de elevação do nível sérico de CPK, potássio, fósforo e diminuição do nível sérico de albumina são fatores preditivos para IRA, evidenciando a presença de lesão muscular mais grave.41 Outros fatores possivelmente associados ao risco de IRA são a idade e o tamanho da serpente, a época do ano e o local do acidente (pois existem variações sazonais e geográficas nas peçonhas), a quantidade de veneno injetada, o nível de hidratação, a presença de doenças de base no indivíduo picado ou o uso concomitante de drogas nefrotóxicas. *Pinho FO. Comunicação pessoal. 5-crotali.p65 165 08/01/01, 16:54 166 J Bras Nefrol 2000;22(3): 162-8 Pinho FO et al - IRA após acidente crotálico Etiopatogenia da lesão renal Diversos mecanismos têm sido relacionados com a gênese da lesão renal causada pela peçonha crotálica: rabdomiólise, choque, hemólise e coagulação intravascular, entre outros. A alta prevalência e a rapidez com que se instala a insuficiência renal também levaram diversos autores a sugerir que a peçonha ou um dos seus componentes possua efeito nefrotóxico direto. Em 1966, Amorim et al. injetaram peçonha crotálica por via subcutânea em cães e obtiveram quadro histológico renal de necrose tubular aguda.23 No mesmo ano, Hadler e Brazil induziram necrose tubular aguda em cães por injeção de crotoxina, demonstrando altas concentrações dessa fração da peçonha no tecido renal dos animais inoculados.42 Em 1978, Rovere et al. injetaram experimentalmente peçonha crotálica em ratos e observaram queda do fluxo sanguíneo renal, aumento da resistência vascular renal e trombose glomerular, que ocorreram na ausência de queda significativa da pressão arterial.43 Em estudo recente, Vidal et al. estudaram experimentalmente o efeito da injeção endovenosa da peçonha sobre a função renal, pressão arterial, músculo e hemáceas. Esses autores observaram que o veneno crotálico causou queda precoce da filtração glomerular e do fluxo sanguíneo renal, com recuperação parcial após 24 horas. A peçonha não provocou hipotensão ou hemólise mas induziu rabdomiólise sistêmica significativa. A desidratação agravou a lesão renal e a expansão de volume a atenuou. A peçonha mostrou nefrotoxicidade direta, agravada por hipóxia, em suspensão de túbulos proximais isolados. A histologia mostrou necrose tubular aguda. Esses dados sugerem fortemente que a patogênese da IRA por peçonha crotálica está relacionada a rabdomiólise, vasoconstricção e nefrotoxicidade direta (Figura 1).36 Clinicamente, a gravidade da lesão muscular parece ser o fator mais claramente relacionado ao desenvolvimento de IRA. A fisiopatologia da IRA associada à rabdomiólise permanece ainda obscura. Têm sido sugeridos como prováveis mecanismos o efeito tóxico direto da mioglobina, a isquemia renal devido ao desequilíbrio entre mediadores vasoconstritores e vasodilatadores e/ou a obstrução tubular por cilindros formados pelo pigmento mioglobina. Sabe-se que fatores como desidratação, hipotensão arterial, choque e acidose metabólica podem estar associados à rabdomiólise e contribuir para a instalação da lesão renal.25 Hemólise e hemoglobinúria foram incriminadas 5-crotali.p65 166 Figura 1 Etiopatogenia provável da lesão renal no acidente crotálico durante anos como fatores desencadeadores da IRA após acidente crotálico. A peçonha é hemolítica in vitro e durante muito tempo a cor vinhosa da urina e a reação de benzidina positiva urinária após acidente crotálico foram atribuídos à hemoglobinúria.30 No entanto, como já comentado, a alteração de cor da urina e o teste da benzidina são inespecíficos, podendo ocorrer tanto na mioglobinúria como na hemoglobinúria. Em 1987, Azevedo-Marques et al. comprovaram a ocorrência de miólise (mioglobina positiva no sangue e urina, elevação de enzimas e alterações na biópsia muscular) na ausência de hemólise (hemoglobina livre e haptoglobina normais e ausência de hemoglobinúria) em pacientes picados por Crotalus.21 Esse achado foi posteriormente confirmado por outros autores em nível clínico e experimental, levando ao questionamento da real importância da hemólise no acidente crotálico. Embora hipotensão e alterações do sistema de coagulação possam potencialmente contribuir para o desenvolvimento de IRA, são eventos raros nos acidentes com cascavel.44 Finalmente, fenômenos inflamatórios desencadeados pela peçonha e/ou soro antiofídico em interstício renal podem estar relacionados à etiopatogenia da lesão renal, havendo relato de casos de nefrite intersticial aguda após acidente crotálico.45 Características da IRA A IRA pode ser extremamente precoce, surgindo horas após a picada. É geralmente diagnosticada nas 08/01/01, 16:54 J Bras Nefrol 2000;22(3):162-8 167 Pinho FO et al - IRA após acidente crotálico primeiras 24 a 48 horas. É freqüentemente oligúrica, hipercatabólica, dependente de tratamento dialítico e reversível, durando em média 3 a 4 semanas. É considerada a principal causa de óbito no acidente crotálico.8,14,37 A alteração histológica renal mais freqüentemente descrita é necrose tubular aguda (NTA).8,46,47 Por outro lado, já foram descritos casos de IRA após acidente crotálico com biópsia renal mostrando nefrite intersticial aguda (NIA) associada a NTA. Todos os pacientes apresentaram quadro clínico semelhante ao de NTA. Não foram observados eosinófilos no infiltrado celular intersticial.45 Referências 1. Cardoso JLC, Brando RB. Acidentes por animais peçonhentos. 1a ed. São Paulo: Editora Santos; 1982. 2. Swaroop S, Grab B. Snakebite mortality in the world. Bull World Health Org 1954;10:35-76. 3. Ministério da Saúde. 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