Insuficiência renal aguda após acidente crotálico

Propaganda
162
J Bras Nefrol 2000;22(3): 162-8
Atualização em Insuficiência Renal Aguda: Insuficiência renal
aguda após acidente crotálico
Fábia O Pinhoa, Edivaldo C Vidalb, Emmanuel A Burdmannc
a
Disciplina de Nefrologia da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás. bDisciplina de Nefrologia da Faculdade de
Medicina da Universidade Federal de Uberlândia. cDisciplina de
Nefrologia da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto
Endereço para correspondência: Emmanuel A. Burdmann
Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto
Av. Brigadeiro Faria Lima, 5416
15090-000 São José do Rio Preto, SP
Tel./Fax: (0xx17) 227-5733 ramal 135
Introdução
Os acidentes ofídicos representam sério problema de
saúde pública nos países tropicais, pela freqüência com
que ocorrem e pela morbi-mortalidade que ocasionam.
Existem no mundo aproximadamente 3 mil espécies
de serpentes, das quais 10 a 14% são consideradas peçonhentas.1 A OMS (Organização Mundial da Saúde)
calcula que ocorram no mundo 1.250.000 a 1.665.000
acidentes por serpentes peçonhentas por ano, com 30.000
a 40.000 mortes.2 A mortalidade dos acidentados varia
nas diferentes regiões do mundo.3 Na Ásia, principalmente Índia, Paquistão e Birmânia, os acidentes ofídicos provocam de 25.000 a 35.000 óbitos por ano, sendo
uma das serpentes mais importantes a Vipera russelli.4
Na Nigéria, ocorrem 500 casos por 100.000 habitantes,
com uma taxa de mortalidade em torno de 10%.5 Nos
Estados Unidos, 12 a 15 dos 8 mil casos anuais são fatais, levando a uma mortalidade de 0,2%.6
No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde,
ocorrem entre 19.000 a 22.000 acidentes ofídicos por
ano, com mortalidade ao redor de 0,5%.7 A maioria
desses acidentes deve-se a serpentes do gênero Bothrops (jararaca, jaracuçu, caiçara, urutu, combóia e
outros) e Crotalus (cascavel), sendo raros os produzidos por Lachesis (surucucu, surucutinga) e Micrurus
(coral).8 Segundo a Coordenação Nacional de Controle
de Zoonoses e Animais Peçonhentos (CNCZAP) do
Ministério da Saúde, no período de 1990 a 1993 ocorreram 81.611 acidentes, com uma média de 20.000 casos/ano para o país. A média de incidência foi de 13,5
acidentes/100.000 habitantes, com a região Centro-oeste
contribuindo com o maior índice do país (33 aciden-
5-crotali.p65
162
tes/100.000 habitantes).9 Dentre os casos em que o
gênero da serpente foi informado, Bothrops foi responsável por 90,5% dos casos, Crotalus por 7,7%, Lachesis
por 1,4% e Micrurus por 0,4%.9 A letalidade geral foi
de 0,45%, sendo maior nos acidentes crotálicos, onde
em 5.072 acidentes ocorreram 95 óbitos (1,87%).9
A insuficiência renal aguda (IRA) é uma das principais complicações do acidente ofídico, sendo importante causa de óbito para esses pacientes. Lesão
renal associada a acidente ofídico tem sido descrita
com praticamente todas as serpentes, porém casos
de IRA são mais freqüentes após acidentes por Vipera russelli, na Ásia, e serpentes do gênero Bothrops
e Crotalus, na América do Sul. A etiopatogenia da
lesão renal tem sido atribuída a nefrotoxicidade direta da peçonha, miólise, hemólise, hipotensão, coagulação capilar glomerular, ação tóxica vascular e
até mesmo reações de hipersensibilidade à toxina
ou ao soro antiofídico.10
Acidente crotálico
A serpente
As serpentes do gênero Crotalus encontradas no Brasil
apresentam características comuns às serpentes peçonhentas, tais como cabeça triangular, um par de fossetas loreais
(órgão sensorial termorreceptor), olhos pequenos com
pupilas em fenda, escamas na cabeça e dentes inoculadores de veneno. Além disso, apresentam na porção terminal
da cauda o guizo ou chocalho, uma característica peculiar
desse gênero, que facilita a sua identificação.11
Estão representadas no Brasil por apenas uma
espécie, a Crotalus durissus ou cascavel, e distribuídas em cinco subespécies (Tabela 1):12
• Crotalus durissus terrificus, encontrada nas zonas
altas e secas da região sul oriental e meridional,
desde o Rio Grande do Sul até Minas Gerais. A sua
denominação popular é cascavel ou boiquira;
• Crotalus durissus collilineatus, distribuída nas regiões secas do centro-oeste do Brasil (Mato Grosso,
Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e norte do Estado
de São Paulo). As denominações populares são cascavel e maracabóia;
08/01/01, 16:54
J Bras Nefrol 2000;22(3):162-8
163
Pinho FO et al - IRA após acidente crotálico
• Crotalus durissus cascavella, encontrada nas áreas
de caatinga no Nordeste brasileiro, desde o Maranhão até Minas Gerais. Popularmente denominadas
cascavel e cascavel de quatro ventas;
• Crotalus durissus ruruima, observada nos Estados
de Roraima, Amapá, Pará, Amazonas e Rondônia, denominadas popularmente por boiçununga e maracá;
• Crotalus durissus marajoensis, observada na Ilha de
Marajó, onde recebe denominações de boicininga,
boiçununga e maracá.
Tabela 1
Sub-espécies do gênero Crotalus
Crotalus durissus
terrificus
collilineatus
cascavella
ruruima
marajoensis
Essas serpentes são geralmente encontradas em campos abertos, áreas secas, arenosas e pedregosas e raramente na faixa litorânea. Não ocorrem em florestas nem
no Pantanal.9 Alimentam-se de ratos, preás e pequenos
roedores. São menos agressivas que as do gênero Bothrops, porém mais agressivas que as dos gêneros Lachesis e Micrurus. Não tem hábito de atacar e, quando excitadas, denunciam sua presença pelo ruído característico
do guizo ou chocalho.13
As serpentes do gênero Crotalus são responsáveis
por aproximadamente 9% dos acidentes ocorridos em
nosso meio. O acidente crotálico é mais freqüente no
período chuvoso, acomete mais indivíduos do sexo
masculino, faixa etária de 20-39 anos e trabalhadores
rurais. Os membros inferiores e superiores são as regiões anatômicas mais atingidas.13-16
A peçonha
A peçonha crotálica é considerada a mais tóxica
entre as peçonhas de serpentes brasileiras, com letalidade de 72% nos casos não tratados e de 5% nos casos
em que houve soroterapia.14,15 A sua composição é complexa incluindo enzimas, toxinas e peptídios.17,18 Algumas de suas toxinas já foram identificadas: crotamina,
crotoxina, giroxina, convulsina, crotapotina e fosfolipase A2(Tabela 2).
O efeito da peçonha é multifatorial, afetando os mús-
5-crotali.p65
163
Tabela 2
Componentes identificados na peçonha crotálica
Crotamina
Crotoxina
Girotoxina
Crotapotina
Fosfolipase A2
culos esqueléticos, vasos sanguíneos, sistema nervoso,
rins e componentes do sangue.8,19,21-26 As três principais
ações do veneno crotálico são (Tabela 3):
• Ação neurotóxica: produzida principalmente pela fração crotoxina, uma neurotoxina de ação pré-sináptica que atua nas terminações nervosas, tanto em nível
de sistema nervoso central quanto periférico, inibindo a liberação de acetilcolina. Essa inibição é o principal fator responsável pelo bloqueio neuromuscular
do qual decorrem as paralisias motoras e respiratórias apresentadas pelos pacientes. A convulsina e a
giroxina contribuem para produzir convulsões e perturbações circulatórias e respiratórias, comprovadas
em animais de experimentação.24,26,29
• Ação miotóxica: produz lesões de fibras musculares esqueléticas, afetando preferencialmente as do
tipo 1, podendo causar importante rabdomiólise,
com liberação de enzimas e mioglobina para o soro,
com posterior excreção urinária, levando à mioglobinúria. Não está identificada a fração do veneno
que produz esse efeito miotóxico sistêmico. Existem evidências que sugerem que a crotamina e a
crotoxina possuam ação miotóxica local.14,28,30
• Ação coagulante: decorre de atividade de enzima
similar a trombina, que tem a capacidade de transformar fibrinogênio em fibrina. Isso provoca consumo dos fatores de coagulação, principalmente
fibrinogênio e, por fim, incoagulabilidade sanguínea. Geralmente não há redução do número de
plaquetas.13,27
Tabela 3
Principais ações da toxina crotálica
Neurotóxica: paralisias motora e respiratória, convulsões, alterações
respiratórias e circulatórias.
Miotóxica: rabdomiólise generalizada, mioglubinúria.
Coagulante: consumo de fibrinogênio e distúrbios de coagulação.
08/01/01, 16:54
164
J Bras Nefrol 2000;22(3): 162-8
Pinho FO et al - IRA após acidente crotálico
Quadro clínico (Tabela 4)
• Manifestações locais: no local da picada pode-se observar desde um simples arranhão até marca puntiforme única ou dupla. Em geral não há reação local,
embora um pequeno edema possa estar presente. A
dor, quando ocorre, não é intensa. Há parestesia local
ou regional, que pode persistir por várias semanas.13
• Manifestações sistêmicas gerais: mal-estar, prostração, sudorese, náuseas, vômitos, sonolência ou inquietação e sensação de boca seca podem aparecer
precocemente, estando relacionadas a estímulos de
origem diversas.9
• Manifestações neurológicas: surgem nas primeiras
horas e melhoram a partir do segundo dia do acidente. O fácies miastênico é característico e denominado “fácies neurotóxico de Rosenfeld”, evidenciando ptose palpebral uni ou bilateral, flacidez da
musculatura da face, alteração do diâmetro pupilar
(midríase bilateral semiparalítica), incapacidade de
movimentação do globo ocular (oftalmoplegia), visão turva e/ou visão dupla (diplopia), indicando portanto o comprometimento do III, IV e VI pares cranianos. Como manifestações menos freqüentes,
pode-se encontrar paralisia velopalatina, com dificuldade de deglutição, alterações do paladar e olfato e dificuldade respiratória.13
• Manifestações musculares: a miotoxicidade do veneno é evidenciada por intensa mialgia generalizada, que pode ser acompanhada por discreto edema
muscular. A miólise causa mioglobinúria, que confere cor avermelhada ou vinhosa à urina.13,22,25,31
• Manifestações hematológicas: pode haver incoagulabilidade sanguínea ou aumento do tempo de coagulação em aproximadamente 40% dos pacientes,
observando-se raramente gengivorragia. Essas alterações ocorrem após algumas horas do acidente e
involuem com o tratamento adequado.9,27
Tabela 4
Quadro clínico do acidente crotálico
•
•
•
•
•
•
•
5-crotali.p65
Lesão local leve.
Ptose palpebral, midríase, oftalmoplegia, diplopia.
Mialgia intensa.
Oligúria.
Sangramentos (raro).
Dificuldade respiratória (rara).
Choque/hipotensão (raros).
164
Diagnóstico
O diagnóstico de certeza é realizado pelo exame e
reconhecimento do gênero da serpente. Quando o
paciente desconhece ou não traz o animal agressor, o
diagnóstico deverá ser confirmado pelos sinais e sintomas característicos do quadro clínico, pois esse é de
instalação precoce.
O diagnóstico diferencial mais importante é com o
acidente elapídico. Embora a picada por Micrurus também possa determinar fácies miastênica, não causa
miólise, mioglobinúria maciça e alterações da coagulação sanguínea, presentes no acidente crotálico.14,32,33
Serpentes jovens do gênero Bothrops podem provocar
lesão local muito leve, porém a ausência de fenômenos neurológicos e as importantes alterações de coagubilidade sanguínea presentes nesse tipo de acidente
botrópico permitem fazer o diagnóstico diferencial.34
Exames laboratoriais
A rabdomiólise pode ser comprovada pela presença de mioglobina no soro e na urina. Os níveis séricos
de creatinoquinase (CPK), desidrogenase lática (DHL)
e aspartase-alanino-transferase (AST) encontram-se elevados. A CPK aumenta precocemente, usualmente 4 a
8 horas após o acidente, podendo atingir níveis extremamente elevados de 100.000 UI/l ou mais. A AST eleva-se nas primeiras 24 horas e a DHL, em geral, aumenta após 48 a 72 horas, permanecendo alta por alguns
dias, constituindo-se assim em exame complementar
potencialmente útil para diagnóstico tardio de envenenamento crotálico.9 A rabdomiólise maciça pode induzir hipocalcemia, hipoalbuminemia, hiperuricemia,
hiperfosfatemia e hipercalemia.25
O hemograma pode mostrar leucocitose, com neutrofilia e desvio à esquerda no 1º e 2º dias, observando-se na maior parte dos casos eosinofilia a partir do
3º dia do acidente. Ao contrário do que se afirmava
previamente, não ocorre hemólise significativa.20,21
O tempo de coagulação (TC) está freqüentemente prolongado e geralmente se normaliza após 12
horas do início do tratamento.9,13
Os níveis de uréia e creatinina podem estar elevados se houver presença de insuficiência renal aguda.
O sedimento urinário geralmente é normal na ausência
de IRA. Podem haver proteinúria e/ou glicosúria discretas. A presença de mioglobina urinária pode ser
detectada por métodos imunoquímicos específicos,
como imunoeletroforese, imunodifusão ou de agluti-
08/01/01, 16:54
J Bras Nefrol 2000;22(3):162-8
165
Pinho FO et al - IRA após acidente crotálico
nação.9 Os exames usuais de fita que utilizam benzidina não diferenciam entre hemoglobina e mioglobina e
portanto podem apresentar-se fortemente positivos.19,21
Tratamento e prognóstico
O tratamento específico é realizado com soro anticrotálico (SAC), que deve ser administrado endovenosamente, em dosagens superiores a 150 mg. A dose
varia de acordo com a gravidade do caso, devendo-se
ressaltar que a quantidade a ser administrada à criança
é a mesma da do adulto.9,13 Não foi ainda determinado
de forma conclusiva se a administração precoce do soro
tem efeito benéfico em diminuir a incidência de IRA,
embora dados indiretos associem atendimento tardio a
maior risco de desenvolvimento de IRA.35
Como no local da picada as manifestações são mínimas, com sinais flogísticos leves, recomenda-se adequada assepsia e analgésicos, se necessário. O uso de
antibioticoterapia está condicionado à evidência de
infecção, lembrando que os germes patogênicos podem provir da boca do animal, da pele do acidentado
ou do uso de contaminantes sobre o ferimento. Devese realizar corretamente a profilaxia do tétano.9
A adoção de medidas “clássicas” para prevenção
de lesão renal secundária à rabdomiólise é particularmente importante. Dentre essas, a principal é certamente a manutenção de hidratação adequada e satisfatória, com fluxo urinário de 1 a 2 ml/kg/hora na
criança e 30 a 40 ml/hora no adulto.9 Dados experimentais recentes demonstram de forma clara que a
desidratação agravou e a hiperhidratação atenuou a
gravidade da lesão renal.36 Pode-se induzir diurese
osmótica com solução de manitol a 20% (50 a 100 mg
em 24 h) infundido a cada 6 horas ou de forma contínua, por um período de 3 a 5 dias, em função da
gravidade e da evolução do caso.13 Advoga-se que esse,
além de proteger as células tubulares renais, contribuiria para diminuir o edema cerebral e da musculatura esquelética.13 Pode-se também manter a urina alcalina com a administração parenteral de bicarbonato
de sódio monitorada por controle gasométrico. Essa
manobra, que visa atenuar ou evitar a lesão renal causada pela rabdomiólise, deve ser realizada com extrema cautela, pois pode causar efeitos colaterais importantes como alcalose metabólica grave, hipernatremia
e hipervolemia.9,13,15,25,31
O prognóstico nos acidentes leves e moderados e
nos pacientes atendidos nas primeiras seis horas após
a picada é bom, observando-se regressão total de sintomas e sinais após alguns dias. Acidentes graves, com
atendimento tardio ou acompanhados por IRA apresentam prognóstico mais reservado.9,13,22,23,32
Insuficiência renal aguda após acidente crotálico
Prevalência da IRA
A IRA é a principal complicação do paciente que
sobrevive às ações iniciais da peçonha crotálica.8,14,37
A prevalência descrita de IRA após acidente crotálico
é elevada, variando de 9 a 31%.15,35,38,39 Apesar do acidente crotálico ser aproximadamente 10 vezes menos
freqüente do que o botrópico, o número absoluto de
casos de IRA reportados com os dois gêneros de serpente é semelhante.40 Não existem, até o momento,
trabalhos que tenham avaliado de forma sistemática e
através de parâmetros adequados o número real de
pacientes que desenvolvem lesão renal após acidente
crotálico. Os dados disponíveis baseiam-se em análises retrospectivas com utilização de parâmetros de
função renal pouco sensíveis. Dados preliminares de
um estudo prospectivo demonstram que ao redor de
25% dos pacientes apresentam queda significativa da
depuração de creatinina nos primeiros três dias após
o acidente crotálico.*
Fatores de risco para o desenvolvimento de IRA
Em estudo retrospectivo recente, Silveira e Nishioka demonstraram que idade mais avançada e intervalo
de tempo mais longo entre o acidente e o atendimento
médico associaram-se ao maior risco de desenvolvimento de IRA. Concluíram também que para pacientes
maiores de 40 anos de idade, mialgia e face neurotóxica eram fatores preditivos de lesão renal.35
Segundo Ward, em presença de rabdomiólise o grau
de elevação do nível sérico de CPK, potássio, fósforo e
diminuição do nível sérico de albumina são fatores
preditivos para IRA, evidenciando a presença de lesão
muscular mais grave.41
Outros fatores possivelmente associados ao risco
de IRA são a idade e o tamanho da serpente, a época
do ano e o local do acidente (pois existem variações
sazonais e geográficas nas peçonhas), a quantidade de
veneno injetada, o nível de hidratação, a presença de
doenças de base no indivíduo picado ou o uso concomitante de drogas nefrotóxicas.
*Pinho FO. Comunicação pessoal.
5-crotali.p65
165
08/01/01, 16:54
166
J Bras Nefrol 2000;22(3): 162-8
Pinho FO et al - IRA após acidente crotálico
Etiopatogenia da lesão renal
Diversos mecanismos têm sido relacionados com a
gênese da lesão renal causada pela peçonha crotálica:
rabdomiólise, choque, hemólise e coagulação intravascular, entre outros. A alta prevalência e a rapidez com
que se instala a insuficiência renal também levaram
diversos autores a sugerir que a peçonha ou um dos
seus componentes possua efeito nefrotóxico direto.
Em 1966, Amorim et al. injetaram peçonha crotálica por via subcutânea em cães e obtiveram quadro
histológico renal de necrose tubular aguda.23 No mesmo ano, Hadler e Brazil induziram necrose tubular aguda em cães por injeção de crotoxina, demonstrando
altas concentrações dessa fração da peçonha no tecido
renal dos animais inoculados.42 Em 1978, Rovere et al.
injetaram experimentalmente peçonha crotálica em ratos e observaram queda do fluxo sanguíneo renal, aumento da resistência vascular renal e trombose glomerular, que ocorreram na ausência de queda significativa
da pressão arterial.43
Em estudo recente, Vidal et al. estudaram experimentalmente o efeito da injeção endovenosa da peçonha sobre a função renal, pressão arterial, músculo e
hemáceas. Esses autores observaram que o veneno crotálico causou queda precoce da filtração glomerular e
do fluxo sanguíneo renal, com recuperação parcial após
24 horas. A peçonha não provocou hipotensão ou hemólise mas induziu rabdomiólise sistêmica significativa. A desidratação agravou a lesão renal e a expansão
de volume a atenuou. A peçonha mostrou nefrotoxicidade direta, agravada por hipóxia, em suspensão de
túbulos proximais isolados. A histologia mostrou necrose tubular aguda. Esses dados sugerem fortemente
que a patogênese da IRA por peçonha crotálica está
relacionada a rabdomiólise, vasoconstricção e nefrotoxicidade direta (Figura 1).36
Clinicamente, a gravidade da lesão muscular parece ser o fator mais claramente relacionado ao desenvolvimento de IRA. A fisiopatologia da IRA associada à
rabdomiólise permanece ainda obscura. Têm sido sugeridos como prováveis mecanismos o efeito tóxico
direto da mioglobina, a isquemia renal devido ao desequilíbrio entre mediadores vasoconstritores e vasodilatadores e/ou a obstrução tubular por cilindros formados pelo pigmento mioglobina. Sabe-se que fatores
como desidratação, hipotensão arterial, choque e acidose metabólica podem estar associados à rabdomiólise e contribuir para a instalação da lesão renal.25
Hemólise e hemoglobinúria foram incriminadas
5-crotali.p65
166
Figura 1 – Etiopatogenia provável da lesão renal no acidente crotálico
durante anos como fatores desencadeadores da IRA
após acidente crotálico. A peçonha é hemolítica “in
vitro” e durante muito tempo a cor vinhosa da urina e
a reação de benzidina positiva urinária após acidente
crotálico foram atribuídos à hemoglobinúria.30 No entanto, como já comentado, a alteração de cor da urina
e o teste da benzidina são inespecíficos, podendo ocorrer tanto na mioglobinúria como na hemoglobinúria.
Em 1987, Azevedo-Marques et al. comprovaram a ocorrência de miólise (mioglobina positiva no sangue e
urina, elevação de enzimas e alterações na biópsia
muscular) na ausência de hemólise (hemoglobina livre
e haptoglobina normais e ausência de hemoglobinúria) em pacientes picados por Crotalus.21 Esse achado
foi posteriormente confirmado por outros autores em
nível clínico e experimental, levando ao questionamento
da real importância da hemólise no acidente crotálico.
Embora hipotensão e alterações do sistema de coagulação possam potencialmente contribuir para o desenvolvimento de IRA, são eventos raros nos acidentes
com cascavel.44
Finalmente, fenômenos inflamatórios desencadeados pela peçonha e/ou soro antiofídico em interstício renal podem estar relacionados à etiopatogenia
da lesão renal, havendo relato de casos de nefrite intersticial aguda após acidente crotálico.45
Características da IRA
A IRA pode ser extremamente precoce, surgindo
horas após a picada. É geralmente diagnosticada nas
08/01/01, 16:54
J Bras Nefrol 2000;22(3):162-8
167
Pinho FO et al - IRA após acidente crotálico
primeiras 24 a 48 horas. É freqüentemente oligúrica, hipercatabólica, dependente de tratamento dialítico e reversível, durando em média 3 a 4 semanas. É considerada a principal causa de óbito no acidente crotálico.8,14,37
A alteração histológica renal mais freqüentemente
descrita é necrose tubular aguda (NTA).8,46,47 Por outro
lado, já foram descritos casos de IRA após acidente crotálico com biópsia renal mostrando nefrite intersticial aguda (NIA) associada a NTA. Todos os pacientes apresentaram quadro clínico semelhante ao de NTA. Não foram
observados eosinófilos no infiltrado celular intersticial.45
Referências
1.
Cardoso JLC, Brando RB. Acidentes por animais
peçonhentos. 1a ed. São Paulo: Editora Santos; 1982.
2.
Swaroop S, Grab B. Snakebite mortality in the world. Bull
World Health Org 1954;10:35-76.
3.
Ministério da Saúde. Manual de diagnóstico e tratamento
do acidente ofídico. 1a reimpressão. Brasília: Ministério da
Saúde; 1991.
4.
Ribeiro LA, Jorge MT, Iversson LB. Epidemiologia dos
acidentes por serpentes peçonhentas: estudo de casos
atendidos em 1988. Rev Saúde Pública 1995;5:380-8.
5.
Warrell DA, Arnett C. The importance of bites by the sawscaledor carpet viper (Echis carinatus). Epidemiological
studies in Nigeria and a review of the world literature. Acta
Trop 1976;33:307-41.
6.
Nelson BK. Snake envenomation. Incidence, clinical
presentation and management. Med Toxicol Adver Drug
Exp 1989;4:17-31.
7.
Ministério da Saúde. Ofidismo: Análise epidemiológica.
Brasília: Ministério da Saúde; 1991.
8.
Amaral CF, Rezende NA, Silva AO, Ribeiro MM, Magalhães
RA, Dos-Reis RJ, et al. Insuficiência renal aguda secundária
a acidentes ofídicos botrópico e crotálico. Análise de 63
casos. Rev Inst Med Trop 1986;28:281-316.
9.
Fundação Nacional de Saúde. Manual de diagnóstico e
tratamento de acidentes por animais peçonhentos. Brasília:
Fundação Nacional de Saúde; 1998.
10. Chugh KS. Snake-bite-induced acute renal failure. Kidney
Int 1989;35:891-907.
11. Amaral A. Serpentes do Brasil. 2 a ed. São Paulo:
Melhoramentos; 1978.
12. Hoge AR, Romano HS. Sinopse das serpentes peçonhentas.
Mem Inst Butantan 1978-1979;42/43:373-496.
13. Barravieira B. Acidentes por serpentes do gênero Crotalus.
Arq Bras Med 1990;64:14-20.
14. Jorge MT, Ribeiro LA. Acidentes por serpentes peçonhentas
do Brasil. Rev Assoc Med Bras 1990;36:66-77.
5-crotali.p65
167
15. Jorge MT, Ribeiro LA. Epidemiologia e quadro clínico do
acidente por cascavel sul americana (Crotalus durissus).
Rev Inst Med Trop 1992;34:347-54.
16. Feitosa RFG, Melo IMLA, Monteiro HSA. Epidemiologia dos
acidentes por serpentes peçonhentas no Estado do Ceará.
Rev Soc Bras Med Trop 1997;30:295-301.
17. Bercovici D, Chudziniski AM, Esteves MI, Picarelli ZP, Raw
I, Ueda CMPM, et al. A systematic fractionation of Crotalus
durissus terrificus venom. Mem Inst Butantan 1987;49:69-78.
18. Takeda AK, Barbosa SFC, Costa LM, Adelino MGF.
Fracionamento do veneno Crotalus durissus terrificus por
cromatografia de exclusão molecular. Rev Inst Med Trop
1985;27:115-22.
19. Azevedo-Marques MM, Cupo P, Coimbra TM, Hering SE,
Rossi MA, Laure CJ. Myonecrosis, myoglobinuria and acute
renal failure induced by South American rattlesnake
(Crotalus durissus terrificus) envenomation in Brazil.
Toxicon 1985;23:631-6.
20. Azevedo-Marques MM, Ferreira DB, Costa RS.
Rhabdomyonecrosis experimentally induced in Wistar rats
by Africanized bee venom. Toxicon 1992;30:344-8.
21. Azevedo-Marques MM, Hering SE, Cupo P. Evidence that
Crotalus durissus terrificus (South American rattlesnake)
envenomation in humans causes myolysis rather than
hemolysis. Toxicon 1987;25:1163-8.
22. Cupo P, Azevedo-Marques MM, Hering SE. Clinical and
laboratory features of South American rattlesnake (Crotalus
durissus terrificus) envenomation in children. Trans R Soc
Trop Med Hyg 1988;82:924-9.
23. Amorim MF, Mello RF, Saliba F. Lesões renais induzidas
experimentalmente no cão pelo veneno crotálico. Mem Inst
Butantan 1969;34:137-57.
24. Barrio A. Gyroxin, a new neurotoxin of Crotalus durissus
terrificus venons. Acta Physiol Lat Am 1961;11:224.
25. Magalhães RA, Ribeiro MMF, Rezende NA, Amaral CFS.
Rabdomiólise secundária a acidente ofídico crotálico
(Crotalus durissus terrificus). Rev Inst Med Trop
1986;28:228-33.
26. Vital BO. Venenos ofídicos neurotóxicos. Rev Ass Med Brasil
1980;26:212-8.
27. Amaral CFS, Resende NA, Pedrosa TMG. Afibrinogenemia
secundária a acidente ofídico crotálico. Rev Ins Med Trop
1988;30:288.
28. Cupo P, Azevedo-Marques MM, Hering SE. Acute myocardial
infarction-like enzyme profile in human victms of C. durissus
terrificus envenoming. Trans R Soc Trop Med Hyg
1990;84:447-51.
29. Vital BO, Franceschi JP, Waishich E. Pharmacology of
crystalline crotoxin. Toxicity. Mem Inst Butantan
1966;33:973.
30. Rosefeld G, Kelen EMA, Nudel F. Hemolytic activities of
animal venoms. Classification in differents types and
activities. Mem Inst Butantan 1960/62;30:103-16.
08/01/01, 16:54
168
J Bras Nefrol 2000;22(3): 162-8
Pinho FO et al - IRA após acidente crotálico
31. Kurokawa K, Honda N. Acute renal failure and
rhabdomyolysis. Kidney Int 1983;23:888-98.
32. Rosenfeld G. Moléstias por venenos animais. Pinheir Ter
1965;17:3-15.
33. Secretaria de Estado da Saúde - Instituto Butantan. Manual
para o diagnóstico e tratamento de acidentes por animais
peçonhentos. São Paulo: Secretaria de Estado da Saúde;
1982.
34. Ribeiro LA, Jorge MT. Epidemiologia e quadro clínico dos
acidentes por serpentes Bothrops jararaca adultas e filhotes.
Rev Ins Med Trop 1990;32:436-42.
35. Silveira PVP, Nishioka AS. South American rattlesnake bite
in a Brazilian teaching hospital. Clinical and epidemiological
study of 87 cases, with analysis of factors predictive of renal
failure. Trans Royal Soc Trop Med Hyg 1992;86:562-4.
36. Vidal EC, Yu L, Castro I, Ori M, Malheiros DM, Burdmann
EA. Snake venom-induced nephrotoxicity - in vivo and in
vitro studies. J Am Soc Nephrol 1997;8:131A.
37. Ribeiro LA, Alburquerque MJ, Campos VAFP, Katz G,
Takaoka NY, Lebrão ML, et al. Óbitos por serpentes
peçonhentas no Estado de São Paulo: avaliação de 43 casos,
1988/93. Rev Ass Med Bras 1998;44:312-8.
38. Cupo P, Azevedo-Marques MM, Hering SE, Menezes JB.
Acidentes ofídicos: análise de 102 casos. Livro de resumo
do XXI Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina
Tropical; São Paulo, 1985:23-4.
39. Pinto RNL, Souza LCS, Silva AM, Pereira LIA, Andrade JG.
Estudo clínico-epidemiológico de 774 casos de acidentes
ofídicos. Rev Soc Bras Med Trop 1987;20(Suppl):56.
5-crotali.p65
168
40. Burdmann EA, Woronik V, Prado EB, Abdulkader RC,
Saldanha LB, Barreto OC, et al. Snakebite-induced acute
renal failure: an experimental model. Am J Trop Med Hyg
1993;48:82-8.
41. Ward MM. Factors predictive of acute renal failure in
rhabdomyolysis. Arch Inter Med 1988;148:1553-7.
42. Hadler WA, Brazil OV. Pharmacology of crystalline
crotoxin.IV.Nephrotoxicity. Mem Inst Butantan
1966;33:1001-8.
43. Rovere AA, Raynald AC, Berman JM, Roman AS, Garcia CA.
Efecto precoz del veneno de Crotalus durissus terrificus
sobre la circulacion renal. Acta Physiol Latinoam
1978;28:133-9.
44. Burdmann EA, Cais A, Vidal EC. Insuficiência renal aguda
nefrotóxica: animais peçonhentos. In: Schor N, Boim MA,
Santos OFP. Insuficiência renal aguda: fisiopatologia, clínica
e tratamento. 1a ed. São Paulo: Sarvier; 1997. p.135-41.
45. Burdmann EA, Barcellos MA, Cardoso JL, Malheiro P,
Abdulkader R, Daher E, et al. Acute interstitial nephritis
after snake bite. Ren Fail 1989;11:51-2.
46. Da-Silva AO, Lopez M, Godoy P. Intensive care unit
treatment of acute renal failure following snake bite. Am J
Trop Med Hyg 1979;28:401-7.
47. Wajchenberg BL, Sesso J, Inague T. Feições clinicolaboratoriais do envenenamento crotálico humano. Rev
Assoc Med Bras 1954;1:179-93.
Conflito de interesses e fonte de financiamento inexistentes
08/01/01, 16:54
Download