Carta Econômica Fevereiro-10 Que seja o início de uma bela amizade! O teor dos recentes ataques à ordem financeira assemelha-se ao de um dos célebres diálogos do clássico Casablanca, quando na peremptoriedade em se encontrar um responsável pelo assassinato de um oficial nazista, Louis, o corrupto comissário de polícia, proclama: “Prendam os suspeitos de sempre!”. O considerável acúmulo de crises e escândalos financeiros, com enormes prejuízos para os contribuintes, é uma das principais razões para que essa hostilidade contamine o inconsciente coletivo das sociedades. Assim, inevitavelmente, os mercados financeiros são mais percebidos como culpados pela pobreza e exploração, do que como agentes para a promoção da prosperidade. Ainda que a comunidade financeira tenha a sua parcela de culpa, a urgência política em se achar responsáveis pela crise parece inoportuna. Em contraste à persistência das debilidades na economia real, o fortalecimento do setor financeiro, obtido com o êxito do socorro do setor público, desperta um clamor revanchista. De modo que uma taxação adicional do sistema, restrições nas remunerações dos executivos e sugestões de aperto na regulamentação e fiscalização passam a compor o vocabulário da opinião pública. O ressentimento contra os mercados financeiros é recrudescido, ainda, com o retorno da volatilidade nos fluxos de capitais, e alimentado, também, pela instabilidade fiscal de alguns países da Europa. Embora impopular, é justificável que nos primeiros estágios pós-crise se verifique um contraste na velocidade de recuperação do setor real e financeiro das economias ricas. Contudo, se compreensíveis em termos de resposta política, as medidas, se tomadas de afogadilho, poderão se tornar contraproducentes e, até no limite, conduzir o sistema para um novo desarranjo. Nos atuais esforços em se conceber uma nova ordem econômica global, essa percepção estereotipada do papel dos mercados financeiros deve ser relativizada. Contudo, com toda essa aversão, é mais natural que se indague: de que serviria a integração financeira internacional? Essa incerteza faz parte até do recente discurso do próprio FMI que, até então, sempre vinha defendendo os benefícios da livre movimentação de capitais. Embora com ressalvas, ao analisar o desempenho de alguns países emergentes durante a crise, o órgão admite que, em certas circunstâncias, o controle dos fluxos é um instrumento legítimo de política econômica. Em paralelo, vale destacar que após inúmeros fracassos na utilização de poupança externa como forma de promover o desenvolvimento, muitos desses países tornaram-se relutantes em receber capitais advindos do exterior e passaram a coibir a volatilidade no fluxo de capitais. Estrategicamente, alguns deles, principalmente a China, passaram a adotar políticas cambiais agressivas, de modo que se transformaram em grandes exportadores líquidos de capital. Com isso, ao invés de fluírem para países com carências de poupança no financiamento de projetos de investimento, os capitais passaram a migrar fortemente para as economias mais ricas. Tidas como mais críveis, com instituições mais sólidas e com uma ampla variedade de ativos financeiros, essas economias passaram a absorver todo o excesso da poupança global. Inicialmente, a situação não foi percebida como risco latente, mas acabou possibilitando a formação de sucessivas bolhas. Esse paradoxo sustentou a próspera era da “Grande Moderação”, com inflação baixa e crescimento elevado, conjugado com um aumento exacerbado do consumo privado e público. Na teoria, a integração financeira ofereceria vantagens, pois viabilizaria uma intermediação eficiente entre poupança e investimento, e de forma reflexa conferindo dinamismo e Este documento foi preparado pela Assessoria Econômica da ABBC, com finalidade única de prestar informações ao mercado. Esse trabalho reflete a opinião pessoal, não devendo ser interpretado como oferta ou solicitação de oferta para comprar ou vender quaisquer títulos e valores mobiliários ou produtos e instrumentos financeiros. É vedada a reprodução, distribuição ou publicação deste material, integral ou parcialmente. 1 Carta Econômica Fevereiro-10 flexibilidade às economias. Contudo, o sentido do fluxo de capitais dos emergentes para os países ricos, como o verificado nos últimos anos, é um contra-senso. Uma nova arquitetura do sistema financeiro internacional precisa trabalhar para a correção dessa distorção; simultaneamente, deve garantir que o fluxo de transferência de capital não fragilize os países devedores e que haja a minimização dos riscos para os investidores. Esse é um enorme desafio que só será superado com a cooperação global e a existência de instituições multilaterais fortes que possam assegurar a sustentabilidade do processo. Se isso não for possível, a economia globalizada continuará convivendo com períodos de euforia e depressão e o comércio internacional será prejudicado por uma louca guerra cambial na busca de competitividade para as exportações. A última débâcle comprovou que mesmo as economias mais sólidas não estavam imunes ao risco de uma eclosão de uma crise financeira. Entretanto, a mesma exibiu um caráter distinto. Ao contrário dos países emergentes quando a instabilidade é geralmente potencializada pelo acúmulo de elevados déficits em conta corrente, a turbulência teve a sua gênese na excessiva desregulamentação dos mercados. A reciclagem dos capitais advindos do exterior levou a um aumento excessivo do endividamento do setor privado, alavancado por operações complexas com derivativos e pela engenharia financeira na securitização dos recebíveis. O resumo da ópera é que o episódio de 2008/09 possui um estreito vínculo com as variáveis macroeconômicas e microeconômicas. A trajetória das taxas de câmbio, do balanço de pagamentos e do déficit público das principais economias encontrou cumplicidade nas diretrizes lascivas da regulamentação e supervisão bancária, nas limitações dos modelos de gerenciamento de risco e nas falhas no processo de governança das instituições. Nesse conjunto de fatores microeconômicos é que reside os pecados do sistema financeiro, ainda que esses devam ser compartilhados com as autoridades monetárias e regulatórias. Assim, ao invés de satanizar os mercados financeiros, é imperativo que se busquem soluções estruturais para esses desequilíbrios macro e microeconômicos que propiciaram as condições para a formação da crise. A importante lição a ser tomada é que além do segmento financeiro, a reconstrução da ordem econômica internacional deverá envolver a participação dos governos, sociedades e de organismos multilaterais. A cooperação e a coordenação dariam legitimidade ao equacionamento de novo padrão de poupança e consumo entre os países e ao encaminhamento das questões envolvendo a regulamentação financeira. Contudo, isso implica em grandes riscos e desafios. Ainda que as agendas políticas nacionais possam comprometer a sincronização de implementação das políticas, a tarefa mais exeqüível é o aperfeiçoamento na regulamentação prudencial e na supervisão, através do encaminhamento das propostas contidas nos documentos do G-20, do Comitê de Supervisão Bancária da Basiléia, do “Financial Stability Board”. Um sinal preocupante de que haja ausência de cooperação global foi emitida no anúncio de novas e amplas medidas, pelo presidente Barack Obama, que têm como foco principal a criação de uma nova versão da lei Glass-Steagall. Em discurso oficial, o presidente resumiu o conteúdo de forma bastante enfática: "os bancos já não poderiam possuir, investir em, ou patrocinar fundos de hedge, fundos de investimento em participações ou operações financeiras com recursos próprios para seu próprio lucro, não relacionadas à prestação de serviços a seus clientes". Sublinhou, ainda: "Também estou propondo que coibamos uma consolidação adicional de nosso sistema financeiro". Assim, através da proibição das operações proprietárias, a proposta, já conhecida como “Regra Volcker”, visa reduzir substancialmente o risco moral e abolir o conceito “grande demais para falir”. Este documento foi preparado pela Assessoria Econômica da ABBC, com finalidade única de prestar informações ao mercado. Esse trabalho reflete a opinião pessoal, não devendo ser interpretado como oferta ou solicitação de oferta para comprar ou vender quaisquer títulos e valores mobiliários ou produtos e instrumentos financeiros. É vedada a reprodução, distribuição ou publicação deste material, integral ou parcialmente. 2 Carta Econômica Fevereiro-10 Ainda que seja necessária a aprovação do Congresso, a proposta é inquietante e espera-se que não seja um mau presságio. As idéias contidas geram incertezas que poderão se tornar custosas e dificultar o encaminhamento das reformas, não só nos EUA, mas também no mundo globalizado. Aliás, a última iniciativa unilateral, coincidentemente aplicada por esse mesmo economista, quando presidente do Federal Reserve, não é uma boa lembrança. Naquele instante, para combater a estagflação vivenciada pelos EUA, elevou a taxa básica de juros para um pico histórico de 20%, produzindo conseqüências extremamente danosas para a economia internacional, como a crise da dívida e o estrangulamento de diversos países. A falta de coordenação na elaboração de uma nova política de regulação e supervisão pode levar o sistema financeiro internacional à fragmentação, com a ameaça de surgirem muitas alternativas, que muitas vezes poderão ser conflitantes entre si. Olhando-se mais detalhadamente para as propostas verifica-se a dificuldade de execução e muitos questionamentos. Com um alto grau de probabilidade, essas reformas serão inaplicáveis fora dos EUA. Inúmeros países trabalham com o conceito de bancos múltiplos e apresentam bancos grandes. Assim, muitas perguntas podem ser levantadas: Como tais regras poderiam funcionar nas instituições com presença mundial? Como estabelecer os limites para as atividades não relacionadas com a prestação de serviços para os clientes? Seria possível aos bancos fazer a proteção dos seus descasamentos dos seus balanços? Quando a mesma se transformaria em especulação? E como ficaria a securitização dos empréstimos? É indubitável que as instituições financeiras cumprem um papel especial no sistema econômico e, como conseqüência, requerem uma maior atenção dos governos. Contudo, não parece que seja acertado que os mesmos devam intervir na definição das políticas e estruturas operacionais dos bancos, mas sim impor exigências de capital mais adequadas. É necessário que se encontre um balanço ajustado entre riscos, recompensas e responsabilidades entre o setor financeiro e as sociedades. Como já dito, há algumas iniciativas, mas vale o destaque de Gordon Brown, o primeiro ministro inglês: “A crise imediata pode ter passado, mas a necessidade de uma liderança global e de uma cooperação econômica é tão premente agora como era há um ano”. Afirmação que novamente faz lembrar o final do filme Casablanca, quando Rick proclama: "Louie, acho que esse é o início de uma bela amizade!". Espera-se, apenas, que não tenha o mesmo cinismo do diálogo entre os protagonistas. Fevereiro/2010 Everton P.S. Gonçalves Assessor Econômico da ABBC e Dr em Economia pela FGV/SP - [email protected] Este documento foi preparado pela Assessoria Econômica da ABBC, com finalidade única de prestar informações ao mercado. Esse trabalho reflete a opinião pessoal, não devendo ser interpretado como oferta ou solicitação de oferta para comprar ou vender quaisquer títulos e valores mobiliários ou produtos e instrumentos financeiros. É vedada a reprodução, distribuição ou publicação deste material, integral ou parcialmente. 3