Violência e Educação - Repositório Aberto da Universidade do Porto

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Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Dissertação de Mestrado em Filosofia da Educação
Orientador: Professor Doutor Adalberto Dias de Carvalho
Maria Gabriela Feio Bacelar Alves
Porto, 1999
Agradecimentos
A todos os que acreditaram que eu seria capaz. Foram eles que, muitas vezes sem
o saberem, serviram de incentivo ao meu trabalho.
Aos professores do Mestrado, e em especial ao Professor Dr. Adalberto Dias de
Carvalho, pela forma carinhosa com que foi corrigindo as minhas falhas e pelo
encorajamento que sempre me deu.
A todos os colegas do Mestrado, particularmente para a Guilhermina e para a
Alexandra, que me acompanharam mais de perto.
Por fim, um agradecimento à minha família, especialmente à minha mãe - um
exemplo de perseverança - e à minha irmã Lena, pelo apoio dispensado e sem o qual não
teria tido condições para fazer este trabalho.
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
índice
Introdução
*
Ia parte: Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
22
1.1- Eric Weil - um Kantiano Pós-Hegeliano
23
1.2-0 Homem como Razão - o Homem como Violência
32
1.3 - A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
44
1.4 - A Lógica da Filosofia, a Violência, a História e o seu Fim
58
1.5 - Atitudes e Categorias
65
2a parte: A Educação como Meio de Superar a Violência
86
2.1 - Educação e Violência
87
2.2 - A Razão da Modernidade como Símbolo da Violência
95
2.3 -Da Razão da Modernidade à Razão Comunicacional
101
2.4 - Entre a Razão e o Sonho - O Papel das Imagens na Educação
105
3 a parte: Dimensão Antropológica da Utopia
110
3.1 - Da Utopia à Antiutopia e Até aos Nossos Dias
111
3.2 - Utopia e Pedagogia - O Lugar da Utopia na Educação
118
3.3 - Paulo Freire - Uma Pedagogia Utópica e Esperançosa
124
3.4 - Da Utopia à Violência
132
Considerações Finais
137
Bibliografia
ao Alfredo João
e às nossas filhas
Maria João, Teresa e Inês
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Introdução
Violência e Educação
Introdu
Ção
Da razão filosófica à razão pedagógica
Com este trabalho propomo-nos reflectir, em termos filosóficos, sobre o tema da
violência, já que os problemas que ela suscita à sociedade, à moral e à própria filosofia nos
deixam um leque alargado de interrogações. De forma mais ou menos camuflada, ela
atingiu muitas vezes os extremos da barbaridade, o que nos mostra a incapacidade do
homem em controlar as suas acções violentas. É o escândalo relacionado com a violência
exercida por homens sobre outros homens e a certeza de que esse mal não deveria existir
que provocou em nós a necessidade desta reflexão.
A violência não é, certamente, um fenómeno exclusivo do nosso tempo; pelo
contrário, parece ser um fenómeno persistente, tanto no tempo como no espaço. Se
olharmos a História, constataremos que ela acompanha todo o percurso do género humano
e parece pesar sobre ele como uma fatalidade. A violência existe e está inteiramente ligada
ao homem e à sua evolução.
Vivemos numa época em que a violência impera de uma forma assustadora,
apesar de a consciência dos valores e do respeito pela vida parecerem ser afirmados em
todos os domínios. O século XX é, mau grado todas as lições do passado, um século de
guerras e de revoluções e, por conseguinte, feito de muita violência que se considera, aliás,
ser habitualmente o seu denominador comum. Nos nossos dias, a violência é, na verdade,
matéria banal de notícia, imagem frequente do quotidiano, sendo a sociedade testemunha
permanente - e permanente vítima - de fenómenos violentos. A violência cultivada e
acumulada e a sua exorcização tornaram-se elementos doentios e perversos nas sociedades
contemporâneas.
2
Violência e Educação
Introdução
Da razão filosófica à razão pedagógica
A violência de ontem é, na sua essência, a violência de hoje, apesar das suas
formas e técnicas terem acompanhado o próprio desenvolvimento socio-económico. De
facto, os instrumentos da violência têm atingido um tal ponto de perfeição técnica que se
torna impossível conceber um fim que seja susceptível de se opor ao seu poder destruidor
ou que possa justificar a sua utilização. É a utilização destes instrumentos que torna a
violência distinta da autoridade, da força, do poder. A este propósito, refere Hannah
Arendt:
Nos nossos dias, termos como poder, força, autoridade e violência, são utilizados
indiscriminadamente mesmo por grandes pensadores, o que denota não só uma
certa insensibilidade quanto à sua significação linguística, mas também uma
ignorância lamentável das realidades às quais esta linguagem se refere.
A acção violenta é, assim, inseparável dos meios que tomam muitas vezes uma
importância desproporcionada relativamente aos fins que os deveriam justificar. Por outro
lado, os homens mostram-se, muitas vezes, incapazes de controlar as consequências das
suas acções violentas.
A geração que cresceu com os horrores dos campos de concentração e com a
destruição causada pelo emprego da bomba atómica guardou a experiência da geração
precedente e a primeira reacção foi um sentimento de indignação e de repulsa pela
violência, sob todas as formas, bem como uma adesão quase natural a uma política de não
violência. A juventude do pós-guerrajá não queria ouvir falar de fanatismo. Parecia estar
farta, de uma vez para sempre; parecia-lhe pouco inteligente utilizar a violência em nome
de uma religião, de uma nação ou de uma causa.
Mas, entretanto, muitas coisas mudaram; em breve, a revolta veemente,
espontânea mas não-violenta, contra a injustiça e a violência deu lugar ao culto dessa
3
Violência e Educação
Introdução
Da razão filosófica à razão pedagógica
mesma violência. Como declara George Wald, "encontramo-nos perante uma geração que
não está de modo nenhum certa de ter um futuro."
A prática da violência tem-nos conduzido a um mundo cada vez mais violento. É
por isso que cabe, a todos aqueles que têm consciência da situação, a tarefa, a
responsabilidade primordial de alertar a consciência universal, de não se calar no momento
em que os valores fundamentais estão em perigo.
Haverá, então, uma justificação filosófica para a violência? Poder-se-á dar à
violência um significado que legitime a sua presença no mundo humano? Será ela um fim?
A violência da guerra laica, por exemplo, na Idade Média, justificava-se como
meio de combater o mal. Nessa época havia uma dualidade entre o bem e o mal que podia
ir até ao maniqueísmo. O bem era colocado no plano do positivo, mas sendo sempre
atormentado pelo mal. Daí que a violência apareça justificada porque tinha por fim o
ataque ao mal. Tratava-se, portanto, da negação de uma negação. Esta violência não cria
nada e, por isso, a sua justificação é puramente negativa. Apenas pretende a irradiação do
mal.
Mas, quando se olha melhor e se interroga o sentido que as várias violências
veiculam, as diferenças aparecem. A violência dos cruzados assaltando
Constantinopla,
ou dos
Turcos retomando-a
com a mesma
violência,
autojustificava-se aos olhos das seus autores como um meio de extirpar o mal.
Pon>entura não há expressão mais odiosa e menos aceitável do que aquela que
ao longo dos séculos os homens exerceram em nome ou à sombra de Deus, mas
essa convicção, em idades de grande fé ou de crença, integrava a violência no
espaço da ética, mesmo trans\>iada.
2
Diferentemente, para alguns autores, o uso da violência no mundo contemporâneo
aparece ligado à ideia do bem, do positivo, parecendo que o Ser não se pode realizar, não
4
Violência e Educação
Introdução
Da razão filosófica à razão pedagógica
adquire a sua plena positividade, se não for acompanhado de violência. Depois da
Revolução Francesa vimos aparecer um certo número de filósofos que deram à violência
um estatuto positivo que ela não tinha tido até aí.
Um dos filósofos que tentou justificar a violência foi Hegel. A sua filosofia
política ilustra de maneira particularmente significativa a tese dominante, segundo a qual a
violência é o motor da história.
A grandiosidade de Hegel residiu no facto de ter introduzido a História no Ser, já
que até ele o Absoluto viveu à parte. O mundo histórico, abandonado aos acasos da
contingência, era o que nascia e que morria, tendo até então, um estatuto inferior. Para
Platão, por exemplo, o Absoluto vive no Mundo das Ideias, e estas, como são eternas e
imutáveis, subsistem à parte das transformações da História. Por outro lado, o conceito
central da metafísica hegeliana é a História.
Isto basta para colocá-la na mais aguda oposição possível frente a toda a
Metafísica anterior que, desde Platão, busca a verdade e a revelação do Ser
eterno em toda a parte, excepto na esfera dos problemas humanos, de que Platão
fala com tanto desprezo, precisamente porque nela não se poderia achar
nenhuma permanência, não se podendo pois esperar que desvelasse a verdade. 3
Hegel faz redescer o Absoluto na História e mostra que os diferentes fenómenos
históricos, que os grandes momentos da História, que os grandes homens da História, que
toda esta massa de que é feita a vida das pessoas e das nações é igual à vida do Absoluto,
já que, "ao colocar o Ser divino fora das coisas humanas, adquire-se a facilidade de nos
abandonarmos às suas próprias representações." 4
A filosofia, que se tinha constituído no conflito bipolar entre o mundo das
aparências e o mundo das ideias verdadeiras perdeu parte do seu significado quando Hegel
5
Violência e Educação
Introdução
Da razão filosófica à razão pedagógica
procurou demonstrar a identidade ontológica da ideia e da matéria, em movimento
dialéctico. "O real é racional e o racional é real." Esta divisa da filosofia hegeliana
pretende mostrar que a razão é tudo e está em tudo, mesmo quando se trata do indivíduo
humano, que deve ser pensado na sua individualidade. Mas não é ele, enquanto indivíduo
determinado, que pensa; é a razão nele. O sentido da sua existência não é para criar, mas
para descobrir, já que ele existe na História, na sociedade e no Estado, nas e para as
instituições às quais ele pertence e onde ele é universalizado. Hegel pretende fazer uma
crítica radical do individualismo moral em que o homem se quer refugiar para cultivar a
sua própria virtude, ao abrigo dos furores da História.
Para Hegel, o Absoluto é, antes de mais, um Absoluto insuficientemente
desenvolvido, que deve evoluir, progressivamente, através da História. No prefácio da
Fenomenologia do Espírito, diz que o Absoluto deve ser concebido como resultado, quer
dizer, que ele não se separa deste movimento, pelo qual vai desenvolvendo os seus
diferentes aspectos. "Há que dizer do Absoluto que ele é essencialmente resultado, que
unicamente no fim é aquilo que na verdade é; e precisamente nisto consiste a sua natureza
de ser efectivo, sujeito ou devir de si mesmo." 5 Mas este desenvolvimento efectua-se por
crises. "A existência de Deus e o conhecimento divino podem, portanto, se quisermos,
exprimir-se como um jogo do amor consigo mesmo; esta ideia desce até um virtuosismo
que chega a ser insípido se nela faltam a seriedade, a dor, a paciência e o trabalho do
negativo" 6 - trabalho do negativo que, no plano lógico, se chama "contradição", mas que,
numa perspectiva mais existencial, é, no fundo, a violência e a morte. A morte, as guerras,
as lutas entre indivíduos ou civilizações são os meios da manifestação progressiva da vida
6
Violência e Educação
Introdução
Da razão filosófica à razão pedagógica
do Ser: "a razão não se pode eternizar junto das feridas infligidas aos indivíduos porque os
fins particulares perdem-se no fim universal".
Yves Michaud considera que as filosofias que reconhecem no Ser os princípios da
contradição ou da negatividade admitem a realidade da violência e vêem mesmo nela a
manifestação do Ser.
É exemplarmente o caso da filosofia de Hegel. O Ser, segundo Hegel, (ou ainda o
que ele chama a substância) é sujeito: ele não se torna efectivo, não se realiza
senão no movimento do seu desenvolvimento; este movimento não se pode fazer
sem dor nem dilaceração [...] Este movimento é o da dialéctica concebida (num
espírito heraclitiano mais que platónico) como o jogo dos contrários, conduzido
o
até ao fim da sua reconciliação - até ao fim da história.
A violência ganha aqui uma justificação dialéctica. É necessária a violência
porque sem ela o Absoluto não se desenvolverá. A violência aparece, assim, ligada ao
desenvolvimento do Absoluto e, por consequência, da Criação.
Nietzsche é também um filósofo da violência, mas não tem esta perspectiva de um
progresso dialéctico na humanidade e o que repudia é a sonolência, é a mediocridade, a
satisfação desenxabida do último homem, que é evocado no prólogo do Zaratrusta. Este
último dos homens, ele descreve-o vivendo numa existência pobre:
Falar-lhes-ei do que mais desprezível existe no mundo, isto é, do Ultimo Homem
[...] o Último Homem que torna pequenas todas as coisas [...] terão o seu
pequeno prazer para de dia, o seu pequeno prazer para de noite...
Com este autor dá-se a oposição ao conceito do homem como ser racional,
insistindo ele na produtividade da vida e na vontade do poder do homem. A vida tem de
dominar o conhecimento: não é o conhecimento que tem de dominar a vida.
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Violência e Educação
Introdução
Da razão filosófica à razão pedagógica
Nietzsche preocupa-se, em primeiro lugar, com a elevação do homem a um tipo
superior. A sua filosofia moral é uma filosofia exortatória e dinâmica. Pretende uma
transmutação de valores com o fim de conseguir aquilo que julga ser a verdadeira cultura,
que não significa simplesmente saber, ciência, mas que deve também incluir um elemento
vital e essencial - esse elemento vital e essencial seria simplesmente o autodomínio, a vida,
o que significa luta e vontade forte. O fim da cultura, de acordo com Nietzsche, é a
produção do génio; é o génio, o grande homem, que dá sentido à vida.
Anti-darwiniano, Nietzsche concebe a civilização como domesticação dos fortes e
proclama no seu Zaratrusta (1891) ou no Ecco Homo (1908) a chegada do superhomem com o seu amor reencontrado do risco e dos perigos, com a sua
afirmação superior da vida, com a sua vontade de poder.
A função da violência é aqui diferente. Nesta perspectiva nietzscheniana, a força
ou a violência já não podem ser julgadas unidas, como quando o evolucionismo aí via a
afirmação natural da vida.
Doravante, é necessário distinguir entre a força repressiva, domesticadora, a dos
fracos e dos homens de ressentimento, e a força dos fortes, a força afirmativa.
Mesmo no interior da violência, produz-se por conseguinte uma clivagem entre
uma violência boa e uma outra perversa, desfigurada, mascarada porque voltada
contra a vida.
Encontramos em Nietzsche uma justificação heróica da violência, já que é ela que
nos arranca da moleza, do igualitarismo e do conforto moderno e nos lança num mundo de
conflitos, onde cada uma encontrará a coragem e a firmeza exaltante de uma ultrapassagem
de si: "Chamo heroísmo ao estado de espírito de um homem que se esforça por atingir um
fim para além do qual ele mesmo não interessa; o heroísmo é a vontade absoluta com a
qual se aceita a própria destruição."
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Violência e Educação
Introdução
Da razão filosófica à razão pedagógica
Nietzsche refere várias vezes, na obra Assim Falava Zaratrusta, que o homem só
existe para ser ultrapassado.
Venho anunciar-vos o Super-homem. O homem só existe para ser ultrapassado.
Que tendes feito para o ultrapassar? [...] Mais deixai que vos prescreva eu o vosso
pensamento mais alto; ei-lo: o homem é aquilo que deve ser ultrapassado.
Pensamos poder concluir que nos encontramos perante duas espécies de
justificações: uma, a justificação dialéctica, para a qual a violência aparece como um lugar
de desenvolvimento do Absoluto e, por consequência, da Criação; outra, a heróica, que tem
por fim estimular e fazer surgir protótipos de humanidade notáveis. No entanto, ambas as
noções se podem encontrar nos dois autores citados.
Na Fenomenologia do Espírito, na parte que se intitula O Mundo Ético, Hegel
apela várias vezes à violência como meio de impedir o homem de se estagnar numa rotina,
numa mediocridade, onde perderá de vista o que é a sua consciência. Isto quer dizer que,
pela guerra, pela violência, o espírito acorda de uma espécie de entorpecimento
confortável, no qual teria adormecido, para tornar a tomar consciência de si.
Para não os deixar enraizar-se e endurecer neste isolamento, logo para não
deixar desagregar-se o todo e evaporar-se o espírito, o governo deve, de tempos a
tempos, abaná-los na sua intimidade pela guerra.
A guerra é, assim, considerada como um momento necessário da história que,
apesar das crises e contradições que podem momentaneamente entravar o seu curso,
caminha para o seu fim.
Por outro lado, o super-homem, que surge através da violência, é somente
superior enquanto criador de valores. Por conseguinte, também em Nietzsche, é a ideia de
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Violência e Educação
Introdução
Da razão filosófica à razão pedagógica
criação que permite justificar a violência, já que, para criar, é preciso primeiramente
destruir.
O homem nobre quer criar de novo, quer criar uma nova virtude [...] Criar - eis
o que nos liberta da dor, eis o que aligeira a vida. Mas, para que nasça o criador,
é necessário muita dor e grande número de metamorfoses [...] aquele que cria
destrói sempre primeiro.
Pegando nestes dois autores, julgamos que, justificando
a criação, eles
justificaram a violência. Parece existir uma espécie de assimilação entre ambas. Por um
acto de violência, o homem foi agarrado pelo seu ser animal. Há um destino que se realiza
através do homem, absolutamente dominado por estas forças. No fundo, ele não pode fazer
grande coisa para as impedir de o conduzirem a estes actos de violência. A ontologia
escamoteia a antropologia e justifica a violência.
Mas como poderá a filosofia moral aceitar tais justificações para a violência?
Podemos dizer que não há filosofia da violência, mas isto é talvez dizer que a violência é
aquilo que o filósofo refuta e que, finalmente, o objecto que ele toma como tema de
reflexão e de justificação não é seguramente ela.
No fundo, é o que se passa com Hegel. Parece ser um "filósofo da violência" e
que a justifica mas, afinal, o que procura nela é a criação e é isso que permite justificá-la.
A
prova disso é o facto de ele distinguir a boa e a má violência, sendo esta última
apelidada de "fúria de destruição", que é terror porque não produz nenhuma obra positiva.
Esta violência Hegel não a justifica: "A liberdade universal não pode, por conseguinte,
produzir nem uma obra positiva, nem uma operação positiva; só lhe resta uma operação
negativa; ela é somente a fúria de destruição."
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Violência e Educação
Introdução
Da razão filosófica à razão pedagógica
Há uma mistificação própria nestes "filósofos da violência" que os leva a perder
de vista a essência da mesma e que é, antes de mais, o modo de relação entre os homens.
Mas, se a violência é um objecto de reflexão antropológica, ela exprime-se pela
dominação, pela brutalidade, pelo sofrimento infligido ao outro ou a si mesmo. A violência
não tem relação com a criação, mas com a morte.
Ela parece, muitas vezes, fruto da animalidade do homem ou de uma força
estranha que se apodera dele. Analisando melhor, vemos que há na violência humana,
características inteiramente especiais.
O que caracteriza antes de mais a violência humana é que ela vai além das suas
necessidades porque é, de certa forma, desinteressada, transcende-se a ela
mesmo. E eu irei mesmo até ao ponto de dizer que a violência humana se ilimita.
Há, assim, na violência humana, o infinito que marca o homem. Outra das suas
características é ser sistemática (os campos de concentração são disso exemplo)
o que é também uma das características mais reconhecidas ao homem (o espírito
de colocar em ordem, de sistematizar). Ela também é radical, porque é uma
violência que não se contenta apenas em suprimir o que é superficial, mas que
suprime verdadeiramente aquilo sem o qual nada mais existe. Este aspecto de
radicalidade também é comum ao homem e ao seu espírito, que procura ir à a
raiz de todas as coisas.
Na violência encontram-se todos os atributos positivos do homem, mas
completamente subvertidos. É lá, por conseguinte, que talvez haja uma possibilidade para o
homem agir; mas esta possibilidade é extremamente reduzida, porque o que nela é
fundamental é a presença da morte.
Thomas Hobbes foi, talvez, o maior filósofo da violência. Para ele, o estado da
natureza é justamente o estado de violência. É o estado sem regra, sem moral, é o estado de
todos contra um. Na guerra, cada um procura exterminar o outro para o dominar. Há, em
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Violência e Educação
Introdu
Ção
Da razão filosófica à razão pedagógica
Hobbes, uma reflexão que só encontramos nele e que é espantosa: ao dizer-nos, na sua
obra Do Cidadão, que "os homens são iguais porque cada um pode matar o outro. O mais
miserável dos homens, o mais fraco, o mais inferior, o mais idiota, pode expor-se a matar o
maior deles." A liberdade natural é "a guerra de todos contra todos",18 por conseguinte, o
estado de violência é o homicídio generalizado.
Hobbes dá-nos, deste modo, o essencial da violência. É a presença da morte no
interior da violência que explica também a sua importância e os esforços que, por vezes, se
fazem para a justificar. A atitude do homem em relação à violência é largamente
determinada pela sua atitude em relação à morte. Na parte mais recôndita de si mesmo, o
homem conhece o medo, o seu, o do outro, o do futuro, o do desconhecido que ele imagina
cheio de ameaças e de perigos. Mas o medo do homem enraíza-se sempre no seu receio de
morrer. Assim, decididamente, parece que aquilo que para o homem justifica a violência é
o facto de ela surgir como o único meio de se proteger contra a morte.
A filosofia de Hobbes pode servir, e tem servido, para legitimar a violência
repressiva e condenar os ataques à ordem. O direito natural, anterior ao nascimento da
sociedade, é a liberdade de usar a força para garantir a sua conservação, direito total, que
se estende a tudo. A força converte-se assim em direito.
Toda a doutrina que legitima nos seus princípios a violência repousa sobre
confusões de análise, o mais das vezes exigidas pelas circunstâncias ou apenas toleradas.
Por outro lado, nada justifica a exclusão completa da violência; ela é uma perspectiva de
toda a acção. Assim, a legitimação da violência assenta em análises erradas, enquanto a sua
recusa absoluta é somente arbitrária; é sempre possível que um objectivo necessite de
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Violência e Educação
Introdução
Da razão filosófica à razão pedagógica
meios violentos, restando-nos, então, a possibilidade de recusar esses objectivos, quer
dizer, de deixar a acção morrer.
Mas, se em todos os casos há uma justificação para a violência, ela não poderá
fundamentar-se senão nos seus objectivos. Ora, só existem objectivos particulares e
momentâneos: uma violência justificável será, portanto, local, momentânea e particular,
aqui e agora num caso preciso. Dito de outra forma, a violência deve ser objecto de uma
casuística. O exame casuístico minucioso deve, assim, opor-se ao terrorismo dos grandes
princípios. Cada caso deve ser estudado e analisado o valor dos seus objectivos.
A justificação do emprego da violência será tanto mais sólida quanto mais
próximos estiverem os seus objectivos (por exemplo, a legítima defesa). Todo o emprego
prolongado, organizado e sistemático da violência torna-se, mais cedo ou mais tarde,
injustificável, porque é desumano, qualquer que seja o fim que se pretenda servir ao
utilizá-la.
Para Eric Weil, autor com que iremos encetar a análise filosófica do problema da
violência, a filosofia surge como uma forma de superar a violência que caracteriza o
homem enquanto animal.
Na obra A Lógica da Filosofia, Eric Weil tenta, sem jamais o conseguir
completamente, pensar uma totalidade coerente de todas as atitudes humanas; as suas
categorias articulam-se em torno de conceitos como os de verdade, não-sentido, verdadeiro
e falso, certeza, discussão, objecto, eu ("moi"), Deus, condição, consciência, inteligência,
personalidade, absoluto, obra, finito, acção, sentido, e sabedoria.
Não se pode demonstrar que é necessário filosofar (que se tem de filosofar); é
livremente que a tal se decide alguém, já que é absurdo querer impor o discurso a um
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Violência e Educação
n o uç
Da razão filosófica à razão pedagógica
indivíduo dado, porque tal seria impô-lo pela violência. Filosofar é decidir-se a pensar,
num mundo violento onde a própria ideia de discurso coerente pode desaparecer em
benefício de convicções concretas incapazes de dialogar.
A filosofia é científica na medida em que recusa a incoerência, mas não é uma
ciência: desta, não possui a abstracção, considera o homem não como um objecto, mas sim
(a exemplo da história) como um sujeito que se põe a si mesmo em jogo. Porque fundada
em engajamentos livres, a filosofia é histórica, mas sem estar submetida a um
determinismo histórico, a um "sentido da história".
O filósofo quer um mundo com sentido, no qual reinem a liberdade, a justiça, o
respeito pela personalidade humana. Eric Weil pensa, sobretudo, que a humanidade chegou
a uma fase da sua evolução em que se lhe tornou possível transpor uma etapa decisiva para
o cumprimento da não-violência. A não-violência pode substituir cada vez mais a
violência, para realizar o sentido da história.
Trata-se, doravante, de realizar um mundo onde a moral possa viver com a
não-violência, um mundo em que a não-violência não seja simples ausência de
sentido - desse sentido que a violência procurava na história sem saber aquilo
que procurava, que ela criou deforma violenta, e que continua a procurar por
meios violentos. A tarefa é construir um mundo em que a não-violência seja real
sem ser supressão e contra-senso da violência e de sentido positivo para a vida
19
dos homens.
Ele chega mesmo a pensar que a sociedade pode entrever a realização do ideal que
lhe foi consignado desde sempre pelo homem que optou pela razão e, logo, pela
não-violência.
O direito da sociedade moderna tenderá sempre a reduzir o papel dos factores
históricos, para chegar, no ideal, a um sistema puramente racional, regulando as
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Violência e Educação
Introdução
Da razão filosófica à razão pedagógica
relações entre os indivíduos de tal maneira que toda a violência seja excluída das
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mesmas.
Existe, portanto, uma filosofia moral e uma filosofia política: "convicção prévia
do autor é que a acção humana, considerada enquanto política, é sensata; ela possui
estruturas essenciais, conceitos próprios que fazem coincidir o histórico e o racional."
Nas obras de Eric Weil trespassa uma grande fé na razão do homem que se tornou
moral porque recusou a violência que contradiz radicalmente a exigência de razão que o
homem tem em si e que funda a sua humanidade (ele deve, no entanto, renovar
continuamente esta recusa porque, sendo naturalmente imoral, quer dizer, violento, deve
sempre moralizar-se); mas, de qualquer forma, a filosofia não nos pode garantir que a
humanidade não virá um dia a sucumbir na barbárie, porque neste mundo "sensato" o
absurdo e a violência são ainda omnipresentes.
Assim, como A. Dias de Carvalho, pensamos ser de relevar em todo este processo
de educação do homem o papel que cabe actualmente à filosofia da educação enquanto
protectora da coerência e da abertura dos pressupostos filosóficos dos propósitos
educativos.
Coerência racional do discurso e abertura (difícil e vigilante) à singularidade
indesejável (mas possível) da violência ao nível da negatividade do homem,
inadmissível no plano antropológico. De onde a necessidade da filosofia como
conhecimento do «que resiste e ameaça», de uma filosofia onde «a razão não
saberá ser para o homem senão no meio da violência, porque o homem nunca sai
do domínio onde a violência e o medo são possíveis».
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Violência e Educação
Introdução
Da razão filosófica à razão pedagógica
Poderemos, então, nutrir a esperança de que a educação e a filosofia da educação
sejam, elas também, uma saída para a transformação do homem violento em homem sábio?
Julgamos que sim.
O indivíduo finito que, ao filosofar, recusa a violência como algo de universal
(mas, apesar de tudo humano), entrega-se, com certeza, a uma «tarefa infinita»
em que a educação é indispensável. Era-o, aliás, já em Kant, para quem a
inclinação do homem para o mal desafiava a sua disposição para o bem.
Na opinião de Anne-Marie Drouin-Hans, a educação, como socialização, é um
meio de tornar possível a vida em comum, estabelecendo regras que limitam a expressão
da violência: "já que existem em todo o ser humano forças de desejo, tendências de
destruição, ou de possessão, que têm necessidade de ser reguladas, a educação deve
desempenhar este papel de amansar a violência".
Também para Roger Dadoun, tratar a violência, tratar com a violência, tal é a
função antropológica fundamental, fundadora da humanidade, da educação:
A função antropológica da educação, o que ela busca às cegas, por obscuros
caminhos, é cumprir a integração do homem na humanidade, é construir,
reconstituir cada dia a humanidade com os materiais humanos de que ela dispõe;
é, mais precisamente, trabalhar e tratar a estrutura humana do homem violento
de forma a manter, através de des\>ios, de loucuras, de insucessos, a ponte que
conduz ao homem sábio.
Tal como Olivier Reboul, pensamos que, de facto, se o conteúdo da educação é
variável, a necessidade de ser educado é universal, porque ela também faz parte da
natureza humana. Esta natureza humana é que exige ser educada; mas é também ela que
faz com que a educação não possa tudo. Inversamente, se a educação não pode tudo, nós
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Violência e Educação
Introdução
Da razão filosófica à razão pedagógica
nada pudemos sem ela e por isso ela atravessa todas as civilizações, apesar das suas
diferenças.
A educação tem desempenhado, ao longo dos anos, uma função antropológica
central, ao integrar o homem na humanidade, em vista do bem, afastando-o, em princípio,
da violência que lhe é inerente. Educar é modificar condutas com a intenção de
melhorá-las, como afirma Octavi Fullat. É desta sua função antropológica que nos
ocuparemos na segunda parte do nosso trabalho.
Na terceira parte abordaremos a dimensão antropológico da utopia. Ao longo da
história, a utopia tem tomado diferentes aspectos, que correspondem, em geral, à
necessidade de transformação, individual e colectiva, que o homem experimenta, à
exigência de esperar inscrita na sua natureza, à capacidade de extrapolar realidades e de
recriar mundos pela acção conjugada da imaginação e da razão.
Procuraremos ver qual a relação da utopia com a pedagogia, uma vez que nos
parece que entre ambas sempre existiu uma relação estreita, de "cumplicidade", já que
como afirma Octavi Fullat, "enquanto desejo compensador da facticidade, todo o acto
educador é teleológico, é indicação da utopia".26 De qualquer forma, esta constatação
leva-nos a levantar outras questões.
Será que, de uma forma geral, a utopia e, mais concretamente, a utopia
pedagógica, poderão ser consideradas como formas de violência, já que, como afirma o
mesmo autor, na medida em que é uma acção todo o acto educativo é violência? "A
violência é uma categoria de todo o acto educativo. A violência entre duas consciências - a
do educador e a do educando - é a categoria que especifica a educação humana"
21
. Ou
17
n
Violência e Educação
°
uça0
Da razão filosófica à razão pedagógica
será que existe a possibilidade de uma não-violência, ou da diminuição da violência na
educação? Neste sentido, refere A. Dias de Carvalho:
A utopia poderá mesmo representar a brecha pela qual a filosofia da educação,
como tal, interfere, ainda que de uma forma diferida, através dos sistemas
utópicos que se inserem na história, com o processo de formulação de projectos
pedagógicos. A filosofia asseguraria assim, para além do ser, o constante apelo
da alteridade antropológica. Afirmar-se-ia, desta maneira, por acréscimo, como
28
resistência aos fundamentos da violência...
Analisaremos, neste contexto, a obra de Paulo Freire, filósofo e teórico da
educação, portador de um projecto pedagógico utópico e esperançoso, como o próprio o
intitula, ao mesmo tempo carregado de preocupações éticas, sociais e políticas, em que o
profundo respeito pelo outro, a quem reconhece e atribui o direito à palavra e à sua
diferença, surge como uma forma de combater a violência dos que pretendem impor o seu
projecto.
O primado da relação sujeito-objecto [...] cede lugar à relação sujeito-sujeito, à
relação eu-tu, como diria M. Buber, à relação intersubjectiva ou interpessoal, à
intercomunicação.
É
no
entre da
relação
sujeito-sujeito,
mediatizada
naturalmente pelo mundo a desvelar, que se dá o verdadeiro conhecimento e uma
educação humanizadora. A educação e o conhecimento tornam-se, assim, o
resultado sobretudo de um encontro, de um diálogo, interpessoais, perante a
realidade.
Os princípios de que se encontra imbuído o seu projecto
pedagógico
enquadram-se numa pedagogia filosófica, como esta é definida por A. Dias de Carvalho,
na medida em que pretende interceptar os processos educativos repercutindo neles sentidos
típicos da reflexão filosófica
18
Introdução
Violência e Educação
Da razão filosófica à razão pedagógica
A pedagogia inaugura, então, um espaço de diálogo profundo com a filosofia que,
sem lhe retirar a qualidade pedagógica, lhe empresta importantes patamares de
abertura e de radicalidade crítica num espaço que, sendo operativo, é adjacente à
y 7
r-
30
filosofia.
Por fim, tentaremos compreender as relações perversas entre utopia e violência. O
utopismo e a sua generosidade excessiva desculpam, e por vezes até justificam, a violência
e o terror daqueles que pretendem realizar por estes meios as mesmas promessas que as
inquietações teóricas do pensamento utópico levantam: a emancipação geral da
humanidade, uma sociedade cada vez mais justa, mais feliz... Ainda nos nossos dias,
muitos regimes políticos, à sombra de ideais utópicos, instauram ditaduras, espalhando o
terror e a violência.
Vivemos num mundo de conflitos sociais, políticos, ideológicos. Tais conflitos e
confrontos não eliminam os sonhos e os imaginários sociais. Pelo contrário, estimulam a
produção de esperanças quanto à possibilidade de criar outra sociedade mais transparente,
coerente, lógica. Pensamos que, afinal, a utopia não pode ser esquecida, desde que
percebida no contexto do possível e do desejável.
De facto, nós podemos visualizar futuros alternativos, cuja divulgação pode, por
si mesma, ajudar a que eles se realizem. O que é necessário é a criação de
modelos de realismo utópico [...] Este utopismo realista deverá possuir
sensibilidade sociológica -
estar alerta às transformações
institucionais
imanentes que a modernidade abre constantemente sobre o futuro; [...] deve criar
modelos de sociedade desejável [...] e deve reconhecer que a política
emanapatória precisa de estar ligada à política da vida ou a uma política de
auto-realização.
19
Violência e Educação
Introdução
Da razão filosófica à razlo pedagógica
Defendemos, assim, uma doutrina de esperança e um projecto de sociedade
realista, com base nos valores universais da paz, da tolerância, da solidariedade e da
justiça, e subscrevemos Ricoeur quando este afirma:
Temos uma memória dos sonhos não resolvidos do passado, para descobrir o
sonho do futuro. É preciso saber mudar à medida que a realidade muda. Ou há
coragem de fazer certas reformas ou é a falta dessa coragem que conduz à
violência.
20
Violência e Educação
Da razão filosófica à razão pedagógica
1 Hannah Arendt - Du Mensonge à la Violence, p. 152
2 Eduardo Lourenço - O Esplendor do Caos, p. 49
3 Hannah Arendt - Entre o Passado e o Futuro, p. 101
4 Hegel - Leçons Sur la Philosophie de L'Histoire, p. 25
5 Hegel - La Phénomologie de L Esprit, p. 19
6 Idem, p. 18
7 Hegel cit. por Yves Michaud in La Violence, p. 111
8 Yves Michaud - La Violence, p. 111
9 Frederich Nietzsche - Assim Falava Zaratrusta, p. 16 e 18
10 Yves Michaud, op cit, p. 112
11 Ibid
12 Jules Chaix-Ruy - Pour Connaître la Pensée de Nietzsche, p. 30
13 Frederich Nietzsche, op cit, p. 12 e 51
14 Hegel - La Phénomologie de L Esprit, p. 23
15 Frederich Nietzsche, op cit, p. 46 e 91
16 Hegel - La Phénomologie de L Esprit, p. 135
17 Lucien Mugnier Pollet - "Violence et Moral" in La Violence dans le Monde Actuel, p. 37
18 Hobbes, op cit, p. 33 e 38
19 Eric Weil - Philosophie Politique, p. 234
20 Idem, p. 83
21 Paul Ricoeur - Lectures Autour du Politique, p. 95
22 A. Dias de Carvalho - "Education et Violence" (documento cedido pelo autor), p. 8
23 A. Dias de Carvalho - "O Estatuto da Filosofia da Educação: Especificidades e Perplexidades"
(documento cedido pelo autor), p. 15
24 Anne-Marie Drouin-Hans - L Éducation, une Question Philosophique, p. 73-74
25 Roger Dadoun - La Violence - Essai sur /' «homo violens», p. 38.
26 Octavi Fullat - La Peregrinación Del Mai, p. 11
27 Idem, p. 28
28 A. Dias de Carvalho - "O Estatuto da Filosofia da Educação: Especificidades e Perplexidades"
(documento cedido pelo autor), p. 15
29 J. Neves Vicente - "Educação, Diálogo, Crítica e Libertação na Acção e no Pensamento de Paulo Freire"
in Revista Filosófica de Coimbra, n.° 8, p. 395
30 A. Dias de Carvalho - "O Estatuto da Filosofia da Educação: Especificidades e Perplexidades"
(documento cedido pelo autor), p. 22
31 Giddens cit. por António M. Magalhães m A Escola na Transição Pós-Moderna, p. 46
32 Paul Ricoeur cit. por Guilherme d' Oliveira Martins in Jornal de Letras, Artes e Ideias, 1999.07.14, p. 11
21
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Ia parte:
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica à razão pedagógica
1.1 - Eric Weil - um Kantiano Pós-Hegeliano
Para que possamos compreender toda a filosofia ou, melhor dizendo, todo o
"filosofar" de Eric Weil, teremos que recorrer a Kant e Hegel, já que é ele próprio que se
intitula um kantiano pós-hegeliano e toda a sua obra é marcada por esta dupla influência.
Da filosofia kantiana aceita a consciência da finitude, já que é somente nesta
perspectiva que podemos compreender "a nossa resignação diante da finitude e na finitude
se nos quisermos compreender a nós mesmos." 1 Mas não faz da finitude um postulado e
ultrapassa Kant e a grande descoberta do facto de "que não haveria nenhuma razão de falar
da realidade, de a querer pensar, se ela não fosse contraditória, se, noutros termos, ela se
prestasse imediatamente ao discurso."
Para Kant, o homem não é somente finitude mas também vontade racional e,
enquanto tal, ele pensa o infinito embora não o conheça como conhece o sensível. Assim
nasce a dialéctica entre um ser finito e racional que procura o infinito, o absoluto, a
totalidade da realidade (mas que, como ser finito, não pode deixar de finitizar o infinito) e
este infinito finitizado que é a causa da verdadeira dialéctica, que é a projecção da dupla
natureza do homem - ser finito e racional ao mesmo tempo.
Na filosofia alemã, de Kant a Hegel, a tese da identidade do sujeito e do objecto
aparece como o pressuposto necessário da existência da verdade. Isto faz supor que o
sujeito que a si se conhece deve, segundo a concepção ideal, ser ele próprio pensado como
idêntico ao absoluto; deve ser infinito.
Daí que, na dialéctica, não se trate de uma relação sujeito-objecto, mas de uma
relação do finito com o infinito, do conhecimento com o pensamento, do entendimento
23
Violência e Educação
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
Eric Weil - um Kantiano Pós-Hegeliano
com a razão. Isto significa que a verdadeira dialéctica é a da razão, dialéctica não do
conhecimento mas do pensamento: "uma dialéctica do finito na sua totalidade com o
infinito."
O homem não pode deixar de procurar a totalidade, procurando, assim, ao mesmo
tempo, escapar à limitação do seu discurso indefinidamente finito. E, no entanto, o mundo
é o mundo, "ele presta-se ao discurso, permite à ciência constituir-se; ainda mais, permite
ao homem orientar-se, escolher, decidir; ele acolhe a acção da vontade livre, da vontade
racional de liberdade."
O mundo é racional e uno: tal foi a descoberta da 3acrítica kantiana, segundo Eric
Weil, que explica:
A totalidade não é contraditória, mas nada do que ela contém é consistente,
precisamente porque nada é a totalidade [...] E, no entanto, o Todo é
verdadeiramente tudo, ele é o mundo e mostra-se como mundo ao pensamento
que não o procura, porque eleja o encontrou sem saber.
Kant hesitou perante tais resultados, pois não podia admitir que o sentido da vida
e do mundo, sem ser finito, repousasse, para aqueles que o pensam, sobre factos que o são,
que a realidade funda tudo e que o finito não é pensado senão sob o ponto de vista do
infinito.
O kantismo de Eric Weil é, segundo Paul Ricoeur, "mais a fazer do que a
repetir".5 O filosofar weiliano parte do fim do itinerário kantiano - a unidade do sentido e
do facto - para o ultrapassar, passando de uma filosofia do ser para uma filosofia do
sentido; "para Eric Weil o problema do sentido não é ontológico mas antropológico: o
sentido é uma tarefa e não um acontecimento".6 Na opinião de M. Perine:
24
Violência e Educação
Violência e Educação
- Da razão filosófica a razão pedagógica
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
_ Kmúan0 p ós . H egeliano
Não se trata de um kantismo naïf (supondo que tal fosse possível), de um
kantismo ignorante das suas insuficiências, das suas lacunas, das suas fendas, da
sua falta de conclusões últimas. Trata-se de um kantismo que pretende
compreender Kant melhor do que ele se compreendeu a si próprio, conduzindo a
bom termo a segunda revolução do seu pensamento, pela elaboração de uma
filosofia crítica do sentido.
Esta revolução consiste na descoberta de que o sentido existe e é imediatamente
compreendido.
W. Kluback situa a Lógica da Filosofia na sua origem kantiana [...] W. Kluback
vê na Lógica da Filosofia a resposta de Eric Weil à Crítica da Faculdade de Julgar
de Kant, evocando a única descoberta revolucionária da história da filosofia: o
homem, ser finito, pode pensar e pensar ele mesmo o finito e o infinito. A Lógica
da Filosofia é, por conseguinte, a referência a Kant mais significativa da filosofia
contemporânea.
Por outro lado, Eric Weil é também um grande conhecedor da filosofia hegeliana,
aceitando assumir a vontade hegeliana de constituir a filosofia em saber absoluto, ou seja, a
pretensão a um discurso absolutamente coerente e exaustivo na sua materialidade, um
discurso único que compreenda o todo da realidade natural e intelectual (o que obriga a
que tal discurso seja concebido como um discurso divino).
De qualquer forma, é na dialéctica e na ideia de saber absoluto que Eric Weil mais
ataca Hegel.
Weil diz que será supérfluo insistir sobre a identidade da dialéctica hegeliana e
da ontologia: «Se a razão existe, se o mundo é racional, se a totalidade do que é
real e age é compreensível e se a compreensão compreende o que dá a todo o
particular a sua consistência, a sua essência e a sua verdadeira substância, o
discurso é necessário nele mesmo - ele não saberá ser outro sem deixar de ser
coerente - e revela o que a realidade contêm de necessário».
25
Violência e Educação
Violência e n a u c a ç a o
- Da razão filosófica a razão pedagógica
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
_ K a n t i a n o Pós . H egeliano
**
Em relação à pretensão de Hegel de constituir a filosofia em saber absoluto, Weil
afirma que, para ele, o finito conhece-se desde então como tal no infinito e a ontologia é
verdadeiramente "o pensamento de Deus antes da criação do mundo, antes da queda do
conceito na realidade empírica, neste Dasein que é uma das categorias mais primitivas, das
mais pobres e, por isso, de um pensamento que ainda não foi compreendido em todo o seu
poder." 10
Face a esta alternativa da filosofia face ao ponto de vista de Deus e à resignação
perante a finitude, Eric Weil escolheu a filosofia sob o ponto de vista do Homem, o único a
partir do qual a filosofia pode existir e ter um sentido. Para Eric Weil, a filosofia define-se
integralmente pela vontade do sentido, pela escolha em favor do discurso coerente.
O discurso absoluto, do qual Hegel é o representante adequado, não pode
reconhecer nem o facto nem o sentido da violência radical que se exprime na
recusa do discurso. É pretensão de Eric Weil elaborar um sistema filosófico que,
sem renunciar à razão, sem renunciar à ideia hegeliana do sistema, saberá
também reconhecer a irredutibilidade da liberdade à razão e colocar a questão
do sentido deste facto.
Ser pós-hegeliano é, neste sentido, pôr em causa a articulação dos conceitos de
razão e liberdade, que é suposto o sistema hegeliano ter identificado de uma forma
redutora, e dar lugar à "finitude irredutível do sujeito filosofante". Ele é pós-hegeliano
porque recusou continuar na simples oposição entre "a razão separada da vida" e "a vida
recusando a razão". É por isso que o filosofar weiliano, inseparavelmente teórico e prático,
problemático ao mesmo tempo que sistemático, (embora tratando-se, segundo G. Kirscher,
de um sistema aberto, uma vez que de Hegel retém mais a ideia de sistema do que a sua
26
Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà tazão pedagogic.
Eric Weil - um Kantiano Pós-Hegeliano
realização efectiva), coloca verdadeiramente um ponto final à filosofia, continuando
contudo a filosofar.
A tese hegeliana da unidade do Absoluto e da História é, assim, substituída pela
unidade da Filosofia e da História, tornando-se esta uma filosofia humana e não divina: por
isso, a razão é uma tarefa que deve ser realizada pelo homem no mundo. "Eric Weil quer
ultrapassar Hegel, uma vez que coloca questões que Hegel não tinha colocado, mas sem
11
renunciar à filosofia. Sem desesperar da razão".
Há uma ideia de saber absoluto, mas não existe, ao mesmo tempo, saber absoluto
e humano. Eric Weil ultrapassa uma concepção ontoteológica e substitui-a por uma
compreensão antropológica.
Para Labarrière, um dos intérpretes de Eric Weil, parece característico do seu
hegelianismo a inteligência das coisas e cita uma passagem do próprio autor para a ilustrar:
"É sinal daquilo que existe verdadeiramente prestar-se ao discurso, não parcialmente e
relativamente, mas absolutamente e na sua totalidade."
Esta proposta coloca em questão, segundo Labarrière, toda a tentativa que queria
separar o viver do dizer, referindo este autor que é aparentemente impossível separá-los,
assim como separar o discurso lógico da sua efectuação. Do que existe até à teoria, e desta
de volta até ao agir moral e político, não pára a continuidade, e é isto a que chamamos
liberdade. É por isso que a decisão pela filosofia é essencialmente uma decisão pela
coerência; e isto, diz Labarrière, sem nenhuma restrição; a tal ponto que Eric Weil não
hesita em retomar de Hegel o conceito de que a filosofia é sistemática por essência.
No entanto, para Labarrière, este projecto, embora tão claramente afirmado, nem
sempre se apresenta seguro de si e, às vezes, até parece envolto de um certo
27
Vi ni en ci a e E d u c a ç ã o
Violência e t a u c a ç a o
- Da razão filosófica a razão pedagógica
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
Weil - um Kantiano Pós-Hegeliano
j_*iv
arrependimento; isto porque Weil, que está especialmente atento ao problema da violência,
encontra relativamente a Hegel algumas divergências nesta matéria.
Nasceu nele a suspeita, ténue mas insistente, que Hegel tinha sentido o dever de
forçar um pouco as coisas para que todo o conteúdo da história fosse assumido
na inteligência global que ele tinha querido apresentar dela.
Certamente que há quem se decida pela filosofia, escolha a razão e procure, por
todos os meios teóricos e práticos, reduzir, em si e fora de si, a parte de violência irracional
que encontra. Mas esta não é a única opção possível, já que, face a ela, encontra-se o
homem da violência, que recusa a linguagem e que realiza a sua essência de homem,
subvertendo a ordem das coisas, tal como ela é entendida pelo homem do discurso.
O homem do discurso constata, assim, que ele não representa nem o único tipo,
nem mesmo o único modelo de humanidade e a violência coloca-o face a uma aporia:
ele não pode renunciar a dizer que o discurso que desenvolve tem um valor
universal, sem renegar-se a si mesmo, mas deve confessar, no entanto, que tal
fenómeno escapa de repente e talvez definitivamente à sua compreensão das
coisas. A grandeza de Eric Weil é de não ter querido renunciar nem a uma nem a
outra destas afirmações.
Tal facto fá-lo balançar entre duas posições, segundo Labarrière: por um lado,
achar que cabe ao filósofo a tarefa de reduzir a violência em todas as situações onde a
venha a encontrar; mas, por outro lado, a indicação de que encontra aí um limite
intransponível à leitura e à execução das coisas, leva-o à tentação suprema de apresentar o
discurso com uma clareza tal que as partes obscuras que a experiência comum envolve,
particularmente sob a forma de violência, seriam eliminadas.
Assim, referindo o discurso como o lugar necessário e qualificado de uma
especificação do infinito, ele entende defender-se contra os excessos de um tal
28
v ^ l ê n H a e Fducacão
Violência e
- Da razão filosófica á razão pedagógica
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
fc,aucaçao
_ ^ K a n t i a n 0 Pós . H egeliano
desejo e nunca deixar de sustentar interesse pela irredutibilidade finita do mundo.
Retomando em boa parte uma palavra irónica de Hegel - uma palavra que
parece fazer crer, injustamente sem dúvida, dirigida contra Kant - Eric Weil
impõe então a si próprio o objectivo de nunca querer perder «o amor das coisas
finitas». E é por esta razão que, tendo-se detido em Hegel e continuando a
fazê-lo, ele se coloca como o defensor de um retorno a Kant, definindo de uma
forma agradável a sua posição como um «kantismo pós-hegeliano».
16
Poderemos concluir que, escolhendo a consciência kantiana, Eric Weil opta pela
autonomia e pelos limites da razão, pela consciência da sua universalidade em ser finito,
pelo pensamento humano que quer compreender e compreender-se mas que, por isso, não
pode renunciar à procura de um Absoluto, fundamento de toda a realidade humana e
mundana. Optando pela consciência do homem de Kant, que é um ser que conhece a
necessidade porque é interesseiro, que deseja e espera no além uma justiça
verdadeiramente divina, porque, já neste mundo e nesta vida, ele reconhece o valor
absoluto de todo o indivíduo, opta pela razão que pensa o mundo e visa a acção, que é
teórica enquanto prática.
Mas Eric Weil é kantiano de maneira pós-hegeliana - não somente porque Hegel
é historicamente posterior a Kant, e Weil a Hegel, "mas também porque o nosso tempo não
seria o que é se Hegel não tivesse existido, e porque Hegel não teria podido pretender à
compreensão total se, antes dele, Kant não tivesse compreendido o que era compreender"
- e pós-hegeliano de maneira kantiana, já que é certo que, onde há filosofia há discurso
coerente, quer dizer, a ideia de absoluto "é a ideia que produz a filosofia", embora o
discurso absolutamente coerente seja somente uma ideia no sentido kantiano do termo.
29
Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
Eric Weil - um Kantiano Pós-Hegehano
O sentido do projecto da Lógica da Filosofia é "unir o pensamento e a acção, a
filosofia e a vida, o infinito e o finito, no círculo de uma compreensão activa e de uma
acção compreendida."
30
Violência e Educação
Violência e naucaçao
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
_ ^ K a n t i a n o pós.Hegeliano
Enc
1 Eric Weil cit por M. Perine in Philosophie et Violence - Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil,
p. 13
2 Ibid
3 Idem p. 14
4 Ibid
5 P. Ricoeur cit por M. Perine in Philosophie et Violence - Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil,
p.134
6 A. Wiel in "Comptes Rendus" -Archives de Philosophie 53, p. 685
7 M. Perine - Philosophie et Violence - Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil, p. 134
8
A. Wiel in "Comptes Rendus" -Archives de Philosophie 53, p. 684
9 M. Perine - Philosophie et Violence - Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil, p. 125
10 Eric Weil cit por M. Perine in Philosophie et Violence - Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil,
p. 12
11 Gilbert Kirscher - Revue Philosophique de Louvain - Tome 87, Quatrième Série, N° 76, p. 664
12 Gilbert Kirscher cit por Labarrière in "Après Weil, Avec Weil" -Archives de Philosophie 53, p. 663
13 Eric Weil, cit por Labarrière in Le Discours de L 'Altérité - Une logique de l'expérience, p. 87
14 Labarrière - Le Discours de L Altérité - Une logique de I 'experience, p. 87
15 Idem, p. 88
16 Ibid
17 M. Perine -Philosophie et Violence -Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil,p. 134
18 A. Wiel in "Comptes Rendus" -Archives de Philosophie 53, p. 682
31
Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razSo filosófica à razïo pedagógica
1.2 - O Homem como Razão - o Homem como Violência
A definição de homem mais enraizada na nossa civilização e que é consagrada
pela tradição filosófica e religiosa é a que o considera como animal dotado de razão e de
linguagem racional. É também esta definição de homem que Eric Weil retém, ao afirmar
claramente que a violência contradiz radicalmente a exigência de razão que o homem tem
em si e que funda a sua humanidade.
Igualmente sob o ponto de vista da ciência, o homem deve merecer este título em
sentido humano, isto é, no sentido consagrado por essa mesma tradição. Claro que o
homem não se exprime e não se comporta naturalmente conformando-se às exigências da
razão, mas deve esforçar-se por atingi-las para se tornar plenamente um homem.
Para ele próprio ser o que deseja e para que o outro possa ser considerado seu
igual, deve ser racional. Ora, embora dotado de razão e linguagem, ele encontra-se sempre
a um nível inferior ao da razão; "ele é mesmo o ser que não é, já que é essencialmente a
sua própria transformação, e que essa transformação não é natural e descritível, mas o seu
próprio fazer-se. "
O homem é um ser vivo como os outros, mas com a diferença de não ter só
necessidade mas também desejos, que não fazem parte da sua natureza, mas que ele criou
como necessidades - o homem procura o que ele apelida de sua negatividade. Ele ignora o
que quer mas sabe o que não quer.
O homem é um ser que, com a ajuda da linguagem, da negação do dado [...]
procura a satisfação, mais exactamente - porque não temos a menor ideia do que
poderá ser a satisfação - procura libertar-se do descontentamento [...] Ser com
razão
("raisonnable")
significa: ser capaz de realizar a sua
própria
32
Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão P=dagóg.ca
O Homem como Razão - o Homem como Violência
negatividade, não somente dizer não ao que existe, mas produzir do que existe
aquilo que ainda não há, um novo objecto, um novo procedimento, ambos isentos
daquilo que era incómodo na natureza.
O homem é, assim, razão cativa num corpo de animal, tendo necessidades,
interesses, desejos, paixões e que, como tal, está naturalmente predisposto à violência para
com os seus semelhantes. Assim sendo, o verdadeiro trabalho humano consiste em
transformar este ser composto, reduzindo, tanto quanto possível, o que não é racional, para
que todo ele seja razão. Ele nunca será totalmente razão, mas será capaz de se fazer razão,
isto é, será capaz de se transformar pela razão e para ela. É esse esforço do homem para
pensar, para falar e para viver racionalmente que caracteriza a filosofia.
Para Weil, ao contrário do homem comum, o filósofo é o homem que nasce com
esse estatuto, com sabedoria, o animal negador que acabará por negar a animalidade em si
próprio; a razão não lhe dá satisfações imediatas porque ela é sabedoria, contentamento.
Ora, todo o homem quer estar contente, noutras palavras, procura o bem, porque o bem é o
que contenta o homem.
Nenhum sistema filosófico, (a menos que queiramos reconhecer como sistema
filosófico conjuntos doutrinários que apenas pretendem formular as regras da
ciência e organizar a actividade transformadora do homem na natureza), nenhum
sistema faz excepção, e todos tendem unicamente para o contentamento.
É evidente que ao homem comum não lhe interessa o que dizem os filósofos, já
que, para ele, é mais importante viver do que ser. De qualquer forma, a consciencialização
de tal posição é fruto da influência dos filósofos e dos seus discursos, já que sem eles tal
via não lhe seria visível, porque estaria imerso somente na sua vida.
33
Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagóg,ca
O Homem como Razão - o Homem como Violência
Assim, o homem comum pode tornar-se filósofo; podemos admitir tal
possibilidade, mas o mais natural é que, uma vez possuidor da linguagem racional que o
filósofo lhe ensinou, se ocupe das suas tarefas, que não são as do filósofo, de uma forma
racional.
Épara um ser que fala, que, falando, persegue o sentido, para um ser que já deu
um passo na discussão e que sabe qualquer coisa da racionalidade, que a
violência é problema, que a violência acontece como problema. Assim, a
violência tem o seu sentido no seu outro: a linguagem. E reciprocamente. A
palavra, a discussão, a racionalidade obtêm também a sua unidade de sentido no
desejo que elas têm de reduzir a violência. A violência que fala éjá uma violência
que procura ter razão; é uma violência que se coloca na órbita da razão e que
começa já a negar-se como violência.
4
De qualquer maneira, esta "razão" não é a razão do filósofo, embora tenha sido a
sua exigência de um discurso racional que levou os conhecimentos tradicionais a
transformarem-se em afirmações e, de seguida, em teses demonstráveis.
O que parece estranho aos filósofos é que os homens não aproveitem tais
conhecimentos para se tornarem cada vez menos animais e mais racionais, mas que os
aproveitem, pelo contrário, para dominar outros homens, com a ajuda das suas paixões e
reacções inconscientes, tornando-se também eles próprios cada vez mais inconscientes e
somente mais fortes e mais hábeis para perseguir os seus fins, que são os menos racionais
para o filósofo.
É, então, com a ajuda da obra do filósofo, que o homem sabe o que faz e sabe
dizer porque o faz (e já não é somente instinto). Ele não deseja "o contentamento" do
filósofo, porque prefere a vida com todas as suas facetas (boas e más) e, por isso, o filósofo
34
Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
O Homem como Razão - o Homem como Violência
considera que ele não é racional. O filósofo compreende, no entanto, que, embora a
filosofia (ou a razão) seja uma possibilidade para o homem, ele pode realizá-la ou não.
Se se trata da linguagem racional, é inegável que existe um discurso que nega a
linguagem racional, a razão da filosofia, mas que, nem por isso, é um discurso
incompreensível, um discurso de loucos.
A escolha da razão é uma escolha, não só não racional (porque o racional e o
insensato se opõem no interior dos limites da razão), mas sobretudo uma escolha
a-racional ou, num sentido que não exclusivamente temporal, pré-racional.
O homem comum obriga o filósofo a admitir que a procura da razão tem a sua
origem na negatividade primitiva, nesse desejo que é a natureza humana. Isso é ponto
assente. No entanto, mostra também que não é a negatividade simples e natural que o
filósofo refuta, mas uma outra forma. Não é a negatividade primitiva do homem pelo
desejo, nem de tudo o que nasce do desejo e da negatividade transformadora Qk que se
assim fosse, ele rejeitaria também a filosofia), mas uma forma determinada de desejo. Ao
mesmo tempo que o homem-filósofo decide optar pela razão, ele toma consciência do que
nele o impede de se tornar racional. O filósofo não tem medo dos perigos exteriores, nem
mesmo da morte; o filósofo tem medo do que em si não é racional, tem medo da violência.
Essa violência que o filósofo descobre em si e que o leva a uma atitude não racional
entrava a realização da sua própria humanidade.
Quando e se todos os homens quiserem apenas o contentamento, quando ninguém
procurar mais a satisfação e o prazer, quando já ninguém seduzir nem ameaçar
mais ninguém, quando todos em conjunto correrem em socorro do que sofra de
paixão, então, e somente então, o filósofo poderá viver sem medo do medo; a
razão terá penetrado toda a existência do homem e da humanidade.
6
35
Violência e Educação
Violência e naucaçao
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
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como violência
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Graças ao discurso antifílosófico, a filosofia revela o seu segredo: o filósofo quer
que a violência desapareça do mundo e, por isso, para ele, é ilegítimo tudo o que a faça
aumentar. Está assim determinada, para o filósofo como para todos os outros, a máxima
moral que deve orientar a atitude do homem em todas as circunstâncias:
O filósofo quer que a violência desapareça do mundo. Ele reconhece a
necessidade, admite o desejo, concorda que o homem continue a ser animal,
sendo ao mesmo tempo ser racional: o que importa é eliminar a violência. E
legítimo desejar aquilo que reduz a quantidade de violência que entra na vida do
7
homem e é ilegítimo desejar aquilo que a aumenta.
Uma vez que a razão é constitutiva da própria humanidade do homem, de
qualquer homem e de todos, "o principal dever (do homem moral) é respeitar a razão em
todo o ser humano e respeitá-la em si mesmo respeitando-a nos outros".8 E isso significa,
em primeiro lugar, que deve abster-se de violentar quem quer que seja. "Ele não pode
esquecer as consequências dos seus actos [...] não tem direito de querer aquelas, por
exemplo, que transformariam outros homens em coisas."
Para Eric Weil, existe uma estrutura do discurso que nunca coincide com ele, já
que este é inesgotável. Há, assim, qualquer coisa definitivamente irredutível ao homem e
que não é a razão mas que está na sua origem, uma realidade que limita o domínio de toda
a universalização possível, porque ela é "a negação universal e absoluta do Universal e do
Absoluto." Esta realidade é a Violência. Por isso, como a razão não existe fora da
violência, há que enfrentá-la.
Toda a filosofia de Eric Weil é uma enorme meditação sobre esta dualidade da
existência humana que mostra as suas possibilidades extremas - Filosofia (a busca de um
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagoga
O Homem como Razão - o Homem como Violência
discurso coerente para a realidade total) e Violência, sendo que ambas estão intimamente
ligadas e que uma não se pode compreender sem a outra:
compreender como pode a razão reencontrar dentro de si mesma a exterioridade
radical da violência e da razão - exterioridade essa que Hegel pensa ter
superado, que Kant descobre como um facto incontornável, para reflectir
sempre.
10
A violência é, na perspectiva do autor, o não razoável irredutível ao discurso, é a
recusa, definitiva e sem apelo, da autoridade da razão, e não uma arma ao serviço da razão
ou instrumento da sua manha.
Razão e Violência são os contrários fundamentais da existência humana e só se
separam, para o homem, depois da sua opção pela razão; por isso, ao filósofo não lhe
interessa o indivíduo que conhece as possibilidades do discurso absolutamente coerente,
mas o homem que, conhecendo-as, o recusa.
O homem pode assim escolher entre razão e não-razão, o que parece uma escolha
livre mas não-racional, ou seja, do ponto de vista do discurso absolutamente coerente, uma
escolha absurda. A liberdade não se confunde com o discurso da razão. Antes da razão, a
humanidade exige a precedência ontológica da liberdade.
Se, para Hegel, a liberdade se confunde com o discurso da razão, Weil enfoca a
possibilidade de existir a liberdade de dizer tanto não como sim ao discurso e à
razão. O discurso não é o destino da liberdade. A recusa da razão é a outra
possibilidade íntima da liberdade. A escolha da filosofia, por seu turno, não é
mais do que uma possibilidade face a outra. A esta outra, Weil chama violência
Violência e razão têm a mesma origem: a liberdade.
A razão e a violência, a filosofia e o seu outro têm a mesma origem: a liberdade.
A liberdade é, de facto, o verdadeiro princípio antropológico como princípio pré-racional.
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
O Homem como Razão - o Homem como Violência
Assim, não é somente a liberdade que define o homem, mas também a violência, porque é
original e irredutível. Este é o único estatuto que permitirá a coerência da escolha
primordial entre a filosofia (expressão suprema da razão) e a violência. Tal escolha
também não tem justificação, já que, para tal, era necessário um discurso anterior a outro
para a justificar.
A natureza do homem é designada por dois termos diferentes: razão e liberdade.
O homem, enquanto visa a universalidade, é racional; enquanto é capaz de
universalidade, é liberdade; sendo capaz de razão, mas não sendo razão, é
também capaz de optar contra a universalidade e a razão.
Neste sentido, pode dizer-se que o homem é liberdade indeterminada e sempre
determinando-se: a liberdade pode aceitar como pode recusar a violência; pode colocar-se
do lado da animalidade, da mesma forma que pode afastar-se dela. "A liberdade escolhe
entre a razão e a violência".
n
Assim, para Eric Weil, o problema fundamental da filosofia
já não é a oposição entre discursos - já que, se assim fosse, o discurso absolutamente
coerente teria absolutamente razão e o homem, qualquer que ele fosse, realizá-lo-ia sempre
totalmente ou em parte - mas a oposição entre a filosofia consciente de si mesma e a
atitude do homem que, embora conhecendo-a, a recusa.
Daqui se conclui que o homem não é essencialmente discurso e razão, mas
somente capaz de razão, o que significa uma possibilidade do homem, sendo que a outra é
a violência.
A razão é uma possibilidade do homem: possibilidade, isto designa o que o
homem pode, e o homem pode certamente ser racional, pelo menos querer ser
racional. Mas isto é apenas uma possibilidade, não é uma necessidade, e é a
possibilidade de um ser que possui pelo menos uma outra. Sabemos que esta
outra possibilidade é a violência.
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagóg.oa
O Homem como Razão - o Homem como Violência
Mas a violência não é apenas a outra possibilidade do homem, ela é a
possibilidade realizada em primeiro lugar.
É evidente que o discurso absolutamente coerente é importante do ponto de vista
do filósofo, que fala no interior de um discurso não violento, mas não para o homem
comum, para quem ele é apenas uma possibilidade entre outras, uma vez que para si, a
ideia de coerência absoluta não tem sentido. Assim, aquele que escolheu o discurso
racional contra a violência pode esbarrar na violência do homem que não aceita esse
discurso e que "procura o contentamento lutando pelo seu próprio discurso, que pretende
seja único, não só para ele, mas para toda a gente, e que tenta tornar realmente único por
meio da supressão real de todos aqueles que têm outros discursos."
A violência só se compreende pela reflexão, isto é, depois de o homem ter
realizado uma retrospectiva da sua própria violência. Ele só descobre e compreende a
violência que existe nele, na sociedade e na história, porque já tem a ideia de
não-violência.
O homem não se compreende como violência, porque ele não é apenas violência.
Tudo o que é violência para o homem é-o porque ele já tem a ideia da
não-violência e, por esta razão, pode ver a violência na natureza [...]Não existe
não-sentido senão do ponto de vista do sentido.
O resultado paradoxal é que a violência só tem sentido para quem a recusa pela
filosofia. Como reflexão da realidade, a filosofia nasce da negatividade do homem em
busca do contentamento. Fruto de uma escolha da razão, ela surge como a possibilidade de
superar a violência que caracteriza o homem enquanto animal. É por isso que a origem, o
segredo e o fim da filosofia consistem na eliminação progressiva da violência, dado que
esta só pode impedir o contentamento do ser finito e racional, porque ela é a recusa da
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaàrazãopedagógica
O Homem como Razão - o Homem como Violência
verdade e da coerência. A exigência filosófica, que se junta aqui à exigência moral, leva o
homem a optar pela razão contra a violência; "a violência sentida de forma violenta, afirma
categoricamente Eric Weil, deve ser afastada de uma vez por todas.'" 17
A não-violência é o ponto de partida e o objecto de chegada da filosofia, segundo
Eric Weil, para quem a filosofia se define integralmente pela vontade de sentido, pela
escolha em favor do discurso coerente. O homem que optou pela razão, porque quer que o
seu discurso informe e transforme a sua vida, submete as suas decisões ao "critério da
universalidade". É por isso que o homem só pode avançar para a universalidade se escolher
a não-violência: "ela é universal". Assim, o filósofo deve esforçar-se por educar os outros
para a razão e para a transformação do mundo, afim de pôr termo, na medida do possível
ao reino da violência. Escolhendo a universalidade e o discurso, o homem assume-se como
aquele que pode edificar a compreensão de tudo o que resulta desta escolha.
Para Labarrière, torna-se insustentável fazer o que pretende Eric Weil: juntar, ao
mesmo tempo, o facto do dever que o filósofo tem de reduzir a violência com o de a
compreender como o outro irredutível da razão; isto porque "compreender é sempre
descobrir ou instituir uma certa continuidade de sentido; como compreender, por
conseguinte, o outro irredutível da razão?" 18
O facto de Weil não admitir que haja nada fora do discurso é que o leva, na
Lógica da Filosofia, a dedicar treze capítulos expondo o que se refere ao acto de
compreender, tanto no seu funcionamento autêntico como nos
disfuncionamentos
possíveis, e nos três capítulos seguintes (em que, segundo Labarrière, seria de esperar a
execução do que foi anteriormente exposto) a preocupar-se antes em aceitar as atitudes que
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica à razão pedagógica
O Homem como Razão - o Homem como Violência
se prendem com um certa forma de anti-fílosofia, para a qual é necessário, antes de mais,
agir, contornando ou ignorando a busca de coerência racional.
Labarrière encontra, assim, na tentativa de reconhecer no discurso a atitude do
homem violento, a primeira ruptura irreparável na Lógica da Filosofia de Eric Weil:
Das duas uma: ou bem que se julga esta atitude efectivamente na categoria que
lhe corresponde, e ela está como que domesticada no discurso da razão, que a
integra na filosofia; a totalidade, neste caso, está salva, mas já não há resto; ou
bem que se trata realmente de uma viragem no movimento da obra, e a razão
filosófica encontra-se arredada para dar lugar a expressões, que já não
correspondem aos seus ideais de coerência; é então que a totalidade é posta em
19
causa, e o discurso [...] encontra-se, pela primeira vez, quebrado no seu seio.
Para Labarrière, Eric Weil nunca explicou claramente o que entendia por
violência nas suas diferentes formas, de modo que é necessário questionar se ela será da
ordem do irracional, a título de uma anti-razão clara e definitiva, ou se deverá ser
entendida no sentido de uma ainda-não-tornada-razão.
Se considerarmos o primeiro caso, teremos o universo humano como bicéfalo,
com o homem da filosofia e da razão de um lado e, face a ele, o homem da violência. De
qualquer forma, a fronteira entre eles não é totalmente estanque e, mesmo que fosse, nada
privaria a violência de intervir na filosofia. Inversamente, o filósofo não se pode contentar
com uma inteligibilidade limitada e, por isso mesmo, recusar-se a integrar a violência no
seu sistema de ideias, já que, se o fizesse, estaria a retirar automaticamente uma questão
essencial na sua confrontação à anti-filosofia.
No segundo caso, o irracional que encontramos no mundo não será a anti-razão
mas o ainda-não-tornado-razão, encontrando-se, por isso, o filósofo investido de uma
missão: "ele deve, com efeito, concentrar-se em despertar a razão na imediatidade da
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
O Homem como Razão - o Homem como Violência
contingência pré-racional; isto, além de mais, tanto para si como para o outro [...] pois todo
o ser está antes de mais preso na rede cega de uma contingência que não se revela."
Coloca-se, então, uma questão com dupla face: por um lado, passando do primeiro
ao segundo sentido da violência, desliza-se do termo de violência para o de contingência;
"intencionalmente, com certeza, ainda que esta passagem esteja longe de ser inocente: ela
marca muito exactamente, a meus olhos, o lugar de uma decisão necessária, para a qual
um Eric Weil talvez não esteja plenamente preparado." 21 Por outro lado, é necessário ver
"se a razão que se confronta com a contingência possui a mesma estrutura e o mesmo
•
funcionamento que a que luta com a violência."
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E Labarrière junta as duas faces da questão para voltar ao que lhe parece ser o
ponto fundamental que qualifica, na origem, toda a filosofia:
Imagina-se o mundo formado unicamente e para sempre por razão e anti-razão,
só havendo uma escolha possível entre a resignação e o combate sem esperança,
tendo como única perspectiva a de sucumbir condignamente à injustiça e ao
absurdo, ou acredita-se que faz parte da razão apoderar-se de toda a força
contrária para fazer dela a substância da sua própria afirmação, não com
totalitarismos, mas porque assim evoluem as coisas, e que a liberdade consiste
em dizê-lo e em fazê-lo, arriscando a palavra dentro da imprevisibilidade do
mundo?
Labarrière considera não ser possível o que pretende Eric Weil, quando este
afirma com vigor que não existe nada fora do discurso. A pretensão de exigir, em conjunto,
o dever de reduzir a violência e o de a compreender como o outro irredutível da razão
suscita, da sua parte, um comentário interessante sobre o nosso filósofo: "Lembro-me do
que alguém dizia, com humor: «Eric Weil é um homem impossível, ele quer tudo e o
resto»." 24
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razïo pedagógica
O Homem como Razão - o Homem como Violência
1 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 5
2 Idem, p. 8-9
3 Idem, p. 12
4 Paul Ricoeur - Lectures autour du politique, p. 132
5 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 18
6 Idem, p. 20.
7 Ibid
8 Eric Weil - Philosophie Politique, p. 31
9 Ibid
10 Gilbert Kirscher cit. por Labarrière in "Après Weil, Avec Weil - Une lecture de Gilbert Kirscher" Archives de Philosophie 53, p. 663
11 G. Kirscher - "Hegel aujourd'hui?" m Archives de Philosophie 47, p. 320
12 Eric Weil - Philosophie Morale, p. 43
13 Idem, p. 47
14 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 57
15 Ibid
16 Eric Weil - Philosophie Morale, p. 20
17 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 75
18 Labarrière - Le Discours de L Altérité - Une logique de I 'experience, p. 89
19 Idem, p. 90
20 Idem, p. 91
21 Idem, p. 91,92
22 Ibid
23 Ibid
24 Idem, p. 89
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica à razão pedagógica
1.3 - A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
Segundo M. Perine, embora não fazendo o papel de historiador, Eric Weil segue,
na sua obra, os grandes momentos do desenvolvimento histórico da filosofia, desde a sua
forma mais simples e mais originária, a da "lógica do diálogo", passando pela
transformação do diálogo em discurso, transformação que "fixa a data de nascimento da
ontologia"; depois, o desenvolvimento do discurso ontológico é acompanhado pela
constituição de discursos científicos, daí resultando o abandono do primeiro, até que surge
a "reflexão revolucionária" da filosofia transcendental, que prepara o termo da filosofia
com o discurso absolutamente coerente da "onto-lógica" hegeliana.
Compreender o discurso racional não é suficiente para compreender a filosofia, o
que nos prova que esta não se reduz à lógica. Um discurso pode ser lógico, em termos de
correcção, isto é, sem contradições, o que não significa a sua compreensão, no seu ser e
intenção. Não é apenas a não contradição do discurso em si mesmo que decide o seu valor.
Com certeza que ela é indispensável e, sem isso, nenhum discurso compreensível pode ser
pensado. Mas esta condição necessária não é suficiente. Assim, a lógica pode ajudar o
homem, mas somente com ela ele nada pode fazer.
A contradição está presente quando uma tese não é válida para todos os
intervenientes num diálogo. Quando alguém discorda de tudo, o consenso é impossível; da
mesma forma, "o diálogo não poderia conseguir-se com um parceiro que negasse o valor
da contradição como critério decisivo, que não admitisse a possibilidade de contradição ou
que defendesse que toda a afirmação do discurso é contraditória."
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Violência e Educação
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
A lógica, tornada ciência do diálogo, ajuda, assim, a detectar as contradições,
sendo o seu fim provar a consistência do discurso para o tornar coerente, permitindo, por
outro lado, dizer qual dos interlocutores não tem razão, isto se considerarmos que não tem
razão quem se contradiz, já que nada nos prova que quem se encontra convicto não esteja
igualmente errado mas, apenas temporariamente, em vantagem sobre quem não está
convicto. A lógica pole o discurso e o homem aceita esta situação porque, sendo assim, se
excluirmos o silêncio e a abstenção como forma de comunicar com os outros homens, o
diálogo aparece-nos como a única saída face à violência. O diálogo é, na verdade, o
domínio da não-violência.
A filosofia moral nasce quando o homem, recusando a escolha, sempre possível,
do absurdo e do silêncio, compreende ao que ele se obriga pela sua recusa - e ela
tornar-se-ia em si e para si mesma incompreensível se esquecesse essa origem. 2
No diálogo, quando não se tem a mesma opinião, é necessário chegar-se a acordo
ou combater-se - até que uma das duas teses desapareça com aquele que a defendeu. Se
não queremos esta segunda solução, teremos que optar pela primeira, isto é, pelo diálogo,
última instância segundo a qual se deve viver quando já se excluiu a violência
O diálogo weiliano é esta disciplina da Razão que se esforça pela coerência afim
de encontrar o contentamento do acordo: acordo que exige a violência do logos
contra a violência emocional.
A lógica formal é indispensável, mas apenas tem sentido na medida em que nos
conduz a conhecimentos objectivos. De qualquer forma, é impossível construir um
discurso que registe tudo e seja ao mesmo tempo totalmente livre de toda a contradição.
Podemos, se quisermos, considerar a lógica como ciência, mas, porque não
contém o essencial, uma ciência subordinada e derivada em relação à filosofia. Como
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
ciência do discurso, ela é útil e suficiente à solução dos problemas formais que são e
devem continuar a ser os seus.
A realidade, o fenómeno, aparece ao homem com contradições, já que não se
compreende o mundo sem admitir um elemento negativo, um não-ser no ser. Contudo, esta
contradição pode ser enunciada sem que o discurso que fala dela seja em si mesmo
contraditório. O homem é "o ser dotado de discurso racional, não porque possa entender-se
com os seus semelhantes e excluir a contradição no que ele diz, mas porque pode formar
um discurso não contraditório e fundá-lo sobre uma realidade não contraditória".
A sua racionalidade não lhe advém do facto de não se contradizer, mas do facto de
se encontrar protegido da contradição pela posse do Ser na verdade.
O homem, por ser racional, pode enganar-se e ser enganado. Ele só conhece a
linguagem que herdou, a linguagem das conveniências e dos interesses, suficiente para as
suas necessidades, mas apenas superficial.
Assim, ele necessita, antes do mais, de desembaraçar-se deste negativo que o
seduz, purificar o seu discurso, procurar ser racional e compreender a verdade. "O homem
é racional - o homem, não os homens; e é o Ser que se mostra na verdade, não as coisas
que parecem ser."
5
Cabe, por isso, à filosofia procurar aceder à verdade, já que ela não é
dada naturalmente ao homem.
O indivíduo, para ser homem, deve começar por se negar, já que nada lhe dá a
certeza racional. Até o acordo entre os indivíduos, se não for fundado no Ser, é apenas um
sinal de que cada um não está a seguir os seus interesses pessoais, havendo um acordo
acidental entre eles. A discussão constitui um primeiro passo para a certeza racional, mas
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Violência e Educação
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- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
não é senão isso, e afirmar que uma discussão sobre o Ser pode colocar todos os homens de
acordo não é suficiente para tornar o discurso coerente.
Assim, não chega postular a unidade do discurso e a unidade do Ser, mas é
necessário mostrar a possibilidade de um discurso que compreenda a unidade do Ser na
multiplicidade do que existe, e só se encontrará esta possibilidade realizando-a.
Pondo de parte a recusa do discurso ontológico, podem distinguir-se nele duas
principais direcções: a que não reconhece nada que seja superior a esse discurso e que vê a
realização da razão na via do que existe, na pura teoria, e uma outra, que exige à ciência o
abandono de todo o medo tradicional para poder ligar-se ao Ser. Uma, que quer viver para
a filosofia, a outra que quer a filosofia para viver. O recurso ao Ser não permite, no
entanto, fundar um discurso único sobre o qual todos os homens estejam de acordo - o
discurso do homem.
Relativamente aos fenómenos, é fácil encontrar o consenso, mas quando se
procura o fundamento comum, o Ser, o Uno, a discórdia reina de novo: não existe essencial
universal e concreto e, por isso, continuamos a viver renunciando a um discurso
absolutamente coerente, fundado sobre o Absoluto, limitando-nos a lutar contra a violência
pelos meios tradicionais, isto é, racionalizando as questões, mas sem resolver pela razão o
conflito com a violência de uma vez por todas.
É, assim, compreensível que não possamos reconhecer-nos no discurso do homem
verdadeiro [...] A sua tentativa de encontrar um discurso que seja válido para o
homem e para todos os homens não nos toca [...] Em suma, vivemos ocupados
pelos nossos desejos, pelas nossas necessidades, e queremos satisfazê-las pelo
trabalho pacífico, porque sabemos por experiência que a luta entre os
trabalhadores torna impossível o sucesso do trabalho e expõe-nos a todos e a
cada um individualmente à violência da natureza. 6
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- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
Possuímos uma linguagem e um discurso que nos permitem viver. Mantemos uma
lógica formal, porque aprendemos que a violência entre os homens constitui um perigo
para todos e que o acordo é o meio indispensável para a defesa dos nossos interesses
naturais.
Mantemos a exigência de uma ciência primeira, não porque
estejamos
convencidos que só a inteligência pode dar ao homem o contentamento, mas
porque temos aprendido que é necessário saber qual é a origem da natureza para
poder sobreviver à sua hostilidade, não porque queiramos repousar-nos do fluxo
dos fenómenos na apreensão do Ser, mas porque não encontramos outro meio de
nos orientarmos neste fluxo.
Mas a linguagem e o discurso só são úteis se forem uma arma contra a violência,
tentando, portanto, evitar a contradição. É por isso que é importante encontrar o discurso
verdadeiro sobre o Ser, isto é, eficaz, que não se contradiga nas suas consequências
práticas.
Dito de outra forma, parece que o homem não pode falar verdadeiramente de si
mesmo a não ser numa linguagem científica, com a ajuda de um discurso
ontológico fundado sobre o Ser, e, contudo, não pode falar de si mesmo, não pode
mesmo falar de todo (no sentido em que falar significa também a interrogação e
remete, por consequência, para a praxis) a não ser que uma tal ciência total do
Ser fosse possível: a interrogação só é possível ao não-ser livre, sendo livre, e só
pode ter resposta se tudo for determinado.8
Surge assim, novamente, o problema do discurso, da lógica, mas transformada na
sua substância, já que não se trata de encontrar o consenso entre os diferentes discursos
individuais nem de escolher um de entre os que sustém o Ser, mas do discurso em si
mesmo, que deve conciliar a liberdade do homem com as determinações da ciência. No
entanto, se a ontologia se contentar apenas com a não contradição do discurso, não
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Violência e Educação
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- Darazãofilosóficaà razão pedagógica
A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
contribuindo em nada para a história da lógica, é ela que acaba por empurrá-la para uma
reflexão revolucionária sobre a possibilidade um discurso apoiado no real e, contudo, ao
mesmo tempo, um discurso humano. Refere Weil:
Não há liberdade sem ciência, porque não existe acção racional sem
conhecimento do mundo; e não há ciência sem liberdade, porque a condição que
revela a ciência só existe movida pela vontade que a procura, precisamente
porque a ciência não a considera.
Toda a filosofia transcendental reconhece que o primeiro resultado que a ciência
obtém é que o homem é um ser condicionado; o seu primeiro fundamento é que ele é livre.
Como pode então o homem ser livre se é um ser condicionado? Mas se é livre, quer dizer,
sem união imediata ao Ser, como pode ter acesso a ele?
Ainda segundo Weil, Kant salvou a situação considerando que era um contrasenso querer conhecer a liberdade (infinita) cientificamente, já que ela apenas podia ser
pensada. Ela não está em contradição com a ciência, a qual, sendo apenas possível no
quadro da acção humana, é inacabada e essencialmente inacabável. A ciência deve
renunciar a apoderar-se do Ser, já que o homem compreende que na ciência não se trata do
Ser, mas do que existe. A ciência é possível como ciência dos fenómenos e o homem livre
possui uma ciência do necessário, mas não é objecto dela, na medida em que é livre.
Tudo lhe é dado, excepto o que não lhe pode ser dado: ele mesmo enquanto livre,
a quem tudo é dado. Livre, pode reconhecer-se condicionado; enquanto
condicionado, não concebe a liberdade. O que é, assim, dado à liberdade é
determinado por ela, mas a liberdade ela própria, não é do domínio do
determinado, é determinante.
10
Assim, a liberdade, embora não possa ser conhecida, pode ser concebida, o que
não acarreta contradições à ciência, porque ela existe independentemente de toda a certeza
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A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
científica. O homem que, por seu turno, diz não ao que lhe é dado, que compreende o que
existe a partir do que é possível, embora nada o possa impedir de afirmar o contrário, não
está, não pode estar logo seguro, não só da sua realidade, porque a realidade só se define
no domínio do dado, mas sobretudo de si mesmo, da sua acção, da sua liberdade.
A importância desta questão, assim como a resposta, pode ser definida de duas
formas:
Ou se coloca o acento sobre o reconhecimento da contradição que se torna agora
inerente a todo o discurso [...]ou se insiste no reconhecimento da violência como
um irredutível que não pode ser rejeitado como um factor «acidental», «não
essencial», «negligenciável», mas que se apresenta como constitutivo de tudo e de
todo o conteúdo da existência humana.
O discurso do homem é inacabável, o Ser, enquanto tal, é incompreensível, não
podendo o homem, por esse facto, deixar de se movimentar nas contradições. O homem
constata que todo o conteúdo da sua actividade, do seu discurso concreto lhe é imposto de
fora, por uma violência, por uma natureza na qual ele pode agir, mas que não pode criar
nem transformar radicalmente.
Reduzir a realidade à possibilidade, compreender quem é e o que é o homem por
aquilo que (quem) poderia ser e não é, descobrir a necessidade, não na natureza
tal como ela é em si mesma, mas tal e qual se mostra ao e pelo olhar que o
homem sobre ela dirige, salvaguardar a liberdade do homem fazendo disso um
inacessível a qualquer discurso preciso e fundando aí a certeza inabalável sobre
a consciência imediata da acção e sobre a responsabilidade da acção voluntária:
eis, por conseguinte, a solução do problema.
No entanto, as consequências desta solução são perturbantes, tanto para a lógica
formal como para a ontologia. Se é verdade que o discurso do homem se deve defender da
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
contradição, por outro lado, se o homem nunca se encontrar perante ela, todo o problema
terá desaparecido para ele, bem assim como toda a possibilidade de acção e, por isso,
também toda a possibilidade de tomar consciência de si mesmo e da natureza. Sem
contradição, a existência é ou animal ou divina.
O homem não é naturalmente bom, nem é naturalmente mau; mais exactamente,
aquele que possuísse uma ou outra destas qualidades como se possuem as
qualidades físicas, não seria um homem, mas uma besta ou um deus.
Sendo, em última instância, esta contradição, entre o homem actuante e a
natureza, factor determinante da sua actividade e da sua acção, não pode ser afastada como
um aspecto menor, já que daqui resulta que o homem não pode encontrar o contentamento
na perspectiva do Uno eterno, uma vez que este nunca lhe é dado, encerrando a ideia de
eterno uma contradição formal.
O que é eterno para o homem é a forma do que está sempre para suceder no
futuro, e esta forma, se lhe permite encontrar leis válidas para os acontecimentos, sempre,
não lhe pode dar, contudo, um conteúdo eterno, uma vez que ela só se revela unida ao seu
conteúdo e o homem só pode tomar consciência disso prolongando-se na experiência
(compondo-se de matéria e forma); o pensamento transcendental só tem sentido como
reflexão sobre a ciência real do homem agindo no que é dado.
Para Eric Weil, a acção consciente de si mesma resulta da luta contra a
contradição e contra a violência e o fim último do homem não é escapar do finito e do
dado, mas estar em acordo consigo mesmo, com a sua razão, excluindo das suas decisões a
violência (já que, no fundo, ele é um ser moral), embora não esteja seguro de a ter excluído
dos seus actos.
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Violência e Educação
- Da razSofilosóficaà razão pedagógica
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
Ele pode esperar o contentamento na eternidade, já que, na sua vida, apenas pode
sentir a satisfação, cada vez que resiste ao que há de violência em si. Deve agir de tal
forma que o princípio de cada um dos seus actos possa fundar um sistema de regras de
conduta coerente, quer dizer, não violento, e embora saibamos que nem sempre seja capaz
de o fazer, pelo menos deve tentá-lo. É claro que um fim que não é universal em nome do
seu princípio constitui um contra-senso para a liberdade humana, que só o é na medida em
que ela quer submeter o dado, libertar-se dele e instaurar no lugar do reino da necessidade
e das causas, o dos fins e o da razão consciente dela mesma.
O homem vive, assim, num mundo que não criou, negando a violência da natureza
que o rodeia e da natureza que forma o seu ser. Esta é a vida do homem e não propriamente
o que o homem é, já que ser se refere ao domínio da ciência precisa. O homem faz-se e não
é, porque ele é um dado da experiência. Tudo o que o rodeia é da ordem do que existe, da
ordem do facto. Nada depende de si, a não ser o querer e decidir-se racionalmente, sendo
os factos o que dá ao homem a possibilidade de se decidir concretamente. E opondo-se aos
factos que ele se faz não facto, liberdade, subjectividade e, por isso, ele não é nada sem
eles. O homem sabe que é livre porque existe condição para a liberdade, porque existe
facto para a subjectividade.
Ele é racional e deve perseguir os fins que estão em acordo com o fim único: a
pura e total compreensão racional de todos os actos e de todos os acontecimentos. Como
força racional, o homem deve opor-se à violência do dado.
A tarefa da ciência é precisamente impor uma unidade que não é dada, de tal
forma que as contradições da experiência não sejam nem refutadas, nem
recusadas, mas sejam conservadas da mesma forma, apesar da redução que
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Darazãofilosóficaàrazãopedagógica
A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
sofreram, graças a isso [...]A ciência procede à união do que não está unido por
si mesmo, mas que, de facto, se presta à acção unificadora.
O homem é um ser finito que, como tal, só pode conhecer os fenómenos, mas tem
uma liberdade infinita. Existe ciência para o homem porque não existe ciência do Ser nem
da liberdade. Os termos liberdade e Ser têm sentido para o discurso, na medida em que este
se orienta face a eles, mas o homem deve renunciar a conhecê-los para se lhes poder
dirigir.
Sem dúvida que o homem pode não ir além da reflexão sobre a possibilidade de
um discurso concreto que tem por objecto o que existe, contentando-se em compreender
dentro de certos limites. Ele sabe que o que encontrou assim, sendo verdadeiro, pode não
ser, no entanto, toda a verdade. Não se pode forçar o homem a ultrapassar esta posição.
Mas será que ela não pode ser ultrapassada?
De facto, o homem que não pretende ir além do discurso finito limita-o em
relação ao Ser, acabando por tê-lo como referência, por falar nele de qualquer forma.
Pode-se admitir que a ciência do homem que vive no mundo não tem acesso ao absoluto.
Mas, levanta-se a questão: ela é a única ciência e ele o único sujeito?
O conhecimento não pode ser deduzido e só se pode compreender como é que a
ciência é possível pela via da regressão; mas a razão, que por este processo
compreende a realidade, não está presente e real? A liberdade, que se reconhece
pela sua oposição a todo o dado, não se estabelece no seio dele, tanto pelo acto
do conhecimento como pela sua oposição a ele e no seu meio? Não se dá o Ser ao
conhecimento do homem, não se presta à sua actividade, nem que seja
permitindo-lhe interrogar e encontrar sempre, optar e decidir-se?
Se não olharmos a razão do ponto de vista do indivíduo, mas o indivíduo do ponto
de vista da razão, liberdade, razão e ser coincidirão. O que é facto para o indivíduo, só o é
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Darazãofilosóficaà razão pedagógica
A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
porque ele próprio se compreende como tal. "Mas todos os factos, aí incluído o facto
chamado homem, são factos da Razão, e são fundados sobre o Ser, que não é senão a
Razão determinando-se na sua Liberdade".
A reflexão transcendental só pode ser feita porque, inconscientemente, ela admitiu
a certeza de um sentido último, de uma liberdade realizada, de um Ser vivendo nele
mesmo.
A razão pode conhecer tudo, desde que o homem renuncie a limitar a sua ideia de
conhecimento ao conhecimento científico do indivíduo actuante na natureza. E possível e,
por conseguinte, necessário que o discurso do homem se torne absolutamente coerente, isto
é, da razão que é Ser e liberdade. É absurdo falar de um outro da razão, seja como força
superior ou somente exterior.
É evidente que, para o indivíduo, o discurso que revela o Ser na liberdade é um
outro, um exterior, um constrangimento, e só surge porque o indivíduo não é discurso
absolutamente coerente, mas finito e particular, mistura de discurso e de violência.
O homem pode escolher ou não a possibilidade de coerência e não há argumento
que valha contra quem não a escolha, já que todo o argumento em favor de um discurso
pressupõe que se tenha optado por ele. O discurso do indivíduo não é naturalmente
coerente, mas o homem tem interesse em começar a discussão consigo mesmo para
eliminar as contradições do seu próprio discurso, já que ele só se pode assegurar da
coerência do mesmo provando, na elaboração desse discurso, que toda a realidade, mesmo
a irracional ou a-racional, está compreendida.
O homem do discurso absolutamente coerente, para se sentir seguro do que
pretende, tem de se aperceber do discurso que se quer finito, da linguagem que não quer
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
ser discurso, mesmo do silêncio. Ele encontra-se, então, como ser que quer livremente a
sua liberdade, agindo sobre o dado, sobre si e sobre as suas condições, encontrando desta
forma o contentamento.
É então que, num mundo completamente humanizado, compreendendo a sua
situação como o que a liberdade quis desde o princípio da sua história, ele é
razão enquanto compreende, racional enquanto vive, livre e satisfeito enquanto
sente.
I7
A existência empírica já não é exterior à razão, mas compreende-se como o
resultado da sua própria acção sobre o dado. A partir do momento em que a razão se
realiza e se reconhece realizada, o homem sabe porque está insatisfeito e como encontrou o
contentamento, sabe que não há mais nada a negar: sujeito e objecto coincidem nele, que é
razão e liberdade e que se reconhece ser razão livre e liberdade com razão, graças à sua
acção negadora que acabou por destruir tudo o que lhe era dado positivamente.
O homem reconciliado com o que existe pode falar do Ser, não do Ser imóvel e
único da antiga ontologia, mas do Ser que vive como a soma das contradições, mais
exactamente, como reconciliação das contradições através delas.
A contradição da primeira lógica não desapareceu, já que ela é o motor do
movimento no qual a liberdade se realiza, a razão se encontra, o Ser se desenvolve. E ela
que conduz à conciliação, não no discurso, como pretendia a antiga ontologia, nem na
consciência finita, como queria a reflexão transcendental; mas ela faz-se conciliação e
compreende-se enquanto se faz na realidade do homem.
A luta decide-se no terreno da contradição. No fim da luta, a humanidade - e não
o homem como ser individual - pode declarar-se definitivamente e verdadeiramente
contente. O homem, enquanto homem universal, enquanto portador do discurso
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
absolutamente coerente, eleva-se acima do dado, da sua existência, e não é o Uno, o divino
que vislumbra, mas a violência compreendida como tal e, por isso, tornada razão. O
homem, enquanto indivíduo, não escapa à violência, embora possa aceder à sabedoria,
compreendendo ao mesmo tempo a violência e a sua própria negatividade face a ela.
O Ser é também acessível, já que a noção de acesso supõe ainda uma separação: o
Ser compreende-se como Ser no homem universalizado. O que existe, tomado
separadamente na sua existência dada, nem é Ser nem Pensamento.
Mas o Ser, como unidade das contradições, é uno e razão e sabe-se Pensamento,
da mesma forma que o Pensamento, tendo saído do finito, tomando posse do
finito na sua totalidade, sabe-se Ser: não mais existe somente lógica do discurso
não contraditório, nem ontologia, nem a questão da possibilidade de um discurso
suporte do real; existe saber absoluto, liberdade sabendo-se logos e Ser,
onto-lógica
Conceito fundamental na filosofia de Eric Weil é o da reflexão total do homem
racional e finito, que escolheu pensar a sua vontade de coerência no percurso da Lógica da
Filosofia, onde a liberdade se conhece a si mesma como Pensamento e Ser.
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Violência e Educação
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- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
1 Eric Weil - Logique de la Philosophie - Libraire Philosophique J. Vrin, Paris, 1974, p. 23
2 Eric Weil - Philosophie Morale, p. 33
3 A. Wiel in "Comptes Rendus" -Archives de Philosophie 53, p. 685
4 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 31
5 Idem, p. 33
6 Idem, p. 39
7 Idem, p. 40
8 Idem, p. 43
9 Idem, p. 44
10 Idem, p. 45
11 Ibid
12 Idem, p. 46
13 Eric Weil - Philosophie Morale, p. 19
14 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 49
15 Idem, p. 50
16 Ibid
17 Idem, p. 52
18 Idem, p. 53
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica à razão pedagógica
1.4 - A Lógica da Filosofia, a Violência, a História e o seu Fim
Do facto de o homem se compreender no seu discurso "a partir da violência e em
busca da coerência" l nasce a ideia de uma lógica filosófica. A sua tarefa consiste, segundo
Weil, em mostrar como se desenvolve o discurso, quer dizer, "como o discurso se pode
formar na história a partir de uma atitude primeira da qual nada obriga o homem a sair.'
Dito de outra forma, trata-se de compreender como é que a ideia de discurso
coerente, que se compreende a si mesmo, permite ao filósofo ordenar a sucessão de
discursos particulares com vista à compreensão de uma filosofia primeira, fundamento de
toda a filosofia ulterior, qualquer que seja o nome que ela traga: ontologia, moral,
psicologia, política, filosofia da natureza, da existência ou da ciência. É na lógica da
filosofia que todas elas se compreendem nos seus sentidos.
O discurso do mundo no qual o homem nasce é historicamente e hierarquicamente
anterior a ele e, por isso mesmo, o homem é determinado por esse discurso antes de ser ele
próprio. Só no momento em que o mundo deste discurso não contente o homem é que é
compreendido como um mundo violento.
É a violência que, época após época, está na origem de todo o discurso que se
quer coerente, que "compreendendo-se como liberdade no seu discurso e, ao mesmo tempo
contra ele, produz a filosofia."
A lógica da filosofia entende que todo o discurso nascido na história visa o
desaparecimento da violência, realizando-se assim como discurso eterno, que visa a
presença, o contentamento na e pela razão.
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Darazãofilosóficaà razão pedagógica
A Lógica da Filosofia, a Violência, a História e o seu Fim
Mas é um facto, e nada refuta os factos, que os homens não possuem, regra geral,
a coerência do discurso nem pretendem ser filósofos. No entanto, todo o discurso humano
pode ser compreendido pela filosofia e mesmo a incoerência que o filósofo nele possa
encontrar apenas cria uma dificuldade de compreensão que o filósofo resolve, já que é esta
a sua tarefa.
É evidente que tal tarefa, tão importante para o filósofo, não o é para o homem
comum, que pode escapar à incoerência do seu discurso pela linguagem incoerente ou pelo
silêncio da violência (para com os outros ou para consigo mesmo).
Cabe, pois, à filosofia, compreender este homem na sua
não-filosofia,
compreender a linguagem que não quer a coerência, mas que somente quer exprimir o que
ele sente. Isto quer dizer que "na acção histórica o homem não se compreende como
filósofo, mas que a filosofia se compreende como histórica, como nascida da violência, da
circunstância, que ela é para si mesma a libertação do homem das condições" 4 , condições
essas que ele, mesmo não sendo filósofo, sente como cadeias ou obstáculos.
Se o homem opta pelo discurso coerente, o universal passa a preceder o
individual, não somente no sentido transcendental mas também no sentido histórico. O
universal é, para ele, o princípio e o fim do seu discurso. O homem que optou pela razão,
porque quer que a coerência do seu discurso informe e transforme a sua vida, submete as
suas decisões ao "critério da universalidade":
Cada um deve comportar-se de tal forma que a sua forma de agir, a maneira
como decide, possa ser pensada como forma de agir de cada um e de todos. Por
outras palavras, que ela seja tal que possa ser universalizada. 5
A filosofia une-se, então, à história da filosofia. "A universalidade é assim, ao
mesmo tempo, fundamento da filosofia e regra da moral. É inadmissível toda a acção que
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razSofilosóficaà razão pedagógica
A Lógica da Filosofia, a Violência, a História e o seu Fim
não é dirigida para a universalidade, a liberdade, a razão, para esta liberdade que é a razão
universal." 6
Para Weil, a filosofia da história não é somente possível, mas constitui uma
exigência da filosofia e, como tal, ela existe, ainda que muitas vezes de forma implícita,
porque é ela que, fundada sobre a universalidade, transmite o carácter verdadeiro à
filosofia.
Mas, além da identidade entre a filosofia e a história da filosofia, vai ainda
suceder a identidade entre a filosofia e a história do homem concreto nas suas realizações
no mundo. É o homem concreto que faz a filosofia e esta é o discurso de um ser cuja outra
possibilidade, realizada em primeiro lugar, é a violência, onde o discurso se forma;
o homem forma o seu discurso na violência, no finito, contra o finito, no tempo
contra o tempo [...] é unicamente na sua história que o homem se revela a si
mesmo, é somente no seu discurso que ele toma consciência da sua revelação.
A filosofia, em Eric Weil, deixa de existir do ponto de vista de Deus. A filosofia
primeira já não é uma teoria do Ser, mas o desenvolvimento do logos, do discurso por ele
mesmo e para si mesmo, na realidade da existência humana, que se compreende nas suas
realizações, na medida em que ele se quer compreender. Ela não é ontologia, é lógica, não
do ser, mas do discurso humano concreto, dos discursos que formam o discurso na sua
unidade.
O homem-filósofo não é um ser solitário; pertence a uma comunidade histórica e
é, assim, levado a confrontar o seu próprio discurso com o dos outros. Portanto, é no
mundo que o homem-filósofo deve viver a sabedoria a que aspira. "Não se trata de morrer
para o mundo, de se libertar dele, de se retirar dele, não se trata de ser sábio fora do
mundo, ou ao lado dele, mas no mundo".
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Violência e Educação
- Darazãofilosóficaàrazãopedagógica
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
A Lógica da Filosofia, a Violência, a História e o seu Fim
Aquilo que a filosofia indica é a via da sabedoria prática, essa faculdade que o
homem tem de discernir, graças à experiência e à reflexão, o que o leva ao resultado
pretendido. Por isso, ela é essencialmente empreendimento de um ser finito, necessitado,
inquieto, forçado a agir e, consequentemente, interessado, o qual, porque fala e é racional
(ser finito-infinito), esforça-se livremente por compreender a natureza e o significado do
seu interesse; quer viver de maneira razoável, com "sentido". A compreensão do homem
que é "liberdade face à razão ou à violência", significa que a filosofia é história e que não
se compreende senão na sua história.
"A filosofia é a busca de um discurso coerente sobre a totalidade real", portanto,
sobre todo o real, incluindo a violência e a ilusão, o erro e o que é perecível - não sobre um
"necessário", nem sobre uma realidade primeira, de onde pudesse derivar tudo o resto
(uma realidade primeira é, no sentido de Kant, "pensável" mas não conhecível).
Há filosofia, há história da filosofia porque o homem quer pensar o mundo e a si
mesmo neste mundo em função do sentido que este possui e, por conseguinte, quer realizar
o sentido do mundo pelo discurso, pela razão, pela acção racional. O homem que optou
pela razão deve, pois, agir a fim de incarnar a razão no mundo. "Também a filosofia do
homem-filósofo só chega ao fim com a acção [...] A filosofia realiza-se e termina na acção
[...] Está proibida qualquer fuga." 9
A filosofia e a história assumem, assim, dois aspectos da vida do homem que se
distinguem e completam pelo discurso.
Para a filosofia, a história tem o seu sentido na coerência, mas o seu conteúdo na
incoerência, na contradição, na violência. E, se uma lógica da filosofia for possível, só o é
no fim da história.
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razïo pedagógica
A Lógica da Filosofia, a Violência, a História e o seu Fim
Dito de outra forma, ela será mesmo o fim da história, da mesma forma que todo
o sistema é o fim da história - da sua história, que é aqui a história da filosofia
ou (porque a filosofia não tem história, só o homem a tem) o fim da procura do
contentamento pelo discurso.
A filosofia, diz Weil, é eterna, porque procura sempre a mesma coisa - a
compreensão, e é histórica, porque não importa o que ela encontra, mas por que via o
encontra, de que ponto parte, enfim, qual é, historicamente, o homem que empreende a
procura da coerência. Este homem é o homem concreto que aspira "à satisfação e à
presença e à coerência do seu discurso."
O indivíduo pode sempre optar pela violência e recusar o discurso qualquer que
ele seja (o da lógica da filosofia ou outro qualquer) e, por consequência, é perfeitamente
plausível que esse discurso seja destruído ou se torne insensato para uma humanidade
vivendo na violência, lutando com a violência.
Mas a própria lógica terá compreendido e mostrado que o discurso é, para o
homem, mesmo que ele tenha escolhido ser falante,
apenas uma das
possibilidades da linguagem, e que lhe resta a expressão: poderá ser que o
homem utilize essa expressão, não mais para protestar contra o discurso, mas, de
consciência tranquila e livremente, estando seguro de que o discurso está
11
terminado f.Je
ele realizado num mundo de não violência e de universalidade.
No entanto, segundo Weil, a lógica da filosofia não garante nem pode garantir que
uma tal via seja realmente possível. O que ela pode afirmar, se conseguir o seu projecto, é
que a verdade existe, que o discurso é possível de completar.
O homem que tenha passado pela lógica da filosofia não será mais filósofo, não
porque sinta que a filosofia não o pode contentar, mas porque sabe que a filosofia lhe deu
todo o contentamento que podia exigir ao discurso. Ele terá compreendido a filosofia a
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Violência e Educação
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
A Lógica da Filosofia, a Violência, a História e o seu Fim
partir da verdade e da violência, saberá que a verdade é o fim e o princípio da filosofia e
para ele já não se trata mais de compreender como pode chegar ao universal, como pode
atingir a verdade e a presença: sabe que já se encontra sempre aí, na medida em que ele as
procura, e que, na medida em que quer ser com razão, ele é.
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Violência e Educação
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A Lógica da Filosofia, a Violência, a História e o seu Fim
1 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 69
2 Idem, p. 74
3 Idem, p. 75
4 Idem, p. 78
5 Eric Weil - Philosophie et Réalité, p. 269
6 Eric Weil - Philosophie Morale, p. 56
7 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 69
8 Idem, p. 438
9 Idem, p. 417-418
10 Idem, p. 84
11 Ibid
12 Idem, p. 85
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica à razão pedagógica
1.5 - Atitudes e Categorias
A procura de sentido, ou seja, dos fundamentos do discurso do homem actuante
cabe, segundo Eric Weil, essencialmente ao filósofo, porque, tendo escolhido a
compreensão, assumiu a inquietação de tudo compreender, incluindo a sua própria
compreensão.
Para esta análise compreensiva da compreensão, Weil introduz dois conceitos
fundamentais: atitude e categoria.
A atitude é a própria vida do homem - geralmente não é pensada - embora o
possa ser pelo homem que quer compreender o que vive, e compreender a sua atitude no
discurso: "o homem mantém-se no mundo (entendido como aquele em que ele vive) de
uma certa maneira, ele vive numa certa atitude".
Nesta perspectiva, os discursos dos homens só podem ser compreendidos em
relação a certas atitudes, que são consideradas puras ou irredutíveis e definidas como puras
em relação ao discurso filosófico. As atitudes puras só são diferentes das restantes porque
elaboram, num discurso para si mesmas, o que no seu mundo é, para elas, essencial.
"Numa palavra, a atitude pura compreende o essencial do seu mundo como conceito;
conceito este que designaremos sob o nome de categoria."
Eric Weil entende por categoria filosófica o centro organizador de um discurso
que exprime ele mesmo uma atitude, uma maneira de se manter no mundo em
função daquilo que lhe parece essencial. As categorias filosóficas só têm
verdadeiramente sentido no seio da ordem sistemática que constitui a lógica da
filosofia.
3
65
Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
Atitudes e Categorias
A categoria deve compreender-se, então, como o conceito sob o qual ganha
sentido e se organiza tudo o que fazem os homens no seio de uma atitude determinada. A
categoria é, por conseguinte, categoria de uma atitude pura e irredutível, cuja pureza e
irredutibilidade vêm do discurso que ela produz.
Eric Weil não persegue uma fenomelogia de tipo husserliana ou heideggeriana,
cuja palavra de ordem será às coisas em si, mas uma lógica filosófica das
categorias do discurso, quer dizer, das diferentes maneiras fundamentais
possíveis de ordenar a realidade. Eric Weil reconhece uma diversidade de
discursos possíveis da subjectividade [...] Aos olhos de Eric Weil, estes discursos
fundamentais são irredutíveis uns aos outros.
A categoria weiliana também deve ser entendida como categoria filosófica,
categoria do discurso, e não como categoria metafísica. Weil insiste no facto de ser
essencial distinguir os dois sentidos do termo para compreender a Lógica da Filosofia, que
"só se interessa pelas categorias metafísicas na medida em que elas revelam as categorias
filosóficas, estes centros de discurso a partir dos quais uma atitude se exprime de forma
coerente (ou, no caso de atitudes recusando todo o discurso, pode ser apreendida pelo
discurso da filosofia)."
As categorias determinam as atitudes puras e estas, por sua vez, produzem as
categorias. "A atitude pura é aquela que desenvolve uma categoria pura, e é irredutível se
nenhum meio do discurso permite ao adversário deste discurso refutá-lo". G. Kirscher
sublinha a dualidade constitutiva de cada unidade categorial, na Lógica da Filosofia de Eric
Weil: "cada atitude ultrapassa a categoria que a precede declarando que esta última
-7
exprimiu bem a verdade, mas não o sentido da verdade".
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Viniência e Educação
Violência e £,aucaçao
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
Atitudes e Categorias
- Da razão filosófica a razão pedagógica
Atitudes para o homem na vida, categorias para o filósofo, em conjunto elas
permitem compreender o homem e permitem ao homem compreender-se. A partir delas,
todas as atitudes se tornam compreensíveis, mesmo as que não consideramos puras. Assim
se forma a ideia de uma lógica da filosofia como "sucessão de discursos coerentes do
homem."
G. Kirscher insiste na regra fundamental de leitura do texto de Weil: a
necessidade de distinguir o discurso do lógico dos discursos de que ele trata. A Lógica da
Filosofia repousa, para este autor, sobre a distinção fundamental entre a doutrina e a
explicação.
Doutrina, enunciados, discursos, categorias: termos que se situam do lado da
objectividade dos saberes, susceptíveis de serem desenvolvidos, articulados,
ensinados, transmitidos. Explicação, enunciação, palavra, atitudes: eis-nos do
lado do acto que é a causa do sentido. A filosofia de Eric Weil desenvolve-se no
espaço, indissoluvelmente lógico e histórico, que une e separa estas duas
dimensões da experiência.
A Lógica da Filosofia apresenta-se como um encadeamento que faz nascer, umas
das outras, atitudes e categorias. A sua sucessão, que não é histórica, salvaguarda a
intemporalidade do gesto lógico.
A ordem weiliana das categorias constitui um percurso descontínuo e orientado:
a passagem de uma categoria à posterior constitui uma solução de continuidade
[...] Enfim, em vez da categoria logicamente anterior ser condição suficiente da
posterior, ela é somente condição necessária de possibilidade desta. Para passar
de uma à outra, é certamente necessária uma que é condição da outra, mas é
necessário também um acto de liberdade que diga «não» à sua condição e que
entre, por este facto, numa nova atitude.
67
• ,- ■ e Educado
Violência e h-ducaçao
****Problemática»^daVWJjdj»«*-
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Começando pela ca.egona da «
vo,,ar-se
*
esta representa o ponto de partida para o
para ela, numa atilude de procura, iniciando-se aqui o percurso da iógica da
fi,osor,a, q ue
„So e mais do ,ue a busca da verdade. Apesar da aparente p — d e a
Kircher:
A nrnnelra supSe o aue a se^a
L cornea.
Es,a na Crença, na ****
I L6gica da Filosofia *
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problema da linguagem^
A
segunda categoria é a do , * — * cujo nome indica ao mesmo tempo o,e
«o sen.ido esta separado da verdade e c,ue este afastamento nSo * visto na sua função
posi.iva peio Homem da atitude: a primeira linguagem e somente uma iinguagem de
retoma
inteiramente vo.tada para o silencio da , * * * . ao «ua, e,a nao pára de asp.rar".
A iinguagem só vai aparecer na categoria seguinte, o vera^iro
e o falso, ,ue
constitui o iugar de a r t i c u l o do sentido. Podemos diZer ,ue a filosofia principia nesta
categoria, embora n,o passe do inicio, ja ,ue, apesar de a ca.egona distinguir o verdade.ro
e o faiso ,gnora ainda a oposição entre linguagem coerente e incoerente.
Essa
esclare cido
oposição constituirá o tema da categoria da discussão, depots de a certeza ter
o que e con.eudo essência, e o que e inessenciai. "Numa paiavra: a cer,e,a e a
Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Atitudes e Categorias
categoria na qual aparece o mundo (- cosmosj - o mundo, não somente certo mundo - a
categoria da «mundanidade»".12 As distinções que a certeza faz vão dar um contorno
determinado à verdade, deixando esta de ser "fundo indeterminado, tornando-se a própria
presença do mundo, a intemporalidade de um puro presente, que revela um discurso
esquecido dele mesmo a ponto de se confundir com o que ele enuncia."
G. Kircher considera estas categorias iniciais primitivas, pela ausência de reflexão
nelas existente. Primitividade esta que "subsiste na afirmação imediata da verdade, sem
reflexão sobre a diferença entre o dizer e o dito".
De seguida, surgem as "categorias antigas", que correspondem ao pensamento
grego. As categorias da discussão e do objecto elaboram uma resposta filosófica ao
questionamento da certeza, provocado pelo encontro das certezas com conteúdos
diferentes. Na categoria da discussão aparece a ideia de uma doutrina cuja verdade deve
justifícar-se num discurso coerente.
A discussão (Sócrates) e o objecto (Platão, Aristóteles) elaboram discursos
destinados a reencontrar a certeza perdida, ou antes, afundar uma nova certeza;
quer dizer que estas duas categorias visam, antes de mais, eliminar a
subjectividade nociva, fundando a certeza, primeiro que tudo sobre o critério
formal da coerência lógica e, de seguida, em vista do objecto absoluto,
transcendente (o Bem, o Uno, o Acto puro).
Estas categorias não conhecem ainda a reflexão, ou, mais exactamente,
conhecem-na sob uma forma simples, ainda não desdobrada. "Para a discussão, assim
como para o objecto e o eu, a razão permanece o todo no qual se deve suprimir toda a
alteridade." 16
69
Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
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- Da razão filosófica a razão pedagógica
Atitudes e Categorias
"
Segue-se a categoria do eu ("moi"). O grande representante da categoria do eu é
Epicuro. O eu é caracterizado pela tensão que o constitui, pela luta dele contra si mesmo. O
eu quer, com esforço sempre renovado, dominar o sentimento nele. Ele é a luta entre o
sentimento da infelicidade que se quer razão e a própria infelicidade:
Daí a acção do homem sobre ele próprio: porque é sentimento, toma partido pela
razão contra si mesmo [...] querendo escapar a si mesmo, comporando-se com o
que queria ser, compreende-se tal e qual é. "
A nova categoria pensa a satisfação do eu, o que leva a conceber um eu absoluto,
Deus. O que caracteriza este eu absoluto é que ele é um eu "absolutamente satisfeito"; é,
ao mesmo tempo, "razão, sentimento e desejo". É na categoria de Deus que a reflexão se
torna visível do interior da própria categoria:
ela é a estrutura de uma relação na qual o homem e o seu Deus, separados pelo
laço que os une, se reflectem um no outro, num jogo da identidade e da diferença,
cuja dualidade penetra tanto apropria relação como cada um dos seus termos.
Para o lógico, esta categoria tem, assim, por função fazer aparecer a dualidade
constitutiva do homem, a sua liberdade, no que ela tem de irredutível à razão e à verdade.
A categoria da condição corresponde ao mundo do cientismo e do objectivismo.
A condição é, para Weil, a atitude característica da modernidade. A reflexão torna-se aqui
total, mas sob um modo objectivo.
Cada vez mais o homem se compreende como factor natural e cada vez mais lhe
interessa ser somente isso, despojado e libertado de todo o factor «pessoal» [...]
Porque o tipo de lei à qual quer chegar não conhece a pessoa, que é definida pelo
sentimento particular.
A nova categoria da consciência relaciona-se com a filosofia histórica, mais
concretamente, com a filosofia transcendental kantiana, tal como Fichte a reinterpretou. Na
70
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Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica àrazãopedagógica
Atitudes e Categorias
consciência, a reflexão é a dualidade que reporta o sujeito sobre ele próprio: a do eu
condicionado e do Eu incondicionado.
A ideia da revolução coperniciana e o método da análise regressiva que conduz o
real à sua possibilidade transcendental traduzem bem a passagem da condição à
consciência [...] A consciência coloca-se a si própria como princípio estruturante
9.0
do saber da realidade e do conhecimento de si mesmo.
De seguida, surge a categoria da inteligência, que tenta reduzir essa dualidade à
estrutura objectiva dos mundos concretos que ela interpreta. É, de alguma forma, uma
consciência invertida, que se esquece de si mesma. Compreende tudo menos a ela própria.
"Ela não quer ser consciência, ela é-o, e, o que mais lhe importa, é consciência dos
outros".21
A personalidade é a categoria que surge como expressão imediata e autêntica do
sentimento criador; "a personalidade quer apoderar-se do mundo comum na sua totalidade
99
(não de qualquer coisa no mundo) para daí fazer o seu, para criar o seu mundo".
A
personalidade compreende-se nesta categoria em termos de crise e de conflito:
a personalidade está sempre em crise; sempre, quer dizer em cada instante, ela
cria-se, constitui-se criando a sua imagem, que é o seu ser no futuro. Está sempre
em conflito com os outros, com o passado, com o inautêntico.
Segundo Weil, a categoria da personalidade funda, através das suas retomas com
a ajuda da consciência, toda a filosofia idealista na época moderna. "Toda a filosofia se
constitui retomando a personalidade sob outras categorias, na medida (a restrição é
importante) em que esta filosofia é idealista."
24
Por idealista, Weil entende aqui uma
filosofia "que procura o contentamento do homem na compreensão do seu ser por ele
próprio e na sua acção imediata sobre si mesmo."
71
Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Darazãofilosóficaà razão pedagógica
Atitudes e Categorias
A categoria do absoluto é a primeira das categorias da filosofia, ao mesmo tempo
que é a última das categorias da reflexão. Paul Ricoeur reconhece, na Lógica da Filosofia
e especialmente nesta categoria, o carácter deliberadamente antropológico da obra de Eric
Weil e cita o autor para reforçar a sua posição:
O homem que não se contenta em exprimir-se no conflito como imagem, mas
volta-se para o conflito para o compreender na sua universalidade concreta,
desemboca no discurso único e absolutamente coerente no qual ele desaparece
enquanto personalidade: é o pensamento que existe pensando-se ele próprio, o
Absoluto.
Para Ricoeur, isto indica que o homem já é o centro, não com certeza o individual,
mas a humanidade do homem. "Não subsiste nenhuma equivalência do Absoluto com um
Espirito absoluto, que terá atravessado as etapas do Espírito subjectivo e do Espírito
objectivo".27 Ricoeur chama a atenção para o facto de a palavra absoluto ter sido já
pronunciada na categoria da personalidade. O Absoluto de Weil é absoluto "em termos
inteiramente humanos, na sua relação com a crise e com o conflito que marcam a categoria
da Personalidade."
28
O absoluto de Weil possui, segundo este autor, um conteúdo não hegeliano, tendo
no entanto uma função hegeliana.
Conteúdo não hegeliano: a sequência «Arte-Religião-Filosofia» não desempenha
aqui nenhum papel; mas a transferência do conflito pessoal para um meio não
pessoal e a sua saída para um resultado que não é pessoal não são aí menos
humanas. Função hegeliana, porquanto o discurso no qual o Absoluto se
compreende possui um carácter total que parece excluir que existe um depois, um
além do Absoluto. É nesta função de totalização que o discurso weiliano retoma,
sem repetir, o discurso hegeliano.
72
Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica árazãopedagógica
Atitudes e Categorias
Para Ricoeur, a maior dificuldade na compreensão das últimas categorias reside
na aparente identificação do discurso coerente com o discurso totalizante atingido com a
categoria do absoluto. Ricoeur não compreende como será possível manter o projecto de
discurso coerente para lá desta função totalizante, dito de outra forma, hegeliana, do
absoluto weiliano, entendido como a unidade do homem e do Ser no discurso, explicitado
como "unidade dos conflitos na sua totalidade".
Seguem-se as categoria da obra e do finito. Eric Weil descreve as atitudes que
produzem estas categorias como resultado do escândalo da razão:
O homem não pode pensar mais longe que o Absoluto, já que pensar é procurar a
coerência, e que a coerência é tudo, em si e por si. Mas o homem pode ter
pensado, ele pode ter aceite tudo o que ensina a ciência, e pode não pensar, não
querer pensar, recusar-se ao Pensamento.
A atitude da obra caracteriza-se por traços absolutamente contraditórios e
irreconciliáveis do ponto de vista do pensamento. A nova atitude reconhece a razão e o
discurso, mas não se deixa guiar por eles; conhece a filosofia, mas troça dela; conhece a
discussão, mas não discute. É precisamente a recusa consciente do discurso absolutamente
coerente que "fornece a categoria desta atitude [...] mas ela produz a sua categoria porque
proclama a sua recusa".31 A diferença fundamental entre as categorias do finito e da obra
"consiste no facto de aquela afirmar o papel essencial do discurso enquanto esta o rejeita
[...] a obra mostra, a finitude demostra que o homem não é essencialmente saber [...] e que
a satisfação pelo discurso só é uma possibilidade que o homem pode recusar".
Segundo Paul Ricoeur, estas categorias apresentam-se em ruptura com o absoluto
e em revolta contra a coerência:
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Violência e Educação
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- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
Atitudes e Categorias
contra a coerência hegeliana certamente, mas também contra toda a coerência
[...] Digamos, para ser breves e simplificar por excesso, que a Obra marca mais a
ruptura com o Absoluto, enquanto que as filosofias da finitude apelam já para
33
uma outra saída, que será precisamente a Acção.
Ricoeur interroga-se se Eric Weil, ao pretender elevar à dignidade de categorias a
obra e o finito, não tornou mais difícil o seu próprio projecto de coerência. "A questão é
saber que coerência está ainda disponível quando deixamos o discurso único e
absolutamente coerente do Absoluto e aceitamos atravessar o discurso incoerente da Obra
e do Finito"
34
G. Kircher, por seu turno, considera que é o lógico, e só ele, que, nesta atitude,
consegue discernir a categoria.
Isto permite ao discurso abrir-se de novo, recomeçar, olhando-se do ponto de
vista do seu outro, da violência, que a filosofia deve certamente compreender,
assumindo assim a ideia de absoluto, mas sem lhe reduzir a novidade, sem
esquecer que esta alteridade radical impede que o discurso se feche na sua
própria coerência. Esta exigência de abertura é bem reconhecida pela categoria
do finito.
Assim, segundo este autor, para Weil, não se trata de escolher entre o sistema e a
abertura, entre o absoluto e o finito; trata-se antes de resolver a antinomia articulando as
duas possibilidades; "recusando ao mesmo tempo o retorno ao absoluto e a renúncia do
finito, a Lógica da Filosofia evita escolher discursos em relação aos quais entende, pelo
contrário, pensar na sua articulação, recebendo a dupla herança."
Emerge, então, a nova categoria da acção como uma categoria de síntese sempre
em curso, nunca acabada, mas de síntese prática, que não é somente teoria ou poiesis, mas
praxis, obra-discurso, discurso-obra.
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Violência e Educação
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Atitudes e Categorias
À categoria do finito sucede, na Lógica da Filosofia, uma última categoria, a da
acção, que não se satisfaz com a do finito porque o reconhecimento do facto da
finitude não significa nem a renúncia à compreensão do mundo e do homem
segundo a ordem do discurso coerente, nem renúncia à acção, quer dizer à
transformação, à educação deste mundo e do homem segundo esse mesmo
discurso coerente.
A atitude / categoria da acção tenta pensar e realizar a síntese da finitude e da
razão, sabendo que uma e outra são irredutíveis. Na acção, o homem encontra a unidade da
vida e do discurso. Não a unidade no discurso único, porque o homem é essencialmente
razão. Não a unidade no sentimento único da vida, porque o homem não é pura finitude
largada num mundo, mas a unidade do pensamento e da acção.
Neste contexto, Ricoeur questiona a contribuição desta categoria para a coerência
seguida pela Lógica da Filosofia. Partindo do enunciado da categoria - "Revelando a
condição humana, a finitude revela-se ela própria como simples discurso ao homem que se
opõe à violência do ponto de vista da violência: este homem age sobre a realidade na sua
totalidade, para a submeter ao seu discurso" 38 - Ricoeur sublinha duas vertentes no
discurso do homem da acção:
Primeira vertente: a oposição à violência do ponto de vista da violência. Esta
primeira vertente só diz respeito ao discurso coerente através da segunda: agir
sobre a realidade na sua totalidade, para a submeter ao discurso. Coloquemos
um momento entre parêntesis a condição «para a submeter ao discurso» - ela
relançará imediatamente a dificuldade em manter o projecto de coerência até ao
fim. E coloquemos o acento sobre: «agir sobre a realidade na sua totalidade». E
claro que é a transferência para a acção do horizonte de totalidade do discurso
absoluto que preserva a continuidade do discurso categorial.
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Atitudes e Categorias
Segundo este autor, o que interessa a Weil é o carácter recapitulativo da acção em
relação a todas as outras categorias. O discurso coerente que abandonou o absoluto entende
tornar coerente a realidade, quer dizer, ser uma prática racional e totalizante do ponto de
vista do que entrou em ruptura com o discurso único e absolutamente coerente.
O homem passou da finitude a uma outra atitude que exige precisamente o que é
impossível tanto do ponto de vista da finitude como do Absoluto. Nem um acto
nem uma razão, mas a acção, uma via que seja coerente, uma razão total que
possa guiar a vida.
Considera Ricoeur que a acção não é racional se não integrar a revolta, se o
absurdo não desaparecer, se o niilismo não for praticamente ultrapassado, para que se
possa falar da "unificação do discurso pela acção e na acção"
. Para o mesmo autor, tudo
isto só faz agravar o problema da continuação do discurso coerente, problema agravado
quando relançado pela categoria da acção:
Não remetemos para a Acção as pretensões que tomamos por insustentáveis no
discurso coerente? Agir sobre a realidade na sua totalidade não é um projecto que
a passagem pelo Finito desmantelou antecipadamente? A Acção terá mais
hipótese
que
o
Absoluto de reconciliar
o Absoluto
«humano»
e a
particularidade? Tudo o que se espera da ideia de reconciliação não è então
remetido para o futuro, numa utopia sem fim, como no Projecto kantiano de Paz
perpétua? E, supondo que a acção sensata possa ter este efeito totalizante e
recapitulativo, em que é que ela é discurso?
Todas estas interrogações levantam ainda a questão de saber a que discurso o
homem vai submeter a realidade na sua totalidade: se ao discurso do homem da acção, se
ao do filósofo, dando acesso, segundo Ricoeur, ao que considera ser o último enigma da
Lógica da Filosofia:
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Violência e Educação
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógrca
Atitudes e Categorias
sobre a necessidade, para o próprio projecto de discurso coerente, de juntar à
Acção as duas últimas categorias de Sentido e de Sabedoria./...] Com testemunho
da declaração espantosa [de Weil] segundo a qual «a categoria-atitude da acção
é a mais elevada à qual o homem pode chegar no seu discurso [...] Não existe
atitude depois da acção» [...]É necessário compreender o que é que Sentido e
Sabedoria acrescentam à Acção. Acrescentam sem acrescentar.
Acerca da categoria do sentido, Eric Weil afirma que, se existe uma categoria para
além da acção, ela só pode ser "uma categoria que não serve para compreender tudo, mas
que funda a filosofia por si mesma [...] O sentido é, assim, a categoria que constitui a
filosofia".44
Na passagem da acção ao sentido, o que é decisivo é, então, a compreensão da
filosofia elaborada pela Lógica da Filosofia, "não como necessidade, mas como
possibilidade; não como ontológico, mas como (antropo)-lógico do discurso; não como
discurso de Deus, mas como discurso do homem livre na situação".
A sabedoria, como o sentido, é, para a filosofia "uma categoria formal que só se
mostra, enquanto categoria, ao filósofo; não uma categoria filosófica, mas uma categoria
constitutiva da filosofia".
Para Ricoeur, as duas categorias não fazem mais do que reflectir o estatuto
categorial da acção, quer dizer, a transferência do discurso do homem da acção para o
campo categorial do discurso filosófico. No sentido, a acção é compreendida
filosoficamente como unidade da vida e do discurso, unidade do discurso coerente com a
revolta. O que era discurso implícito, mas pleno, da acção, tornou-se discurso explícito,
mas vazio, do sentido; "é pela forma vazia do sentido que se mantém e se efectua o
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Violência e Educação
V lOiencia e t u u c a ^ a u
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
Atitudes e Categorias
- Da razão filosófica a razão pedagógica
projecto de discurso coerente [...] Este vazio é o preço a pagar pela coerência. É a dura
condição do discurso filosófico depois da Acção."
Mas Paul Ricoeur considera que esta passagem pelo vazio é essencial para
compreender e situar a última categoria: sabedoria.
Se a Sabedoria acrescenta qualquer coisa, não só à acção, mas ao sentido, não
será isto um grau suplementar de formalismo: uma espécie de sentido do sentido?
[...] O que faz da Sabedoria - não do sábio - uma categoria - e a última - é que
ela relança a circularidade do sistema categorial.
Há, assim, segundo este autor, dois sentidos para a sabedoria no discurso
weiliano: "Por um lado, ultrapassagem somente formal da acção, logo esvaziamento do
discurso depois da acção [...] por outro lado, retorno ao ponto de partida, à categoria da
verdade..."
Na sequência desta análise crítica, só uma coerência regressiva, de re-leitura pode
salvar a coerência da Lógica da Filosofia, já que ela não pode ser preservada se seguir
somente a ordem progressiva das categorias, uma vez que, como afirma Weil, "a passagem
de uma categoria à seguinte é livre e «incompreensível» [...] Toda a passagem é
escandalosa para o que é ultrapassado".50 Neste sentido, comenta Ricoeur:
A violência está também no discurso. A própria progressão do discurso é
violenta. A única coerência possível é, por conseguinte, uma coerência recorrente
[...] Coerência recorrente aberta ela própria
a muitas
interpretações,
compreendidas entre os dois extremos de uma composição sinfónica, que deixará
atitudes e categorias coexistir pacificamente sem se abolirem mutuamente - ou
ordem linear que não deixa lugar a nenhuma alternativa.
Parece a Ricoeur que a aposta de Weil se situa mais perto do segundo polo,
terminando a sua análise com as próprias palavras do filósofo:
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Violência e Educação
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Atitudes e Categorias
A única introdução ao sistema encontra-se no seu fim e consiste na justificação
da escolha que foi feita no princípio. Ela confunde-se com a prova da
circularidade. Isso implica que todo o livro filosófico só é verdadeiramente
compreensível à segunda leitura, já que a primeira «ideia» só é pensada, quer
dizer completamente desenvolvida e assim compreensível, com a última, já que só
então se dissipa a aparência de uma primeira e de uma última ideia. 52
E conclui que o que Weil afirma de todo o grande livro filosófico é também
verdade relativamente ao seu.
Labarrièrre vai também levantar algumas questões ao discurso weiliano. Para este
autor, atitudes e categorias são, antes de mais, realidades da história. A filosofia perderia
todo o sentido para Eric Weil, segundo Labarrière, se ela viesse a construir apenas um
mundo de ideias, já que o filósofo é um indivíduo do seu tempo, que vive o mesmo destino
do homem comum, que se debate com problemas morais, políticos, culturais, e que se
compromete.
Assim, para nós, é a violência que constitui a cruz do nosso pensamento, não
porque tenhamos escolhido interessarmo-nos por ela, mas porque, ao contrário,
foi ela, se tal posso dizer, que antes se mostrou interessada em nós. Eric Weil
subscreveria sem dificuldade o aforismo de Hegel «Não poderás ser melhor do
que o permitido pelas condicionantes do teu tempo, mas, nessas condições, serás
c'y
o melhor que puderes».
O que está primeiro é, portanto, a situação histórica, ou antes, é a atitude prática
que o homem toma nessa situação da história, a forma como reage às solicitações ou
provocações a que está sujeito, embora a atitude weiliana não seja, segundo este autor, um
dado à priori fornecido pela história, comum a todos os homens de uma mesma época. Ela
não é o que se impõe ao homem no plano dos acontecimentos exteriores, estando antes ao
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Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
Atitudes e Categorias
lado do que eles suscitam em nós; acontecimentos esses que nem têm nenhum poder de
determinação, já que é apenas a liberdade individual que conta quando se trata de definir
como pode o homem reagir no mundo.
Épor isso que a atitude não se desenvolve em nenhum momento sem a categoria,
quer dizer, sem o risco de uma palavra, de uma linguagem, de um discurso, que
assumem a situação ao nível de uma totalidade inteligível e comunicável. Atitudes
e categorias apelam-se assim umas às outras; e, mesmo se as suas velocidades de
evolução não são idênticas - é a razão pela qual, justamente, há história, e não
uma simples temporalidade descontínua - elas não são nunca, na situação
humana, uma sem a outra.
O que permite o movimento entre atitudes e categorias e vice-versa é a retoma,
noção básica da lógica weiliana. Podemos dizer que a retoma é a compreensão de uma
atitude (ou categoria) nova sob uma categoria precedente, compreensão realizada nessa e
por essa atitude anterior. É através da retoma que a atitude se torna categoria.
Esta noção pode ser considerada, segundo Labarrière, "a melhor ou a pior das
coisas". A melhor, porque assegura a "cobertura" das atitudes e das categorias, dando
sentido a uma certa permanência das segundas quando as primeiras se modificam,
permitindo a constituição da memória do mundo e fazendo com que não se percam o
essencial e a substância dos acontecimentos, das situações e das reacções do homem. Mas
a pior, também, porque o movimento pode aqui petrificar-se, quando o atraso estrutural da
inteligência se recusa a aceitar a novidade do mundo: "então, de facto, o indivíduo
«retoma» toda a nova figura nos esquemas antigos, reduz o outro ao mesmo e impõe às
coisas uma grelha de leitura: fenómeno que chamaríamos de «recuperação» de uma
novidade por um sistema instalado".55 Labarrière acentua que a expressão atraso estrutural
da inteligência só é usada por si porque lhe parece presente no espírito de Weil.
80
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Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagóg.ca
Atitudes e Categorias
Assim, no melhor dos casos, atitudes e categorias, sob a égide de uma retoma que,
fielmente, as medeia, trocam as suas determinantes, e desenham dessa forma o curso de
uma história, desenvolvendo-se segundo um sentido. Mas, questiona Labarrière:
Quererá isto dizer que cada figura do mundo corresponde, tomando em
consideração o seu movimento relativo, a uma só atitude e a uma só categoria?
Isso só seria possível se não estivesse sempre em jogo a essencial liberdade de
leitura e da realização das coisas ou das palavras.
É, então, a liberdade que permite ao homem, em todas as situações da história,
tomar uma pluralidade de atitudes e de as universalizar numa pluralidade de categorias.
Analisando a passagem das atitudes às categorias pela retoma, assim como a
sucessão das atitudes / categorias, sucessão fundada sobre a liberdade, Labarrière constata
que todas as categorias da Lógica da Filosofia, desde a Verdade à Sabedoria, são
com-possíveis ("com-possibles"), no sentido de a sua sucessão não ser uma sucessão da
história. Ora, é neste ponto que Labarrière encontra outra inconsistência no discurso
weiliano:
Se é verdade que as atitudes e categorias da inteligência e da acção - da filosofia
e da violência - são, efectivamente, com-possíveis, ainda que simultaneamente
incompatíveis para um mesmo indivíduo, pelo menos sob as suas formas pura e
abstractas, é necessário falar aqui do fim do discurso f.JEric
Weil convida, em
definitivo, o homem da razão e o homem da acção a ultrapassarem-se um ao
outro - a superarem-se - nas duas últimas atitudes / categorias, a do Sentido e a
da Sabedoria.
Labarrière sustenta que Weil não responde claramente à questão de saber o que
representam estas duas últimas categorias, em particular a da Sabedoria, e que é necessário
procurar a razão no facto de o seu discurso acabar por se tornar num outro exterior a si
81
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- Da razão filosófica arazãopedagógica
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próprio, uma vez que Weil afirma que a acção é a última categoria do discurso. Mas, se a
intemporalidade na qual ele se finda é lógica, então a Lógica da Filosofia deixa "escapar
do seu domínio uma atitude e uma categoria muito concretas - a Sabedoria, termo do
Sentido - não se vislumbrando como ela poderá, privada desta estruturação, continuar
CO
ainda a existir como figura de história."
Assim, para Labarrière, na categoria da Sabedoria, Weil escapa (e não pode deixar
de escapar) ao "processo de coerência que ele tão dificilmente elaborou [...] Eric Weil é
obrigado a dizer que a Sabedoria permanece coisa do tempo; no entanto, todo o movimento
do seu pensamento condu-lo - e ele di-lo também -
a apresentá-la como uma realidade
fora do tempo...".
Labarrière encontra, deste modo, o que considera ser fracturante no discurso de
Eric Weil: violência e sabedoria serem, ao mesmo tempo, interiores e exteriores ao
processo que Weil traça, referindo ainda que "a explicação se encontra no oculto
arrependimento de um movimento escolhido para se afirmar como absoluto, e que se
,
• „ 60
apercebe bruscamente que o não pode ser sem renunciar a si próprio .
Mas é o mesmo Labarrière que afirma:
Se Eric Weil nos toca, é justamente porque ele não é somente um lógico ou, para
ser mais preciso, porque a sua lógica correctamente preenchida acab a por
reportar-se em definitivo ao lugar onde o "moralista", no sentido mais nob re
deste termo, é chamado a pronunciar-se sob re o sentido.
A Lógica da Filosofia pretende trazer à luz a unidade do discurso humano, mas
esta unidade não conduz nunca à redução da dualidade essencial ao discurso, dualidade que
Weil designa como dualidade da verdade e da liberdade, fora da qual só existe silêncio. A
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sua filosofia continua filosofar, acto de liberdade, que se pode fechar sobre si mesmo na
verdade do seu discurso, mas que pode também abrir-se de novo ao sentido dessa verdade.
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- Da razão filosófica à razão pedagógica
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
Atitudes e Categorias
1 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 70
2 Idem, p. 71
3
Gilbert Kircher in "Les Figures de la subjectivité dans la Logique de la Philosophie d'Eric Weil" Archives de Philosophie 59, p. 610
4 Idem P-609
5 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 71
6 Idem, p. 147
7 A. Wiel in "Comptes Rendus" - Archives de Philosophie 53, p. 683
8 Pierre-Jean Labarrière - "Après Weil, Avec Weil - Une lecture de Gilbert Kirscher" in Archives de
Philosophie 53, p. 664
9 Gilbert Kircher - "Les Figures de la subjectivité dans la Logique de la Philosophie d'Eric Weil" in
Archives de Philosophie 59, p. 611-612
10 Jean Michel Buée in "Comptes Rendus" - Revue Philosophique de Louvain, Tome 87, Quatrième Série,
N° 76, p. 658-659
11 Idem, p. 659
12 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 110
13 Jean Michel Buée in "Comptes Rendus" - Revue Philosophique de Louvain, Tome 87, Quatrième Série,
N° 76, p.659-660
14 Gilbert Kircher cit. por Labarrière in "Après Weil, Avec Weil - Une lecture de Gilbert Kirscher" Archives de Philosophie 53, p. 667
15 Gilbert Kircher in "Les Figures de la subjectivité dans la Logique de la Philosophie d'Eric Weil" Archives de Philosophie 59, p. 613
16 Jean Michel Buée in "Comptes Rendus" - Revue Philosophique de Louvain, Tome 87, Quatrième Série,
N° 76, p. 660
17 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 168-169
18 Jean Michel Buée in "Comptes Rendus" - Revue Philosophique de Louvain, Tome 87, Quatrième Série,
N° 76, p. 660
19 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 210
20 Gilbert Kircher - "Les Figures de la subjectivité dans la Logique de la Philosophie d'Eric Weil" in
Archives de Philosophie 59, p. 620
21 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 266
22 Idem, p. 290
23 Idem, p. 303
24 Idem, p. 313
25 Ibid
26 Eric Weil cit. por Paul Ricoeur in Lectures Autour du Politique, p. 116
27 Paul Ricoeur - Lectures Autour du Politique, p. 116
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Violência e Educação
, ., . _ . .
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
Atitudes e Categorias
- Da razão filosófica a razão pedagógica
28 Idem,p. 118
29 Ibid
30 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 345
31 Idem, p. 363, 365
32 Idem, p. 385, 394
33 Paul Ricoeur - Lectures Autour du Politique, p. 120-121
34 Idem, p. 123
35 Jean Michel Buée in "Comptes Rendus" - Revue Philosophique de Louvain, Tome 87, Quatrième Série,
N° 76, p. 660
36 Idem, p. 661
37 Gilbert Kircher - "Les Figures de la subjectivité dans la Logique de la Philosophie d'Eric Weil" in
Archives de Philosophie 59, p. 627
38 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p.393
39 Paul Ricoeur - Lectures Autour du Politique, p. 123
40 Eric Weil cit. por Paul Ricoeur in Lectures Autour du Politique, p. 123
41 Idem, p. 124
42 Ibid
43 Idem, p. 125
44 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 419-430
45 M. Perine - Philosophie et Violence - Sens et Intention de la Philosophie à! Eric Weil, p. 212-213
46 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 434
47 Paul Ricoeur - Lectures Autour du Politique, p. 127
48 Idem, p. 128-129
49 Idem, p. 129
50 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p 345-346
51 Paul Ricoeur - Lectures Autour du Politique, p. 130
52 Eric Weil cit. por Paul Ricoeur in Lectures Autour du Politique, p. 130
53 Labarrière - Le Discours de L Altérité - Une logique de I 'experience, p. 93
54 Idem, p. 93-94
55 Idem, p. 94
56 Ibid
57 Idem, p. 95
58 Ibid
59 Idem, p. 96
60 Ibid
61 Labarrière - Le Discours de L Altérité - Une logique de I 'experience, p. 96
85
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
2a parte:
A Educação como Meio de Superar a Violência
Violência e Educação
A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
2.1 - Educação e Violência
O ser humano é um animal racional porque é capaz de simbolização, de
abstracção e de conceptualização da realidade, mas é essencialmente um animal moral
porque necessita principalmente de valores como razões para viver. O primado
antropológico da moralidade explica, assim, o primado cultural da educação em geral - da
educação moral em particular - e o primado pedagógico da moralidade da educação como
condição da humanização e da subjectivação.
Há, pois, uma relação intrínseca entre a educação e os valores, com base
insofismável no grande valor que é o próprio homem.
Ao longo da história têm sido tomadas diferentes posições - com avanços e
recuos, alguns dos quais bem significativos - acerca dos problemas que envolvem a
educação.
Quando Sócrates critica o uso da palavra pela palavra, fá-lo na medida em que o
diálogo socrático busca o acordo entre o ser e o dever ser. "Para estabelecer a identidade da
felicidade e do bem, Sócrates assimila o bem e o bom, o mal e o mau, o bem ao que é útil,
o mal ao que e nocivo.
Depois de Sócrates, assiste-se a uma "submissão da pedagogia em relação ao
saber", em detrimento da valorização de uma estética da pedagogia, a que os discursos
sedutores dos sofistas às multidões conduziria.
Platão vai situar claramente o percurso entre o não-ser e o ser na linha entre o que
é e o que deveria ser, por meio do saber. Vai ligar o mal à ignorância. Para Platão, os
87
Violência e Educação
A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
Educação e Violência
sofistas, ao seduzirem os jovens para a sua retórica, levam-nos a pensar que "o Bem não
vale mais que o seu contrário, nem que o Justo" {Republica, VU, 538, c).
Contrariamente ao pensamento bíblico, é o facto de pensar mal que conduz,
segundo Platão, a agir mal. De todo o pensamento de Platão, sobressai uma grande
importância para a pedagogia do saber, veículo simultâneo do saber-ser e do saber-fazer. A
vontade é metafisicamente derivada em relação à inteligência, o saber é anterior ao agir, o
erro precede o mal querer. "Toda a sua vida, não parou de repetir o grande princípio de
Sócrates: ninguém é mau voluntariamente, os maus são-no contra a sua vontade." "
Acabando e completando Sócrates, estabelece que a virtude suprema é ciência e
que ela consiste inteiramente na contemplação das Ideias supra-sensíveis e transcendentes,
que são a verdadeira causa das coisas efémeras, os modelos de que elas participam.
Com o cristianismo, a ideia do Bem é elevada até Deus. O saber não é apenas o
garante da passagem entre o que é e o que deveria ser, mas é concebido como um meio
moral para atingir o Bem, para passar do pecado à graça que levará à felicidade eterna.
Passa-se, assim, de uma pedagogia do saber para uma pedagogia do saber ser, o que obriga
a escola a distanciar-se da sociedade e a aproximar-se de Deus, da salvação.
No Renascimento, o humanismo torna-se veículo de uma cultura alimentada pelos
princípios filosóficos da autonomia da vontade, considerada como um fim absoluto em si
mesma. As leis da razão são valorizadas e o mal surge como um obstáculo que deve ser
ultrapassado pelo poder da vontade.
Ao cognocentrismo e ao teocentrismo vai seguir-se o tecnocentrismo. Surge a
ideia de que o homem é um ser perfectível e educável. A passagem do mal ao bem deve ser
feita nos limites do nosso ser.
88
Violência e Educação
A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
Educação e Violência
Os adeptos do humanismo, incansáveis adversários da escolástica sob o ponto de
vista pedagógico, têm como seu ideal a realização harmoniosa das faculdades morais e
estéticas do indivíduo: "a sua pedagogia do saber fazer inscreve-se nos limites das leis da
razão e a construção da felicidade nas fronteiras do possível".
O humanismo é esta heróica filosofia que lança o homem à conquista do mundo e
lhe promete a felicidade, o poder, a fruição, esta filosofia do homem-rei, portador
de todas as verdades e de todas as soluções [...JEsta secularização radical dos
temas bíblicos de criação e de redenção, assim como a eliminação do motivo
escolástico da graça e do motivo judaico-cristão do pecado, conduzem-nos a uma
absolutização, a uma nova re-ligião: a re-ligião da personalidade humana. 4
O humanismo identifica-se com o compromisso entre os deuses e a natureza, a fé
e a Igreja, o sujeito e a ciência. O humanismo é, no fundo, a convicção de que os valores
nascem da interacção entre sujeitos livres e conscientes, do acordo e do contrato entre eles,
criando-se assim um espaço para o aparecimento e desenvolvimento de uma posição
centrada não na intersubjectividade mas nos indivíduos. Porém, esta lição de prudência e
de sabedoria não consegue prevalecer contra as necessárias rupturas, nem contra a busca de
si próprio como sujeito, na qual está empenhado o indivíduo e que o leva a subverter,
permanentemente, a ordem estabelecida.
Com o Iluminismo, desenvolve-se um optimismo perante as possibilidades do ser
humano, em relação com o progresso técnico e científico.
Como se sabe, o Iluminismo tomou, desde o seu início, uma atitude culturalista:
pretendeu transformar o Homem e o Mundo, de forma ambiciosa e radical, por
força de uma acção política, pedagógica e técnica. Depositava inteira confiança
nas capacidades intelectiva e activa de que dispomos. '
89
Violência e Educação
A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
Educação e Violência
Por outro lado, no cerne do Iluminismo, aconteceu o importante fenómeno da
secularização (ou nova forma de liberdade e autonomia), que determinará o mundo e o
modo de ser-no-mundo do homem. A filosofia das Luzes eliminou o dualismo cristão e o
mundo da alma em nome da racionalização e da secularização. Como afirma Alain
Touraine, na Crítica da Modernidade, a ideia de modernidade substitui, no centro da
sociedade, Deus pela ciência, remetendo, na melhor das hipóteses, as crenças religiosas
para o interior da vida privada.
O Iluminismo é, no fundo, o nome desta confiança no poder da ciência para
modificar a condição humana. Ele representa o reino da Razão em que o homem (o homem
do absolutismo) é tido como o do corte com a transcendência.
O Iluminismo lutava contra a superstição, o dogmatismo, a aceitação ingénua da
tradição; a objectividade consiste nos meios pelos quais um conhecimento
conceptual claro e limpo de pressupostos é obtido, nada se aceitando que a «luz
natural» da razão não possa «verificar» através da experimentação. A razão que
testa torna-se o tribunal final, e toda a verdade encontra a sua validação nas
operações de reflexão da mente, ou seja, na subjectividade do homem.
A submissão às exigências do pensamento racional libertou a humanidade das
superstições e da ignorância, mas não libertou o indivíduo; substituiu o reino dos costumes
pela razão, "a autoridade tradicional pela autoridade racional legal", como dizia Weber.
A sociedade moderna é aquela para a qual a luta com a natureza, o primado do
cálculo e da eficácia constituem o seu essencial. É este ideal racionalista de dominar a
natureza que sela de alguma maneira o destino da razão e da autoridade. Segundo
Laplantine, este novo ideal de dominação da natureza com a ajuda do pensamento
matemático criador (de que Descartes, Galileu, Newton, Hobbes, e Leibniz, entre outros,
90
Violência e Educação
A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razãofilosóficaà razão pedagogia
Educação e Violência
são portadores) não deixou de trazer à luz a tensão dialéctica inerente ao motivo religioso
do pensamento humanista. A imagem determinista e mecanicista do mundo afronta, assim,
a imagem de um homem livre e autónomo, revelando-se a natureza como verdadeira
inimiga da liberdade.
Kant rejeita a ideia de um mal absoluto fundada sobre uma má natureza do
homem e pensa que existe um plano oculto dessa mesma natureza que o leva a ser livre,
mas que o homem só atinge libertando-se da natureza (no sentido animal). O mau uso que
o homem faz da sua liberdade é que origina o mal. Assim, segundo Kant, "o mal não é nem
a liberdade, nem a natureza, nem a razão, nem a sensibilidade, mas a liberdade que
enfraquece e que escolhe a natureza, a razão que se inverte e que por este facto se coloca
ao serviço da sensibilidade."
O racionalismo das Luzes vê, assim, a liberdade do homem no triunfo da razão e
na destruição das crenças, dos particularismos, da memória, das emoções.
A consciência que o Iluminismo tinha de si mesmo aparece, talvez, clara e
sinteticamente expressa na imagem-símbolo mais corrente do século XVIII:
Um Sol que trespassa com a sua coroa de raios luminosos uma massa de nuvens
negras, dissipando-as progressivamente e derramando sobre a terra a sua luz
benéfica. Dentro desse Sol, um rosto humano sorri beatificamente.
Na
intencionalidade dos criadores e difusores dessa imagem, a sua interpretação era
a seguinte: o Sol é a Razão humana que, no seu avanço culminante no século,
dissipa as trevas do erro e da ignorância, da estupidez e da má-fé, graças à
radiação luminosa da ciência e da «filosofia», o sorriso humano é a expressão da
felicidade trazida ao homem pelo progresso dos conhecimentos da arte e da
moral.
91
Violência e Educação
A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razãofilosóficaà razão pedagópca
As
sociedades
Educação e Violência
modernas
apresentam-se
como
sociedades
essencialmente
educativas, onde se afirma particularmente a crença nascida das Luzes na Educação toda
poderosa. Contrapõe-se os "filhos da luz", da "época iluminada" da "idade da razão", aos
homens do passado, presos das trevas e da superstição, do erro, da menoridade mental e da
ignorância servil.
Aliás, ainda hoje, todas as vezes que empregamos a expressão "racional",
supomos uma relação estreita entre racionalidade e saber. A pedagogia especulativa dá,
assim, lugar à objectividade científica, a uma racionalidade positivista e instrumental.
Nos nossos dias, como afirma A. Dias de Carvalho, os propósitos da educação
reflectem todas estas perspectivas filosóficas relativas aos problemas da educação.
De uma maneira ou de outra, nós somos depositários do complexo património
herdado de contribuições diferenciadas, mas, de qualquer forma, encadeadas, da
filosofia pré e pós-socrática da doutrina judaico-cristã
e do humanismo
iluminista. É no contexto desta herança, aliás, que constatamos os propósitos
actuais da educação de se afirmar enquanto projecto e estratégia de construção
de comportamentos que favorecem os ideais da paz, da justiça social, do respeito
face ao outro, da cidadania.
Assim, a educação contemporânea, assente numa razão filosófica que, embora
herdeira de toda uma tradição, se pretende mais abrangente, mais aberta, encarando ao
nível antropológico a negatividade violenta do homem, deve apelar ao mesmo tempo à
consciência universal, com vista à ultrapassagem dessa violência:
é a pesada tarefa mas o dever absoluto das pessoas informadas de o fazer
entender. Sobre elas pesa uma responsabilidade primordial [...] os que sabem
não têm o direito de se calar [.,.] a violência não tem senão um antídoto e este
não é a violência rival - este remédio desesperado - é a inteligência, a perfeita
92
Violência e Educação
Violência e n o u c a ç a o
A
Educação como Meio de Superar a Violência
Educação e Violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
compreensão das situações, dos riscos incorridos e dos remédios racionais ou
sensatos.
Corroborando a ideia de que uma educação filosófica pode transformar o homem
para melhor, E. Abranches de Soveral afirma que, ao pensar no homem, ao pretender
modificá-lo a ele e ao mundo para um futuro melhor, a filosofia é animada por uma
irresistível vocação pedagógica.
Só uma verdadeira e total perspectiva do homem, da sua origem e destino, é que
torna incontestavelmente evidente a subordinação necessária da educação à
filosofia. Os objectivo da educação devem ser sempre determinados pelos
objectivos da vida, predeterminados pela filosofia. A educação proporciona os
meios pelos quais os objectivos da vida podem realizar-se.
93
Violência e Educação
A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razãofilosóficaà ruzão pedagógica
Educação e Violência
1 François Laplantine - Le Philosophe et la Violence, p. 41
2 Idem, p. 44
3 A. Dias de Carvalho - "Education et Violence" (documento cedido pelo autor), p. 2
4 François Laplantine - Le Philosophe et la Violence, p. 9-104
5 E. Abranches de Soveral - "Modernidade e Contemporaneidade" in Revista da Faculdade de Letras Série de Filosofia N° 11, p. 44
6 Richard Palmer cit. por Fernando Ilharco in Público, 1998-05-11
7 François Laplantine - Le Philosophe et la Violence, p. 127
8 M. Antunes in Verbo - Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Vol 10, p. 921
9 A. Dias de Carvalho - "Education et Violence" (documento cedido pelo autor), p. 2
10 Jean Onimus - La Violence dans le Monde Actuel, p. 11
11 John D. Redden e Francis A. Ryan - Filosofia da Educação, p. 36
94
Violência e Educação
A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
2.2 - A Razão da Modernidade como Símbolo de Violência
A sociedade moderna faz da razão uma arma, um instrumento de combate. Esta
razão vitoriosa - e nós sabemos que não se vence sem alguma violência - volta-se com
predilecção para a exterioridade, a matéria, o quantitativo, o mecânico, em detrimento da
interioridade, do qualitativo e da imprevisível mudança do homem durante a vida.
Mas, como afirmou Marx Horkheimer, "não basta a razão para defender a razão".
Esta frase parece-nos muito elucidativa, no sentido de romper com o racionalismo e a
ideologia das Luzes, demasiados seguros de si, já que se pretendeu impor a ideia de que era
necessário, para fazer triunfar a ciência, sufocar o sentimento e a imaginação para libertar a
razão.
Razão e racionalidade ganharam um tão grande poder na época do Iluminismo
que, como afirma Paul Feyerabend na obra Adeus à Razão, "o pressuposto de que existem
padrões de conhecimento e de acção universalmente válidos e restritivos é um caso
especial de uma crença cuja influência ultrapassa o domínio do debate intelectual."
Aqueles que querem identificar a modernidade unicamente com a racionalidade só
falam do sujeito para o reduzirem à própria razão e para impor a despersonalização, o
sacrifício de si mesmo e a identificação com a ordem impessoal da natureza ou da história.
Ora, "a moralidade é um fenómeno humano cuja universalidade inclui uma essencial
relatividade que problematiza a sua racionalização, mas uma concepção da racionalidade
que ignore o campo dos comportamentos e valores morais redunda numa racionalidade
hemiplégica."
95
Violência e Educação
A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razãofilosóficaà razio pedagógica
A Razão da Modernidade como Símbolo de Vtolencia
Parece-nos que a racionalidade moderna acabou, de facto, por ser uma
racionalidade demasiado redutora, que acreditou em excesso no poder da razão. A relação
postulada entre racionalidade e modernidade legitimou muitas vezes a violência,
resultando na constituição do saber como poder, no "estabelecimento de um privilegiado e
seguro acesso ao saber verdadeiro como legitimação do direito de dizer aos outros,
privados desse acesso, aquilo que deviam fazer, como comportar-se, que fins deveriam
•
„3
perseguir e com que meios
Os iluministas salientaram, por diferentes vias, o papel da violência, cujos
excessos só a razão podia limitar. Daí se deduziu a ideia do despotismo iluminado, que tem
como nota dominante o seu aspecto filosófico. "Agindo em nome do progresso e da
liberdade dos respectivos povos e da Humanidade, os déspotas do século XVIII não
receavam oprimir aqueles e conculcar esta. De resto, Voltaire, seu principal mentor,
aconselhava: «Ao povo idiota e bárbaro, convém um jugo, um aguilhão e feno»."
O saber pode ser, portanto, desviado e tornar-se instrumento de poder e de
dominação, quando os homens, que são nutridos de razão violenta, crêem que podem
"racionalizar" a violência.
A aparição da violência, a sua tematização num conceito próprio, é indissociável
do movimento pelo qual as sociedades industriais viram desaparecer os quadros
e os valores tradicionais da comunidade política em nome da racionalidade
técnica e científica.
O mundo da razão moderna foi, por isso, muitas vezes colocado ao serviço de
interesses irracionais e os seus ideais pervertidos, dando origem aos regimes totalitários do
nosso século. Para Alain Touraine, "durante a época da modernidade, o homem tomou-se
por um deus, inebriou-se com o seu poder e aprisionou-se numa gaiola de ferro que foi
96
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Violência e Educação
- Da razão filosófica a razão pedagógica
n
A Educação como Meio de Superar a Violência
Modernidade como Símbolo de Violência
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menos a das técnicas do que a do poder absoluto, de um despotismo que se pretendia
modernizador e que se tornou totalitário."
A razão, enquanto razão instrumental, assimilou-se ao poder, renunciando desta
forma à sua força crítica: "a razão positivista fracassou, está totalmente desacreditada.
Mergulhou o homem tecnicizado e automatizado numa situação afinal irracional, alienada;
num tédio incapaz de reflexão crítica, de desarticulação da máquina opressora que pesa
sobre si".
Muitos intelectuais encetaram uma crítica global à modernidade, à alienação do
homem por parte das ideologias repressivas. Refere, a este propósito, E. Abranches de
Soveral:
A razão inata, a razão progressista e histórica, tal como a razão expressiva,
respondem todas ao optimismo e à ambição do espírito moderno que não
renuncia às evidências discursivas da Lógica. O máximo a que se resigna a razão
moderna é a considerar a totalidade dessas evidências como tendencial. Já a
razão contemporânea renuncia a tamanha ambição, ou, talvez melhor, ao que há
de ingénuo nela. Vários movimentos empenharam-se temerariamente em destruir
a lógica no exercício consciente dos seus enunciados judicativos.
Nesta acção, o grupo intelectual mais importante foi, sem dúvida, o do Instituto
para a Investigação Social, fundado em 1923 em Frankfurt, que tomou como primeira
tarefa o desmascaramento da sociedade moderna tecnocrática e, sobretudo, da sua cultura.
Criticam o racionalismo burguês, o iluminismo.
Consideram o mundo em que vivem como o da capitulação da razão objectiva,
isto é, da visão racionalista do mundo [...] Em relação à esperança depositada
nas luzes da razão, Horkheimer pensa que estas, ao libertarem o indivíduo, o
destroem, uma vez que o subordinam ao progresso das técnicas e destroem,
portanto, a subjectividade quando reina a razão instrumental [...] A identificação
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Violência e t,aucaçãO
- Da razão filosófica a razão pedagógica
A Educação como Meio de Superar a Violência
Modernidade como Símbolo de Violência
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entre a razão, o tecnicismo e o domínio absoluto constitui o princípio central do
pensamento de Horkheimer e, para lá das diferenças entre os membros da Escola,
de todo o Instituto de Frankfurt.
No espírito dos adeptos da Escola de Frankfurt, a razão é, por consequência,
indissoluvelmente ligada ao pensamento calculista e à sua conservação. Ela não serve para
reduzir as barreiras nas relações sociais ou para tornar os homens mais solidários entre si.
Não se a emprega inocentemente, porque ela não é neutra; é um instrumento ao serviço da
dominação, da manipulação e da administração.
Nesta perspectiva, esta razão manipuladora, predadora, não conhece mais do que
aquilo que é útil à produção ou ao consumo, aparecendo-nos efectivamente como símbolo
de violência. "A lucidez filosófica reside, então, num pensamento radicalmente pessimista
e irreconciliado, atento a todas as deturpações da razão."
O pensamento filosófico contemporâneo procura uma racionalidade que integre a
subjectividade psicológica e a relatividade cultural próprias dos valores morais e procura
ainda encontrar uma qualificação e um critério de validade análogos à verdade e à
experimentação ou demonstração no campo cognitivo.
A Ilustração do presente não desacreditou o homem como capacidade racional
absoluta, capaz de levar a cabo uma total emancipação [...] quer dizer: a
Ilustração actual pretende iluminar o operar humano de uma maneira mais
lúcida, desatada de toda a opressão institucional ou política. O Homem continua
a ser a máxima realidade para si e, por si mesmo, as raízes do operar racional
devem encontrar-se na própria razão, bem como os fins que legitimam a
operação [...] assiste-se, portanto, a uma tentativa de reposição de uma nova
«racionalidade», mais ampla que a do estrito objectivismo racionalista, capaz de
se reconciliar com a realidade.
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- Da razão filosófica à razão pedagógica
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A Educação como Meio de Superar a Violência
Modernidade como Símbolo de Violência
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Pensamos poder concluir que, embora a razão tenha mantido muitas vezes
relações especiais com o poder, agindo como sua justificação, o que lhe deu um sentido
perverso de violência, o seu estatuto pode ser reabilitado.
É todavia legítimo perguntar se a razão discursiva das relações lógicas evidentes,
desde que não aprisione o espírito, mas, ao contrário lhe dê seguras plataformas
para levantar voo, deverá algum dia ser rejeitada. Cremos bem que não; que será
sempre a condição necessária, emb ora não suficiente, de todo o conhecimento
humano.
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Violência e Educação
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Educação como Meio de Superar a Violência
A Razão da Modernidade como Símbolo de Violência
- Da razão filosófica a razão pedagógica
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1 Paul Feyerabend, op cit, p. 20
2 A. Reis Monteiro in "Da Ética ao Direito" (relato de uma conferência)
3 Bauman cit. por António M. Magalhães in A Escola na Transição Pós-moderna, p. 7
4 M. Antunes, Verb o - Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Vol 6, p. 1148
5 Yves Michaud - La Violence, p. 122
6 Alain Touraine - Critica da Modernidade, p. 433
7 Maria José Cantista - Racionalismo em Crise, p. 156
8 E. Abranches de Soveral - "Modernidade e Contemporaneidade" in Revista da Faculdade de Letras Série de Filosofia N° 11, p. 44
9 Alain Touraine - Crítica da Modernidade, p. 183 -185
10 Yves Michaud - La Violence, p. I l l
11 Maria José Cantista - Racionalismo em Crise, p. 158 -178
12 E. Abranches de Soveral - "Modernidade e Contemporaneidade" in Revista da Faculdade de Letras ■
Série de Filosofia N° 11, p. 44
100
Violência e Educação
A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
2.3 - Da Razão da Modernidade à Razão Comunicacional
Sendo os laços inter-humanos essencialmente tecidos pela linguagem
-
comunicação humana por excelência - e sendo através dela que os seres humanos pensam,
agem, interagem e colaboram, o encontro e a argumentação aparecem como o dispositivo
epistemológico adequado à produção dos consensos fundadores da validade no campo das
normas, reguladores da vida individual e social, ou seja, da sua legitimidade.
Assim,
parece-nos
útil
interrogarmo-nos
sobre
o
valor
desta
relação
comunicacional no acto educativo, bem assim como tentar verificar até que ponto ela pode
ser promotora de um homem melhor que, pela prática da linguagem, verifique que tem um
amplo leque de discursos à sua disposição, já que "compreender que há, por exemplo,
formas de argumentar que são da ordem das opiniões verosímeis, e não da ordem da
ciência, é indispensável para escapar à violência ."
Para Habermas, o paradigma da filosofia da consciência, que, na sua perspectiva,
caracterizava globalmente a modernidade, encontra-se esgotado, sendo que estes sintomas
de esgotamento se devem dissolver na transição para um novo paradigma, o paradigma da
compreensão, da comunicação, da intersubjectividade.
O projecto da modernidade acaba, afinal, por ser traído nos limites da razão
fechada e instrumental e, por isso, Habermas contrapõe que a emergência do sujeito se
constitui na e pela razão comunicacional que passa, antes de mais, por uma relação entre
sujeitos socializados, a qual se desdobra, por sua vez, em relações normativas mediadas
pela linguagem.
101
A
Violência e Educação
- Darazãofilosóficaà razão pedagógica
Educação como Meio de Superar a Violência
Da Razão da Modernidade à Razão Comunicacional
Este conceito de racionalidade comunicacional comporta conotações que
conduzem, finalmente, à experiência central desta força sem violência do discurso
argumentativo, que permite realizar o entendimento e suscitar o consenso. E no
discurso
argumentativo
que os diferentes participantes
ultrapassam a
subjectividade inicial das suas concepções e simultaneamente se asseguram da
unidade do objectivo e da intersubjectividade dos seus contextos de vida, graças
ao acordo de convicções motivadas racionalmente.
A figura do sujeito comunicacional é, para Habermas, bastante valorizada. O
sujeito forma-se em teias de intersubjectividade, não é um sujeito a priori, um sujeito
constituinte (empírico-divino-transcendental), mas um sujeito em relação com os outros,
gerador e formador de conceitos. Um novo sujeito que se forma contra a elisão do sujeito.
Para Habermas, só podemos obter um critério suficiente para o diálogo se
antecipamos uma situação comunicativa ideal. Situação que se estabelece, não
mediante o recurso a umas características pessoais que deveriam possuir os
interlocutores ideais, mas sim por referência às características estruturais de
toda a possível situação comunicativa.
Nesta linha, Habermas procurou mostrar que a verdade é uma pretensão que só é
possível validar através da argumentação e tomando a forma de um consenso.
A intersubjectividade tem, nesta perspectiva, um papel fundamental, porque
permite relacionar a verdade e a objectividade sem cedências ao subjectivismo
nem ao objectivismo [...] a verdade, como a validade intersubjectiva do
conhecimento, pressupõe o acesso a um consenso obtido por via argumentativa.
Assim, o valor verdade, tal como outros valores, não radica em evidências lógicas
(objectivismo), nem em meras verificações empíricas (positivismo subjectivista), mas num
consenso racional alcançado a partir dos dados factuais encarados à luz de vicissitudes da
situação comunicativa ideal.
102
Violência e Educação
- D a razsofilosofaàraZaopedagogic
A
Educação como Meio de Superar a Violência
Da Razão da Modenudade à Razão Comunicacional
Para Michèle Malherbe, a ideia fundamental a reter da teoria de Habermas é a
seguinte:
assumindo a reivindicação do sentido, contra a racionalidade positiva, mas
aceitando a crítica da hermenêutica, face a uma teoria de ideologia denunciando
os factos de dominação, tratando por seu turno a dominação como uma
comunicação e renovando a exigência da fundamentação e da legitimidade, sem
diminuir o rigor da análise crítica, a pragmática reconstrói os pressupostos
universais da intercompreensão entre os sujeitos sociais, satisfaz a racionalidade
pela inter-relação das exigências de validade dos diversos tipos de discurso e,
por aprofundamento, liberta «o ideal ético-político de uma prática política que,
como discussão racional e como argumentação pública», representaria a ideia
legitimada da democracia.
Esboça-se, assim, com Habermas, uma nova racionalidade, que encontra o seu
fundamento numa ética da comunicação. A linguagem, actualmente, parece ser um
domínio onde a filosofia encontrou possibilidade de realização. Ao mesmo tempo que
sintetiza uma interpretação do mundo, a linguagem projecta constantemente alternativas e
mudanças à perspectiva mais ou menos estabelecida.
103
Violência e Educação
A Educação como Meio de Superar a Violência
- Darazãofilosófica à razão pedagógica
Da Razão da Modernidade à Razão Comunicacional
1 Paul Ricoeur em entrevista a Anita Kechikian in Os Filósofos da Educação, p. 74
2 Habermas - Théorie de L 'Agir Communicationel, p. 27
3 Maria José Cantista - Racionalismo em Crise, p. 193
4 Manuel Maria Carrilho - Verdade, Suspeita e Argumentação, p. 66-67
5 Michel Malherbe in "Comptes Rendus" - Archives de Philosophie 53, p. 687
104
Violência e Educação
A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
2.4 - Entre a Razão e o Sonho - O Papel das Imagens na Educação
No nosso tempo, o homem, cansado da sua situação de objecto em relação a uma
ciência tecnificada, acaba por sentir uma atracção fascinante pelo símbolo, refugiando-se
quantas vezes no sonho e na imaginação. Dos vários aspectos da vida do homem, o
educativo é o que mais exige, nas sociedades em processo de mudança, um verdadeiro
esforço de imaginação e de antecipação. Por outro lado, assiste-se a um regresso da
sofística e da revalorização da retórica.
Na obra L'Éducation
- ses Images et son Propos, Hameline vai tentar
compreender o que falar quer dizer, quando a intenção é relativa à educação, utilizando um
recuo epistemológico para os campos da dialéctica e da retórica, ou da estética da palavra,
no sentido de "chamar a atenção sobre o que se impunha como um retorno muito
promissor para o pensamento da verdadeira educação, prolegómeno de toda a filosofia
futura (da educação) que quererá apresentar-se como ciência".1 Deste ponto de vista,
podemos dizer que a contemporaneidade filosófica se reconhece por um certo regresso da
retórica e da sofistica, pela quebra ou, pelo menos, pela extrema vacilação dos critérios de
razão que deram origem à modernidade, em que a evidência talha o discurso verdadeiro e
eficaz, ao mesmo tempo que dispensa o recurso à retórica.
É, deste modo, necessário, segundo Hameline, reabilitar a palavra, para que não
continue a ser vista como uma deficiência do pensamento, mas antes como um ornamento
do discurso. "Para Hameline, aliás, a metáfora inscreve-se, em todas as circunstâncias, no
âmago do pensamento da educação no mesmo movimento em que qualquer acto
pedagógico se insere numa narração em que o imaginário tem um papel preponderante e
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Violência e Educação
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
A Educação como Meio de Superar a Violência
Entre a Razão e o Sonho - O Papel das Imagens na Educação
inalienável".2 É, no entanto, importante defendermos um uso inteligente (pertinente) e
legítimo da palavra, do discurso, de forma a que o seu uso rigoroso não seja desviado, ou
até comprometido o seu crédito, ao ser utilizado de forma arbitrária.
Olivier Reboul afirma, acerca da noção de "objectividade pedagógica", que ela
representa a "linguagem funcional" da educação, isto é, uma linguagem precisa,
inequívoca, perfeitamente executada. Ela é, para Hameline:
uma linguagem que os seus promotores - em geral defensores das ciências da
educação - querem libertar da eloquência e da ênfase, dos efeitos de estilo, a
linguagem «precisa, clara e perfeitamente executada» das pessoas que não
perdem
o seu tempo com «palavras vazias», pessoas
que consideram
ultrapassados os efeitos de estilo; em resumo, a linguagem do modernismo, da
ciência e da eficácia.
Comentando alguns fragmentos do Dictionnaire de l'évaluation
et de la
recherche en éducation, de Gilbert de Landsheere, o mesmo autor demonstra a
desumanidade da linguagem funcional, pela qual se pretende, sistematizando os processos,
atingir o homem sem se deixar atingir por ele.
De qualquer forma, Hameline apela para alguns perigos a que devemos estar
atentos para não cairmos também na desacreditação total da razão. Um deles é o de uma
certa posição behaviorista na pedagogia, que leva a exigir a razão unicamente na medida
em que o acto educativo não se torne definitivamente ininteligível, e não como uma
exigência de razão a que toda a acção educativa se deve submeter.
Outro dos perigos em que podemos incorrer é o de nos deixarmos prender pelas
armadilhas da linguagem, cabendo ao pensamento reconhecê-las e desmontá-las. Outro
ainda é o de tomar uma posição metalinguística (discurso sobre discurso), criando a ilusão
106
Violência e Educação
A Educação como Meio de Superar a Violência
- Darazãofilosóficaà razão pedagógica
Entre a Razão e o Sonho - O Papel das Imagens na Educação
de nos mantermos acima do debate, o que é uma posição cómoda no domínio da educação,
porque nos dispensa de discutir problemas difíceis que hoje se colocam ao debate
pedagógico.
Assim, para Hameline, compreender a linguagem da educação implica a
suspensão de dois sonhos: primeiro, o sonho ultra-racionalista e positivista, para o qual a
única linguagem válida é a da razão científica, ciência da abstracção conceptual submetida
à prova da observação e verificação experimentais e, para quem, portanto, aprender a
pensar passará justamente pela destruição obrigatória das imagens geradoras de obstáculos
epistemológicos, dando-nos como exemplo Bally, que considera que "a maior imperfeição
de que sofre o nosso espírito é a incapacidade de abstrair absolutamente" ; por outro lado,
o sonho simbolista, cujas manifestações têm origem na persistente e antiga crença da
analogia. Menciona Henri Morier, no seu Dictionnaire de Poétique et de Rhétorique, que
"deve existir uma essência comum a tudo e, por isso, uma relação entre todas as
manifestações do cosmo".5 E mesmo um filósofo como Edouard Le Roy afirma, também,
que "existem afinidades secretas entre as coisas" e "não só comparações racionais". Ora, é
diferente afirmar a existência de uma correspondência essencial inscrita na natureza das
coisas, ou colocá-la nos artifícios da linguagem. Parece a Hameline que o sonho simbolista
se nutre deste equívoco.
Bachelard, por exemplo, aceita a vida do imaginário com a mesma validade e
espiritualidade que a vida racional. Propõe-nos uma complementaridade das duas,
falando-nos, então, da antropologia de duplo registo. Defende uma posição de coexistência
entre estas duas posições: o espírito racional e a alma imaginante. Para si, como para Alain,
Violência e Educação
- Darazãofilosóficaàrazãopedagógica
A Educação como Meio de Superar a Violência
Entre a Razão e o Sonho - O Papel das Imagens na Educação
a metáfora deve ser tomada "muito a sério" e não há incoerência em reclamar contra as
imagens e, ao mesmo tempo, defendê-las.
Como refere A. Dias de Carvalho, "para este autor, apesar da imaginação poder
residir dentro da consciência científica, tendo aí um papel de relevo, é-lhe originariamente
exterior [...] Bachelard recusa vigorosamente tanto a domesticação da razão como da
imaginação".
A educação oscila, assim, nesta perspectiva, em permanência entre o verdadeiro e
o provável, entre a dialéctica e a retórica ou, mais exactamente, no seio de uma dialéctica
que trabalha a pressão conjunta dos dados reais e das paixões imaginárias, porque só estas
últimas tornam possível este singular conhecimento de causa que se chama educação. O
propósito da educação é, neste sentido, a conjugação de dois dados a bem das relações
contraditórias entre a intencionalidade (que a educação sempre pressupõe) e aquilo a que
podemos chamar conhecimento de causa.
Segundo E. Abranches de Soveral, "se o homem não tivesse experimentado,
desde o seu começo, a necessidade de referir o invisível e o imaginário, muito
o
provavelmente teria dispensado a função simbólica e mítica e permanecido mudo."
108
Violência e Educação
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
A Educação como Meio de Superar a Violência
Entre a Razão e o Sonho - O Papel das Imagens na Educação
1 Hameline - L'Éducation - ses Images et son Propos, p. 16
2 A. Dias de Carvalho - "O Estatuto da Filosofia da Educação: Especificidades e Perplexidades"
(documento cedido pelo autor), p. 8
3 Hameline - L'Éducation - ses Images et son Propos, p. 19
4 C. Bally cit. por Hameline in L'Éducation - ses Images et son Propos, p. 36
5 H. Morier cit. por Hameline in L'Éducation - ses Images et son Propos, p. 37
6 E. Le Roy cit. por Hameline in L Éducation - ses Images et son Propos, p. 37
7 A. Dias de Carvalho -A Educação como Projecto Antropológico, p. 68
8 E. Abranches de Soveral - "Questões Prementes da Filosofia da Educação" in Revista da Faculdade de
Letras - Série de Filosofia N° 1 - 2a Série, p. 20
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Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
3a parte:
Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação
Dimensão Antropológica da Utopia
- Da razão filosófica à razão pedagógica
3.1 - Da Utopia à Antiutopia e Até aos Nossos Dias
"Por mentirosos que sejam os sonhos mais estúpidos, eles existem [...] O animal
não conhece nada semelhante; só o homem, a despeito de sua mais alta lucidez, é pleno de
efervescência utópica " - E. Bloch
A noção de utopia tem sofrido ao longo dos tempos variações significativas. Até
há algumas décadas ela tinha um sentido preciso e mais ou menos universalmente
reconhecido. Produto da imaginação e do desejo, da revolta e do inconformismo, ela
designava todo o projecto, toda a construção intelectual puramente imaginável e
especulativa e, como tal, irrealizável. A utopia era um paraíso terrestre tanto mais
maravilhoso quanto mais impossível.
Neste sentido, parece que as utopias, no seu sentido clássico, terão tido um
alcance social menor do que alguns autores lhes quiseram atribuir, já que, pelo facto de
constituírem predominantemente descrições de países e de instituições imagináveis, fora
do espaço e do tempo reais, elas se tornaram profundamente subjectivas. Estas utopias
respondiam às aspirações ideológicas dos seus autores, mas não constituíam um projecto
colectivo. Tratava-se, por conseguinte, de um jogo de espírito.
Mais tarde, talvez se possa classificar a utopia como representação constructa de
um mundo desejado e, até certo ponto, possível. É principalmente Mannheim quem
modifica a noção de utopia, estendendo o termo a todo o pensamento que rompe com a
ordem existente com vista a transformá-la; "um estado de espírito é utópico, quando está
111
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Dimensão Antropológica da Utopia
Da Utopia à Antiutopia e Até aos Nossos Dias
em desacordo com o estado da realidade no qual ele se produz".1 Também para Camus, a
utopia é o que está em contradição com a realidade.
No entanto, existem duas categorias de autores de utopia, no sentido clássico do
termo: de um lado, os que tinham consciência do carácter irrealizável da sua construção e
para os quais a utopia dependia da ficção, tais como Morus, Cyrano de Bergerac, ou
Vairrasse, entre outros; de outro lado, os do socialismo utópico, que consideravam o seu
sistema como aplicável, uma regra de acção, e que experimentaram mesmo realizá-lo,
mediante experiências, como Owen ou Cabet (que não acreditavam ser de todo utopistas,
já que os seus projectos foram susceptíveis de ser postos em prática pelo recrutamento de
aderentes e partidários), mas que foram classificados, depois, como criadores de utopias no
sentido usual do termo.
Mas, se o termo utopia apareceu no século XVI, forjado por Thomas Morus, o
género literário que ela designa é infinitamente mais antigo - poderemos citar, como
exemplo, A República de Platão. Na verdade, o utopismo é uma constante latente na
filosofia grega. Há também utopismo no pitagorismo, no cinismo e, sobretudo, no
estoicismo. De qualquer forma, foi Morelly o primeiro a legislar utopicamente para as
sociedades existentes e não para as fictícias. Em 1755, publica Código da Natureza,
dando-se a ruptura com a utopia clássica, pelo menos do ponto de vista formal.
Morelly não descreve uma sociedade ideal, mas faz um ensaio de legislação
abstracta, destinada a ser aplicada às sociedades históricas existentes, com vista à sua
transformação e a colocá-las em harmonia com a natureza. As suas preocupações viram-se
para a organização da cidade real.
Violência e Educação
Dimensão Antropológica da Utopia
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica
Da Utopia à Antiutopia e Até aos Nossos Dias
A partir do início do século XIX, a utopia tornou-se uma norma de pensamento
dito prático e uma linha de conduta que determina um comportamento individual ou
colectivo. A transição de uma concepção tida por irrealizável (um modo de pensar, uma
ficção gratuita) a um projecto imaginário realizável teve por consequência fazer passar a
utopia do estatuto de pensamento especulativo ao de pensamento de acção, ou, como diz J.
M. Domenach, "operatório", uma "razão no imaginário".
A diferença entre estes dois tipos de utopias (a impossível e a possível) está bem
expressa na obra de Lewis Mumford, The Story of Utopia:
Na
primeira
construímos
castelos
impossíveis
no
ar;
na
segunda
aconselhamo-nos com o mestre de obras, com o arquitecto e com o pedreiro e
começamos a construir uma casa que resolva as nossas necessidades essenciais
até onde uma casa feita de pedra e argamassa pode resolvê-los.
A utopia passa, assim, a ser uma forma de organizar racionalmente, num sistema
coerente, os desejos, as aspirações e as esperanças. Como afirma J. P. Boutinet, "a utopia
decorre de um imaginário racional" 3, dado o seu carácter abstracto. Mas, por este facto
"não é facilmente aceite dentro dos territórios tradicionais da ciência, ao implicar o
exacerbamento
da imaginação,
não
apenas como
geradora
de
hipóteses,
mas
principalmente como suporte de especulação."
Sabemos que, para a razão científica, a imaginação constitui um handicap a todo o
conhecimento e, neste sentido, portanto, "a utopia surgirá, inclusive, em nome da liberdade
e da soberania do homem, como um autêntico afrontamento do real".
A partir de meados do século XIX a utopia ganha uma outra orientação,
tornando-se irónica face aos sucessivos insucessos dos projectos experimentais. "As
sociedades imaginárias transformam-se em outras tantas contra-sociedades, em visões
113
Violência e Educação
Dimensão Antropológica da Utopia
-Daraz.ofi.osófcaà^pedagógica
Da Utopia à Antiutop.a e Ate aos Nossos D.as
cruelmente grotescas de sociedades que se proclamam como ideais e, ao mesmo tempo,
numa sátira amarga da ordem social reinante".6 A fantasia torna-se crítica violenta.
Sem dúvida que, à primeira vista, estas digressões pelo domínio da imaginação
podem ser consideradas como um divertimento inocente ou como um exercício
útil para o pensamento [...] Contudo, quando as quimeras adquirem demasiada
ambição, outro é o dever dos escritores, ou seja, devem levar de novo os espíritos
ao sentimento das realidades e demarcar os limites da fantasia.
A utopia vira-se, então, contra si mesma. Torna-se mais crítica, mas também mais
céptica. Passa-se a uma contra-utopia, já que, diferentemente da utopia clássica, ela não
sonha com a melhor sociedade, mas serve-se da irrealidade para fustigar certos aspectos do
real. "Deste modo, a verdade que a sociedade imaginária lança sobre o homem é ainda
mais cruel do que a realidade".8 A utopia serve, assim, para questionar os sonhos utópicos,
colocando o homem diante de um futuro ainda mais inquietante. "Swift foi o primeiro,
senão a inventar a contra-utopia, pelo menos a dar-lhe a forma literária de uma obra-prima
e um poderoso fôlego filosófico, com a sua obra "Viagens de Gulliver" (1726). Swift
mistura e emprega os géneros e temas existentes, virando-os contra eles próprios".
Já no século XX, surgem as contra-utopias de G. Orwell e Huxley, contribuindo
também para uma maior consciência dos limites e fraquezas da utopia. Huxley escreve a
anti-utopia mais pessimista e sarcástica contra a fé do homem actual no mito do progresso
técnico
e científico,
enquanto
George
Orwell
visa essencialmente
a mitologia
revolucionária, na sua versão comunista.
A obra O Admirável Mundo Novo, de Huxley, começa com a visita a uma
indústria de bonecos onde são literalmente fabricados os seres humanos segundo as
114
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Violência e Educação
- Da razão filosófica a razão pedagógica
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Dimensão Antropológica da Utopia
^ aos Nossos D,as
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funções que irão desempenhar na sociedade, para as diferentes necessidades de governo e
de produção.
Porque, é evidente, não nos contentamos unicamente em incubar os embriões:
isso qualquer vaca é capaz de fazer. Também os predestinamos e condicionamos.
Decantamos os nossos bebés sob a forma de seres vivos socializados, sob a forma
de Alfas ou de Epsilões, de futuros varredores ou de futuros Directores de
Incubação.
10
Na obra Animal Farm, Orwell imagina um trágico futuro para a civilização em
consequência da capacidade do Estado em controlar os indivíduos através da violência e da
propaganda. Com esta capacidade ilimitada do Estado, é legitimada a existência de uma
polícia omnipresente e de métodos brutais, que pode ser passiva (com violência
psicológica) ou armada (com violência física) ou ainda mista, envolvendo as duas
componentes, o que, aliás, acontece com frequência, ainda que nem sempre a intimidação
psico-física passe ao acto físico de execução, ao mesmo tempo que são utilizadas diversas
formas de propaganda, com adaptações aos diferentes sectores da sociedade.
A originalidade de Orwell, no seu romance e no apêndice Os princípios da
novilíngua, é mostrar a eficácia que pode ter a manipulação da linguagem e sobretudo a
redução das palavras e da sintaxe. É notória em Animal Farm:
a existência de slogans ou de palavras de ordem, facilmente inteligíveis e
repetíveis devido a uma fácil memorização, e em que se concentram os aspectos
de simplificação dos pontos comuns a um grupo, dando-lhes consciência fácil da
sua consistência, um pouco como nas expressões publicitárias.
Acreditando na promessa utópica, o presente tornar-se-ia cúmplice do futuro
ilusório e perverso dos regimes totalitários que o espreitam.
115
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Educação
- Da razSo filosófica à razão pedagógica
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Dimensão Antropológica da Utopia
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Em 1929, Karl Manheim vai distinguir utopia de ideologia, procurando provar
que, embora muitas vezes sejam confundidas, a utopia não é ideologia. Assim, para Karl
Manheim, as ideias utópicas "não são ideologia, na medida e desde que conseguem,
através de contra-actividade, transformar a realidade histórica existente noutra, mais de
acordo com as suas próprias concepções".12 De facto, elas são concebidas, muitas vezes,
menos como ficções e mais como modelos susceptíveis de orientar a acção, levando-as a
serem confundidas com a ideologia, o que as prejudica na sua identidade e,
consequentemente, em aspectos fundamentais da vida do homem, pondo em causa a sua
dimensão antropológica.
Também para Paul Ricoeur, sendo a utopia evasão e não distorção, ela demarca-se
definitivamente da ideologia, cuja preocupação é, de facto, a de legitimação e preservação
externa de uma dada identidade, enquanto aquela se distingue como uma "alternativa ao
1^
poder presente ou uma forma alternativa de poder".
Nos nossos dias, a utopia está estreitamente ligada à linguagem particular das
nossas vidas, às esperanças indistintas que nutrimos, às propostas ideais de sociedade,
aparecendo assim, do ponto de vista sociológico, como um modo privilegiado de expressão
das sociedades contemporâneas, embora o seu significado permaneça vago, talvez porque
procure ser um pensamento de acção que, para ser eficaz, é obrigado a refutar as
determinações
demasiado
precisas. "As nossas
sociedades
modernas,
por mais
«desencantadas» que sejam, continuam a produzir sem cessar a sua própria mitologia." '
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Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagogic.
Dimensão Antropológica da Utopia
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1 K. Mannheim cit. por Julien Freund in Utopie et Violence, p. 17
2 Lewis Mumford cit. in "As Uopias" - Biblioteca Salvat de Grandes Temas, p. 76-77
3 J. P. Boutinet cit. por A. Dias de Carvalho in Utopia e Educação, p. 17
4 A. Dias de Carvalho - Utopia e Educação, p. 16
5 Idem, p. 17
6 Enciclopédia Einaudi, vol. 5, p. 358
7 Reybaud cit. in Enciclopédia Einaudi, vol. 5, p. 348
8 Enciclopédia Einaudi, vol. 5, p. 359
9 Idem, p. 358
10 Aldous Huxley - Admirável Mundo Novo, p. 29
11 Luís Nandim de Carvalho -Manipulação da Opinião Pública, p. 59
12 K. Mannheim cit. por David Maclellan in.4 Ideologia, p. 78
13 Paul Ricoeur cit. por A. Dias de Carvalho in Utopia e Educação, p. 23
14 Enciclopédia Einaudi, vol. 5, 1985
117
Dimensão
Violência e Educação
Antropológica da Utopia
- Da razão filosófica à razão pedagógica
3.2 - Utopia e Pedagogia - O Lugar da Utopia na Educação
Como nasce a utopia no processo educativo? Escreveu a este respeito A. Dias de
Carvalho:
A utopia aparece, no âmbito de uma aproximação crítica entre as finalidades
antropológicas e os objectivos dos projectos pedagógicos, tanto ao nível
individual, como no plano dos discursos educativos. Na verdade, a função
mobilizadora
e crítica das utopias parece
ser imprescindível para
o
desenvolvimento dos processos educativos, sobretudo, enquanto estes podem ser
considerados como percursos antropológicos.
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Octavi Fullat, por seu turno, considera que podemos suspeitar que o seu
aparecimento se deve à insatisfação causada pela violência estruturante do próprio
processo educativo, isto porque, para este autor, "o acto educativo especificamente humano
[...] é confrontação de duas consciências; confrontação constitutivamente violenta."
Parece-nos inegável afirmar que entre pedagogia e utopia existe muitas vezes uma
relação de cumplicidade, sendo que a pedagogia foi sempre uma das maiores inquietações
das utopias clássicas, consagrando-lhe quase todas pelo menos alguns parágrafos e
dando-lhe um lugar central na vida social.
Embora
as
utopias
pedagógicas
sejam
quase
todas
marcadas
pelo
institucionalismo, elas vêem na educação um elemento determinante na organização das
outras instituições matrimoniais, familiares, ou sociais em geral. É essencialmente o
sistema educativo que, nesta perspectiva, condiciona o futuro da sociedade, porque a sua
força de integração mantém a homogeneidade do conjunto. "A educação e a doutrina moral
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dos utopianos estão em harmonia perfeita com as suas instituições e costumes.'
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Violência e naucaçao
- Da razão filosófica à razão pedagógica
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Dimensão Antropológica da Utopia
Pedagogia - O Lugar da Utopia na Educação
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Mas, embora os utopistas chamem a atenção para a importância da acção
educativa, as suas propostas pedagógicas concretas são muitas vezes tradicionalistas, no
sentido em que colocam, quase todas, o acento sobre a necessidade de respeitar as
autoridades, as pessoas mais velhas, de cultivar o sentido crítico, etc.
É mais o sistema educativo geral do que o procedimento pedagógico que é
original num ou noutro autor, que propõem, frequentemente, uma educação comum, em
ligação com o princípio da comunhão dos bens. No fundo, a educação é moral e não tolera
nenhum desvio à ordem estabelecida, mesmo se o sistema educativo geral, por causa do
seu comunitarismo, está, nele mesmo, em oposição com as ideias do tempo. Os conselhos
dados às crianças e aos jovens encaminham-nos no sentido da sociedade ideal, podendo-se
encontrá-los em todos os manuais que os educadores usam.
Esta pedagogia é desprovida de toda a liberdade e espontaneidade, mas os
utopistas acreditam que o facto de incutir às crianças unicamente o sentido das virtudes e
da ordem os preservará de todos os defeitos, vícios e revoltas.
Instruiremos a estas crianças as leis da pátria; aprenderão a respeitá-las, a
obedecer aos seus pais, aos chefes e às pessoas maduras. Acostumá-las-emos à
condescendência para com os seus iguais, a cultivar a sua amizade, a nunca
mentir.
A crítica faz-se mais directamente a propósito do fundamento do sistema
educativo global, com alguns autores a proporem uma educação às custas do Estado. Para
Campanella, por exemplo, a criança pertence à cidade e não à família.
Com Marx e Engels e, posteriormente, com toda a tradição marxista, originou-se
uma oposição clara entre utopia e ciência ou, mais exactamente, entre socialismo utópico e
socialismo científico. Graças a esta distinção, Marx e Engels tornaram-se distantes dos
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Violência e Educação
Dimensão Antropológica da Utopia
Pedagogia - O Lugar da Utopia na Educação
sistemas utópicos fechados da sua época. A utopia mais não era, para estes autores, do que
a infância do socialismo. O socialismo seria a evolução da utopia para a ciência, já que,
para eles, somente a teoria científica era a verdadeira. Na obra Socialismo Utópico e
Socialismo Científico, Marx afirma que "para fazer do socialismo uma ciência é preciso
primeiro situá-lo num plano real", indicando de maneira bem clara o sentido dessa
fórmula, em 1874-1875, nas suas Notas Críticas ao "Estatismo e Anarquia" de Bakunin:
«socialismo científico» - empregado somente em oposição ao socialismo utópico
que quer inculcar no povo projectos quiméricos em vez de limitar sua ciência ao
conhecimento do movimento social feito pelo próprio povo.
O socialismo científico define-se, assim, relativamente às utopias, como
continuidade, um estádio mais avançado, já que o desenvolvimento das ideias utópicas
estaria submetido a uma espécie de teleologia, amadurecendo ao longo da história para dar
lugar ao marxismo. Por outro lado, há uma ruptura clara entre os dois conceitos, já que,
para o marxismo, apenas o proletariado armado com uma teoria científica pode e tem
necessariamente de transformar os sonhos em realidades.
A educação poderia, neste sentido, ajudar a construir um novo mundo para a
humanidade, colocando-se ao serviço das massas. O fundamento científico da educação
socialista consiste, justamente, na "indicação de que a consciência humana está vinculada
estritamente à vida material, real e social do homem. Com base nesta tese pode
investigar-se exacta e experimentalmente a consciência humana e a sua evolução."
Apesar do aspecto revolucionário desta educação comunitária, o ambiente
continua, por todo o lado, o mesmo: ordem e disciplina. Como a política, a educação é
submetida às normas de um moralismo particular, exigente e constrangedor. "O efeito
paradoxal dessas utopias pedagógicas foi o de persuadir os educadores da sua missão
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Dimensão Antropológica da Utopia
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regeneradora relativamente a toda uma sociedade, mantendo o horizonte das suas
consciências do possível no interior dos sistemas educativos!"
A utopia pedagógica torna-se, assim, uma forma de violência. É em geral uma
pura domesticação, tendo este aspecto constrangedor da utopia chegado aos nossos dias.
As utopias pedagógicas do nosso século têm-se limitado a ser prolongamentos
das ilusões e dos impasses das utopias sociais contribuindo, desse modo, para o
reforço do círculo infernal do utopismo ideológico e para a implantação violenta
o
dos seus modelos de homem e de sociedade.
Ora, parece que não deverá ser o endoutrinamento o papel privilegiado de
qualquer utopia pedagógica, já que ele é, como afirma Reboul, a perversão da educação; ao
mesmo tempo, quando a utopia pedagógica é apontada como a solução de todos os
problemas do homem, prometendo-lhe a felicidade, não deverá ser levada tanto a sério.
Como A. Dias de Carvalho, pensamos que a utopia é constitutiva do homem e,
portanto, o cerne de uma antropologia filosófica e de uma educação que, visando-o, nele se
inspire, o que, por tal facto, leva a que seja "inadiável o esclarecimento do seu estatuto
filosófico, nomeadamente numa perspectiva antropológica, estatuto do qual se destaca o
seu próprio sentido pedagógico" 9, uma vez que as utopias hoje se inclinam para uma
pedagogia social, para o esbatimento das fronteiras entre o espaço político e o espaço
pedagógico com vista a um projecto que transforme os homens do passado em homens
novos.
Esta noção de utopia obriga, necessariamente, à sua articulação com outras ideias
que lhe são próximas, como a da esperança e a da alteridade. Uma esperança utópica, à
maneira de Bloch, em que o que busca no presente não são traços ou ruínas do passado
mas, bem pelo contrário, as potencialidades do futuro, suas antecipações ainda não
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Dimensão Antropológica da Utopia
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conscientes. Para este autor, a utopia é a "recusa do entorpecimento", do hábito, da
resignação, em suma, da morte. A história é a construção que os homens fazem no presente
com
esperança
num
futuro
melhor.
A esperança
há-de
habitar
e
preencher
permanentemente as suas lutas.
Por outro lado, a pedagogia utópica, ao ser filosófica, deve, antes de mais, ser
crítica, superando a mesmidade pelo reconhecimento e afirmação da alteridade que ela
protagoniza e radicaliza. A verdade da utopia seria então a ética, para a qual o outro não
pode ser identificado ao mesmo, isto porque o homem é um ser inconcluso que se constitui
no encontro com os outros. Parece-nos que Reboul corrobora esta nova noção mais
abrangente de utopia, ao considerar que ela é a crítica mais radical, a recusa mais profunda
das coisas tal como existem e dos homens tal como foram feitos.
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Dimensão Antropológica da Utopia
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1 A. Dias de Carvalho - "O Estatuto da Filosofia da Educação: Especificidades e Perplexidades"
(documento cedido pelo autor), p. 2
2 Octavi Fullat - La Peregrinación Del Mal, p. 21
3 Enciclpédia Einaudi, vol 5, p. 340
4 Morelly - Le Code de la Nature, p. 147-148
5 Marx cit. por J. Yves Lacroix in A Utopia, Um Convite à Filosofia, p. 102
6 B. Sucholdoski - Teoria Marxista de la Educacion, p. 27
7 Pierre Furter - Paulo Freire e Ivan Illich: Das Utopias Pedagógicas às Utopias Sociais, p. 72
8 A Dias de Carvalho - "Esboço de uma Fundamentação Antropológica do Sentido da Utopia" in Revista
da Faculdade de Letras, Série de Filosofia - N°s 12-13 - 2a série, p. 4
9 Idem, p. 3
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Violência e Educação
Dimensão Antropológica da Utopia
- Da razão filosófica à razão pedagógica
3.3 - Paulo Freire - Uma Pedagogia Utópica e Esperançosa
-Pensar que a esperança sozinha transforma o mundo e actuar movido por tal
ingenuidade é um modo excelente da tombar na desesperança, no pessimismo, no
fatalismo. Mas, prescindir da esperança na luta para melhorar o mundo, como se a luta se
pudesse reduzir a actos calculados apenas, à pura cientifwidade, é frívola ilusão. [...]
Enquanto necessidade ontológica, a esperança precisa da prática para tornar-se
concretude histórica. É por isso que não há esperança na pura espera, nem tampouco se
alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã." - Paulo Freire.
No contexto da análise sobre a utopia e das suas relações com a educação,
pensamos ser importante abordar o pensamento de Paulo Freire, o qual, no seu texto Acção
Cultural para a Libertação, define que uma pedagogia da libertação e da transformação
tem de ser uma pedagogia utópica e esperançosa, orientada para o futuro, construída a
partir de sonhos possíveis, fiel ao compromisso histórico que exige a denúncia da
sociedade existente e a vontade de uma sociedade futura melhor, com base numa teoria da
acção transformadora do homem-sujeito na (da) História.
Também no seu livro Pedagogia do Oprimido, utiliza o conceito inédito viável,
interpretado como futuro a construir. Alcançar o inédito viável implica superar uma
situação problemática através da praxis. Os homens não resolvem os seus problemas
concretos apenas através da sua subjectividade. Assim, uma pedagogia da libertação deve
ser forçosamente prática e deve desembocar na acção.
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Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
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Dimensão Antropológica da Utopia
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i a u t ó ica e Esp erançosa
Mona «fcpw autêntica não se pode falar em esperança se os braços se cruzam e
passivamente se espera. Na verdade, quem espera na sua pura espera vive um
tempo de esperança vã. A espera só tem sentido, quando cheios de esperança,
lutamos para concretizar o futuro anunciado, que vai nascendo na denúncia
militante.[...] A esperança utópica é «engajamento» arriscado.
Por outro lado, a relação de alteridade é, na pedagogia de Paulo Freire, um
elemento preponderante, já que, para além de reconhecer o papel decisivo da
intersubjectividade para a constituição da consciência, do mundo e de um projecto, e até
para a produção de um conhecimento mais seguro, consciente e crítico acerca da realidade,
Paulo Freire insiste, sobretudo, no valor absoluto que o outro deve representar para o
educador e no profundo respeito que lhe deve merecer. Para o autor, os homens educam-se
uns aos outros por meio da vida, "da responsabilidade solidária, segundo a qual toda a
educação e libertação são dialógicas ou não chegam a ser verdadeira educação e efectiva
libertação" 2, isto porque ninguém educa ninguém, nem ninguém se educa a si próprio; a
educação faz-se na relação com o mundo e com os outros: "a educação se faz então
diálogo, comunicação. E, se é diálogo, as relações entre os seus pólos já não podem ser as
de contrários antagónicos, mas de pólos que conciliem".
Estamos diante de uma "educação para a libertação, que é utópica, profética e
optimista".4 A obra de Paulo Freire, comprometida politicamente e orientada pelo projecto
da revolução e pelos princípios de um humanismo referido às realidades sociais concretas e
norteado pelo ideal da libertação global do indivíduo, em muitos sentidos não deixa de ser
uma utopia.
Usando expressões como liberdade do homem Ser Mais, não situando a acção
alfabetizadora numa análise global, ideológica e política, da exploração e
alienação das massas, das suas lutas de classe, não colocando o problema da
125
Violência e Educação
Q^
Dimensão Antropológica da Utopia
. ^ _ U m a P e d a g o g i a utópica e Esperançosa
- Da razão filosófica à razão pedagógica
origem de classe dos educadores e mantendo, de algum modo, o mito da
neutralidade, não abordando a relação entre a aproximação crítica da realidade
e a acção concreta para a transformar, limitando a alfabetização a uma
«libertação das consciências», sem a ligar a uma prática de lutas que a enraíze, a
pedagogia de Paulo Freire denuncia um suporte ideológico idealista.
Paulo Freire rejeita a educação tradicional burguesa que, assentando numa falsa
concepção de homem (um humanismo abstracto), torna o educando passivo e adaptado.
Essa educação integra-se numa "ideologia de dominação", característica das sociedades
actuais (no consumo, como no trabalho, no quotidiano, na comunicação, na relação com o
ambiente, etc.) onde é necessário dominar e mudar os homens, "recuperar" os "marginais"
sem, no entanto, mudar as estruturas sociais.
O seu «humanitarismo», e não humanismo, está em preservar a situação de que
são beneficiários e que lhes possibilita a manutenção da sua falta de
generosidade [...] Na verdade, o que pretendem os opressores é transformar a
mentalidade dos oprimidos e não a situação que os oprime e isto para que,
melhor adaptando-os a esta situação, melhor os domine.
A esta concepção de educação Paulo Freire opõe uma concepção humanista
libertadora, concebendo uma pedagogia comprometida e crítica, bastante progressista nas
suas intenções, que não separa o homem do mundo porque o considera um ser histórico.
Defende uma educação da verdade, da utopia, da imaginação criativa e da tolerância.
A sua pedagogia da Uberdade traz o gérmen da revolta, mas nem por isso seria
correcto afirmar que esta se encontre, como tal, entre os objectivos do educador.
Se ocorre, é apenas e exclusivamente porque a conscientização divisa uma
situação real em que os dados mais frequentes são a luta e a violência. 7
Ele acreditava que a educação podia melhorar a condição humana, contrariando os
efeitos de uma psicologia da opressão e, finalmente, contribuindo para o que considerava
Violência e Educação
Dimensão Antropológica da Utopia
^ ^ _ ^ p e d a g o g i a U t ó p i c a e Esperançosa
- Da razão filosófica à razão pedagógica
ser a "vocação ontológica da espécie humana": a humanização. Para tal, torna-se
necessário conhecer a realidade em que vivemos para a poder transformar.
Paulo Freire é conhecido como um filósofo e um teórico da educação, que nunca
separa a teoria e a prática. Neste sentido, consideramos que o seu projecto pedagógico se
insere num utopismo realista e não num utopismo meramente idealista:
Para mim, o utópico não é o que é irrealizável, a utopia não é idealismo; é a
dialectização dos actos de denunciar e de anunciar, o acto de denunciar a
estrutura desumanizante. Por essa razão, a utopia é também empenhamento
histórico.
A sua pedagogia não se esgota no acto escolar nem tão pouco no educativo.
Fortemente ideológica, a educação vincula-se, nesta perspectiva, a uma ética de libertação
e realização pessoal ligada ao desenvolvimento global social e político. Na sua obra Uma
Educação para a Liberdade, o autor afirma:
Uma educação só é verdadeiramente humanista se, ao invés de reforçar os mitos
com os quais se pretende manter o homem desumanizado, esforça-se no sentido
da desocultação da realidade [...] A minha praxis é, necessária e constantemente,
a unidade entre a minha acção e a minha reflexão [...] Na educação para a
libertação, o instrutor convida o aluno a conhecer, a descobrir a realidade de
maneira crítica [...] A concepção humanista, problematizante, da educação,
afasta qualquer possibilidade de manipulação do educando.
O propósito de Paulo Freire não era alfabetizar para dissimular o atraso técnico e
económico dos países da América Latina, mas para que se alterasse a mentalidade dos
seres aprisionados pelo que chama "culto do silêncio", já que este nega o direito ao
conhecimento e à educação. A sua obra funciona como uma espécie de consciência crítica,
Violência e Educação
paulo
Dimensão Antropológica da Utopia
^ ^ _ U m a P e d a g o g i a utópica e Esperançosa
- Da razão filosófica à razão pedagógica
que nos põe em guarda contra a despolitização do pensamento educativo e da reflexão
pedagógica.
Conscientização é o conceito chave do método de Paulo Freire, entendendo-se por
isso o processo pelo qual o homem aprende a perceber (não como mero recipiente, mas
como sujeito interveniente) as contradições sociais, políticas e económicas. Mas, para que
o seu método tenha êxito, o autor define a teoria gnoseológica que o legitima, prevenindo
ser de evitar dois erros: o do psicologismo ou subjectivismo, em que é a consciência quem
cria a realidade, e o da hipertrofia da objectividade, que implica o objectivismo, que
exacerba o seu poder para criar ou condicionar a consciência.
De um ponto de vista dialéctico, eu não aceito a dicotomia ingénua existente
entre consciência e mundo. A subjectividade e a objectividade estão tão
imbricadas, compenetram-se tão profundamente que é impossível falar da
«incarnação da subjectividade na objectividade» [...] Se quebrarmos essa
dialéctica, caímos nas ilusões do idealismo (subjectivismo) tanto como nos erros
do objectivismo.
Só a dialectização dinâmica processual e permanente entre a consciência e o
mundo (a subjectividade e a objectividade) leva a compreender o que é a conscientização e
o papel da consciência na libertação do homem, embora a reflexão, por si só, bem assim
como a acção também isolada, não seja suficiente para essa libertação.
O saber humano implica, então, uma unidade permanente entre a acção e a
reflexão sobre a realidade. Alfabetizar é, portanto, conscientizar, estando esta alfabetização
fortemente ligada à prática, já que, para Paulo Freire, a linguagem e o trabalho são
indissociáveis, e os trabalhadores aprenderiam a 1er muito mais rapidamente se os
Violência e Educação
Dimensão Antropológica da Utopia
_ U m a P e d a i a U t ó p i c a e Esperançosa
- Da razão filosófica à razão pedagógica
problemas da leitura fossem identificados com os da política, da economia, dos sindicatos,
enfim, da vida. A alfabetização dos adultos seria um meio de libertação dos oprimidos.
Acerca da escola, partilha da opinião de Ivan Mich, considerando-a um
instrumento de controle social, uma instituição de domesticação ou manipulação que não
favorece a tomada de consciência dos problemas reais, mas que apenas mantém o "status
quo", mitificando a realidade com vista à mitificação da consciência. Critica também a
cumplicidade das Igrejas no funcionamento dos sistemas escolares burgueses. "Ao lado do
tema da conscientização que, de facto, habita profusamente os textos deste período, uma
outra preocupação se revela evidente: a denúncia da pseudo-neutralidade das Igrejas e das
instituições educativas, sobretudo, em matéria política".
Relevante em Paulo Freire são os pressupostos antropológicos, filosóficos e
pedagógicos que informam a sua pedagogia de libertação:
eles formam, no seu iodo, um conjunto de ideias reguladoras que podem reavivar,
hoje, o espírito inconformado de muitos educadores honestos que se sentem
asfixiados entre programas, notas, burocracia e, principalmente, diante da
questão moral de se sentirem instrumentos de perpetuação do status quo
domesticador, através do sistema educativo.
Considerando que não pode haver renovação pedagógica sem uma renovação
gobal da sociedade, as exigências pedagógicas de Paulo Freire levam-no, assim, a assumir
uma posição política. Contudo, Paulo Freire não se considera um político, mas um
pedagogo. Confia que a sua pedagogia servirá para que os "alfabetizados" adoptem uma
posição crítica face à sociedade.
Para o autor, é essencialmente importante que o povo ganhe, através de uma
educação de decisão e responsabilidade social e política, uma consciência crítica capaz de
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_
Violência e Educação
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- Da razão filosófica à razão pedagógica
ultrapassar um comportamento de rebelião, tornando-se activamente responsável numa
sociedade a construir.
Paulo Freire condena as elites no poder por só pensarem em defender os seus
interesses, mas também se opõe às pretensões das novas elites que manipulam as massas
recém-alfabetizadas ou que despertam ilusões por um activismo sectário. Orienta a sua
reflexão para a tomada de consciência, que constitui o seu interesse central, pois está
convencido que nenhuma educação pode ser neutra.
Uma pedagogia da liberdade pode ajudar uma política popular, pois a
conscientização significa uma abertura à compreensão das estruturas sociais
como modos de dominação e da violência. Mas cabe aos políticos, não ao
educador, a tarefa de orientar esta tomada de consciência, numa dimensão
13
especificamente política.
A violência encontra-se, assim, arredada do seu projecto pedagógico. "Outros,
com uma experiência idêntica da dependência e da dominação, animados também pelo
desejo profundo da libertação, percorreram outros caminhos e entregaram-se a outras
tarefas: à guerrilha, à luta política, ou à liderança revolucionária"14, utilizando a violência
em nome da "guerra justa" e da "utopia".
Numa época de tanto desalento como a que estamos a atravessar, "e porque toda a
coragem é necessária, toda a esperança é legítima" (Joaquim Pessoa), pensamos que a
pedagogia de Paulo Freire, utópica e esperançosa, com o seu carácter antideterminista e a
sua confiança na possibilidade de mudança, pode constituir um valioso contributo para a
necessária transformação individual e colectiva do homem, pela educação e sem violência.
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pauio
Dimensão Antropológica da Utopia
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- Da razão filosófica à razão pedagógica
1 Paulo Freire cit. por J. Neves Vicente in "Educação, Diálogo, Critica e Libertação na Acção e no
Pensamento de Paulo Freire" - Revista Filosófica de Coimbra, n. 8, p. 396
2 J. Neves Vicente - "Educação, Diálogo, Critica e Libertação na Acção e no Pensamento de Paulo Freire"
in Revista Filosófica de Coimbra, n.° 8, p. 378
3 Paulo Freire - Uma Educação para a Liberdade, p. 18
4 "Apprendre à Être" (Unesco), cit. por A. Reis Monteiro in Educação, Acto Político, p. 54
5 François Maspero cit. por A. Reis Monteiro in Educação, Acto Político, p. 55
6 Paulo Freire - Pedagogia do Oprimido, p. 85-86
7 Francisco C. Weffort in "Educação e Política" - Introdução ao livro Educação como Prática da
Liberdade, de Paulo Freire (Ed. Paz e Terra, Brasil), p.ll- 12
8 Paulo Freire cit. por Pierre Furter in Paulo Freire: Política e Pedagogia, p. 86
9 Paulo Freire - Uma Educação para a Liberdade, p. 13-14-18-26-49
10 Idem, p. 56
11 J. Neves Vicente - "Educação, Diálogo, Críúca e Libertação na Acção e no Pensamento de Paulo Freire
in Revista Filosófica de Coimbra, n.° 8, p. 397
12 Idem, p. 405
13 Francisco C. Weffort in "Educação e Política" - Introdução ao livro Educação como Pratica da
Liberdade, de Paulo Freire (Ed. Paz e Terra, Brasil), p. 16
14 J. Neves Vicente - "Educação, Diálogo, Crítica e Libertação na Acção e no Pensamento de Paulo Freire"
in Revista Filosófica de Coimbra, n.° 8, p. 400
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Violência e Educação
Dimensão Antropológica da Utopia
- Da razão filosófica à razão pedagógica
3.4 - Da Utopia à Violência
Talvez a utopia seja apenas um sonho literário, uma forma de compreensão, um
meio de evasão, ou um instrumento para atrair a atenção sobre os problemas. De qualquer
forma, ela faz parte integrante do homem e foi sempre um dos meios para exprimir
esperanças contraditórias ao longo das épocas.
Da mesma forma que a imaginação é uma forma inerente a todo o pensamento,
existe necessariamente um imaginário político, no qual a utopia é um dos
aspectos mais importantes. Também, com toda a probabilidade, o homem
encarará sempre a sociedade sob a categoria da idealidade. l
Entre utopia e violência não há necessariamente correlação, na medida em que
uma não reclama forçosamente a outra. As utopias clássicas da ordem do imaginário
dão-nos até a imagem de uma sociedade ideal através de uma cidade sem violência. A
afinidade que, nos nossos dias, se pode constatar entre uma e outra, é recente e é,
essencialmente, produto do utopismo contemporâneo.
É principalmente a partir do fim do século XVIII que aparecem as primeiras
justificações filosóficas da violência, em ligação com o prestígio crescente que adquire a
ideia revolucionária. Foi, por conseguinte, um longo caminho dos espíritos que conduziu à
situação actual, onde utopia e violência se entrecruzam tantas vezes.
Mas a mistura de utopia e violência toma-se explosiva, como o provam a maior
parte das ideologias modernas. Ela pode dar lugar a actos horríveis, a torturas e
a mortes, paradoxalmente em nome da esperança numa vida melhor, mais serena
e mais harmoniosa.
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Violência e Educação
Dimensão Antropológica da Utopia
Da Utopia à violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Nas utopias experimentais imediatamente posteriores à Revolução Francesa, a
violência encontra-se legitimada, sendo que esta legitimação lhe vem de uma razão de
Estado Absoluto, ou de uma filosofia totalitária que impõe os seus modelos de homem e de
sociedade.
O terrorismo marca a passagem da racionalização das sociedades modernas à
intelectualização das sociedades contemporâneas. Dão-nos disso exemplo o nacionalismo e
certo tipo de socialismo. Uma análise profunda do nacionalismo (de direita ou de esquerda)
mostra que esta ideologia é fundada sobre o espírito da vingança. Terrorismo e utopismo
estão em parte ligados (o projecto é comum a Hitler e a Staline).
Existia, efectivamente, uma utopia nazi, poderosa e mob ilizadora, fortemente
estruturada, que fazia parte integrante da ideologia hitleriana, amplificando e
concretizando as promessas dos seus mitos através de outras tantas imagensforça. [...] A utopia comunista, enquanto elemento constitutivo da ideologia
dominante, funciona portanto como factor de opressão real, fazendo parte do
vasto dispositivo de violência simb ólica, e de violência pura e simples, instalada
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pelo poder.
É assim que o utopismo se torna a justificação da violência, confiscando em seu
proveito a falsa aparência da virtude. Não se justifica a violência por ela mesma, mas pelos
efeitos utópicos que se consideram realizáveis. Ela é a via para chegar à liberdade,
igualdade, felicidade e justiça. Animados pela esperança de realizar os fins últimos da
utopia, cegam-se a si mesmo quanto à ferocidade da violência que exercem. A utopia e a
violência tornam-se cúmplices nos projectos colectivos que veiculam muitas das ideologias
contemporâneas. Vemos, muitas vezes, as utopias fazerem parte do dispositivo totalitário
ao serviço do poder, bloqueando a imaginação e controlando-a perfeitamente.
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Violência e Educação
Dimensão Antropológica da Utopia
D a utopia à Violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
O totalitarismo é a forma mais moderna, e também a mais racionalizada e a mais
insuportável de um regime que, em nome de uma utopia, utiliza a violência. Mas, no
fundo, este género de regime existiu sempre. Segundo as épocas, foram chamados de
tiranias, despotismo, ditaduras... Nestes casos, a política reduz-se a uma técnica de
aplicação constante da violência, em proveito de uma minoria que se mantém no poder por
esse meio, alienando os cidadãos através da propaganda e da ideologia, fazendo-se muitas
vezes passar por um governo libertador.
É evidente que nem todo o pensamento utópico moderno tem ligação com a
violência, até porque a maior parte das antiutopias nos colocaram de sobreaviso contra o
atentado crescente dela sobre os seres humanos, mas, em geral, o utopismo contemporâneo
legitima, ou pelo menos desculpa, a violência. Refere Julien Freund, na obra Utopie et
Violence:
A utopia e a violência crêem poder determinar definitivamente o destino dos
homens: a primeira imaginando a cidade perfeita ou idealizando um paradigma
da sociedade futura, a segunda confiando aos partidos^ ou às organizações a
missão de agente redentor ou libertador da humanidade.4
Também a Paul Ricoeur parece que vivemos numa época em que o espírito de
dominação e de violência é o preponderante na relação entre os homens. Reflectindo sobre
a sociedade contemporânea, sublinha:
Nós difundimos em todos os nossos comportamentos um modelo a que podemos
chamar modelo técnico. Quero eu dizer que estamos, relativamente a todos os
seres, numa relação que os coloca ao nível do manejável, do utensílio. Esta
extensão sem fim do disponível, do manipulável, propõe-nos um modelo de
c
existência onde todas as coisas se tornam objecto de domínio.
5
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Violência e Educação
Dimensão Antropológica da Utopia
Da Utopia à Violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Ainda em relação ao mesmo assunto, manifestando preocupação quanto à
possibilidade de realização de utopias, no que elas têm de perverso, refere Nicolas
Berdiaeff:
As utopias aparecem como bem mars realizáveis do que se acreditava noutros
tempos E encontramo-nos, actualmente, perante uma questão não menos
angustiante: «Como evitar a sua realização definitiva?...» As utopias são
realizáveis. A vida corre em direcção a elas. E talvez comece um novo século, um
século em que os intelectuais e as classes cultas sonhem com o modo de evitar a
utopia e de voltar a uma sociedade não utópica, que seja menos «perfeita» e mais
livre.
Uma coisa é certa, da mesma forma que julgamos os nossos antepassados, nós
seremos julgados pelas gerações futuras. É de prever que esse julgamento seja severo, jã
que a onda de violência em que ho,e vivemos é tão grande que é impossível que ela não
deixe marcas muito fortes para as gerações vindouras.
Existem, de facto, nos nossos dias, utopias totalitárias alimentadas pelo fanatismo
politico e impostas pelo terror que se mostram mortíferas até ao limite. A falta de
autenticidade afecta a credibilidade de grande número de governos e seus agentes, porque,
enquanto não param de pronunciar o discurso humanista, também não deixam de alimentar
a corrida armamentista, ou mesmo de desencadear conflitos graves. Mas, a par delas,
muitos movimentos orien,am-se na esperança da realização dos factores positivos da
utopia, factores esses que nos obrigam a compromissos no plano ético, social e político,
que pensamos serem essenciais no combate à violência.
135
Violência e Educação
Dimensão Antropológica da Utopia
Da Utopia à Violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
1 Julien Freund - Utopie et Violence, p. 11
2 Idem, p. 9
3
Enciclopédia Einaudi, vol 5, p. 382 e 385
4 Julien Freund - Utopie et Violence, p. 9
5 P. Ricoeur - Prévision Économique et Choix Éthique, p. 188
6 Nicolas Berdiaeff in epígrafe ao A dmirável Mundo Novo de A. Huxley
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Considerações Finais
Violência e Educação
Considerações Finais
- Da razão filosófica à razão pedagógica
A questão com que iniciámos o nosso trabalho prendia-se, desde logo, com a
reflexão filosófica da problemática da violência, já que a violência se tornou um dos
símbolos da realidade contemporânea.
Ela não é uma invenção da nossa época, como procurámos demonstrá-lo, mas a
verdade é que a brutalidade física e/ou psicológica manifesta-se hoje desmesuradamente.
Daqui resultou a necessidade de enfrentar um problema essencial - que era o de tentar
compreender porque é e como é que esta época, ao mesmo tempo que viu proclamar, com
maior veemência do que em qualquer outra, os ideais da paz universal, da justiça, da
igualdade e da tolerância, levou entretanto a um extremo sem precedentes a ameaça à
própria manutenção do género humano.
Esta dimensão assustadora que a brutalidade atingiu no nosso tempo não reside
tanto na manifestação continuamente crescente da violência individual e colectiva
(principalmente provocada mediante planos pré-estabelecidos) mas, principalmente, na
crescente habituação e regularidade com que a encaramos. A violência é um recurso à
força que pode revestir formas variadas e extremas, desde a coacção até ao homicídio.
Todos os dias somos testemunhas, directa ou indirectamente, de cenas de
violência que se produzem pelo mundo ou perto de nós: guerras, atentados, assassinatos,
suicídios ou, mais simplesmente, outras violências nas suas formas quotidianas mais
banais.
Seja qual for a forma que assume ou sob a qual se esconde, a violência não é
senão, de um modo geral, um condenável atentado que, por motivos diversos, sejam eles
138
Violência e Educação
Considerações Finais
- Da razão filosófica à razão pedagógica
de índole étnica, religiosa, económica, política ou outra, atinge a liberdade e a dignidade da
pessoa humana. Para Yves Michaud:
Existe violência quando, numa situação de interacção, um ou vários actores agem
de maneira directa ou indirecta, em massa ou dispersos, atacando uma ou várias
pessoas em graus variáveis, seja na sua integridade física ou na sua integridade
moral, seja nos seus bens ou nas suas participações simbólicas e culturais.
!
A violência gera violência e, por isso, o combate contra ela não pode ser, em
princípio, levado a cabo com o recurso às mesmas armas. E dizemos em princípio porque
não nos parece rejeitável que, em determinadas circunstâncias, um tipo ou outro de
violência possa alcançar uma certa aceitação perante uma consciência ética.
De qualquer forma, a violência do homem racional tem todas as hipóteses de
servir de pretexto ao homem não-racional. Julgamos, por isso, que é um dever cívico
tentar, com todos os meios ao nosso alcance, reduzir a violência até ao mínimo, embora tal
empreendimento não deva assentar no recurso a essa mesma violência. Escreveu a este
respeito Fernando Savater:
Não sei se os resultados que a não-violência conseguir contra a violência serão
óptimos, mas tenho a certeza que os conseguidos pela violência contra a
violência são péssimos.
De facto, com Eric Weil, o autor de referência que escolhemos para tratar o tema
da violência, pensamos que "a violência, por necessário que pareça o seu emprego no
imediato, leva os cidadãos a atitudes, a actos e a hábitos contrários à racionalidade".3 De
qualquer forma, depois de analisar mais profundamente as suas obras, concluímos que,
apesar da aposta feita na razão como forma de combater a violência, a lógica da sua
filosofia não permite entrever uma história que saia da lógica da violência.
139
Violência e Educação
Considerações Finais
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Para o filósofo, a violência, se bem que considerada em si mesma seja negativa,
desempenhou e ainda desempenha um papel positivo para a chegada da liberdade ao
mundo:
a violência deve ser compreendida naquilo que tem de positivo, pois é a mola sem
a qual não existiria movimento; não passando de negatividade em cada ponto, ela
é, na sua totalidade, a positividade do ser que se reconhece racionalmente como
liberdade.
Paradoxalmente, a filosofia, que é essencialmente recusa da violência, não a
recusa de forma absoluta. Ela própria, concede Eric Weil, "recomenda o emprego da
violência, porque é levada a constatar que deve opor-se à violência." 5
É verdade que Eric Weil não fecha a história na fatalidade da violência, como
fazem as ideologias da violência. Ele defende a possibilidade de uma história não-violenta
até ao final da sua reflexão. Com efeito, não é fatal que os homens escolham a violência.
Eles fazem-no livremente. De resto, nem todos o fazem, e Weil pensa que são cada vez
menos a fazê-lo. Mas, se é verdade que basta que alguns deles escolham a violência para
que aqueles que escolheram a razão se encontrem na necessidade de recorrer eles próprios
à violência para os neutralizar, a história está perfeitamente fechada na violência. Desde o
momento em que o homem não se deixa convencer pelos argumentos da razão, é preciso
coagi-lo pelos argumentos da violência. Afirma, a este propósito, o autor:
Se o facto de propor aos homens a razão, em vez de lha impor, fosse um processo
suficiente para que eles se tornassem racionais, já há muito que a violência não
reinaria entre nós.
Confrontando-se com esta questão do destino da razão, a teorização deve
elevar-se ao nível de um reexame radical que questione o acasalar da razão e da barbárie na
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Violência e Educação
Considerações Finais
- Da razão filosófica à razão pedagógica
história. Não se pode, racionalmente, legitimar a violência. Para tal, prefere-se, muitas
vezes, ignorar as alternativas que se poderiam empregar em sua substituição. Por outras
palavras, trata-se de pensar como é que a razão humana pode entrar num conflito tão
grande consigo própria.
A razão é, de facto, preferível à violência, sob a única condição de não se tornar
sua cúmplice, ou de se tornar ela também uma forma de violência. Não deixamos de
acreditar na razão e partilhamos com Friedrich Hacker a ideia de que "à razão crítica e
autocrítica cabe muitas vezes razão. Talvez possamos encontrar-nos no direito de esperar
que acabará um dia por ganhar a realização de algumas das suas pretensões."
É por isso que pensamos que hoje cabe à filosofia e, mais concretamente, à
filosofia da educação este esforço de «regeneração» da razão no caminho da
perfectibilidade e da educabilidade do ser humano, com vista a atacar as raízes da
violência. Concordamos com A. Dias de Carvalho, quando afirma que:
A educação contemporânea (para a cidadania, para a paz, a educação
intercultural, ambiental, etc) [...]passa pela razão filosófica. Com efeito, esta
educação deverá ser antes de mais uma educação capaz de desenvolver a
capacidade cultural - e não somente biológica - de uma resistência vital:
resistência à violência compreendida como característica humana hereditária
mas que, enquanto tal, se deverá identificar e circunscrever no domínio da sua
realização ao nível da história. Em nome de uma liberdade com razão
(«raisonnable») que a reconhece mas que, ultrapassada como liberdade racional,
já não a aceita no seu interior. Todavia, reconhecemo-la no contexto de uma
razão aberta, a qual considera, ao nível antropológico, a negatividade violenta
do homem (apesar do facto de não a admitir no seio da sua coerência). 8
Por tudo isto, a educação contemporânea não se pode reduzir a uma mera
transmissão de conhecimentos, a um qualquer cognitivismo mecanicista, alheio a
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Considerações Finais
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
conteúdos éticos ou valorativos. A educação não cultivará os direitos do homem, a
democracia e a paz se, de uma forma critica, não participar estes valores. Neste contexto, é
decisivo o contributo da razão filosófica para a fundamentação e desenvolvimento de uma
razão pedagógica que, assim, sendo humanamente empenhada, será antropologicamente
sustentada pelo labor descomprometido da filosofia.
O vazio existencial e de princípios é não apenas gerador de violência, como
constitui antes uma autêntica educação para a violência, por ocultamente de um conjunto
de valores que poderiam e deveriam dar sentido à vida humana, como a paz, a
solidariedade, a fraternidade, a justiça, a tolerância...
A indiferença sobre os valores e sobre o mal pode abrir caminho a uma perigosa
apatia susceptível de tornar a nossa sociedade vulnerável à barbárte e ao
totalitarismo [...] «o vazio de valores,, pode levar-nos, de facto, da ausêncta de
9
causas ao fanatismo.
Vivemos tempos difíceis de confrontação e sofrimento, mas acreditamos e temos
esperança que a violência e as suas manifestações diminuam. Hoje, despontam sinais bem
claros e vibrantes da proclamação e da defesa dos direitos humanos, da tolerância, da
afirmação do valor da liberdade e da dignidade da pessoa humana, da solidariedade
inquebrantável entre os homens e as gerações.
Violência e Educação
Considerações Finais
- Da razão filosófica à razão pedagógica
r ^ ^ i d
Cit. por Gustave-Nicolas Fischer ia A D.ndmica Social, Valência, Poder, Mudança, p. 18
2 Fernando Savater - Sobre Viver, p. 56
3 Eric Weil - Philosophie Politique, p. 238
4 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 55
5 Idem, p. 58
6 Eric Weil - Philosophie Politique, p. 21
7 Friedrich Hacher - Agressividade (A Violência no Mundo Moderno), p. 345
8 A. Dias de Carvalho - Education et Violence, p. 8
9 Guilherme d' Oliveira Martins - Educação ou Barbárie, p. 212
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Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
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