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J. Bras. Nefrol. 1997; 19(4): 386-389
Linfoistiocitose hematofagocítica em transplante renal: relato de caso e revisão da literatura
Euler P. Lasmar, Archimedes N. Santos, José de Souza Andrade, Eduardo R.F. Távora,
Sandra S. Vilaça, Patrícia V. Lima, Rogéria Silva, Marcus F. Lasmar
A linfoistiocitose hematofagocítica (LH) constitui uma síndrome
clínico-patológica associada à febre, pancitopenia severa, disfunção
hepática e distúrbio da coagulação, com hematofagocitose no nível da
medula óssea e órgãos linfóides. Ocorre em pacientes imunossuprimidos,
sendo induzida por infecções bacterianas, viróticas, fúngicas e
parasitárias, bem como neoplasias, especialmente os linfomas de células
T. Este trabalho relata o
primeiro
caso
conhecimento
do
de
Introdução
nosso
LH
em
transplante renal no Brasil,
discutindo-se a etiologia,
f i s i o p a t o g e n i a ,
manifestações clínicas e
tratamento da doença.
Centro de Tratamento de Doenças Renais - Hospital Felício Rocho.
Endereço para correspondência: Euler Pace Lasmar
Rua Odilon Braga 1254, Mangabeiras
CEP: 30310-390 Belo Horizonte - MG
Tel.: (031) 295-5000 - Fax: (031) 339-7370
Linfoistiocitose Hematofagocítica,
Hematofagocitose, Transplante Renal,
Histiocitose.
Hemophagocytic Lymphohisticytosis,
H e m o p h a g o c y t o s i s ,
Renal Transplant, Histocytosis.
A síndrome da linfoistiocitose hematofogocítica (LH)
constitui uma das entidades que fazem parte das histiocitoses,
doenças caracterizadas pela ativação dos macrófagos, com
intensa hematofagocitose no nível da medula óssea, fígado,
baço, linfonodos e sistema nervoso central.1 As principais
patologias que induzem a LH são as infecções provocadas
por bactérias, vírus, fungos e parasitas, e as neoplasias,
especialmente os linfomas de células T.2 Entre as bactérias
que podem desencadear a síndrome, já foram descritas:
mycobactéria, 3 salmonella, 4 mycoplasma 5 e brucella. 6 As
principais viroses determinantes da LH são constituídas pelo
citomegalovírus, 7 herpes vírus, 8 Epstein-Barr 9 e HIV.10 As
doenças parasitárias são representadas pela leishmaniose 11
e babesiose.12 Embora a histiocitose maligna, que constitui
uma variante das histiocitoses, tenha sido descrita em 1939
por Scott e Robb-Smith, 13 a LH somente foi reconhecida
por Chandra e cols. 3 em 1975, como uma forma transitória
benigna de hematofagocitose. Em 1979 Risdall e cols. 8
descreveram os primeiros casos clínicos e Calonge e cols. 14
publicaram em 1995 os dois primeiros casos de LH em
transplante renal com uso de ciclosporina. Desde então,
outros 5 casos da doença em transplante renal foram
publicados por Rostaing e cols. 15 Neste artigo os autores
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J. Bras. Nefrol. 1997; 19(4): 386-389
E. P. Lasmar et al - Linfoistiocitose hematofagocítica em transplante renal
apresentam o caso de um paciente com LH em transplante
renal, induzida por citomegalovirose, constituindo-se ao
nosso conhecimento do primeiro caso publicado na literatura
brasileira.
Apresentação do caso
MRS, 31 anos, feminina, branca, portadora de
insuficiência renal crônica devido à amiloidose secundária
(osteomielite crônica), foi submetida a transplante renal com
doador cadáver em outubro de 1994. Recebeu alta no 11º
dia de pós-operatório com nível de creatinina 1,1 mg/dl em
uso de ciclosporina, azatioprina e prednisona. Em janeiro
de 1995 houve piora da função renal (creatinina = 2,8 mg/
dl) sendo submetida a biópsia renal, que mostrou presença
de nefrotoxicidade por ciclosporina. O nível sangüíneo da
ciclosporina era de 260 ng/ml (RIE-Monoclonal específico)
e a dose administrada 6,5 mg/kg/dia, ocorrendo queda da
creatinina para 2,2 mg/dl após a diminuição da dose para
5,2 mg/kg/dia. Foi reinternada em fevereiro com gravidez
de 7 semanas e nível de creatinina 5,0 mg/dl. Biópsia do
rim transplantado realizada nesta época mostrou
microangiopatia trombótica, sendo suspensa a ciclosporina.
Persistiu com insuficiência renal e em abril foi submetida à
curetagem uterina devido a abortamento incompleto. No
início de maio foi atendida com quadro de febre, tosse seca,
anorexia, emagrecimento, prostração e pancitopenia (Hb 4,6
g%, global de leucócitos 500/mm3, plaquetas 26.000/mm3).
Não apresentava linfadenopatia, icterícia e
Figura 1
1. Aspirado da medula óssea mostrando macrófago
com hemácias fagocitadas (Giemsa-1000X).
hepatosplenomegalia. Exames complementares mostraram
creatinina 6,7 mg/dl, alanina aminotransferase 21U/L,
aspartarto aminotransferase 11U/L, bilirrubina direta 0,3 mg/
dl e indireta 0,4 mg/dl, imunofluorescência no soro (IgM)
negativa para toxoplasmose e Epstein-Barr vírus, e positiva
para citomegalovírus. Rx de tórax mostrou infiltrado intersticial difuso e aspirado de medula óssea revelou
hipocelularidade, sinais de diseritropoiese, megaloblastose
e presença de 10% de macrófagos fagocitando hemácias
(Figura 1). A paciente foi medicada com ganciclovir,
desenvolveu septicemia e foi a óbito devido a falência de
múltiplos órgãos. Fragmento de fígado removido após o
óbito evidenciou inúmeras células de Kupffer com hemácias
fagocitadas (Figura 2).
Discussão
As histiocitoses constituem doenças em que ocorre
proliferação anormal dos histiócitos, associando-se à
fagocitose de hemácias, leucócitos e plaquetas
(hematofagocitose) no nível do sistema retículo endotelial e
nervoso central. São classificadas1 em histiocitose de células
de Langerhans, linfoistiocitose hematofagocítica (LH) e
histiocitose maligna. A LH apresenta-se sob a forma genética
(autossômica recessiva) descrita em 1952, 16 ou esporádica
(provocada por infecções ou neoplasias), sendo esta a forma
mais comum da doença. Estas duas variantes são indistingüíveis do ponto de vista clínico, patológico e bioquímico.
Figura 2
2. Biópsia hepática mostrando no centro várias
hemácias fagocitadas por células de Kupffer (HE-450X).
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Uma revisão da literatura 17 mostrou que a LH ocorre com
maior freqüência no sexo masculino (3:1), idade média de
50 anos, sendo a duração da doença entre 18 dias a 1 mês, e
a mortalidade de 20 a 100%. Os sintomas mais comuns
incluem febre (75%), alterações gastrointestinais (36%),
sudorese (35%), anorexia (28%), perda de peso (24,5%),
fadiga (24,5%) e manifestações respiratórias (19%).
Esplenomegalia (52,3%), hepatomegalia (50%),
linfadenopatia (43%) e “rash” cutâneo (19%) constituem as
principais anormalidades observadas no exame clínico. As
alterações laboratoriais mais freqüentes são representadas
pela anemia (85%), pancitopenia (83,5%), leucopenia (77%),
elevação sérica das aminotransferases (89%) e bilirrubinas
(66%), distúrbios de coagulação (66%) e azotemia (40%).
Recentemente,15 hipertrigliceridemia tem sido observada. O
aspirado de medula óssea mostra invariavelmente
hematofagocitose (100%), diseritropoiese (80%),
hipocelularidade (60%), aumento de megacariócitos (40%),
megaloblastose (40%), diminuição de precursores de células
eritróides e mielóides (20%) e plasmocitose (20%). Os
linfonodos, fígado e baço podem evidenciar hematofagócitos
e pelos histiócitos, porém, menos acentuada que a observada
na medula óssea. 18 Até o momento, a fisiopatogenia da LH
ainda é obscura. A doença ocorre em pacientes
imunodeprimidos ou portadores de infecções que
determinam neutropenia (viroses, bruceloses, febre tifóide).
O resultado final é uma desregulação na proliferação de
macrófagos que provoca hematofagocitose e a secreção de
produtos como: (a) ativador do plasminogênio, responsável
pela hipofibrinogenemia, (b) ferritina, possível indicador da
gravidade da LH, 19 c) interleucina 1; (d) fator de necrose
tumoral, cuja concentração sérica é correlacionada com a
gravidade da doença. 20 Além disto, este fator suprime a
atividade da lipase lipoprotéica, podendo induzir a
hipertrigliceridemia. 6 Níveis elevados de interleucina 2
também têm sido observados em crianças com LH, 21 até 50
a 100 vezes o valor normal. O tratamento específico da LH
baseia-se no tratamento do agente indutor da doença
(bactérias, vírus, fungos, protozoários ou linfomas). A LH
tem sido observada na literatura 8,7,9,10,18 em poucos pacientes
submetidos a transplante renal que não utilizaram a
ciclosporina. Entretanto, recentemente, 14 foram descritos
os primeiros casos da doença em pacientes usando esta droga.
Neste trabalho apresentamos um caso de LH em transplante
renal com uso de ciclosporina, sendo induzida por
citomegalovírus e não apresentando manifestações clínicas
e laboratoriais freqüentes da síndrome, como
hepatosplenomegalia, linfadenopatia, elevação sérica das
aminotransferases, bilirrubinas e distúrbios da coagulação.
Entretanto, o aspirado de medula mostrou a presença de 10%
de macrófagos fagocitando hemácias, diseritropoiese,
hipocelularidade, megaloblastose e aumento dos
megacariócitos, típicos da síndrome de LH. Remoção de
fragmento de fígado realizado após o óbito também
evidenciou células de Kupffer fagocitando hemácias,
confirmando o diagnóstico da síndrome. O tratamento da
citomegalovirose com ganciclovir não foi capaz de reverter
a evolução da doença. Concluindo, achamos que a presença
de febre e pancitopenia severa em pacientes submetidos a
transplante renal, portadores de infecções ou linfomas, requer
propedêutica visando diagnóstico de LH.
Summary
Hematophagocytic histiocytosis is a clinicopathologic
syndrome associating fever, severe blood cytopenia, liver
dysfunction and coagulation abnormalities with
hematophagocytosis in bone marrow and lymphoid organs.
This syndrome is found in immunossupressed patients and
is triggered by infections and neoplasms, especially T cell
lymphomas. We describe herein the first Brazilian case of
hematophagocytic histiocytosis in renal transplant recipients
that we have known. The etiology, pathophysiology, clinical
features and treatment of the disease are reviewed.
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Artigo recebido em 4 de fevereiro de 1997 e
aceito para publicação em 7 de agosto de
1997.
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