Ensinar e aprender/aprender e ensinar

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ENSINAR E APRENDER/APRENDER E ENSINAR: O LUGAR DA TEORIA E
DA PRÁTICA EM DIDÁTICA
José Carlos Libâneo
1. Didática, campo de investigação e de exercício profissional
A identificação da didática como campo investigativo e área profissional pode
começar com uma boa pergunta: quais são as relações entre pedagogia e didática? As
respostas remetem a diferentes entendimentos. Na tradição dos estudos em didática,
fundada em boa parte em pedagogos alemães como Herbart, Dilthey e em teóricos
russos, a didática é um ramo da pedagogia, esta compreendida como ciência da
formação humana, compreendendo o fenômeno educativo em sua globalidade. Na
década de 1960, primeiro na França e depois em outros países europeus, foi introduzida
a denominação “ciências da educação”, colocando a educação como objeto de estudo de
um conjunto de ciências humanas e sociais, de alguma forma recusando cientificidade e
legitimidade epistemológica à pedagogia, provocando a dispersão no estudo da
problemática educativa. Numa outra direção, também na França, estudiosos e
investigadores da didática e das didáticas específicas iniciaram por volta dos anos ....
um movimento de valorização da didática, e especialmente das didáticas específicas,
situando didática e pedagogia como duas dimensões da docência, sem nenhuma relação
hierárquica entre elas. À didática caberia o estudo dos processos de ensino e
aprendizagem em sua relação imediata com os conteúdos dos saberes a ensinar, a
organização das situações didáticas e a escolha dos meios de ensino, enquanto à
pedagogia caberiam as questões gestão da classe em seus aspectos relacionais e na
organização de situações pedagógicas (Altet, 1997, p.11). Ou seja, para esse grupo de
autores, na didática, a aprendizagem é pensada com a lógica dos saberes, na pedagogia
com a lógica da sala de aula, ou seja, a dinâmica das relações entre alunos. Esse
movimento continua sendo bastante representativo na França, com repercussão em
vários países.
Em paralelo a esse movimento, surgiu outro grupo de investigadores
denominado de “novos pedagogos”. Entre esses, Houssaye define a pedagogia como
uma reflexão sobre a prática educativa, articulando na ação pedagógica a teoria e a
prática: “o que deve haver em pedagogia é certamente uma proposta prática, mas ao
mesmo tempo uma teoria da situação educativa referida a essa prática, ou seja, uma
teoria da situação pedagógica” (2004, p.12). Para esse autor, a pedagogia e a didática,
mais do que campos complementares, são uma e mesma coisa.
Desde os anos 1980 desenvolveram-se no âmbito anglo-americano, com difusão
no Brasil, estudos sobre currículo numa perspectiva sociocrítica com forte peso em
temas sociológicos e culturais, formando o campo da chamada teoria curricular crítica,
em que os temas da didática são subsumidos no campo do currículo. A autonomização
desse campo investigativo, antes vinculado à didática, acabou levando à formação de
dois campos científicos paralelos, com objetos de investigação coincidentes, mas que
atualmente buscam espaços de convergências.
No Brasil, onde vigora uma notória dependência do pensamento estrangeiro em
educação herdado de várias culturas e de várias tradições epistemológicas, européias ou
norte-americanas, certamente se fazem presentes todos esses significados de didática. É
assim que em nossas instituições de formação de educadores incidem posições, em meio
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a conhecidas divergências, que identificam os estudos sobre o fenômeno educativo ora
como pedagogia (ciência pedagógica), ciência da educação, ciências da educação, ora
como docência, neste caso, identificando pedagogia e ensino.
Uma breve incursão na história da educação brasileira mostraria que até o início
dos anos 1980, vigoravam principalmente dois entendimentos, o da pedagogia como
ciência da educação, na visão católica e herbartiana, e o da ciência da educação na visão
escolanovista normeamericana. A movimentação política iniciada no Brasil nessa
mesma década provocou o questionamento do formato curricular dos cursos de
formação de professores, provocado em boa medida pela introdução do pensamento
marxista na educação associada à incorporação da teoria da reprodução de Bourdieu e
Passeron e da teoria dos aparelhos simbólicos de Estado de Althusser (Cf. SAVIANI,
1983). Nesse momento a Pedagogia é criticada pelo seu lado “reprodutor”, conservador,
razão que levou algumas instituições formadoras a assumir a formulação francesa de
“ciências da educação”. Esse posicionamento, no entanto, logo cedeu espaço a
movimentos propositores de reformas no sistema de formação de professor, nos quais os
estudos pedagógicos sistematizados foram substituídos por um curso de formação de
professores, conforme o mote de que “a base da formação de todo educador é a
docência”. Essa concepção de pedagogia, praticamente identificada com a docência,
colocando no mesmo plano a pedagogia e didática, acabou prevalecendo nos currículos
de formação profissional e na própria legislação educacional em vigor desde 2006.
Adversários dessa posição criticaram nas propostas da Associação Nacional pela
Formação de Profissionais da Educação (ANFOPE) o enfraquecimento dos estudos
pedagógicos, uma vez que os cursos de Pedagogia deixaram de formar o “pedagogo”
em sentido estrito e passaram a formar exclusivamente o professor, ainda que em cursos
denominados de pedagogia (Cf. LIBÂNEO, 2009; LIBÂNEO, 2006; LIBÂNEO E
PIMENTA, 1999)
Uma visão ampliada de pedagogia
Neste texto, a pedagogia é assumida como um campo de estudos sobre o
fenômeno educativo, portadora de especificidade epistemológica que, ao possibilitar o
estudo do fenômeno educativo, busca a contribuição de outras ciências que tem a
educação como um de seus temas. A pedagogia é vista como área de conhecimento que
tem por objeto as práticas educativas em suas várias modalidades incidentes na prática
social, investigando a natureza do fenômeno educativo, os conteúdos e os métodos da
educação, os procedimentos investigativos. Entendemos que a educação se caracteriza
como processo de formação das qualidades humanas, enquanto que o ensino é o
processo de organização e viabilização da atividade de aprendizagem em contextos
específicos para esse fim. Para além do dilema posto entre o pedagogo que faz escola e
o pedagogo que pensa a educação, avançamos para um entendimento mais interativo
dessas posições, aproximando-nos, ainda que parcialmente, da posição de Houssaye
sobre o trabalho de pedagogo, em que a pedagogia é por um lado ciência, mas, por
outro, arte e também uma orientação para a ação educativa (Houssaye, 2004). Em
síntese, a Pedagogia é a teoria e a prática da educação, e a didática, o campo da
pedagogia que trata das relações entre ensino e aprendizagem, em contextos específicos.
Mencionamos que o objeto de estudo da pedagogia são as práticas educativas,
responsáveis pela atuação sobre a formação e o desenvolvimento do ser humano, em
condições materiais e sociais concretas. Por isso, as investigações teóricas e empíricas
da sociologia, da psicologia, da antropologia, da economia, da história da educação, ou
da cultura, das políticas sociais, da gestão do sistema de ensino e das escolas, da
didática, etc., devem ocorrer em função das ações e processos formativos propiciadas
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pelas várias modalidades de educação. Em outro texto proponho uma definição de
educação em relação aos processos formativos do ser humano:
A educação é uma prática social, materializada numa atuação efetiva na formação e
desenvolvimento de seres humanos, em condições socioculturais e institucionais
concretas, implicando práticas e procedimentos peculiares, visando mudanças
qualitativas na aprendizagem escolar e na personalidade dos alunos (LIBÂNEO, 2008).
É intrínseco às práticas educativas seu caráter de mediação mediante cultural o
qual favorece o desenvolvimento dos indivíduos na dinâmica sociocultural de seu
grupo, sendo que o conteúdo dessa mediação são os saberes e modos de ação, isto é, a
cultura que vai se convertendo em patrimônio do ser humano. A pedagogia refere-se à
teoria e à prática desses processos. Ela não restringe sua reflexão a práticas escolares,
mas a estende a um imenso conjunto de outras práticas educativas existentes na
sociedade sob variadas modalidades: na família, no trabalho, na rua, na fábrica, nos
meios de comunicação, na política e, também, na escola. Ao mesmo tempo, a pedagogia
tem um caráter social e político. A educação é uma prática social que busca realizar nos
sujeitos humanos as características de humanização plena, mas ela ocorre em meio a
relações sociais, ou seja, a pedagogia lida com o fenômeno educativo enquanto
expressão de interesses sociais em conflito na sociedade. É por isso que a pedagogia
expressa finalidades sócio-politicas, ou seja, uma direção explícita da ação educativa
relacionada com um projeto de gestão social e política da sociedade. A pedagogia,
portanto, é uma reflexão sobre a atividade educativa, é uma orientação para a prática
educativa, uma direção de sentido das práticas de formação humana a partir de objetivos
e valores necessários à humanização das pessoas numa sociedade concreta. Ela se refere
não apenas ao “como se faz”, mas, principalmente, ao “por que se faz”, de modo a
orientar o trabalho educativo para as finalidades sociais e políticas almejadas pelo grupo
de educadores.
Nesse modo de compreender a pedagogia está inserida a didática, que é o modo
de ser da pedagogia em situações específicas de ensino e aprendizagem. Pedagogia e
didática formam uma unidade, se correspondem, mas não são idênticas, pois, se é fato
que todo trabalho didático é trabalho pedagógico, nem todo trabalho pedagógico é
trabalho didático. A didática tem como objeto de estudo o processo de ensinoaprendizagem em sua globalidade, isto é, suas finalidades sociais e pedagógicas, os
princípios, as condições e meios da direção e organização do ensino e da aprendizagem,
pelos quais se assegura a mediação docente de objetivos, conteúdos, métodos, formas de
gestão do ensino, visando a apropriação consciente pelos alunos de conteúdos, métodos
de pensamento e modos de agir.
2. A natureza do didático: Aprender e ensinar/ensinar e aprender
Na tradição da investigação pedagógica, a didática tem sido vista como um
conhecimento relacionado a processos de ensino e aprendizagem que ocorrem em
ambientes organizados de relação e comunicação intencional, visando a formação
intelectual e moral dos alunos. Autores pertencentes à tradição da teoria históricocultural mostram a mediação didática como sendo a forma de ativação do processo de
aprendizagem. L. Klingberg escreveu que o caráter científico do ensino é dado pela
condução do processo de ensino com base no conhecimento das leis que governam o
processo de conhecimento. Segundo ele:
O processo docente do conhecimento - embora somente em alguns casos se descubra o
novo de forma objetiva – é um insubstituível campo de exercício para o
desenvolvimento das forças cognoscitivas dos alunos, para sua curiosidade, sua alegria
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pela investigação e as descobertas, sua capacidade de poder perguntar, de ver problemas
e chegar metodicamente à sua solução (1972, p. 47).
O didata russo, M. A. Danílov também antecipava um entendimento do trabalho
de professor como mediação entre os aspectos externos e os aspectos internos da
educação e do ensino, visando a consecução da aprendizagem dos alunos. Ele escreveu:
A didática estuda o processo de ensino, em cujo desenvolvimento tem lugar a
assimilação dos conhecimentos sistematizados, o domínio dos procedimentos para
aplicar estes conhecimentos na prática, e o desenvolvimento das forças cognoscitivas
dos educandos. Seu objeto de investigação é o processo de ensino em seu conjunto e sua
tarefa básica a revelação das regularidades gerais deste processo que têm caráter
objetivo, colocando em primeiro plano as condições em que se manifesta (p.34).
Na mesma direção segue Lompscher (1999), para quem a organização didática
visa a promover a atividade de aprendizagem dos alunos: “A organização didática dos
processos de aprendizagem (...) deve ser orientada em direção à atividade dos alunos”.
Desse modo, a efetividade do ensino se revela ao assegurar as condições e os modos de
viabilizar o processo de conhecimento pelo aluno, ou seja, a aprendizagem.
Numa perspectiva socioconstrutivista, Yves Lenoir reconhece, na relação
educativa escolar, a existência de dois processos de mediação: “aquele que liga o sujeito
aprendiz ao objeto de conhecimento (relação S – O), chamado de mediação cognitiva, e
aquele que liga o formador professor a esta relação S – O, chamado de mediação
didática” (cf. LENOIR, 1996, p.29). Presume-se aí um professor que assegura os modos
e condições da relação do aluno com o conhecimento.
Destaca-se nessas definições um entendimento explícito do ensino como
atividade de mediação para promover o encontro formativo - afetivo, cognitivo, ético,
estético - entre o aluno e o objeto de conhecimento, ou seja, a confrontação ativa do
aluno com a matéria, destacando-se o papel das condições concretas para a realização
dessa atividade. Em 1990 eu escrevia no livro Didática:
Definindo-se como mediação escolar dos objetivos e conteúdos do ensino, a didática
investiga as condições e formas que vigoram no ensino e, ao mesmo tempo, os fatores
reais (sociais, políticos, culturais, psicossociais) condicionantes das relações entre
docência e aprendizagem. (...) O processo didático de transmissão/assimilação de
conhecimentos, habilidades e valores tem como culminância o desenvolvimento das
capacidades cognoscitivas dos alunos, de modo que assimilem ativa e
independentemente os conhecimentos sistematizados 1 (LIBÂNEO, 1990).
A caracterização da didática como mediação do processo de ensinoaprendizagem não abandona a clássica metáfora do triângulo didático, mas a amplia, já
que a relação de mediação faz explicitar o papel do professor na orientação da atividade
de aprendizagem do aluno, considerados o contexto e as condições do ensino e da
aprendizagem. Com isso, a relação dinâmica entre três elementos constitutivos do ato
didático – o professor, o aluno, a matéria – formam as categorias da didática: Para que
ensinar? O que ensinar? Quem ensina? Para quem se ensina? Como se ensina? Sob que
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Presentemente, para identificar esse processo tenho preferido utilizar os termos apropriação ou
interiorização (também internalização), no sentido vygotskiano de que “atividades socialmente enraizadas
e historicamente desenvolvidas” são internalizadas na forma de reconstrução da atividade psicológica por
meio de operações com signos (VYGOTSKY, 1984). Em outras palavras, ações externas (objetos,
conhecimentos, conceitos, práticas sociais) se convertem gradualmente em internas, isto é, realizações do
desenvolvimento histórico do ser humano, inclusive do conhecimento humano, são apropriadas e
resignificadas pelos sujeitos com base nesse conhecimento. Embora tais significados sejam construídos
internamente pelo aluno, eles não ocorrem espontaneamente, sua internalização depende de signos
sociais, mediações culturais, implicando a intervenção do outro.
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condições se ensina e se aprende? (LIBÂNEO, 1994). Tais categorias formam, por sua
vez, o conteúdo da didática.
O “para quê ensinar” põe o problema dos objetivos da educação geral: o que se
espera da escola e do ensino em relação à formação humana, consideradas as demandas
e exigências da sociedade, da localidade, do desenvolvimento científico e tecnológico,
das exigências pela qualidade de vida? Que objetivos definir numa sociedade marcada
por desigualdades sociais, econômicas, culturais, em que os grupos sociais dominantes
exercem influência determinante sobre objetivos e conteúdos da educação escolar? O
“para quê ensinar” consiste, assim, numa questão crucial, que antecede tudo o mais.
“O que ensinar” remete à seleção e organização dos conteúdos, decorrentes de
exigências sociais, culturais, políticas, éticas, ação essa intimamente ligada aos
objetivos,os quais expressam a dimensão de intencionalidade da ação docente, ou seja,
as intenções sociais e políticas do ensino. A seleção dos conteúdos implica, ao menos,
os conceitos básicos das matérias e respectivos métodos de investigação, a adequação às
idades e ao nível de desenvolvimento mental dos alunos, aos processos internos de
interiorização, aos processos comunicativos na sala de aula, aos significados sociais dos
conhecimentos.
“Quem ensina” remete aos agentes educativos, presentes na família, no trabalho,
nas mídias. Na escola, o professor põe-se como mediador entre o aluno e os objetos de
estudo, enquanto os alunos estabelecem com o conhecimento uma relação de estudo.
“Quem ensina” supõe, pois, “quem aprende”, incluindo aí as características individuais
e socioculturais dos alunos implicadas no desenvolvimento e aprendizagem. A par disso,
professores e alunos estão implicados numa relação social que se materializa na sala de
aula mas, também, na dinâmica das relações internas que ocorre na escola em suas
práticas organizativas e institucionais, o que remete ao “como ensinar” e aos contextos e
condições em que se realiza o ensino.
O “como ensinar” corresponde aos métodos, procedimentos e formas de
organização do ensino, em estreita relação com objetivos e conteúdos, estando
presentes, também, no processo de constituição dos objetos de conhecimentos.
As condições das ações didáticas dizem respeito, no geral, ao contexto social,
cultural, organizacional, coletivo em que se situam as situações pedagógico-didáticas
concretas em que se realiza o processo de ensino-aprendizagem. Mais especificamente,
referem-se, por um lado, às políticas educacionais e diretrizes normativas para o ensino;
às práticas socioculturais, familiares, locais; por outro lado, ao funcionamento da escola
como as práticas de organização e gestão, o espaço físico, o clima organizacional, os
meios e recursos didáticos, o currículo, os tempos e espaços; às condições pessoais e
profissionais dos professores; às características individuais e socioculturais dos alunos,
às disposições internas para estudo e acompanhamento das atividades didáticas,
necessidades sociais e aprendizagem; ao relacionamento entre professor e alunos,
alunos e colegas.
Verifica-se que, a partir dos elementos constitutivos do ato didático, há uma
intensa articulação com outros campos científicos tais como a teoria do conhecimento, a
psicologia da aprendizagem e do desenvolvimento, a sociologia, a teoria do currículo, a
pesquisa cultural, etc., visando à compreensão do fenômeno ensino. Desse modo, a
didática se assume como disciplina de integração, articulando numa teoria geral de
ensino as várias ciências da educação e compondo-se com as metodologias específicas
das disciplinas curriculares. Ou seja, combina-se o que é geral, elementar, básico, para o
ensino de todas as matérias com o que é específico das distintas metodologias, em
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estreito vínculo com a teoria do conhecimento, a psicologia aplicada ao ensino e a
sociologia das situações escolares e dos contextos socioculturais.
O processo ensino-aprendizagem na teoria histórico-cultural
A teoria histórico-cultural proposta por Vygotsky e seguidores é compatível com
as noções de mediação didática, mediação cognitiva e práticas sociais. Para esses
autores, a aprendizagem humana se caracteriza como mudanças qualitativas na relação
entre a pessoa e o mundo, pela mediação de instrumentos ou ferramentas culturais
envolvendo a interação entre pessoas, culminando com a internalização de significados
sociais, especialmente saberes científicos, procedimentais e valorativos. Em síntese, o
desenvolvimento das funções mentais superiores supõe a internalização de ferramentas
culturais/formas culturais de comportamento/signos, já desenvolvidas na sociedade por
meio da linguagem. Para Vygotsky, todas as funções mentais superiores são relações
sociais internalizadas, ou seja, o desenvolvimento das capacidades mentais é
engendrado no processo de apropriação e reconstrução da cultura.
Na educação escolar, o papel do ensino é, precisamente, promover o
desenvolvimento mental por meio da aprendizagem, convertendo a aprendizagem em
desenvolvimento. Tem-se, assim, a subordinação da mediação didática à mediação
cognitiva, a serviço da qual está o processo de aprendizagem e ensino, num contexto
espacio-temporal determinado. Sendo assim, a didática (e as didáticas específicas)
consiste na sistematização de conhecimentos e práticas referentes aos fundamentos,
condições e modos de realização do ensino e da aprendizagem dos conteúdos,
habilidades, valores, visando o desenvolvimento das capacidades mentais e a formação
da personalidade dos alunos.
Nesta definição aparecem importantes noções conexas à teoria histórico-cultural.
Se o aspecto definidor da didática é a mediação da mediação cognitiva, ou seja,
mediação das relações do aluno com os objetos de conhecimento, então, o conceito de
referência da didática é a mediação das relações entre ensino e aprendizagem voltadas
para o desenvolvimento humano. O trabalho dos professores consiste em ajudar o aluno,
por meio dos conteúdos, a adquirir capacidades para novas operações mentais ou
modificar as existentes, com o que se operam mudanças qualitativas em sua
personalidade. Há, aqui, uma relação imediata da didática com os conteúdos dos saberes
a ensinar, a ativação das capacidades intelectuais dos alunos e a organização das
situações didáticas com os meios adequados.
Desde Vygotsky e seguidores, formou-se o entendimento de que o ensino para o
desenvolvimento constitui-se num principio humanístico, sendo a base do direito de
todas as crianças e jovens à instrução, ou seja, à educação geral básica. A muitas pessoas
causa estranheza o uso da palavra “instrução” no vocabulário da teoria históricocultural, associando-a à idéia de adestramento, transmissão de conhecimento. No
entanto, a recorrência ao seu sentido na língua russa possibilita resolver mal-entendidos.
Prestes (2010) traz um amplo esclarecimento sobre a palavra do russo obutchenie,
largamente utilizada em textos de teóricos da teoria histórico-cultural e traduzida por
instrução, ensino e, na maior parte das vezes, por aprendizagem. Em verdade, a palavra
refere-se ao processo simultâneo de instrução, estudo, aprendizagem, ou seja, o
processo ensino-aprendizagem implicado na instrução. Prestes esclarece que essa
palavra, traduzida por aprendizagem, estaria indicando um processo psicológico próprio
do sujeito (como corre em boa parte das teorias da aprendizagem), descartando ou
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secundarizando a transmissão intencional de conhecimento (ou seja, o ensinar por meio
da atuação de uma outra pessoa no processo de aprendizagem)2. Escreve Prestes:
Para Vigotski, a atividade obutchenie pode ser definida como uma atividade autônoma
da criança que é orientada por adultos ou colegas e pressupõe, portanto, a participação
ativa da criança no sentido de apropriação dos produtos da cultura e da experiência
humana. Isso é o mais importante. Poder-se-ia argumentar que a expressão ensinoaprendizagem seria a mais adequada para a tradução da palavra obutchnie. Todavia, em
russo, essa palavra implica uma unidade desses processos e a mera junção por hífen de
duas palavras não transmite a ideia que Vigotski atribui a ela: uma atividade autônoma
da criança que é orientada por alguém que tem a intencionalidade de fazê-lo. Ou seja,
obutchenie implica a atividade da criança, a orientação da pessoa e a intenção dessa
pessoa. (...) Por tudo isso, a palavra que, a nosso ver, mais se aproxima do termo
obutchenie de Vigotski é instrução (PRESTES, 2010, P. 188)
Estamos, pois, preparados agora para entender o ensinaraprender e o
aprenderensinar, na perspectiva histórico-cultural. Vygotsky escreveu que somente é boa
aquela instrução (ensino) que vai adiante do desenvolvimento, ao despertar e provocar
“toda uma série de funções que se encontram em estado de maturação na zona de
desenvolvimento próximo” (VYGOTSKY, 2007, p. 360), guiando o processo de
desenvolvimento, envolvendo a atuação colaborativa de outras pessoas. Ou seja, a zona
de desenvolvimento próximo (ou iminente, como prefere Prestes) define a condição da
criança em relação a funções mentais ainda em maturação (funções que não concluíram
o seu desenvolvimento), e que podem ser desenvolvidas com a ajuda do adulto. Escreve
Vigotsky:
Vygotsky esclarece a noção de zona de desenvolvimento próximo na qual ocorre
a compreensão consciente e o uso voluntário dos conceitos, em colaboração com o pensamento do adulto.
Ele escreve:
A força dos conceitos científicos se manifesta em uma esfera integralmente determinada
pelas propriedades superiores dos conceitos: a compreensão consciente e a
voluntariedade. Justamente nesta esfera os conceitos cotidianos mostram sua debilidade,
fortes na esfera da utilização espontânea, situacional e concreta, na esfera da experiência
e do empirismo. O desenvolvimento dos conceitos científicos começa na esfera da
compreensão consciente e da voluntariedade e continua mais além, crescendo para
abaixo, até à esfera da experiência pessoal e do concreto. O desenvolvimento dos
conceitos espontâneos começa na esfera do concreto e empírico e se move em direção
às propriedades superiores dos conceitos: a compreensão consciente e a voluntariedade.
A relação entre o desenvolvimento destas duas linhas opostas revela, indubitavelmente,
sua verdadeira natureza: trata-se da relação entre a zona de desenvolvimento próximo e
o nível atual do desenvolvimento (Ib., p. 377).
Está claro, nessa citação, o papel da escola na formação dos conceitos científicos
a partir dos conceitos espontâneos, em que o aluno pode ultrapassar o nível de
conhecimento que já possui para “ascender” aos conhecimentos científicos com a
colaboração do adulto. Ao mesmo tempo, a aprendizagem é uma atividade do aluno,
mas necessita de uma “intervenção” do outro, por meio da mediação, daí a idéia de
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Em seu texto, Prestes recorre a dois autores, Rieber e Carton (p. 184), que destacam no termo
“obutchenie” duas partes: o verbo “uchit” (ensinar) e o verbo reflexivo “uchi’sia” (ser ensinado, aprender
pela instrução, estudar). Conforme me informa Achiles Dallari, preocupado em seus trabalhos com
problemas de tradução do russo de textos de psicologia e educação, a palavra “utchénie” significa, mais
propriamente, estudos, aprendizagem, aprendizado, mas, também, ensino, ensinamento, exercício tático; e
que “obutchénie” significa ensino, instrução, neste caso, destacando a importância de se esclarecer o
papel, nessa palavra, do prefixo “ob”, que pode significar: em face de, em troca de, diante de, para, por
causa de, etc. O estudo de Prestes e a contribuição de Dallari deixam poucas dúvidas: obutchenie referese a instrução, isto é, processo intencional, sistemático, de ensino-aprendizagem em qualquer contexto
social de educação.
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instrução, no entendimento de Prestes, como “uma atividade autônoma da criança que é
orientada por alguém que tem a intencionalidade de fazê-lo”. Remetemo-nos, pois, ao
entendimento de que o ensino e a aprendizagem formam uma unidade dentro de um
mesmo processo, ainda que cada termo guarde sua especificidade, não podendo ser
subsumido um no outro. A didática investiga esse processo no seu conjunto, buscando
articular a interação entre o ensino e o estudo, entre o ensino e o desenvolvimento das
capacidades intelectuais..
É assim que escola e ensino, pela mediação do professor, existem para promover
e ampliar o desenvolvimento das capacidades cognitivas e a formação da personalidade.
Por isso, o problema pedagógico-didático diz respeito às formas pelas quais práticas
sociais formam o desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral dos indivíduos sendo que
os resultados social, pedagógico, cultural, da escola, expressam-se nas aprendizagens
efetivamente consumadas. A atividade pedagógica somente é pedagógica se ela
mobiliza as ações mentais dos sujeitos, visando a ampliação de suas capacidades
cognitivas e a formação de sua personalidade global. Essa formação de ações mentais
ou novos usos de uma ação mental requer, por parte dos alunos, uma atividade de estudo
e, da parte dos professores, a mediação didática, precisamente a intervenção intencional
na formação de processos mentais do aluno.
Algumas derivações desse posicionamento
Em outro texto (LIBÂNEO, 2010b), eu destacava algumas tarefas urgentes para
o revigoramento teórico e profissional da didática: retomada do estudo aprofundado do
campo teórico e investigativo da pedagogia, cujo objeto é a prática educativa visando a
formação e o desenvolvimento humano em situações concretas; a retomada, na mesma
direção, dos estudos em didática voltados às relações entre ensino e aprendizagem;
aprofundamento das peculiaridades da pesquisa didática na escola, no ensino, nos
processos cognitivos; ampliação das abordagens dos elementos constitutivos da didática
visando clarear os contextos e as condições concretas do ensino e da aprendizagem,
introduzindo questões socioculturais, antropológicas, lingüísticas, estéticas,
comunicacionais, midiáticas. As considerações a seguir referem-se principalmente a esta
última tarefa, uma vez que o ensino é uma prática social, portanto impregnado de várias
dimensões: a social, a cultural, a política, psicológica, a biológica, etc. A didática
necessita de outros campos de conhecimento para a compreensão do seu objeto de
estudo e seu campo de prática, o ensino. As contribuições atuais têm vindo da
sociologia crítica do currículo, da psicolingüística, da pesquisa cultural, da
psicopedagogia, da teoria da ação comunicativa, das teorias holísticas, da teoria da
complexidade, entre outras. A seguir, são abordadas algumas dessas contribuições.
A teoria curricular crítica traz importantes aportes à problemática investigação
da didática ao ajudar a compreender as relações entre os processos de seleção,
distribuição, organização e ensino dos conteúdos curriculares e a estrutura de poder do
contexto social. Especialmente nos últimos anos, por influência da sociologia da
educação desenvolvida na Inglaterra, França e Estados Unidos, a investigação no campo
do currículo tem destacado temas como as culturas particulares, a diferença, a
pluralidade das linguagens, as relações de poder. Tais temas são, sem dúvida, muito
relevantes e podem perfeitamente ser incluídos na problemática teórica e prática da
didática, desde que sejam conectadas aos esforços de melhoria da escola pública, de
focar nas questões de aprendizagem e desenvolvimento de processos cognitivos. A
concordância de teóricos da didática e do currículo em torno de alguns pontos comuns
relacionados com a prática docente, ainda que não anulem divergências teóricas,
concorre para evitar a presença de posições imobilistas entre os professores que atuam
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nas escolas. Em texto de 1988, apresentei as divergências mas, também, as
possibilidades de convergências entre os campos da didática e do currículo (LIBÂNEO,
1988)
Outra interface diz respeito às relações entre didática e epistemologia, temática
que tem motivado estudos entre didatas franceses, conforme há mencionado aqui, com
forte inspiração do pensamento de Bachelard e, também, presente da teoria do ensino
para o desenvolvimento de V. Davílov, mencionada mais adiante neste texto
(LIBÂNEO, 2010a). A didática, à medida que lida com o processo mental do
conhecimento, está em íntima relação com questões lógicas e psicológicas. Ou seja, a
apropriação de saberes supõe os procedimentos investigativos de constituição dos
saberes, e isto é um problema eminentemente epistemológico. Nesse sentido, a didática
não pode prescindir dos conteúdos específicos das disciplinas ensinadas para
desenvolver suas investigações. Sendo assim, não se pode falar de uma didática geral,
nem de métodos gerais de ensino aplicáveis a todas as disciplinas. A didática somente
faz sentido se estiver conectada à lógica científica da disciplina que é ensinada. De sua
parte, ela oferece às disciplinas especificas o que é comum e essencial ao ensino. Ao
efetuar essa tarefa de generalização, a didática se converte em uma das bases essenciais
das didáticas específicas. “Em uma das bases” porque a didática recorre a outros tipos
de conhecimento além daqueles da matéria ensinada, por exemplo, da psicologia, da
sociologia, da antropologia.
Outra fonte de enriquecimento do conteúdo da didática são os temas da cultura e
das práticas socioculturais, pois incidem diretamente na escola, no ensino e na
aprendizagem dos alunos. A cultura é um conjunto de conhecimentos, valores, crenças,
moral, costumes, modos de agir e de se comportar, adquiridos pelos seres humanos
enquanto membros de uma sociedade, de uma comunidade e que caracteriza o modo
como as pessoas vivem e agem. É claro que esses elementos da cultura convertem-se,
em primeiro lugar, nas mediações culturais que mobilizarão o ensino e a aprendizagem
dos alunos. Com efeito, as escolas se defrontam com características socioculturais dos
alunos, trazidas dos seus contextos de vida cotidiana, que afetam sua participação nas
aprendizagens. Também os professores são portadores de características culturais, cujos
saberes, valores, quadros de referência, formas com que lidam com a profissão, marcam
fortemente suas práticas docentes. A própria escola tem uma cultura, que é o modo
como atuam as pessoas que nela trabalham. Além disso, atravessam a escola a cultura
científica, a cultura social, as culturas juvenís, a cultura das mídias, constituindo uma
transversalidade de culturas. Escrevem Davydov e Markova que as características psicofisiológicas das crianças são mediadas, desde o nascimento, pelo entorno social, o qual
atua no desenvolvimento mental.
Dessa forma, o verdadeiro papel das características psicofisiológicas no
desenvolvimento mental da criança pode, a nosso ver, ser verificada apenas no curso da
educação, o qual "intensifica" as características psicofisiológicas (plasticidade,
dinamicidade) que promovem o desenvolvimento e "atenuam" as propriedades , que
poderiam prejudicar o desenvolvimento integral da criança. (DAVYDOV e
MARKOVA, 1983, p.5).
Portanto, a contribuição da pesquisa cultural é imprescindível para a didática
porque práticas socioculturais e institucionais estão por detrás de mudanças no
desenvolvimento e na aprendizagem dos alunos. Este tema será retomado em vários
capítulos deste livro, especialmente no terceiro e oitavo.
As tecnologias da comunicação e da informação já não podem ser tomadas
apenas como “recursos audiovisuais”. As mídias fazem parte das mediações culturais
10
que caracterizam o ensino. Como qualquer conteúdo, são portadoras de idéias, emoções,
atitudes, habilidades, portanto, instrumentos de mediação cultural, ferramentas
pedagógicas, ou seja, são elementos didáticos propiciadores e mobilizadores da relação
do aluno com os conhecimentos, habilidades, atitudes, valores.
A valorização da experiência subjetiva e da pluralidade de linguagens realça a
importância das relações comunicativas, do diálogo, do entendimento lingüístico e da
busca de consenso nos processos de tomada de decisão. Associado com o forte impacto
das mídias na vida da escola, o tema da comunicação provoca mudanças no trabalho do
professor, já que a aula deve ser cada mais uma prática interativa onde se desenvolve o
diálogo, a capacidade de ouvir o outro, de reconhecer as diferenças.
As perspectivas das teorias holísticas e da teoria da complexidade trazem
substantivas contribuições à didática em temas como a unidade entre o sujeito e o
mundo, a mente e a atividade, o equilíbrio dinâmico entre o homem e o meio biofísico
em que a sociedade e a natureza formam um único ecossistema, o sistema da vida.
Nesta linha também está a noção de pensamento complexo. A inteligibilidade complexa,
ou o pensar mediante a complexidade, significa buscar as inter-relações das coisas, uma
idéia muito próxima da reflexão dialética em que se buscam as relações essenciais entre
os fenômenos, ou seja, o modo geral como situações da realidade vão se dispondo entre
si no espaço e no tempo, em que o sistema vai se constituindo a partir de suas relações
externas e interna.
3. A perspectiva da teoria histórico-cultural: a didática para o desenvolvimento de
V. Davidov
Vasili Davídov, pertencente à terceira geração de pedagogos da Escola de
Vygotsky, formulou a teoria do ensino desenvolvimental ou ensino para o
desenvolvimento. Denomina-se desenvolvimental aquele ensino que impulsiona e
amplia o desenvolvimento das capacidades cognitivas mediante a formação de conceitos
e o desenvolvimento do pensamento teórico-científico (LIBÂNEO, 2004).
A teoria de ensino de Davídov teve origem em investigações sobre a organização
do ensino em escolas russas onde constatou a predominância da concepção tradicional
de aprendizagem baseada na formação do pensamento empírico, descritivo e
classificatório. Segundo ele, conhecimentos que se adquirem por métodos transmissivos
e de memorização não se convertem em ferramenta para lidar com a diversidade de
fenômenos e situações que ocorrem na vida prática. Um ensino mais duradouro e que se
dirige à formação da personalidade dos alunos deve basear-se no desenvolvimento do
pensamento teórico-científico, ao qual se chega pelo método da reflexão dialética.
Trata-se de um processo pelo qual se revela a essência e desenvolvimento dos objetos
de conhecimento e, com isso, a aquisição de métodos e estratégias cognitivas gerais de
cada ciência, em função de analisar e resolver problemas e situações concretas da vida
prática. O pensamento teórico se forma pelo domínio dos procedimentos lógicos do
pensamento que, pelo seu caráter generalizador, permite sua aplicação em vários
âmbitos da aprendizagem. Desse modo, Davídov propõe a superação de um tipo de
pensamento empírico, que tem sido o mais freqüente nas escolas, pelo pensamento
teórico-científico, que é o que ajuda efetivamente a formar o pensamento.
Há três idéias básicas da didática para o desenvolvimento: a) O bom ensino é o
que promove e amplia o desenvolvimento humano por meio da apropriação de
conhecimentos, habilidades e capacidades cognitivas; b) Ensina-se para que os alunos
formem o pensamento teórico, isto é, formem e atuem com conceitos em sua relação
11
com a realidade; c) Formar conceitos é o mesmo que formar e desenvolver ações
mentais, capacidades de pensar.
a) O ensino para o desenvolvimento do pensamento e da personalidade.
Para Davídov, na tradição da teoria histórico-cultural, a principal tarefa da escola
consiste em ensinar os alunos a orientar-se independentemente na informação científica
e em qualquer outra, ou seja, ensiná-los a pensar mediante um ensino que impulsione o
desenvolvimento mental. Desse modo, a atividade escolar consiste na apropriação de
conhecimentos, capacidades intelectuais, métodos da atividade formados historicamente
os quais, por sua vez, impulsionam o desenvolvimento. Mudanças qualitativas no
desenvolvimento mental geram capacidade para a apropriação de novos conhecimentos
e habilidades de conteúdo mais complexo. A instrução ou ensino (obutchenie) é um
sistema de organização e métodos para assegurar o processo de apropriação da
experiência socialmente formada, promovendo mudanças qualitativas no
desenvolvimento mental (Cf. DAVYDOV e MARKOVA, 1983, p. 5). Escrevem esses
autores:
Enquanto a apropriação é a reprodução pela criança da experiência socialmente
desenvolvida e a instrução formal é a forma de organização desta apropriação em
condições históricas determinadas, em uma determinada sociedade, o desenvolvimento
é caracterizado principalmente por alterações qualitativas no nível e na forma das
capacidades, tipos de atividade, etc, apropriados pelo indivíduo. (...) A apropriação é o
resultado da atividade empreendida pelo indivíduo quando ele aprende a dominar
métodos socialmente desenvolvidos de lidar com o mundo dos objetos e a transformar
esse mundo, os quais gradualmente tornam-se o meio da atividade própria do indivíduo
(Ib.)
O caminho dessa apropriação por meio do ensino é a formação de conceitos
científicos pelos quais os alunos podem ter o domínio do modo geral pelo qual o objeto
de conhecimento é construído, interiorizando os modos de atividade anteriores
aplicados à investigação dos conceitos e modos de agir vinculados a esses conceitos. A
interiorização desses modos de atividade da experiência social permite criar no sujeito
dispositivos auto-reguladores das ações e comportamentos dos indivíduos, ou seja, tal
como mencionado acima, “tornam-se meios da atividade própria do indivíduo”.
Esta formulação realça a atividade humana sócio-histórica e coletiva na
formação das funções mentais superiores, portanto o caráter de mediação cultural do
processo do conhecimento e, ao mesmo tempo, a atividade individual de aprendizagem
pela qual o indivíduo se apropria da experiência sociocultural como ser ativo.
Considerando-se que os saberes e instrumentos cognitivos se constituem nas relações
intersubjetivas, sua apropriação implica a interação com outros já portadores desses
saberes e instrumentos. Em razão disso, a educação e o ensino constituem formas
universais e necessárias do desenvolvimento mental, em cujo processo se ligam os
fatores socioculturais e as condições internas dos indivíduos.
b) A formação do pensamento teórico-científico pelos conceitos
Se pensamento é a faculdade de formular conceitos, aprender é formar o
pensamento teórico-científico, isto é, formar conceitos teóricos apropriados de um
objeto de estudo. A didática para o desenvolvimento põe em primeiro plano a
apropriação pelos alunos de conceitos, competências e habilidades do pensar, modos de
ação que se constituam em “instrumentalidades” para lidar praticamente com a
realidade, ou seja, resolver problemas, enfrentar dilemas, tomar decisões, formular
estratégias de ação. Davídov propõe uma adequada solução para a questão do domínio
dos conteúdos e da formação dos processos mentais: enquanto forma conceitos
12
científicos, o individuo incorpora as ações mentais, capacidades e procedimentos
lógicos ligadas a esses conceitos e vice-versa. Ele escreve:
Os conhecimentos de um indivíduo e suas ações mentais (abstração, generalização, etc.)
formam uma unidade. (...) É legítimo considerar o conhecimento, de um lado, como o
resultado das ações mentais que implicitamente abrangem o conhecimento e, de outro,
como um processo pelo qual podemos obter esse resultado no qual se expressa o
funcionamento das ações mentais. Conseqüentemente, é totalmente aceitável usar o
termo “conhecimento” para designar tanto o resultado do pensamento (o reflexo da
realidade), quanto o processo pelo qual se obtém esse resultado (ou seja, as ações
mentais). (DAVYDOV, 1988, p. 21)
Para Davídov, o conteúdo da atividade de aprendizagem escolar é o
conhecimento teórico. A referência básica do processo de ensino são os objetos
científicos (os conteúdos), que precisam ser apropriados pelos alunos mediante a
descoberta de um princípio interno do objeto e, daí, reconstruído sob forma de conceito
teórico na atividade conjunta entre professor e alunos. A reconstrução e reestruturação
do objeto de estudo constituem o processo de interiorização, a partir do qual se
reestrutura o próprio modo de pensar dos alunos, assegurando, com isso, seu
desenvolvimento mental.
A formação dos conceitos e do pensamento teórico-científico ocorre por meio da
ascensão do abstrato ao concreto. Para isso, trata-se inicialmente de ir ao cerne dos
conceitos, buscando a determinação primeira de relações por meio da análise do
conteúdo trabalhado, o que corresponde ao percurso do método da reflexão dialética.
Em seguida, os alunos vão verificando como esta relação geral se manifesta em outras
relações particulares do material estudado, seguindo o caminho da abstração à
generalização. Esse modo de estruturação das disciplinas escolares contribui para
formar nos escolares um pensamento científico-teórico, condição para o
desenvolvimento mental. Ele escreve:
Quando os alunos começam a usar a abstração e a generalização iniciais como meios
para deduzir e unir outras abstrações, eles convertem as estruturas mentais iniciais em
um conceito, que representa o “núcleo” do assunto estudado. Este “núcleo” serve,
posteriormente, às crianças como um princípio geral pelo qual elas podem se orientar
em toda a diversidade do material curricular factual que têm que assimilar, em uma
forma conceitual, por meio da ascensão do abstrato ao concreto. (Ib., p. 22)
O procedimento didático a ser seguido na interiorização de conceitos de uma
disciplina escolar depende do exame das condições históricas em que foram originados
e que os levaram a se tornar essenciais, ou seja, os conceitos não se dão como
“conhecimentos já prontos”, devendo ser deduzidos a partir do modo geral de sua
constituição e do abstrato. Por sua vez, a formação dos conceitos e a generalização em
relação ao material estudado dependem da realização de tarefas de aprendizagem que
possibilitem o exercício de operações mentais da transição do universal para o particular
e vice-versa.
Resulta daí a importância da análise do conteúdo como base para o ensino de
uma disciplina, a partir da busca do desenvolvimento histórico que vai levando à
constituição do objeto de estudo ligada, bem como a consideração dos motivos do aluno
(já que se trata de um ensino para o desenvolvimento humano).
Em síntese, podemos dizer, em primeiro lugar, que aprender a pensar
teoricamente é pensar e atuar com conceitos, ou seja, formar ações mentais. Trata-se de
internalizar, apropriar-se de um modo geral de ação mental próprios da ciência ensinada,
que possibilita a apropriação da realidade, aplicando um conceito geral a situações
particulares. Em segundo lugar, formam-se conceitos por meio da formação de ações
13
mentais (procedimentos lógicos), que permitem representar coisas no nosso
pensamento. Em terceiro lugar, o caminho para a formação de ações mentais está nos
processos de investigação e constituição de uma ciência (aprender o processo de origem
e desenvolvimento das coisas e acontecimentos) decorrendo, daí, a relação mútua entre
conteúdos e ações mentais. Davídov recomenda a aprendizagem baseada em problemas
e o ensino com pesquisa, em que o professor intervém ativamente nos processos
mentais das crianças e produz novas formações da atividade mental por meio dessa
intervenção.
c) O caminho da aprendizagem
O planejamento de ensino começa com a análise de conteúdo, em que
primeiramente se buscam as relações fundamentais, essenciais, ou seja, a formulação de
uma idéia que expressa o princípio interno do tema em estudo (que é o conceito
nuclear), e descobrir como esta relação aparece em muitos problemas específicos.O
princípio interno é a relação geral estabelecida entre os vários elementos que constituem
um objeto de estudo, captada no processo de desenvolvimento e constituição desse
objeto na prática social e histórica. Essa análise tem a ver com a identificação do
caminho percorrido pelo cientista para apreender o objeto de investigação. Segundo
Chaiklin:
O propósito da atividade de aprendizagem é ajudar os alunos a dominarem as relações,
abstrações, generalizações e sínteses que caracterizam os temas de uma matéria. Este
domínio é refletido na sua habilidade para fazer reflexão substantiva, análise e
planejamento. A estratégia educacional básica para dar aos alunos a possibilidade para
reproduzir pensamento teórico é a de criar tarefas instrucionais cujas soluções
requeiram a formação de abstrações substantivas e generalizações sobre as idéias
centrais do assunto. Esta aproximação é fundamentada na idéia de Vygotsky da
internalização, isto é, alguém aprende o conteúdo da matéria aprendendo os
procedimentos pelos quais se trabalham os temas específicos da matéria” (Chaiklin
1999. p. 191).
O segundo passo consiste em identificar os conceitos básicos ou noçõesnucleares, a partir da análise de conteúdo, de modo a organizar os tópicos do plano de
ensino. Esses tópicos precisam estar adequados aos motivos dos alunos, pois os
conteúdos devem mobilizar motivos, forma pela qual atuam no desenvolvimento da
personalidade.
O terceiro passo do caminho da aprendizagem é a identificação das ações
mentais a desenvolver, ou seja, o que se deseja que os alunos internalizem (ou se
apropriem) em relação a conceitos que serão utilizados como ferramentas mentais.
O quarto passo é a formulação de tarefas de aprendizagem em que a relação
geral aparece em problemas específicos, em casos particulares. As tarefas são, por
exemplo, exploração de materiais, planejamento de experimentos, exercícios de análise
e síntese, comparação, dedução, resolução de problemas, correlações de causa e efeito,
formulação de hipóteses, etc.
Finalmente, é preciso formular procedimentos de avaliação formativa e somativa
em relação à interiorização de conceitos (formação de ações mentais).
Verifica-se que o caminho didático implica conteúdos e objetivos, mas estes
somente fazem sentido se os alunos são ajudados na formações de suas ações mentais.
Na verdade, o grande objetivo é construir dispositivos didáticos sólidos que permitam a
identificação das operações mentais a realizar e prever as situações pedagógicodidáticas em que será posta em prática. Meirieu escreve que “nenhum conteúdo existe
14
fora do ato que permite pensá-lo, da mesma forma que nenhuma operação mental pode
funcionar no vazio”, ou seja, a formação de ações mentais supõe os conteúdos, pois as
ações mentais estão já presentes nos processos investigativos e procedimentos lógicos
da ciência ensinada. Em concordância com a perspectiva teórica de didática trazidos
neste texto, escreve sabiamente Meirieu:
Na verdade, mais do que a elaboração de instrumentos, o quer párea nós importa é o
procedimento didático que tentamos promover, aquele consiste não simplesmente em
proclamar o que queremos que o aluno saiba, mas sim, em questionar a respeito do que
deve se passar em sua cabeça para que chegue onde queremos, e criar, a partir daí, o
dispositivo que dá corpo e vida à operação mental identificada. O que importa é a
capacidade do professor de traduzir os conteúdos de aprendizagem em procedimentos
de aprendizagem, isto é, em uma seqüência de operações mentais que ele procure
compreender e instituir na sala de aula. O que importa é fazer de um objetivo
programático um dispositivo didático, e isso só é possível através da análise da
atividade intelectual a ser desenvolvida e através da busca das condições que garantem
seu êxito (MEIRIEU, 1998, p. 117)
Para ilustrar a noção de caminho didático para formar e atuar com conceitos,
podemos dar um exemplo sobre ensinar e aprender em tópicos de educação ambiental. A
educação ambiental ocupa-se de processos intencionais de comunicação e interiorização
de saberes – conhecimentos, experiências, habilidades, valores, modos de agir –
cabendo ao ensino organizar os conteúdos, prever objetivos na forma de ações mentais e
desenvolver e formas metodológicas e organizativas do ensino. O resultado esperado
desse ensino é o desenvolvimento de capacidades de pensar e agir ambientalmente, para
o que se vai em busca da origem e desenvolvimento histórico dos conteúdos, processos
de investigação e modos de agir da educação ambiental. Isso implica apropriar-se de
modos de aplicação de modos de investigação e processos de pensamento aplicados na
análise de problemas e situações concretas relacionados com o ambiente. Desse modo, a
correta didática da educação ambiental consistiria em ajudar os alunos a captar o
percurso da investigação pelo qual vai se constituindo o saber ambiental e descobrir o
caminho metodológico pelo qual podem interiorizar esse percurso, para que aprendam a
pensar e a agir autonomamente em relação a práticas sócio-ambientais. Assim, o aluno
internaliza o modo geral de ação menta, ou seja, adquire um método teórico geral sobre
a educação ambiental, para aplicá-lo a situações particulares da realidade. Está é a idéia
que está por detrás da expressão “conhecimento teórico-científico”.
4. O papel da didática na formação de professores: teoria e prática
Os professores realizam um trabalho que se caracteriza por uma atividade
humana peculiar, a atividade pedagógica. Toda atividade humana está dirigida a um
objeto que, no caso da atividade pedagógica, é outra atividade, a atividade de
aprendizagem. A noção de atividade assumida na teoria histórico-cultural implica o
princípio da unidade entre a mente e a atividade, ou seja, uma atividade de mentalizar e
uma atividade material, objetiva, uma referida à outra, uma impregnando a outra, de
modo a podermos dizer que, no nosso comportamento, no nosso ser, há uma unidade
indissolúvel das duas dimensões da existência humana, a teoria e a prática. Essa relação
define a natureza da práxis pedagógica: a atividade humana prática fundamentada
teoricamente. Em sentido mais específico, a atividade interna do sujeito possui uma
estrutura constituída pelas necessidades, motivos, finalidades e condições de realização.
Por sua vez, a realização da finalidade posta para a atividade, em determinadas
condições, depende da realização de diversas ações, cada ação composta por uma série
de operações em correspondência com as condições peculiares da tarefa (Cf.
LEONTIEV, p.82). Assim, atividade surge de necessidades, que impulsionam motivos
15
orientados para um objeto. O ciclo que vai de necessidades a objetos se consuma
quando a necessidade é satisfeita, sendo que o objeto da necessidade ou motivo é tanto
material quanto ideal. Para que estes objetivos sejam atingidos, são requeridas ações. O
objetivo precisa sempre estar de acordo com o motivo geral da atividade mas são as
condições concretas da atividade que determinarão as operações vinculadas a cada ação.
Segundo Leontiev:
(A atividade se refere) “àqueles processos que, realizando as relações do
homem com o mundo, satisfazem uma necessidade especial correspondente a
ele. (...) Por atividade, designamos os processos psicologicamente
caracterizados por aquilo que o processo, como um todo, se dirige (i.e, objeto),
coincidindo sempre com o objetivo que estimula o sujeito a executar essa
atividade, isto é, o motivo”.(1988, p.68).
Com base nesse entendimento, o professor realiza uma atividade pedagógica no
decurso da qual são realizadas ações e operações, tendo em vista o objetivo. Desse
modo, o trabalho do professor é uma atividade teórico-prática, nem só teoria nem só
prática, mas uma atividade prática que é sempre teórica, sempre pensada, um
movimento do pensamento, do que resulta uma prática pensada. Ou seja, a prática
profissional de professores não é uma mera atividade técnica, ou seja, não se constitui
como mero fazer resultante de habilidades técnicas, mas como atividade teórica e
prática.
Da consideração de que o objeto de trabalho da atividade pedagógica é a
atividade de aprendizagem, resultam três coisas: a) a atividade de aprendizagem referese à apropriação pelo aluno de conhecimentos, habilidades e modos de ação; b) os
modos de realizar a atividade pedagógica precisam ser aprendidos, ou melhor,
apropriados por quem vai desempenhar essa atividade; ou seja, na formação
profissional, a atividade pedagógica converte-se em atividade de aprendizagem, de
modo que as diretrizes de formação profissional precisam orientar sobre os modos pelos
quais deve ser conduzida a atividade de aprendizagem; c) a atividade pedagógica tem
como centro (núcleo) a tarefa de aprendizagem (ou tarefas cognitivas como análise e
síntese, comparação, solução de problemas, formulação de hipóteses, etc.) que
mobilizam a atividade de aprendizagem dos alunos em relação à apropriação de
conceitos científicos3.
Verifica-se, assim, que a formação profissional de professores, na perspectiva
adotada aqui, baseia-se num pressuposto ineludível da teoria histórico-cultural: a
educação escolar tem uma influência decisiva no desenvolvimento mental e essa
formação escolar só é boa se essa influência acontece. Ora, a formaçao do aluno
depende principalmente da apropriação dos conhecimentos cientificos. Esta posição não
admite a ideia corrente, principalmente em documentos do Banco Mundial e com larga
influência na educação brasileira, de que crianças de estratos sociais empobrecidos não
conseguem entender o conceito e, portanto, o ensino fundamental deve ser limitado ao
domínio de conhecimentos elementares, práticos, tais como ler, escrever, contar. Nessas
condições, alunos acabam tendo um descompasso em seu desenvolvimento mental,
3
Sobre isso, Dayidov e Markova escrevem que a tarefa de aprendizagem representa a operacionalização
da abordagem do ensino voltado para o desenvolvimento. Segundo eles, “o principal conteúdo da
atividade educativa é a assimilação (apropriação) de métodos generalizados de ação no domínio dos
conceitos científicos e as mudanças qualitativas que vão ocorrendo, em decorrência disso, no
desenvolvimento mental da criança. (...) A aprendizagem não é apenas a aquisição de um domínio do
conhecimento... é, principalmente, um processo de mudança, de reorganização e enriquecimento da
própria criança” (p.6). Ou seja, a tarefa de aprendizagem como centro da atividade pedagógica é o
procedimento peculiar que possibilita a participação ativa do aluno no processo de aprendizagem.
16
passando toda o período do ensino desenvolvimental sem formar no nivel desejado suas
capacidades, compromentendo toda a aprendizagem escolar posterior. Para contrapor a
essa situação, será preciso pensar a formação para a atividade pedagógica com base em
outro conceito de atividade de aprendizagem, ou seja, aquele que a compreende como
apropriação de conceitos científicos e, através deles, a formação de capacidades
intelectuais.
Os elementos constitutivos da didática e as categorias que formam seu conceito,
bem como as considerações sobre a mediação didática no processo ensinoaprendizagem, possibilitam dimensionar a configuração da atividade pedagógica,
condição básica para definir o conteúdo da formação profissional dos professores. Se se
trata de priorizar na escola a apropriação de conceitos científicos, está claro que o objeto
de investigação da didática é o processo de ensino-aprendizagem em relação à
assimilação de conhecimentos e modos de ação. Tem-se, então, como pressuposto, que a
questão central do ensino é o conhecimento, ou melhor, o processo mental do
conhecimento ou, ainda, o desenvolvimento das capacidades mentais dos alunos por
meio dos conhecimentos sistematizados nos conteúdos escolares. Assim, a atividade de
ensino volta-se para a aprendizagem desse conhecimento em função da formação da
personalidade dos alunos.
Sendo assim, para que um professor transforme as bases da ciência em que é
especialista, em matéria de ensino, e com isso oriente o ensino dessa matéria para a
formação da personalidade do aluno, é preciso que ele tenha, pelo menos: a) domínio do
conteúdo da matéria, como condição imprescindível para fazer análise dos conceitos,
organizá-los em função dos motivos dos alunos e do desenvolvimento de suas
capacidades intelectuais, e manejá-los com competência; b) conhecimento pedagógico
do conteúdo, ou seja, saber ligar os princípios gerais que regem as relações entre o
ensino e a aprendizagem com problemas específicos do ensino de determinada matéria;
c) responsabilização pelo papel educativo do processo docente, ou seja, orientar o
ensino dos conteúdos para a formação da personalidade (ensino para o desenvolvimento
humano); c) conhecimento das características individuais e sociais dos alunos; d)
conhecimento das práticas socioculturais e institucionais em que os alunos estão
envolvidos e as formas como atuam na aprendizagem; e) provimento das condições que
propiciam o trabalho ativo e criador dos alunos, nos processos de seu desenvolvimento
intelectual.
Esses requisitos da formação profissional indicam muito claramente que a
aprendizagem da profissão requer, aos menos, quatro características profissionais do
professor. Em primeiro lugar, a apropriação teórico-crítica de conhecimentos, sejam
aqueles de fundamentos da educação sejam aqueles relacionados como conhecimento
profissional específico (a didática, as metodologias específicas, o conteúdo das matérias
quem irão ensinar). São conhecidas as deficiências na formação de professores,
especialmente das séries iniciais do ensino fundamental, em relação ao domínio de
conteúdos e à apropriação de ferramentas cognitivas (Cf., por ex., LIBÂNEO, 2010c).
Uma segunda característica da formação é a apropriação de metodologias de
ensino e de formas de agir que dêem melhor qualidade e eficácia ao trabalho docente. A
atividade pedagógica se caracteriza por ações que impulsionam a atividade de
aprendizagem e, para isso, são requeridas capacidades e habilidades específicas,
providas pelo conhecimento pedagógico do conteúdo. Pela sua natureza, o trabalho
educativo é um trabalho prático, entendendo “prático” no sentido de envolver uma ação
intencional, pensada, dirigida a objetivos. O professor aprimora o seu trabalho
apropriando-se de instrumentos de mediação desenvolvidos na experiência humana, que
17
tornam mais eficaz o ensino das matérias e a formação de ações mentais pelos alunos.
Não se trata de tecnicismo, mas de associar de modo mais efetivo o modo de fazer e o
princípio teórico-científico que lhe dá suporte. A reflexão sobre a prática não resolve
tudo, a experiência refletida não resolve tudo. São necessárias estratégias,
procedimentos, modos de fazer, com o suporte do conhecimento teórico, que ajudam a
orientar com mais competência a aprendizagem dos alunos.
A terceira característica é o conhecimento das características individuais e
socioculturais dos alunos, pois a atividade de aprendizagem é, tipicamente, uma
atividade do aluno, visando mudanças qualitativas no aluno, no seu desenvolvimento. O
conhecimento dos alunos é necessário para a análise dos conteúdos e organização do
plano de ensino. É o momento em que o professor formula tarefas de aprendizagem com
suficiente atrativo para canalizar os motivos dos alunos para o conteúdo. Esta é a
maneira de ligar o conteúdo e o desenvolvimento da personalidade
A quarta característica diz respeito ao conhecimento do papel das práticas
socioculturais e institucionais na motivação e aprendizagem dos alunos. Não basta obter
o conhecimento teórico e os meios pedagógico-didáticos de melhorar e potencializar a
aprendizagem dos alunos, é preciso considerar os contextos concretos em que se dá a
formação. Não se pode separar as pessoas que atuam e o mundo social da atividade.
Permeando estes quatro aspectos da formação de professores, estão as
convicções ético-politicas. É preciso que no processo de formação os estudantes vão
aprendendo a colocar-se frente à realidade, apropriar-se do momento histórico de modo
a pensar historicamente essa realidade e reagir a ela, numa direção emancipadora. A
dimensão crítica da atividade profissional permeia todo o processo de formação, já que
o processo do conhecimento é histórico, implicando uma cultura crítica em relação aos
objetos de conhecimento e à atividade profissional.
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