Jogos musicais, Transtorno do Espectro Autista e Teoria da Mente

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Jogos musicais, Transtorno do Espectro Autista e Teoria da Mente:
um relato de experiência
RESUMO: O foco temático deste artigo é o Transtorno do Espectro Autista (TEA), a Teoria da Mente (TM) e a
educação musical. O objetivo é promover uma breve discussão sobre como a aprendizagem musical, através de
jogos educativos, pode contribuir com o desenvolvimento da Teoria da Mente em pessoas com TEA e ao final,
relatar uma experiência de aluno com este diagnóstico, que além de aprender música, melhorou o
desenvolvimento da Teoria da Mente. A metodologia utilizada foi revisão bibliográfica para fundamentação
teórica, a partir das bases de dados do Pubmed, Lilacs, Scielo, revistas e anais dos congressos da Associação
Brasileira de Educação Musical e SIMCAM e dos bancos de dados das bibliotecas de música da USP e UNESP,
além de livros significativos sobre o assunto. Para o relato de experiência foram utilizados os registros da aula de
música do aluno em questão, que é integrante de um grupo inclusivo de música e teatro do grande ABC, em São
Paulo, desde 2006. Os resultados apontam que a aprendizagem musical pode contribuir para o desenvolvimento
da Teoria da Mente em pessoas com TEA, além de colaborar em outras questões como tomada de decisão e
autonomia.
Palavras chaves: transtorno do espectro autista, teoria da mente, jogos pedagógicos musicais.
PEDAGOGICAL MUSICAL GAMES, AUTISTIC SPECTRUM DISORDER AND THEORY OF MIND:
AN EXPERIENCE REPORT
ABSTRACT: The thematic focus of this article is Autism Spectrum Disorder (ASD), Theory of Mind (TM) and
music education. The goal is to promote a brief discussion of how musical learning through educational games, can
contribute to the development of theory of mind in people with ASD, and ultimately relate an experience of students
with this diagnosis, which in addition to learning music improved the development of Theory of Mind. The
methodology used was a literature review to theoretical , from the databases PubMed, Lilacs, Scielo, magazines and
the Annals of the Brazilian Association for Music Education and SIMCAM and databases of music libraries USP
and UNESP, plus books significant on the subject. For the case report was used records from the music class of the
student in question , which is part of an inclusive group of music and theater in São Paulo since 2006. The results
show that musical learning can contribute to the development of Theory of Mind in people with ASD, and
collaborate on other issues such as decision making and autonomy. .
Keywords: autism spectrum disorder, theory of mind, pedagogical musical games.
O Transtorno do Espectro Autista (TEA)
O autismo foi descrito pela primeira vez pelo psiquiatra americano Kanner em 1943, a
partir do estudo com 11 crianças que possuíam características semelhantes entre si no que se
referia a um comportamento atípico. Apesar dessa descrição inicial, foi somente no início dos
anos 60 que as pesquisas sobre esse quadro evoluíram, pois até então, acreditavam que as
características típicas dessa patologia eram advindas de sérios problemas emocionais
(Pereira, 1999).
Em 1976, a Drª Lorna Wing, resumiu as características desse quadro diagnóstico no
comprometimento de três áreas específicas: imaginação, socialização e comunicação.
Também foi ela que deu os primeiros passos para o conceito de um espectro autista, ou seja,
uma constelação variável de dificuldades dentro das três áreas citadas. Outra característica
enfatizada por Wing foram os movimentos repetitivos, chamados de estereotipias (somente
motoras) e ecolalias (referentes à repetição da fala). Toda sua teoria ficou conhecida como
“Tríade de Wing”. Em suma afirma que independente do grau do autismo, todos terão
comprometimentos na socialização, comunicação e imaginação (Leal, 1996).
Desde que foi relatado pela primeira vez, os critérios diagnósticos têm se modificado
nas diferentes edições dos manuais de classificação dos transtornos mentais, tanto da
Organização Mundial da Saúde (2003), quanto da Associação Americana de Psiquiatria
(Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais - DSM) (Teixeira et al, 2010).
Pelo DSM-IV (APA, 2002), ainda amplamente utilizado, o autismo é classificado como
um transtorno global do desenvolvimento (TGD), que se caracteriza pelo desenvolvimento
acentuadamente atípico na interação social e comunicação e pela presença de um repertório
marcadamente restrito de atividades e interesses, além do uso constante de estereotipias
(movimento e fala repetitiva). Já DSM-V (Apa, 2013), ainda recente, propõe a substituição do
termo Transtorno Global do Desenvolvimento para Transtorno do Espectro Autista (TEA) e
compila em três categorias (grave, moderado e leve) o que antes eram os diversos tipos de
autismo (Espectro Autista; Síndrome de Asperger; Autismo de Alto Funcionamento;
Transtorno Invasivo do Desenvolvimento Sem Outras Especificações - TID-SOE -, dentre
outros). De acordo com Klin (2006), esse grupo de condições afeta aproximadamente 1 em
cada 200 indivíduos, sendo a maior parte meninos e seus sintomas típicos devem aparecer
antes dos 36 meses.
Bosa (2006) coloca que até o presente momento, o autismo não tem uma cura, mas há
diversos tratamentos e possibilidade de melhora desse quadro. Quanto mais cedo o tratamento
começar, melhor o prognóstico. Isto implica tratamento psicoterapêutico, educacional e
social.
TEA e Teoria da Mente
Ottoni (2006) comenta que muitos dos estudiosos contemporâneos do autismo,
caracterizam esta síndrome como uma incapacidade ou deficiência na aquisição da Teoria da
Mente. Araújo (2005, p. 24) completa essa colocação dizendo que “crianças com autismo,
carecem das habilidades cognitivas sociais necessárias a uma teoria da mente e é possível que
a impossibilidade para adquirir uma teoria da mente possa ser resultante de um déficit na
capacitação básica para a interação.”
A Teoria da Mente, nomeada assim pelas ciências cognitivas no final da década de 70,
pelos estudiosos Premack & Woolruff, nada mais é do que a capacidade que temos de atribuir
estados mentais a outras pessoas. Para isso, é necessário que estejamos equipados com uma
habilidade que nos permita desenvolver uma medida, isto é, um sistema de referências que
viabilize comparações entre nosso mundo interno, subjetivo e o mundo externo, dos outros.
Em suma, a Teoria da Mente nos possibilita prever sobre os sentimentos e pensamentos
alheios, criar hipóteses e tomar decisões (Caixeta & Nitrini, 2002). Pinheiro e Camargo
Júnior (2005, p.65) colocam:
A Teoria da Mente (TM) não deve ser compreendida como uma teoria
conscientemente elaborada, mas como um mecanismo que permite um tipo especial
de representação, a representação de estados mentais [...] Para tanto, não basta
apenas desenvolver uma representação interna a respeito das coisas, mas também é
necessária a capacidade de refletir sobre essas representações. Esse processo de
metarrepresentação, a habilidade de estabelecer “crenças sobre crenças sobre
crenças” estaria comprometida no autismo.
De acordo com estudos de Wimmer e Perner (1993, p. 117), a partir dos 18 meses a
criança já é capaz de diferenciar o real do faz de contas. Essa é a primeira ordem: a “crença”.
Por volta dos 4 anos, elas começam a atribuir estados mentais a outras pessoas, o que
inaugura o segundo estágio da TM, ou seja, a “crença sobre a crença”. A terceira fase se dá
após os 5 anos, onde a criança começa ter a capacidade de estabelecer a crença do outro sobre
a crença dela: “crença sobre crença sobre crença”. As crianças com autismo conseguem, no
máximo estabelecer uma certa TM até o segundo estágio, mas somente através de muito
treino (Pinheiro & Camargo júnior, 2005).
Conforme Kafies et al. (2008), no autista a estrutura interna de linguagem está alterada
e a externa distorcida interferindo no domínio da linguagem verbal (registro e estruturação de
códigos), enquanto processo cognitivo. Para que haja Teoria da Mente precisa haver
linguagem desenvolvida, pois a língua é um dos aparatos da cognição. Por não ter linguagem
desenvolvida, o autista não consegue compreender o contexto ao seu redor e isso dificulta a
habilidade de prever o que os outros estão pensando e sentindo (elementos essenciais da
Teoria da Mente).
Williams e Wrigth (2008) enfatizam que alguns aspectos da memória, em autistas, são
profundamente eficazes, principalmente para assuntos pelos quais se interessam. Por isso,
com frequência querem repetir uma mesma ação feita anteriormente, pois lembram-se dela.
Mas geralmente, não conseguem usar a memória para planejamentos futuros, devido à
dificuldade de contextualização dos fatos e situações, por terem atraso no desenvolvimento e
na compreensão da linguagem.
Jogos musicais, TEA e Teoria da Mente
Conforme Campagne (1989), o jogo educativo se relaciona a duas questões: 1.Função
lúdica: propicia a diversão, o prazer e até o desprazer (lidar com a perda); 2.Função educativa:
ensina qualquer coisa que complete o indivíduo em seu saber, seus conhecimentos e sua
apreensão do mundo.
O equilíbrio entre essas duas funções é o objetivo do jogo educativo. O jogo favorece o
aprendizado pelo erro e estimula a exploração e a solução de problemas. Além de
potencializar o aprendizado moral, integração no grupo social e a aquisição de regras
(Kishimoto, 2003).
É muito mais fácil e eficiente aprender por meio de jogos. Isso é válido para todas as
idades e para todos os perfis de pessoas, inclusive para quem tem TEA. Nesse contexto, a
proposta é ir além do jogo, do ato de jogar, para o ato de antecipar, preparar e improvisar
dentro do jogo, ampliando, desse modo, a capacidade do jogo em si a outros objetivos, tais
como: a profilaxia, o desenvolvimento de habilidades, a percepção do grupo, o
desenvolvimento da teoria da mente e a colaboração na tomada de decisão.
Consoante Padilha (2008) a música é de grande utilidade para crianças com autismo,
pois as ajudam a serem mais espontâneas quanto a comunicação, diminuindo o isolamento e a
ecolalia. Além disso, a música colabora no desenvolvimento do aparato sensorial e na
socialização quando é utilizada em atividades em grupos (Miller e Eller-miller, 1989). Assim
como, devido sua propriedade não-verbal, é uma ferramenta eficaz para o desenvolvimento da
linguagem (Wigram & Gold, 2006).
A educação musical foca seus princípios no desenvolvimento de habilidades cognitivas
a partir de atividades sensório-motoras, baseadas nos parâmetros sonoros (altura, duração,
intensidade, timbre e massa sonora). Esses parâmetros, expandidos, levam a uma consciência
musical ampla, atingindo os conceitos de melodia, ritmo, harmonia e análise musical,
formando assim, uma linguagem musical complexa. Dentro da musicalização, essas questões
são trabalhadas através do corpo, com atividades lúdicas específicas, que associam gestos e
movimentos a conceitos musicais mais abstratos, criando um link entre corpo, linguagem e
abstração (Mateiro et al., 2011).
Sendo assim, os princípios pedagógicos musicais podem colaborar também com o
desenvolvimento da linguagem, comunicação, tomada de decisão e desenvolvimento da TM
em pessoas com TEA. Através do incentivo de pequenas tomadas de decisões no ato de
improvisar musicalmente em jogos coletivos, gradativamente o aluno com TEA pode começar
a perceber o contexto em que está inserido e com isso, desenvolver a habilidade de
compreender o universo ao seu redor e de criar coisas cada vez mais complexas.
Para decidir, por exemplo, que som ou ritmo fazer, dentro de uma atividade de
improvisação coletiva, a pessoa precisa primeiramente observar o que os outros estão
fazendo. Num segundo momento, necessita comparar o que todos estão executando para
chegar à conclusão se há um ritmo, som ou ideia principal que conduz a música improvisada
coletivamente. A terceira fase é criar uma “imagem interna” do som ou ritmo que pretende
fazer e logo em seguida, observar pela escuta interna se o que está imaginando está adequado
musicalmente com o conjunto. Para saber se dará certo o que pretende improvisar, o individuo
precisa se remeter mentalmente a um futuro imediato, imaginando o seu som juntamente com
os demais. Só depois desse ato interno poderá decidir se vai ou não executar aquele som ou
ritmo imaginado. Sendo assim, os jogos musicais podem contribuir com o desenvolvimento
da teoria da mente.
Relato de caso
Juliano (nome fictício), tem 34 anos e um quadro de TEA grau leve, com ecolalia, no
qual seu foco de habilidade é a música. Mesmo tendo muita facilidade para aprender tocar
vários instrumentos, ouvido absoluto e uma afinação tecnicamente perfeita, preserva as
características básicas do espectro autista: dificuldades com todo aparato cognitivo, pouca
teoria da mente desenvolvida, estereotipia da fala (ecolalia), dificuldade de interação social e
na comunicação.
Esse jovem adulto faz parte do elenco do grupo cênico-musical Trupe do Trapo, desde
2006. Esse grupo, que trabalha com a união da música ao teatro, é formado por pessoas entre
15 e 76 anos, com e sem deficiências. As maiores dificuldades de Juliano, nas primeiras aulas
do grupo, eram: 1. o excesso de ecolalia (repetia alto, por horas, o que ouvia durante o dia); 2.
a falta de concentração nas atividades (começava andar pela sala quando a atividade não lhe
interessava); 3. dificuldade em manter contato visual com as pessoas; 4. dificuldade para
compreender o contexto ao seu redor e as propostas das atividades solicitadas; 5. Falta de
iniciativa para realizações espontâneas e criativas; 6. Impossibilidade de ter tomada de
decisão.
Atualmente, Juliano apresenta pouca ecolalia (que se manifesta somente nas horas em
que não está fazendo as atividades artísticas), possui comunicação com o olhar e manifestação
de afeto (joga bola com os amigos e cumprimenta todos com abraço). Ele também consegue
tomar iniciativas e decisões dentro do processo artístico, algo que antes não realizava, mesmo
com intervenção do professor. Hoje, sua atenção e concentração é sensivelmente maior e ele
consegue se comportar socialmente de forma adequada, percebendo muito melhor o contexto
ao seu redor.
Todos esses ganhos são resultados de anos de trabalho. A metodologia empregada nas
aulas do grupo é baseada em jogos musicais (Dalcroze, Orff, Koellreutter, dentre outros) e
cênicos-musicais (Viola Spolin) e no desenvolvimento das etapas da psicomotricidade
(Bateria psicomotora de Vitor da Fonseca). Para a criação ou adaptação das atividades é
sempre levado em consideração o momento neurológico, psicológico e pedagógico em que o
aluno se encontra, ou seja, são trabalhadas as lacunas ou necessidades de cada um (no que se
refere ao processo cognitivo e neuropsicomotor) e enfatizado (aproveitado de forma artística)
os talentos ou potenciais latentes em cada pessoa (Louro et al., 2009).
As atividades são, em sua grande maioria, feitas em grupo: jogos musicais, criação de
cenas, improvisações musicais, desenhos, colagens e expressão corporal. Especificamente
para Juliano, foi traçado um plano pedagógico para auxiliar no desenvolvimento da Teoria da
Mente a partir de Gomes (2005, p. 232-260), isto é, primeiramente através da pura imitação
dos colegas, num segundo momento, o incentivo da percepção de si em relação a imitação
realizada. O próximo passo foi a busca da compreensão dessa imitação e a partir desse
momento, reflexão sobre o ato. Por último, transposição da ação para outras realidades.
Baseado nesses pressupostos, as atividades para Juliano foram criadas da seguinte forma:

Primeira etapa: atividades de imitação e socialização – jogos colaborativos cênicos,
musicais e psicomotores para estimular o contato visual, a percepção de si e do outro.

Segunda etapa: atividades de improvisações direcionadas – jogos cênicos-musicais no
qual em determinados momentos eram pedidas tarefas ou improvisações por parte dos
alunos;

Terceira etapa: atividades coletivas de criações livres – criações de cenas e de trilhas
sonoras em grupo (Arten et al., 2007).
A partir desses procedimentos, realizados gradativamente, Juliano melhorou (e vem
melhorando) significativamente. Prova disso é que em certa ocasião (em 2011) houve um
desencontro por parte do grupo em relação a um local que tinham marcado para se encontrar,
pois iriam juntos até um teatro. Juliano não chegou na hora marcada e por isso o grupo partiu
sem ele. Para surpresa de todos, Juliano conseguiu chegar sozinho ao teatro, pois antecipou
suas ações e foi buscar na internet, o mapa de acesso ao local combinado, sem que o
incentivassem a fazer tal coisa. Esse tipo de antecipação seria impossível por parte dele no
início do processo pedagógico musical.
Isso nos aponta a importância de se promover uma educação musical calcada em
princípios metodológicos bem direcionados a partir de atividades específicas para trabalhar as
necessidades de cada aluno. Por isso, os professores de música precisam se preparar para lidar
com a inclusão, pois cada vez mais esses alunos farão parte de suas aulas.
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