Um menino que constantemente se levanta da carteira escolar, anda por toda a classe durante a explicação da professora, fala sem pedir licença e provoca os colegas a manterem-se nas brincadeiras após as pausas de recreio. Outro menino cuja letra é incompreensível, suas frases são sobrepostas à folha, seu texto é incoerente e sua fala é entrecortada e caótica. Uma menina agora. Ela pouco se relaciona com os colegas, cobre-se com o cabelo e com a roupa. Silenciosa, deixa pouco espaço para ação externa. Nos exercícios, prefere ficar só e restringe-se a responder apenas quando perguntada. Por fim, mais uma menina. Vez por outra: alegre, comunicativa e criativa. Em diferentes momentos, recolhida, mal-humorada e irritadiça. Nos arroubos de empolgação, inicia atividades com envolvimento e presteza. Quase nunca finaliza seus projetos, pois a vontade parece nela fugaz e inconstante. Quatro situações bastante comuns na lida escolar contemporânea. Sem crianças problemáticas, agitadas, distraídas, solitárias ou volúveis, historicamente, pouca modificação teria ocorrido nas práticas pedagógicas modernas. Caso todas as crianças tivessem se comportado da maneira como as gravuras e as narrativas evocadas pelos jesuítas que, ao menos no Brasil, povoaram os dois primeiros séculos das nossas escolas, até hoje veríamos seres imóveis, com suas cabeças abaixadas e mergulhadas em textos produtos de cópias ou registros de ditados cuja temática, impreterivelmente, era reproduzida e organizada pelo professor: mestre e, ao mesmo tempo, contentor. No entanto temos mais, muito mais. Ao observar o alarido de um pátio, o caos de vozes em uma sala de aula, a algazarra nas brincadeiras organizadas pelos professores e a movimentação nos momentos de produção e aprendizado, reparamos que uma escola, nem sempre é espaço para comportamentos padronizados. Ademais, é impossível negar que ocorram abusos, incontinências, descontroles e prejuízos cognitivos em quaisquer escolas. Em tempos passados, resolviam-se tais desvios com disciplina, ordem e repressão. Hoje, ou mais especificamente, após as três décadas que inauguraram o século XX, repara-se, em todo o mundo ocidental, um espírito reformista cujas bases seriam assentadas na psicologia experimental, algumas vezes nomeada como ciência dos exames (FOUCAULT, 1987). Sustentados nela ações como agir de forma autônoma, participar positivamente nas atividades coletivas e preservar as individualidades foram guindadas à condição de princípios inescapáveis do ensino. Diferentes propostas pedagógicas objetivaram o controle dos desvios e o incentivo ao desenvolvimento cognitivo dos infantes escolares. Contudo, ao analisarmos a contemporaneidade, deparamos com alguns discursos que atravessam díspares matrizes pedagógicas e parecem conter verdades que raramente deixam margem para oposição. Tais discursos assentam-se em uma lógica inescapável para os atuais atores escolares. Trata-se daqueles enunciados em que o aprendizado é visto em termos de capacidades cerebrais. Não são poucas as referências a termos como déficit de atenção ou transtorno de oposição ou transtorno de desenvolvimento ou ainda espectro autista. Esses termos, assim como tantos outros similares, remontam a uma concepção de individualidade que muito bem poderia ser enunciada em termos de um funcionamento quase maquínico do sistema nervoso. Nesse campo, sobejam definições como aquelas que afirmam que o “senso de eu e sua imagem corporal – não passam de criações fluidas e altamente plásticas, edificadas e mantidas pela mobilização de microeletricidade em um punhado de moléculas” (NICOLELIS, 2011, p.39). O autor da citação acima é Miguel Nicolelis, umas das mais festejadas celebridades brasileiras no campo da ciência. Especialista em neurofisiologia, informática médica, eletrofisiologia, sistemas sensoriais, sistema somestésico e próteses neurológicas –, alcançou relevo internacional ao liderar o Walk Again Project. Nele, o médico paulista apresenta um dos mais ambiciosos desdobramentos de uma vida inteira de pesquisas, realizadas fundamentalmente nos EUA: trata-se da produção de um exoesqueleto capaz de permitir a caminhada de pessoas com determinadas incapacidades motoras. Captando a eletricidade produzida pelo cérebro em funcionamento, o neurocientista se propõe a conectá-la em potencializadores de movimentos e colocar em ação uma estrutura metálica apropriada para acionar o movimento do corpo humano. Contudo, para além de fazermos uma crítica à suposta desumanização da existência, ou a uma robotização das ações pessoais a que invenções como o Walk Again Project poderiam apontar, fixamo-nos especificamente nas associações que os experts do cérebro fazem entre o funcionamento neuronal e a constituição das individualidades humanas. Nesse campo discursivo, o cérebro seria um recipiente cuja interioridade estaria ocupada por moléculas ionizadas em um ambiente propício para tempestades elétricas que se manteriam em estado caótico, caso um cientista interessado em decifrá-las não atentasse à melodia por elas produzidas. Tal concepção garante e justifica o sucesso das empreitadas tecnológicas dirigidas à manipulação do sistema nervoso, mas, em nossa concepção, pouco ajuda em termos de compreensão dos processos envolvidos na aprendizagem. Ao justificar suas proezas tecnológicas para a produção de uma interface cérebromáquina, Nicolelis evoca variadas teorias e apoia nelas suas experiências laboratoriais. Dentre as visões que o neurocientista assume, destacamos aquilo que ele define como plasticidade cerebral. Nessa concepção, o cérebro é perspectivado como possuidor de uma matriz genética que predisporia cada qual das espécies animais a uma determinada representação da realidade, representação esta suficiente para determinar o comportamento dos seres diante de situações por eles desconhecidas. Nas palavras do autor, “nossa imagem corporal – esse refúgio inexpugnável de nossa individualidade e unidade mental – emerge graciosamente como um subproduto dinâmico da atividade elétrica coletiva de vastos circuitos cerebrais” (NICOLELIS, 2011, p. 119). A partir dessa visualização, o autor apresenta seus estudos dirigidos à busca por padrões de respostas cerebrais diante de diferentes estímulos. Ou seja, na concepção de Nicolelis, se compreendêssemos os processos eletroquímicos envolvidos no funcionamento cerebral, seríamos capazes de antecipar as reações humanas diante de excitações externas ou mesmo internas, estas formadas pelos pensamentos. Assim, tomando o cérebro como uma “central de processamento” (NICOLELIS, 2011, p. 209), o neurocientista sente-se capaz de afirmar que esse “ente ativo, sempre em fluxo” (p. 209) é produto de uma constante adequação do indivíduo aos embates com o meio ambiente que o engloba. Portanto, o aprendizado nessa concepção neurocientífica teorizada por Nicolelis, cremos, seria ação semelhante ao condicionamento. No entanto, para além dos cães de Pavlov ou dos exercícios de Skinner, o condicionamento contemporâneo vincular-se-ia a uma imediata expressão de individualidade. Uma individualidade coletiva, pois baseada na codificação genética própria de toda espécie animal e, ao mesmo tempo, uma individualidade absolutamente pessoal, uma vez que resultado de uma específica configuração molecular momentânea e fugaz. Destarte, ensinar na perspectiva neurocientífica seria o mesmo que aplicar um conjunto de atividades pré-concebidas na esperança de mapear, a partir da reação do aprendiz, o caminho para a eficácia do processo educativo. Assim, fica bastante clara, nessa perspectiva, a associação entre as dificuldades escolares com algum déficit na capacidade de processamento cerebral da criança, considerando tal déficit como a distância entre a produtividade do indivíduo em dificuldade e aquilo que se espera para sua idade. Ponderando a avalanche discursiva (LIMA, 2005) em torno dos transtornos escolares e, mais especificamente, a grande produção de artigos, reportagens, entrevistas e peças publicitárias acerca dos fundamentos neurocientíficos do aprendizado, reparamos que tais discursos alcançam a feição de verdades quase insofismáveis. Vasculhando o caminho desse aparente consenso em torno de uma visualização científica/padronizadora/interventora nos processos de aprendizagem, não deveria causar surpresa a explosão de diagnósticos que acompanha alguns sistemas educacionais quando eles quedam controlados por uma sanha cientificista que finda por procurar em cada uma das dificuldades escolares elementos de algum desvio nos processos biológicos que, supostamente, os lastreariam. Acreditamos estar confinando as crianças agitadas, incompetentes, silenciosas e inconstantes a um discurso generalista e normalizador quando associamos a essas qualidades epítetos como desatenção, dislexia, depressão ou bipolaridade. Além disso, acreditamos que esse confino torna-se ainda mais sofisticado e efetivo quando apoia-se no desejo da própria criança, assim como de sua família, de explicar seus fracassos a partir de uma corporeidade inadequada ou deficitária. Por fim, acreditamos que a grande perversidade da penetração de determinados elementos da lógica discursiva cara à neurociência no ambiente escolar é produzir, em larga escala, uma noção segundo a qual a dificuldade escolar pertence à natureza profunda de cada um dos aprendizes em desalinho com a educação a que são submetidos. Em outras palavras: ao restringirem-se à explicação neurológica de suas inapetências, tais aprendizes submetem-se, incontinenti, a estratégias de tratamento nas quais o uso de remédios e terapias são demandados como correção de funções genética e biologicamente determinadas. Destarte, com a proeminência desse tipo de biologização da vida, morre toda e qualquer pretensão de pensar o ser humano para além de “nossa pele mortal” (NICOLELIS, 2011, p. 119). Referências FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987. LIMA, Rossano Cabral. Somos todos desatentos? O TDA/H e a construção de bioidentidades. Rios de Janeiro: Relume Dumará, 2005. NICOLELIS, Miguel. Muito além do nosso eu: a nova neurociência que une cérebros e máquinas e como ela pode mudar nossas vidas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.