Revista Galileu - Uma mente brilhante

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ciência
Miguel Nicolelis
mudou a neurociência com pesquisas pioneiras sobre
cérebro e robótica. Esse trabalho pode representar a cura
para doenças como o mal de Parkinson. Está a um passo
do Prêmio Nobel. E, aos 48 anos, isso é só o começo
uma
mente
brilhante
Por Sidarta ribeiro
C
onheci Miguel Nicolelis em 1998, quando,
apesar dos meros 37 anos, já era famoso no
meio científico por seus estudos pioneiros
sobre o cérebro e uma curiosa paixão pelo
futebol — sobretudo pelo Palmeiras. Ficamos amigos. Anos depois, em 2006, corria
a Copa do Mundo da Alemanha quando o
vi dar uma inesquecível palestra em Berlim, durante a primeira reunião do Fórum
Europeu de Neurociência.
O jovem professor da Universidade Duke (EUA) começou
sua apresentação tirando sarro da seleção alemã, cutucando
os donos da casa de uma maneira mais arriscada que o
recomendado. Arrancou risos de todos.
Ato contínuo, apresentou uma série de registros neurais
obtidos por meio de múltiplos microeletrodos implantados
no cérebro de animais conscientes, submetidos a estimulação sensorial. Arrancou aplausos de todos.
A plateia ficou assombrada. O método, desenvolvido por
Nicolelis na década anterior, era um verdadeiro prodígio
tecnológico, completamente à frente do que se praticava
em outros laboratórios naquele momento. As conclusões
audaciosas abalavam as teorias vigentes sobre o modo de
funcionamento cerebral. Miguel saiu de lá como um gigante, apesar do tom herético de sua ciência e da provocativa
camisa verde-amarela que vestiu durante toda a palestra.
Nessa época eu ainda não sabia que ele havia enfrentado
resistência ferrenha para aprovar o desenvolvimento do
método dos múltiplos eletrodos em comitês de agências
de financiamento dos EUA. O argumento dos adversários
do projeto era pueril: por que investir em algo moderno
se o modelo usado desde os anos 1930 já “dava conta”
de explicar o fenômeno neural? Hoje sabemos o porquê.
Os experimentos do laboratório de Nicolelis, em vez de
confirmar no atacado aquilo que já se sabia no varejo, revelavam fenômenos totalmente novos, que simplesmente
não podiam ser observados em um único neurônio nocauteado pela anestesia. Nicolelis observou respostas quase
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simultâneas em diferentes lugares do cérebro, com rápida mudança das propriedades
neurofisiológicas em função de alterações
nos nervos periféricos. Emergia um sistema nervoso mais complexo e menos determinista do que afirmavam os livros.
Se Nicolelis tivesse parado por aí, teria
garantido seu lugar entre os grandes neurofisiologistas de seu tempo. O método
de múltiplos eletrodos se disseminou por
grande parte dos laboratórios do globo,
e as descobertas sobre o espalhamento e
plasticidade das respostas tácteis foram
posteriormente confirmadas por outros
pesquisadores. Fazendo a inevitável comparação futebolística, o jogo de Nicolelis no
campo da ciência mundial em 1998 fazia
lembrar Ademir da Guia, craque inquestionável do Palmeiras que Nicolelis venera.
Mas isso ainda era pouco para o paulistano da Bela Vista que emigrou em 1989
para tentar a vida nos EUA, sem cinto de
segurança nem rede de proteção. Ainda
menino, Miguel aprendera com sua avó
Lygia que sonhar grande é melhor do que
sonhar pequeno, pois ambos dão o mesmo
trabalho. Por muitas décadas havia persistido, sem chegar a nenhuma conclusão, o debate sobre qual seria o código
de funcionamento dos neurônios.
Na virada do milênio, Nicolelis publicou trabalhos pioneiros baseados
no uso de redes neurais artificiais
e modelos matemáticos para interpretar os complexos sinais oriundos do cérebro. Acoplando registro
eletrofisiológico e análise computacional em tempo real, foi capaz
de decodificar comandos motores
do cérebro de roedores, primatas e
humanos, permitindo o controle de próteses robóticas. As amplas perspectivas de
uso médico dessa tecnologia motivaram o
financiamento para esse tipo de pesquisa,
abrindo caminho para uma nova área da
neurociência cujo nome foi cunhado por
Nicolelis: interfaces cérebro-máquina.
Ao longo dos anos
NOBEL: seu nome
foi cogitado para
receber o prêmio
após palestrar no
Fórum Nobel
a pesquisa de Nicolelis foi conquistando mais
terreno, depois de várias publicações em
revistas científicas como Nature, Science
e Scientific American. Ele demonstrou ser
possível não apenas enviar sinais neurais
para a máquina, mas também retroalimentar o cérebro com os sinais gerados pelos
atuadores eletrônicos. Também mostrou
que era possível acoplar cérebro e máqui-
na por meio da internet, abrindo caminho
para o uso remoto dessas interfaces.
No dia 15 de novembro de 2007, Nicolelis foi o primeiro brasileiro a dar uma
palestra no Fórum Nobel, criando expectativa em torno de seu nome como candidato
ao prêmio máximo da ciência. Em janeiro
de 2008, o mundo se assombrou com a
macaca que, andando sobre uma esteira
no laboratório do cientista nos EUA, fazia
caminhar um robô no Japão. Em março de
2009, Miguel alcançou a capa do periódico
Science com uma pesquisa pioneira sobre
o controle dos sintomas do mal de Parkinson pela estimulação elétrica da medula
espinhal. Por incrível que pareça, esses
achados são apenas a ponta do iceberg. A
produtividade do laboratório de Nicolelis,
em áreas tão diversas quanto tato, gustação, sono e memória, mal de Parkinson,
esquizofrenia e epilepsia, dá conta dos
mais de 150 trabalhos científicos publicados nos melhores periódicos científicos
do mundo. Mais que um Ademir da Guia,
ele se revelou o Pelé da ciência brasileira.
Esse perfil teria chegado ao fim, não fosse a determinação de Nicolelis de retornar
a seu país de origem. Quando cheguei a
seu laboratório em 2000 para iniciar cinco
anos de pós-doutoramento, reparei num
papel afixado na porta de seu escritório.
Era o famoso poema “Ítaca”, do grego
Konstantínos Kaváfis, que fala da longa
viagem de regresso de Ulisses a sua terra
natal, após a Guerra de Tróia. Um trecho
diz assim: “A muitas cidades do Egito peregrina/para aprender, para aprender dos
doutos/Tem todo o tempo Ítaca na mente/
Estás predestinado a ali chegar”.
Percebi que o paulistano não se acomodaria nos EUA. Três anos depois, liderava
um ousado projeto de repatriação de neurocientistas para o Nordeste brasileiro, o
Instituto Internacional de Neurociências de
Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS).
Aliando a ciência de ponta a inéditas
ações educacionais e médicas, orientadas
especialmente para a população de baixa
renda, o IINN-ELS alavancou investimentos públicos e privados e lançou bases para
um novo modelo de desenvolvimento tecnológico e social. A verdadeira revolução
é levar ao povo os benefícios libertadores
da ciência. Esse é o futuro.
Como Pelé, Nicolelis não se acomodou
com seus primeiros títulos. Tem apenas 48
anos, a cabeça cheia de ideias e a mesma
fome de gols do início da carreira.
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