Relato de Caso Linfoma de Burkitt Burkitt's lymphoma RESUMO ABSTRACT Introdução: o linfoma de Burkitt pertence ao grupo dos linfomas não-Hodgkin, apresentando condições malignas heterogênias que surgem de células muito diversificadas do sistema imunológico, tendo origem no linfócito B. Acomete principalmente crianças. Relato de Caso: paciente masculino, com cinco anos de idade, caucasiano, apresentou-se com aumento de volume em hemiface esquerda com trinta dias de evolução, indolor, de crescimento rápido. Não foram notadas alterações dentárias. Observou-se abaulamento em hemiface esquerda. A tomografia computadorizada mostrou uma lesão destrutiva de aspecto sólido, acometendo a porção alveolar da mandíbula bilateralmente, o ramo mandibular esquerdo, a maxila bilateralmente e as paredes de ambos os seios maxilares, invadindo os antros. A análise cromossômica mostrou linfoma de Burkitt. O tratamento foi quimioterápico, observando-se redução da lesão após a vigésima sessão. O paciente permanece sem sinal de doença, decorridos cinco anos do inicio do tratamento. Discussão: esse tipo de linfoma é de crescimento rápido, etiologia incerta, mas com provável envolvimento do vírus Epstein-Barr e origem genética. A lesão tem uma predominância em crianças, com ocorrência maior em meninos. Apresenta duas subclasses, a forma endêmica ou africana e a forma não endêmica ou americana; alguns autores citam uma terceira subclasse que seria associada com imunodeficiência adquirida. No entanto, todos esses subtipos são idênticos histologicamente, diferenciando-se apenas nas características epidemiológicas e biológicas. Ricardo L. Simette1 Laurindo M. Sassi2 Rosilene A. Machado3 Maria Isabela Guebur4 José Luiz Dissenha5 Onivaldo Cervantes6 Mara A. B. Pianovski7 Suely Z. Voss8 Dionísio Abrão9 Introduction: burkitt's lymphoma belongs to the group of the NonHodgkin's lymphomas. It presents heterogenic malignant conditions that usually stem from highly diversified cells of the immune system, having their origin in B lymphocytes. Case report: a male Caucasian 5-year-old patient presented a painless growth on his left hemiface for 30 days. No dental disorders were found. The extraoral exam showed a lump in his left hemiface. The computed tomography showed a solid-looking destructive lesion in the alveolar region of the mandible (bilaterally), left mandibular ramus, maxilla (bilaterally), and the walls of both maxillary sinuses, reaching the antra. The Burkitt's lymphoma diagnosis was confirmed through the chromosome analysis. The treatment consisted of 20 sessions of chemotherapy, with tumor reduction. The patient remains disease-free after 5 years from the beginning of the treatment. Discussion: this kind of lymphoma is a fastgrowing tumor whose etiology is uncertain, but which may have association with the Epstein-Barr virus, and/or with genetic conditions. It is a childhood tumor afflicting mainly the boys. It has 2 subclasses, the endemic (or African) form, and the non-endemic (or American) one. Some authors claim that there is a third subclass which would be associated to acquired immunodeficiency. Despite that, all subtypes present identical histology with different epidemiologic and biologic features. Key words: burkitt's lymphoma. Descritores: linfoma de Burkitt. INTRODUÇÃO O linfoma de Burkitt foi primeiramente descrito por Albert Cook, médico missionário britânico que trabalhou no leste da África, na virada do século. Ele notou uma malignidade entre crianças africanas que, predominantemente, afetava os maxilares e, algumas vezes, vários órgãos abdominais. Meio século depois, um cirurgião britânico, também missionário, chamado de Denis Burkitt, também trabalhando no leste da África, notou as mesmas lesões nas crianças e ainda detectou massas abdominais em alguns casos. Ele publicou seus achados em 1958, chamando as lesões de “sarcoma envolvendo os maxilares” e apresentou uma análise detalhada da incidência do envolvimento dos maxilares e resultado das necropsias1-2. O linfoma de Burkitt pode ser chamado de linfoma africano, sarcoma dos maxilares, sarcoma multicêntrico e linfoma linfoblástico3. Pertence ao grupo dos linfomas não-Hodgkin, apresentando condições malignas heterogênias que surgem de células muito diversificadas do sistema imunológico. É originada do linfócito B, que representa um linfoma indiferenciado1 e que tem predominância em crianças do gênero masculino em uma proporção de 1,9:14. Há uma íntima relação entre a infecção pelo Epstein-Barr vírus (EBV) e o surgimento do linfoma de Burkitt. Tem sido demonstrado que o EBV pode produzir anormalidades cromossômicas em linfócito B infectado. Há forte evidência de que o linfoma de Burkitt tem um vírus como fator causal e que algum agente biológico como mosquito ou artrópode climadependente pudesse agir como vetor do vírus, implicando a disseminação do tumor5. O tumor de Burkitt está relacionado a fatores ambientais como a altitude, temperaturas amenas e baixo índice pluviométrico, o que explica sua relação com o (1) Cirurgião Dentista do Hospital Erasto Gaertner, Curitiba. (2) Mestre pelo Curso de Pós-Graduação em Ciências da Saúde do Hospital Heliópolis, São Paulo; Chefe do Serviço de Cirurgia e Trauma Buco-Maxilo-Facial do Hospital Erasto Gaertner, Curitiba. (3) Especialista e Mestre em Cirurgia e Trauma Buco-Maxilo-Facial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. (4) Mestre pelo Curso de Pós-Graduação em Ciências da Saúde do Hospital Heliópolis HOSPHEL, São Paulo; Professora da Disciplina de Anatomia Humana das Faculdades Integradas “Espírita”, FACIBEM, Curitiba. (5) Cirurgião Dentista do Serviço de Cirurgia e Trauma Buco-Maxilo-Facial do Hospital Erasto Gaertner, Curitiba. (6) Livre Docente pelo Departamento de Otorrinolaringologia e Distúrbios da Comunicação Humana da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina, São Paulo. (7) Doutora pelo Curso de Saúde da Criança e Adolescente da Universidade Federal do Paraná; Médica Pediatra do Hospital Erasto Gaertner, Curitiba. (8) Médica Pediatra do Hospital Erasto Gaertner, Curitiba. (9) Chefe do Serviço de Pediatria do Hospital Erasto Gaertner, Curitiba. Instituição: Hospital Erasto Gaertner, Curitiba. Correspondência: Laurindo Moacir Sassi, Av. Sete de Setembro, 4698 sala 180580240-000 Curitiba, PR. E-mail: [email protected] Recebido em: 03/10/2006; aceito para publicação em: 29/11/2006. Rev. Bras. Cir. Cabeça Pescoço, v. 36, nº 1, p. 53 - 55, janeiro / fevereiro / março 2007 53 mosquito, que tem um ambiente propício ao seu desenvolvimento2. A específica distribuição geográfica do linfoma de Burkitt corresponde com a malária hiperendêmica, sugerindo-a como um co-fator. O tumor foi postulado como relacionado, patogenicamente, ao EBV porque mais de 90 % das células tumorais mostram expressão de antígeno nuclear EBV e o paciente afetado tem um título de anticorpos elevado para esse vírus. Além disso, fatores genéticos como a translocação t dos cromossomos 8 e 14 (raramente entre o 2 e 22) através do cmyc também podem estar implicados. As variedades endêmica e não endêmica caracterizam-se por uma translocação da parte distal do cromossomo 8 para o cromossomo 14, sendo o primeiro a sede do oncogene c-myc e o último, o loco da cadeia pesada da imunoglobulina5. Os linfócitos B imaturos proliferam-se rapidamente de forma monoclonal, com crescimento de quase 100%, fazendo talvez a mais rápida divisão celular conhecida, garantindo o rápido desenvolvimento do tumor e a morte rápida6. O linfoma de Burkitt pode ser o primeiro indicativo de infecções por HIV. Isso é particular para homens homossexuais ou para aqueles com alto risco de adquirir SIDA2. O linfoma de Burkitt é um linfoma não-Hodgkin com duas subclasses: a forma endêmica ou denominada de linfoma africano de Burkitt e a forma não endêmica ou americana. A forma africana representa uma malignidade exclusiva da região africana, afeta crianças e, geralmente, apresenta envolvimento bucal e ocorre no intervalo de um a cinco meses dentre os primeiros sintomas ao diagnóstico3, podendo ter envolvimento visceral e estão normalmente relacionadas ao EBV2,7,8. Das doenças que ocorrem em crianças africanas, o linfoma de Burkitt pode acometer de 50 a 70%8. A forma não endêmica ou americana é histologicamente idêntica à endêmica, diferenciando-se em outros aspectos. Podem ocorrer em outras regiões, como Brasil, Estados Unidos, Colômbia, Inglaterra, Japão, China, Jamaica e outros8. Podem acometer qualquer raça, não tendo predileção específica e a média de idade varia de 6 a 31 anos. Geralmente, envolvem os linfonodos e tecidos linfóides, principalmente a medula óssea1. Radiograficamente, nas manifestações bucais, apresenta-se com uma imagem radiolúcida com irregularidade, acometendo parte óssea de maxila e mandíbula; sem definição das margens da lesão. A cortical pode estar expandida. O deslocamento dentário é citado, inclusive dos germes dentários9. Em casos avançados, ocorre extensa destruição óssea com padrão osteolítico, imagens multiloculares podendo ser confundidas com ameloblastoma. Esse fenômeno está associado com a infiltração multicêntrica da mandíbula e tecido dental por células tumorais ou por um fator de atividade osteoclástica de células linfóides3. Para a complementação diagnóstica, sugerese que todos os pacientes com suspeita clínica tenham radiografias dos maxilares como base da investigação radiológica, podendo-se usar, para complementar o diagnóstico radiográfico, formas mais modernas como a tomografia computadorizada e o mapeamento ósseo2. Burkitt, em 1958, publicou trabalhos enfatizando alguns aspectos clínicos da doença em regiões endêmicas. Localizavam-se preferencialmente na mandíbula e maxila onde, em algumas ocasiões, apresentavam origem multifocal em crianças com idades variadas entre 2 e 14 anos3,7. O tumor inicialmente ocupa a região dos processos alveolares, onde se nota aumento da mobilidade dos dentes da região afetada, os quais, desalojados de seus alvéolos e forçados pelo crescimento neoplásico, terminavam por serem incorporados a massa tumoral. O crescimento tumoral progressivo desfigura a face do paciente, adenopatia cervical está ausente contrastando com o freqüente enfartamento linfonodal observados nos demais tipos de linfomas malignos. Pode ocorrer tumor com localização visceral, incluindo a glândula tireóide, onde o sintoma ocorre por bócio nodular ou difuso; 54 glândulas salivares com aumento do volume local; base da língua, com sintoma obstrutivo, ocorrendo disfagia e disfonia; órbita, ocorrendo diplopia e exoftalmia; fígado; rins; coração e ossos longos3,7,8. O tratamento deve ser iniciado dentro de 24 horas do diagnóstico, para o melhor prognóstico do paciente. Podem ser feitas cirurgias para reduzir o tumor em 80 a 90%, no caso de esses tumores estarem em estágio inicial e localizados em regiões ressecáveis10. A maioria dos autores preconiza a quimioterapia e radioterapia em tumores de estágio inicial3,8. A resposta ao tratamento é rápida, principalmente, quando iniciada no estágio inicial da doença, mas recidivas são freqüentes3. A instituição da quimioterapia e radioterapia é imperativa para prevenir a rápida e fatal disseminação da doença10. Com a quimioterapia múltipla, uma sobrevida de dois anos é em média de 54%, com variação de 80% para doença em estágio inicial e 41% para doença em estágio avançado1. RELATO DE CASO Paciente do gênero masculino, cinco anos de idade, caucasiano, deu entrada no Hospital Erasto Gaertner, em Curitiba, em maio de 2002. Foi relatado aumento de volume em hemiface esquerda com trinta dias de evolução, indolor e de crescimento rápido, lacrimejamento no olho esquerdo e rinorréia esquerda. Não foram notadas alterações dentárias compatíveis com o aumento de volume. Ao exame físico extraoral, observou-se abaulamento em hemiface esquerda, atingindo região infra-orbitária e estendendo-se até a região submandibular, medindo aproximadamente 11 x 4cm, provocando protrusão do seio maxilar esquerdo e mandíbula. Ao exame intraoral, observou-se a expansão das corticais vestibular e lingual da região anterior e, do lado esquerdo, movimentação dos dentes e gengiva com coloração vinhosa – figura 1. A tomografia computadorizada mostrou lesão destrutiva de aspecto sólido acometendo a porção alveolar da mandíbula bilateralmente, o ramo mandibular esquerdo, a maxila bilateralmente e as paredes de ambos os seios maxilares, invadindo os antros – figura 2. À cintiligrafia óssea, foi verificado que as alterações descritas nos maxilares e mandíbula eram compatíveis com infiltração óssea local. Não foram observadas evidências de metástases à distância. Foi realizada análise cromossômica para avaliação da existência de translocações. Foram analisadas 22 metáfases e, em quatro delas, foram observadas translocação t (8;14). Essa translocação está presente em 75-85% dos casos de linfoma de Burkitt. Foi iniciado o tratamento, baseado em sessões de quimioterapia com Oncovim e Madit. Após a vigésima sessão, pode-se observar uma redução da lesão – figura 3. O paciente permanece sem sinal do retorno da doença inicial, decorridos quatro anos do inicio do tratamento. Figura 1 – Inicio do tratamento, apresentando a lesão intrabucal. encontro com o quadro do paciente aqui relatado9. O crescimento tumoral é progressivo e desfigura a face do paciente, como o verificado no relato3,7. A doença é rapidamente fatal, com morte geralmente ocorrendo de quatro a seis meses após o diagnóstico, se não for tratada6, porém, o tratamento iniciado dentro de 24 horas do diagnóstico melhora consideravelmente o prognóstico do paciente, pois a resposta ao tratamento é rápida principalmente quando se faz no estágio inicial da doença3,10. O tratamento preconizado é a quimioterapia e/ou radioterapia para prevenir a rápida e fatal disseminação da doença 3,8,10. O linfoma de Burkitt é descrito como uma patologia de evolução rápida. O prognóstico do paciente está diretamente relacionado ao tempo decorrido desde o primeiro sinal clínico até o início do tratamento. Geralmente, em estágios iniciais, há envolvimento dos maxilares, principalmente em tumor do tipo não africano. Figura 2 – Tomografia computadorizada da maxila ao início do tratamento. Figura 3 – Tomografia computadorizada da maxila, sem lesão. DISCUSSÃO O linfoma de Burkitt é descrito como um tumor pertencente ao grupo dos linfomas não–Hodgkin, de crescimento rápido, de etiologia incerta, mas que provavelmente pode ter envolvimento do vírus Epstein-Barr e de origem genética. A lesão tem uma predominância em crianças, com ocorrência maior em meninos. Apresenta duas subclasses, a forma endêmica ou africana e a forma não endêmica ou americana; alguns autores citam uma terceira subclasse que seria associado com imunodeficiência adquirida2,5. No entanto, todos esses subtipos são idênticos histologicamente, diferenciandose apenas nas características epidemiológicas e biológicas1,46,8,10 . A forma endêmica representa uma malignidade exclusiva da região africana, afeta crianças e geralmente apresenta envolvimento bucal, podendo ter envolvimento visceral e está normalmente relacionada ao EBV. A forma não endêmica pode ocorrer em outras regiões, acometer qualquer raça e a média de idade varia de 6 a 31 anos de idade. Geralmente, envolve com mais freqüência os linfonodos e tecidos linfóides, principalmente a medula óssea. Estudos imunológicos mostraram que o título dos anticorpos para antígeno EpsteinBarr vírus é observado em menor percentagem nas áreas não endêmicas que aqueles encontrados nos pacientes de áreas endêmicas1,2,3,7,10. Radiograficamente se apresenta com uma imagem radiolúcida com irregularidades, acometendo parte óssea de maxila e mandíbula; sem definição das margens da lesão, indo de REFERÊNCIAS 1. Neville BW et al .Distúrbios Hematológicos In: Neville BW et al. Patologia oral e maxilofacial. 1a ed Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1995.pp.424-5. 2. Tsui SH, Wong MH, Lam WY. Burkitt's lymphoma presenting as mandibular swelling--report of a case and review of publications. Br J Oral Maxillofac Surg. 2000;38(1):8-11. 3. Lascala CMM, Tadaaki A, Lascala NT, Boraks S. Contribuição, estudo e revisão do tumor de Burkitt com vistas a odontopediatria / Contribution, study and review of the tumor of Burkitt with vision to pedodontics. Rev Odontol UNICID. 1993;5(2):125-33. 4. Oji C, Ike I. [Burkitt lymphoma. Study of 110 patients] BurkittLymphom. Studie über 110 Patienten. Mund Kiefer Gesichtschir. 1999;3(4):220-4. 5. Soames JV, Southam JC. Oral Pathology. 2nd ed. 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