REVISÃO Inter-relações entre as funções hormonais do ovário e da tireoide Interrelations between ovarian and thyroid functions Luiz Felipe Bittencourt de Araújo1 Renata Grozovsky2 Denise Pires de Carvalho3 Mario Vaisman4 Palavras-chave Glândula tireoide Ovários Saúde da mulher Estrogênios Keywords Thyroid gland Ovary Women’s health Estrogens Resumo A relação entre as funções hormonais do ovário e da tireoide vem sendo motivo de interesse da comunidade científica mundial desde o século 19. Ao longo do tempo, diversos estudos objetivaram esclarecer fatos relacionados à interdependência funcional desses sistemas orgânicos. De fato, há evidências da ação direta e indireta do estrogênio na tireoide. Mulheres climatéricas em estado de hipoestrogenismo podem apresentar alterações na função tireoidea. Foram demonstrados efeitos da gonadectomia e da administração de estrogênio na tireoide de animais e de humanos. Por outro lado, alterações da função tireoidea podem causar distúrbios da função reprodutiva feminina. Mulheres portadoras de doenças da tireoide podem apresentar distúrbios menstruais, infertilidade e complicações do ciclo grávido-puerperal. Sendo assim, indicam-se procedimentos para a detecção de distúrbios tireoideos em diversas situações clínicas relacionadas à função reprodutiva feminina. Além disso, a função tireoidea deve ser cuidadosamente avaliada em mulheres com hipotireoidismo durante a gestação ou quando submetidas à estrogenioterapia. Dessa maneira, a função e as doenças da tireoide são assuntos de interesse para o ginecologista. É fundamental a conscientização do profissional que presta assistência à saúde da mulher em relação aos diversos aspectos relacionados às interações entre a tireoide e a função reprodutiva feminina. Abstract Since the 19th century the interrelation between thyroid and sex organs function is recognized. In fact, there are evidences that estrogens act directly and indirectly on the thyroid gland. Postmenopausal women can show altered thyroid function tests. It has been shown in animals and in humans that gonadectomy and estrogens treatment exert effects on thyroid gland. Also, thyroid dysfunction is associated with reproductive dysfunction in women. Both hyper- and hypothyroidism may result in menstrual disturbances, infertility, abortion and complicated pregnancy. Tests for detection of thyroid disorders should be performed in women in many situations related to reproductive function. Patients with hypothyroidism should be strictly monitored during pregnancy and hormone replacement therapy with estrogens. Thus, thyroid dysfunction should be a point of interest for gynecologists. Practitioners providing health care for women should be aware of the consequences related to the interactions between these two endocrine systems. Doutor em Medicina, pesquisador da Disciplina de Endocrinologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil Doutora em Ciências, pesquisadora do Laboratório de Fisiologia Endócrina do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil 3 Doutora em Medicina, diretora do Laboratório de Fisiologia Endócrina do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil 4 Doutor em Medicina, professor titular da Disciplina de Endocrinologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil 1 2 Araújo LFB, Grozovsky R, Carvalho DP, Vaisman M Introdução A relação entre as funções hormonais do ovário e da tireoide é conhecida há muito tempo, desde que Von Basedow, em 1840, descreveu o caso de uma mulher com amenorreia associada a um quadro de hipertireoidismo. Alguns anos depois, a publicação do caso de uma menina que desenvolveu puberdade precoce concomitante ao hipotireoidismo teve grande repercussão entre os especialistas em saúde da mulher. A partir desse momento, tornou-se evidente a interdependência funcional entre a tireoide e os órgãos reprodutivos e, ao mesmo tempo, cresceu o interesse da comunidade científica mundial pelo assunto. Experimentos enfocando a relação entre esses órgãos foram desenvolvidos a partir das primeiras décadas do século 20. Acreditava-se que o ginecologista atualizado tinha necessidade de conhecer a correlação entre as glândulas endócrinas, uma vez que o ovário, a que mais o interessa, possui importante relação com a tireoide. Os resultados dos diversos estudos sobre as interações endócrinas realizados àquela época indicavam que a fisiologia reprodutiva feminina dependia, fundamentalmente, da normalidade das concentrações plasmáticas dos hormônios tireoideos. Atualmente, a interação entre os diversos sistemas endócrinos continua sendo assunto amplamente discutido. A evolução da biologia celular possibilitou a elaboração de estudos mais minuciosos e as evidências produzidas no passado tornaram-se conclusões universalmente aceitas. Dessa maneira, novos conceitos se difundiram e a influência do ovário sobre a tireóide, e vice-versa, deixou de ser apenas motivo de pesquisas e ganhou maior importância na prática clínica. Condutas fundamentadas na possível concomitância de distúrbios tireoideos e reprodutivos podem ser adotadas, melhorando, assim, a assistência à saúde feminina. Aspectos epidemiológicos dos distúrbios da tireoide Os distúrbios da tireoide são comuns e acometem indivíduos de ambos os sexos e em todas as partes do mundo. Estima-se que a prevalência de hipotireoidismo clínico e subclínico na população geral varie de 4 a 10%, enquanto a de hipertireoidismo varie de 1 a 1,3%. Os casos de hipotireoidismo subclínico, caracterizado pelo aumento das concentrações do hormônio tíreo-estimulante (TSH) associado a níveis normais de tiroxina livre, são os mais frequentes.1 Os nódulos da tireoide são, de maneira semelhante às desordens funcionais, comuns nas diversas amostras populacionais. 144 FEMINA | Março 2009 | vol 37 | nº 3 Aproximadamente 3% dos indivíduos apresentam nódulos palpáveis da tireoide. Considerando-se também a presença de lesões não palpáveis, nódulos tireoideanos podem ser detectados com ecografia, em cerca de 19 a 67% das pessoas submetidas a estudo. Dentre as tireoides avaliadas em necrópsias, 50% das amostras apresentam nódulos, apesar de não existirem suspeitas prévias das lesões nos indivíduos afetados.2 Nos Estados Unidos, o carcinoma da tireoide é o nono tipo mais frequente de neoplasia maligna entre as mulheres. O Instituto Nacional do Câncer Norte-Americano avaliou que a prevalência geral de portadores da doença, naquele país, era de 204 mil a 233 mil pacientes, no início dessa década. Segundo dados da Sociedade Norte-Americana de Câncer (American Cancer Society), cerca de 20.700 novos casos de câncer de tireoide foram diagnosticados naquele país, em 2002.3 As doenças da tireoide são mais comuns em indivíduos do sexo feminino do que do masculino. O dimorfismo sexual na prevalência dos distúrbios da tireoide pode ser explicado pela influência dos esteroides sexuais ovarianos na glândula. A predisposição para desenvolvê-las é maior no climatério, período da vida em que ocorre a falência funcional ovariana e em que a mulher experimenta um estado sistêmico de hipoestrogenismo. De fato, a prevalência das doenças da tireoide aumenta na pós-menopausa e essas anomalias podem acometer 20% da população feminina nessa fase.1 A influência dos hormônios sexuais na tireoide A influência dos hormônios sexuais na regulação da função tireoidea vem sendo interesse de pesquisas desde o início do século passado. Os primeiros estudos realizados sobre o assunto concluíram que, em ratas, ocorre atrofia da tireoide, nos dias subsequentes à castração. O quadro histológico seria compatível com o de uma glândula em repouso funcional, na qual os folículos estão aumentados de tamanho, repletos de coloide, com o epitélio fino e achatado.4 Estudos experimentais Moon e Turner relataram que, em ratas, enquanto a gonadectomia causa depressão da atividade da tireoide com redução da sua taxa diária de secreção, o tratamento com estrogênio evita esse quadro e mantém a produção dos hormônios tireóideos normal.5 Chen e Walfish observaram aumento das concentrações plasmáticas de triiodotironina (T3) e TSH, em associação à diminuição dos níveis de tiroxina (T4), em ratas castradas tratadas com benzoato de estradiol.6 Mais recentemente, Böttner Inter-relações entre as funções hormonais do ovário e da tireoide e Wuttke reforçaram a hipótese de que o tratamento crônico com estradiol reduziria os níveis de T4 em ratas adultas castradas, mas referiram que o efeito seria variável, de acordo com idade dos animais.7 É possível que diferenças entre as condições experimentais utilizadas nos experimentos influenciem os resultados. A dose das medicações, a duração dos tratamentos, o grau de avanço tecnológico do momento do estudo e as técnicas escolhidas foram fundamentais para a qualidade dos resultados obtidos até o momento. O tratamento com esteroides sexuais pode induzir alterações na morfologia da tireoide. D’Angelo e Fisher observaram alterações morfológicas na tireoide de ratas castradas e submetidas a tratamento com estrogênio injetado por via subcutânea; as alterações observadas foram compatíveis com hiperplasia e ativação glandular.8 Zayed et al. relataram alterações morfológicas, nas tireoides de cadelas, induzidas pelo tratamento crônico com estradiol e etinilestradiol. Verificaram-se, no epitélio folicular, focos de proliferação celular, estratificação e metaplasia escamosa. Em algumas áreas, o folículo estava completamente preenchido por células escamosas.9 Araujo et al. realizaram um estudo histomorfométrico da tireoide de ratas castradas tratadas com estrogênio e tamoxifeno, comparando-as com ratas que receberam placebo. Observaramse, nos grupos tratados, alterações morfológicas semelhantes e sugestivas de hiperatividade glandular.10 Nesses animais, as células foliculares eram altas e o epitélio glandular era do tipo colunar. Os folículos apresentavam pequena superfície e reduzida quantidade de coloide. Nos animais castrados não tratados, utilizados como controle, o aspecto histomorfométrico da tireoide era sugestivo de hipoatividade glandular. As células foliculares eram achatadas e o epitélio escamoso. Os folículos eram grandes e repletos de coloide.10 Recentes estudos em biologia celular trouxeram valiosa contribuição ao entendimento da relação entre o estrogênio e a tireoide. Segundo Utian, os tecidos ou órgãos nos quais ocorre ação do estrogênio são aqueles em que as células possuem receptores específicos para o hormônio.11 Dessa maneira, a tireoide pode ser, definitivamente, considerada um dos órgãos suscetíveis à atividade estrogênica, uma vez que a presença de receptores estrogênicos nas células foliculares tem sido confirmada em vários experimentos.12 Postula-se que o estrogênio desempenhe função regulatória na tireoide e que, em condições de normalidade, tem papel fundamental no crescimento e desenvolvimento da glândula.12 De fato, a presença 17ß estradiol foi demonstrada na tireoide, em condições fisiológicas, por meio de imunoistoquímica.13 Há evidências de que o estrogênio tem efeito direto sobre as células foliculares, intermediado pelo receptor estrogênico.14 Banu et al. acrescentaram que o estrogênio pode atuar diretamente no epitélio tireoideo e estimular a proliferação celular.12 Araujo et al. observaram diminuição do índice de expressão do antígeno nuclear de proliferação celular (PCNA), associada a aspecto morfológico sugestivo de hipoatividade, na tireoide de ratas castradas, quando comparadas a ratas com gônadas intactas. Paralelamente, constatou-se que o tratamento com estrogênio ou raloxifeno revertia os efeitos da gonadectomia. Assim, ratas castradas tratadas com essas drogas apresentaram índices de PCNA e aspectos morfológicos nas tireoides semelhantes aos das ratas que possuíam gônadas funcionantes.15 Estudos clínicos A influência do estrogênio na atividade da tireoide foi demonstrada também em estudos clínicos. Bottiglioni et al. observaram uma tendência à depressão da função tireoidea após a menopausa, embora as modificações encontradas não tenham repercussões clínicas importantes.16 Contraceptivos orais combinados administrados por períodos superiores a seis meses podem induzir alterações da função tireoidea em mulheres usuárias. Embora permaneçam dentro das faixas de normalidade, elevam-se os níveis plasmáticos de TSH, triiodotironina (T3) e tiroxina (T4). O aumento das concentrações totais de T3 e T4 seria decorrente do aumento da globulina transportadora de hormônios tireoideos (TBG) induzido pelo estrogênio. Devido ao aumento da capacidade de ligação da TBG, os níveis das frações livres de T3 e T4 não se modificam. Considerando-se que os níveis de T3 e T4 livres estão inalterados e que, portanto, a necessidade de hormônios tireoideos no organismo não se modificou, a hipótese da retroalimentação negativa é descartada como justificativa para o aumento do TSH. A elevação do TSH é atribuída a um possível efeito inibitório direto do estrogênio na tireoide.17 Mulheres pós-menopáusicas com hipotireoidismo, quando fazem uso de estrogenioterapia, apresentam redução da concentração plasmática de T4 livre e aumento de T4 total, TBG e de TSH. Com o aumento de TBG induzido pelo estrogênio, ocorre aumento da fração de tiroxina ligada à globulina e consequentemente, diminuição de T4 livre. Com a redução da oferta, a entrada de tiroxina nas células fica mais lenta, resultando em queda da ação periférica do hormônio. A redução dos níveis plasmáticos de T4 livre é também provocada pelo aumento de sua taxa de metabolização induzi- FEMINA | Março 2009 | vol 37 | nº 3 145 Araújo LFB, Grozovsky R, Carvalho DP, Vaisman M do pelo estrogênio. A diminuição de T4 livre é suficiente para induzir a elevação de TSH, o que pode resultar em aumento da necessidade de tiroxina. Dessa maneira, o efeito do estrogênio na função tireoidea pode interferir no tratamento das pacientes com hipotireoidismo. Mulheres pós-menopáusicas com hipotireoidismo podem necessitar de aumento na dose terapêutica de tiroxina quando submetidas, ao mesmo tempo, à estrogenioterapia. Ademais, o aumento de TSH é de grande relevância clínica, uma vez que pode trazer consequências negativas a mulheres com câncer de tireoide que fazem terapia de supressão dos níveis de TSH com tiroxina. Pacientes eutireoideias, na pós-menopausa, quando tratadas com estrogênio apresentam apenas elevação da concentração total de T4 e TBG. O TSH e o T4 livre permanecem inalterados. Essas mulheres têm maior capacidade adaptativa ao aumento de TBG e, portanto, o impacto da estrogenioterapia na função tireoidea é de menor importância clínica.18 A influência dos distúrbios da tireoide sobre a função reprodutiva feminina O impacto das alterações da função tireoidea sobre a função reprodutiva feminina foi bem estabelecido por diversos estudos e deve ser considerado de relevância na assistência à saúde da mulher. O hipotireoidismo e o hipertireoidismo, que se manifestam na infância, quando não tratados podem causar anomalias do desenvolvimento sexual. Menarca tardia pode ocorrer em pré-púberes com hipertireoidismo. Quadros de hipotireoidismo que acometem meninas podem resultar em casos de puberdade precoce ou tardia, sendo o segundo tipo mais frequente.19 Mulheres portadoras de desordens funcionais da tireoide apresentam alterações nas concentrações plasmáticas dos hormônios sexuais. Os níveis da globulina transportadora de hormônios sexuais (SHBG) estão diminuídos no hipotireoidismo e aumentados no hipertireoidismo devido a modificações na atividade de síntese dessa proteína no fígado. Em consequência da diminuição da SHBG, no hipotireoidismo há queda das concentrações totais e elevação das frações livres de testosterona e de estradiol. No hipertireoidismo, por sua vez, com o aumento da SHBG, ocorrem incrementos nos níveis plasmáticos de testosterona total e de estradiol total. A concentração de estradiol livre e estrona estão normais ou reduzidos nessa condição. O hormônio folículo estimulante (FSH) pode apresentar níveis basais elevados no hipertireoidismo. A taxa de metabolização de estradiol encontra-se diminuída no hipertireoidismo, da mesma forma como acontece no hipotireoidismo. Os níveis do hormônio luteinizante (LH) elevam-se em ambos os estados, 146 FEMINA | Março 2009 | vol 37 | nº 3 embora, geralmente, permaneçam ainda dentro da faixa de normalidade.20,21 Os distúrbios da tireoide são associados à infertilidade e a alterações da evolução da gravidez. A anovulação crônica está associada ao hipotireoidismo e ao hipertireoidismo, principalmente nos quadros mais severos. Strickland et al. em estudo com 210 mulheres inférteis, observaram níveis de TSH elevados acima da faixa de normalidade em oito (3,8%) delas. Esse achado demonstra que a incidência de hipotireoidismo em pacientes inférteis é semelhante à da população geral. Entretanto, sete dessas oito pacientes estavam entre as 55 mulheres cujo fator causal para infertilidade era a disfunção ovulatória.22 É possível que o hipotireoidismo esteja envolvido na patogênese da infertilidade feminina. Contudo, faltam evidências suficientes para considerar que o hipotireoidismo, isoladamente, possa ser a causa da desordem. Ademais, na avaliação de mulheres inférteis com hipotireoidismo, outras causas de anovulação crônica mais frequentes devem ser pesquisadas. De qualquer maneira, todas as mulheres inférteis que buscam tratamento para infertilidade devem ser submetidas à análise da função tireoidea, uma vez que mesmo as alterações mais discretas podem afetar negativamente a evolução da gestação. O hipotireoidismo aumenta o risco de abortamento, óbito fetal intraútero, parto prematuro e anomalias fetais congênitas. Mulheres com hipotireoidismo podem ter suas desordens agravadas durante a gravidez. Gestantes com hipotireoidismo e em tratamento podem ter necessidade de aumento nas doses terapêuticas de tiroxina. Gestações em pacientes com hipertireoidismo também apresentam maior taxa de morbidade. Observa-se, nesses casos, maior incidência de óbito fetal intraútero, recém-nascidos de baixo peso e pré-eclâmpsia. Em todas as situações, o tratamento precoce da gestante com a normalização das concentrações plasmáticas dos hormônios tireoideos melhora a evolução da gravidez e diminui o risco de complicações.19 A influência dos distúrbios da tireoide na menstruação Tanto o hipotireoidismo quanto o hipertireoidismo podem causar distúrbios menstruais. Sendo assim, devem ser considerados no diagnóstico diferencial de pacientes que apresentam queixa de sangramento uterino anormal. De acordo com Scott e Mussey, a incidência de alterações menstruais em pacientes com hipotireoidismo é de 56% do total de mulheres afetadas.23 Entretanto, em estudo mais recente realizado por Krassas et al., observou-se menor incidência de ciclos anormais. 23% das mulheres hipotireoideias Inter-relações entre as funções hormonais do ovário e da tireoide apresentaram um padrão anormal de sangramento, em contraste com 8,4% das pacientes eutireoideias. Ainda assim, a incidência de distúrbios menstruais em mulheres com hipotireoidismo é quase três vezes maior do que em mulheres não afetadas.21 Há também discordância entre os resultados de estudos antigos em comparação aos mais atuais no que diz respeito à incidência de distúrbios menstruais em mulheres com hipertireoidismo. Benson e Dailey relataram incidência de alterações menstruais em 58,6% das pacientes com a enfermidade.24 Krassas et al., por outro lado, demonstraram incidência limitada a 21,5% das acometidas pelo hipertireoidismo.21 As alterações menstruais tendem a ser mais frequentes nos distúrbios tireoideos severos, apresentando quadros clínicos mais exuberantes em comparação a casos leves e subclínicos. A diferença entre os resultados dos estudos antigos e os mais atuais pode ser atribuída ao fato de que as doenças da tireoide passaram a ser diagnosticadas precocemente, ainda em fases menos evoluídas do que no passado. Essa tendência se deve, sobretudo, à evolução e à maior acurácia dos métodos de avaliação da função tireoidea. Além disso, a população tornou-se mais consciente em relação à necessidade de cuidados com a saúde ao mesmo tempo em que encontra mais facilidade de acesso à assistência médica. Por muito tempo, acreditou-se que pacientes com hipoteroidismo tenderiam a apresentar aumento do fluxo menstrual, enquanto nos casos de hipertireoidismo, ocorreria redução do fluxo. Entretanto, de acordo com observações mais atuais, conclui-se que não há uma relação direta de especificidade entre o tipo de distúrbio da tireoide e a característica da alteração menstrual apresentada. Dentre as pacientes com hipotireoidismo, os distúrbios menstruais mais frequentes são a oligomenorreia (ciclos com duração superior a 35 dias), correspondente a 42,5% das alterações menstruais e ao aumento do fluxo menstrual, caracterizado por hipermenorreia ou menorragia, presente em 30% dos casos. Um grupo menor de pacientes (15%) pode apresentar hipomenorreia (diminuição do volume do fluxo menstrual) e outro, amenorreia (12,5%). Os quadros de hiperfluxo menstrual relacionados ao hipotireoidismo são atribuídos a episódios de sangramento disfuncional secundários a ciclos anovulatórios. Distúrbios da hemostasia associados ao hipotireoidismo, como as deficiências dos fatores de coagulação VII, VIII, IX e XI, podem contribuir para os quadros de menorragia e de polimenorreia.21 Algumas mulheres com hipotireoidismo podem apresentar amenorreia associada à galactorreia em consequência de hiperprolactinemia, uma vez que o hormônio liberador de tireotrofina (TRH) pode induzir a secreção tanto de TSH como de prolactina.20 Em casos de hipertireoidismo, as alterações menstruais mais comuns são a hipomenorreia em 52% dos casos, a polimenorreia em 32,5% dos casos e a oligomenorreia em 11% das pacientes. Observam-se, ainda, quadros de hipermenorreia em 4,5% dos casos. As alterações menstruais secundárias ao hipertireoidismo são atribuídas à interferência na secreção de gonadotrofinas, no eixo hipotálamo-hipófise, causada pelos hormônios tireoideos em excesso. É possível que a elevação da SHBG observada no hipertireoidismo e as consequentes alterações das concentrações de estradiol também possam contribuir para as alterações menstruais.21 Considerações finais Indica-se a avaliação da função tireoidea em mulheres que apresentam distúrbios menstruais nas quais tenham sido descartadas lesões nos órgãos genitais. Apesar de não estarem entre as causas mais frequentes de defeitos do ciclo menstrual, os distúrbios da tireoide fazem parte do diagnóstico diferencial. Deve-se ter cautela ao atribuir um quadro de alteração menstrual às desordens tireoideas, sobretudo nos casos leves e menos sintomáticos. A identificação de um distúrbio da tireoide não elimina a necessidade de prosseguir a investigação e afastar outras endocrinopatias, como a síndrome dos ovários policísticos, a hiperprolactinemia ou a falência ovariana prematura. É possível que um quadro de disfunção menstrual consequente a outras doenças seja equivocadamente atribuído a um distúrbio da tireoide coincidente. A avaliação de cada caso deve ser criteriosa uma vez que outras alterações ovulatórias podem ocorrer concomitantemente às doenças da tireoide. Considerando que as características das doenças da tireoide são diversas e inespecíficas, pode ser difícil determinar, na prática clínica, se distúrbios reprodutivos originam-se de alterações da função tireoidea ou se estão relacionados a uma afecção gonadal coexistente. Ademais, as desordens da tireoide são de caráter crônico e desenvolvem-se, na maioria das vezes, de forma insidiosa. Em casos de amenorreia associada à galactorreia em mulheres com hipotireoidismo, deve-se suspeitar de hiperprolactinemia. A dosagem da prolactina basal é fundamental para o diagnóstico. É fato relevante que, nos casos de alterações menstruais secundárias a distúrbios da tireoide, o tratamento e restituição das concentrações plasmáticas dos hormônios tireoideos resulta em normalização dos ciclos. Mesmo nos casos de hiperprolactinemia associada ao hipotireoidismo, o tratamento com tiroxina induz a estabilização dos níveis de prolactina, a regularização dos ciclos menstruais e a supressão da galactorreia.19,20 FEMINA | Março 2009 | vol 37 | nº 3 147 Araújo LFB, Grozovsky R, Carvalho DP, Vaisman M Justificam-se os procedimentos para a detecção precoce de distúrbios da tireoide em todas as mulheres grávidas ou que desejam engravidar, especialmente nas que serão submetidas a técnicas de reprodução assistida. Entretanto, essa conduta ainda não é amplamente utilizada. Nos casos em que o diagnóstico da alteração tireoidea está bem estabelecido, as pacientes devem ser cuidadosamente monitoradas durante a gestação já que o tratamento adequado diminui o risco de complicações.19 As mulheres no climatério são mais suscetíveis às doenças da tireoide. As habituais consultas com o ginecologista representam uma oportunidade para a detecção dessas alterações. Além disso, os sintomas do hipotireoidismo e do hipertireoidismo podem confundir-se com os da síndrome climatérica. Sendo assim, recomenda-se, nessas pacientes, o rastreamento periódico para doenças da tireoide. Segundo a Associação Norte-Americana de Tireoide (American Thyroid Society), todas as mulheres acima de 35 anos devem ser avaliadas a cada cinco anos.25 Em situações particulares como, por exemplo, durante a terapia hormonal (TH) com estrogênios ou de risco para doenças da tireoide, as pacientes devem ser reavaliadas com maior frequência. A TH pode aumentar a necessidade de tiroxina nas mulheres com hipotireoidismo e, portanto, essas pacientes devem ser reavaliadas 12 semanas após o início da terapia. Essa recomendação é válida especialmente nos casos de câncer de tireoide em que se utiliza a terapia com tiroxina para supressão de TSH.18 As desordens da tireoide podem ser facilmente diagnosticadas com o auxílio de testes laboratoriais. A dosagem de TSH é considerada método satisfatório para a detecção da maioria dos casos. Nos quadros de hipotireoidismo clínico ou subclínico há elevação das concentrações de TSH. Em contrapartida, o hipertireoidismo se caracteriza por supressão dos níveis plasmáticos de TSH. A dosagem do TSH isolada não é útil para o diagnóstico em casos de hipotireoidismo secundário, de origem central, quando pode apresentar-se diminuída, pouco elevada ou inalterada.25 Sendo alta a prevalência dos distúrbios da tireoide no sexo feminino, não é incomum que as mulheres, durante o curso de suas vidas, desenvolvam algumas dessas alterações. Por diversas ocasiões, o ginecologista que acompanha sua paciente durante grande parte da sua evolução se depara, em meio aos problemas mais comuns em sua especialidade, com as manifestações das doenças da tireoide. Dessa maneira, a função e as doenças da tireoide são assuntos de seu interesse. É fundamental a conscientização do profissional que presta assistência à saúde da mulher sobre os diversos aspectos relacionados às interações entre a tireoide e a função reprodutiva feminina. Leituras suplementares 1. Surkus MI, Ortiz E, Daniels GH, Sawin CT, Col NF, Cobin RH, et al. 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